Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0956/06
Data do Acordão:02/15/2007
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:LÚCIO BARBOSA
Descritores:LEI INTERPRETATIVA.
DIREITO DE AUDIÊNCIA.
AUDIÊNCIA DO INTERESSADO.
Sumário:I - O nº. 1 do art. 60º da LGT assegura a participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito.
II - Tendo o contribuinte, no decurso de uma acção de fiscalização, sido notificado, nos termos do citado art. 60º da LGT do projecto de conclusões do relatório de inspecção, sendo ouvido numa das fases do procedimento inspectivo, não tem que ser de novo ouvido antes da liquidação.
III - É o que resulta do disposto no nº. 3 do citado art. 60º da LGT, na redacção do nº. 1 do art. 13º da Lei nº. 16-A/2002, de 31/5.
IV - Nos termos do nº. 2 do art. 13º desta lei, aquele nº. 1 tem natureza interpretativa.
Nº Convencional:JSTA00063892
Nº do Documento:SA2200702150956
Data de Entrada:09/28/2006
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF PORTO PER SALTUM.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR PROC FISC GRAC - PRINCÍPIOS GERAIS.
Legislação Nacional:LGT98 NA REDACÇÃO DA L 16-A/2002 DE 2002/05/31 ART60 N3.
CONST97 ART267 N5.
L 16 -A/2002 DE 2002/05/31 ART13 N1.
CCIV66 ART13 N1.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A..., identificado nos autos, impugnou judicialmente, junto do então Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, a liquidação adicional de IVA dos anos de 1997 a 2000 e juros compensatórios.
O Mm. Juiz do TAF do Porto julgou a impugnação procedente.
Inconformada, a FAZENDA PÚBLICA interpôs recurso para este Supremo Tribunal.
Formulou as seguintes conclusões nas respectivas alegações de recurso:
1. Tendo sido interposta impugnação contra os actos de liquidação adicional de IVA relativos aos anos de 1997 a 2000, foi proferida decisão, na qual, considerando-se ter existido preterição de formalidade essencial por omissão do direito de audição antes da liquidação, se determinou na procedência da impugnação a anulabilidade dos actos impugnados.
2. Sustenta a douta sentença que o direito de audição deve ser exercido cumulativamente em três momentos do procedimento tributário: antes da decisão de aplicação de métodos indirectos, antes da conclusão do relatório da inspecção tributária e antes da liquidação.
3. Entende a Fazenda Pública que o direito de audição apenas deverá ser exercido uma única vez no procedimento, exceptuados os casos em que são invocados factos novos, estribando-se nas sucessivas introduções legislativas ao Art. 60º da LGT e anterior doutrina no mesmo sentido.
4. O direito de audiência prévia, integrando o princípio da participação consignado no Art. 60º da LGT, aprovada pelo Art. 1º do Decreto-lei n. 398/98, de 17 de Dezembro, traduz-se no direito dos interessados à participação na formação das decisões que lhes digam respeito e/ou que possam afectar os seus direitos ou interesses, em concretização de um direito constitucionalmente consagrado e incide sobre o objecto do procedimento após a recolha de prova e pronto para a decisão, ou seja, deve ser exercido, concluída a instrução e antes da decisão final, conforme determina o Art. 100º e ss. do CPA.
5. Esclareceu o legislador através de interpretação autêntica, que a lei não prevê que o direito de audição seja facultado em todas as formas previstas nas várias alíneas do n. 1 do Art. 60º da LGT, mas sim por qualquer uma das formas aí previstas, e mais recentemente que, existindo relatório de inspecção não há que facultar o exercício do direito de audição para antes da decisão de aplicação de métodos indirectos.
6. No caso concreto, o momento adequado para a efectivação do direito de audição, só sendo este exercitável uma vez no procedimento, deveria ocorrer antes da conclusão do relatório de inspecção, isto é, entre o fim da instrução – recolha dos elementos relevantes por parte da Administração Tributária – e a decisão do procedimento, possibilitando a participação do contribuinte antes da liquidação.
7. Resulta do probatório que o impugnante foi notificado do projecto de conclusões do relatório de inspecção, para exercer o direito de audição nos termos do Art. 60º do RCPIT, dele constando os actos que precedem a liquidação de imposto, mais concretamente a determinação e/ou quantificação da matéria colectável que conduziu às liquidações adicionais de IVA.
8. Em rigor, tendo a Administração Tributária facultado ao impugnante o exercício do direito de audição antes da conclusão do relatório de inspecção, resulta cumprida a obrigação legal prevista no Art. 60º da LGT, pois que a lei interpretativa se considera integrada na lei interpretada, o que significa que retroage os seus efeitos até à data da entrada em vigor da antiga lei, tudo ocorrendo como se tivesse sido publicada na data em que o foi a lei interpretada. Logo, só teria que ser facultado novo direito de audição se a (s) liquidação (ões) se baseasse (m) em elementos distintos daqueles porque o direito de audição inicialmente se concretizou, o que manifestamente não será o caso.
9. Afigura-se assim cumprida, por se encontrar satisfeito o direito de participação que a norma pretende salvaguardar, a obrigação legal prevista na alínea a) do n. 1 do Art. 60º da LGT.
10. Deve ser revogada a douta sentença sob recurso, entendendo-se que não ocorreu preterição de formalidade essencial nos procedimentos de liquidação.
11. A douta sentença recorrida violou o disposto no n. 1 do Art. 60º da LGT, o n. 3 do mesmo preceito, na redacção que lhe foi dada pelo n. 1 do Art. 13º da Lei n. 16-A/2002, de 31 de Maio, com os efeitos que lhe foram atribuídos pelo n. 2 da mesma norma, na redacção que lhe foi dada pelo n. 1 do Art. 40º da Lei n. 55-B/2004, de 30 de Dezembro, com os efeitos que lhe foram atribuídos pelo n. 2 da mesma norma e ainda o Art. 60º do RCPIT.
Não houve contra-alegações.
Neste STA, o EPGA defende que o recurso merece provimento.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
2. É a seguinte a matéria de facto fixada na instância:
A. Em consequência de uma acção de fiscalização levada a efeito pelos serviços de Inspecção Tributária do Porto, durante o período de 19/09/2001 a 14/12/2001, foram efectuadas as liquidações oficiosas de IVA e de juros compensatórios nºs. …, referentes aos anos de 1997, 1998, 1999 e 2000, com recurso a métodos indirectos.
B. As notificações das liquidações acima referidas têm data de 15/10/2002, sendo o limite de pagamento voluntário a 31/12/2002.
C. Em 22/03/2002 foi o impugnante notificado, nos termos do art. 67º do Código do IRS e art. 82º do Código do IVA, dos valores já fixados da matéria colectável de IVA e IRS do ano 1997 com os fundamentos da fixação.
D. Realizou-se, em 05/09/2002, um Procedimento de Revisão nos termos do art. 91º e 92º da LGT no qual, pelo facto de ter sido possível um acordo entre os peritos do sujeito passivo e da Administração Tributária, foi deferida parcialmente a petição do sujeito passivo, tendo sido encontrado o valor da matéria colectável/do imposto no total de 138.939,60€ e 12.121,88€, assim discriminados …
E. A notificação do resultado da Inspecção Tributária referida em A) tem data de 26/03/2002.
F. Foi exercido o direito de audição tal como consta no ponto VIII do Relatório da Inspecção Tributária.
G. Notificado em 17/12/2001, nos termos e para os fins previstos no art. 60° da LGT e art. 60° do RCPIT, o sujeito passivo exerceu o direito de audição, conforme termo recepcionado nesta Direcção de Finanças em 27/12/2001.
3. Na sua petição inicial, o impugnante assacou os seguintes vícios de violação de lei às liquidações impugnadas: caducidade do procedimento de inspecção tributária; caducidade do direito à liquidação; falta de audiência prévia à liquidação.
Em consequência, pediu a anulação da liquidação, com o subsequente pagamento de juros indemnizatórios.
A Mm. Juiz a quo julgou inverificados os dois primeiros vícios. Porém, julgou verificada uma preterição de formalidade legal, qual seja a omissão do direito de audição.
E daí que tenha anulado as liquidações e condenado a AF a pagar juros indemnizatórios.
É contra esta decisão que se insurge a FP.
Vejamos então.
O art. 60º da LGT, subordinado à epígrafe “princípio da participação”, vem dar corpo ao art. 267º, n. 5, da CRP, que reconhece aos cidadãos o direito de participação na formação das decisões e deliberações que lhes disserem respeito.
E o n. 1 deste artigo concretiza os moldes da participação dos contribuintes na formação dessas decisões e deliberações.
Como resulta do probatório, o impugnante foi ouvido, nos termos do citado art. 60º da LGT, sendo notificado do projecto de conclusões do relatório de inspecção.
E sobre o ponto escreve a Mm. Juiz, na sua sentença, que o impugnante foi “notificado de um projecto de conclusões onde constam os respectivos motivos e fundamentos que foram propostos pelo inspector tributário”.
Acrescenta até o seguinte: “… o próprio impugnante admite … que foi ouvido em fases prévias ao procedimento de liquidação, ou seja, durante o procedimento de inspecção”.
Mais: como resulta expressamente do probatório, “foi exercido o direito de audição”.
Mas não foi o impugnante ouvido antes da liquidação.
Ora, a Mm. Juiz entende que o impugnante haveria de ser ouvida antes da liquidação, como resulta do comando da al. a) do n. 1 do citado art. 60º da LGT.
Isto depois de asseverar que a audição se deve necessariamente fazer em três momentos, a saber: antes da decisão de aplicação de métodos indirectos (alínea d); antes da conclusão do relatório da inspecção (alínea e); antes da liquidação (alínea a).
E trazendo à colação acórdão deste STA, que cita, refere que se trata de audições diferentes, cada uma delas não dispensando as demais.
Acrescenta que de jure condendo se poderá pensar que são audições a mais; mas não assim de jure condito. Havendo entretanto que cumprir a lei.
Quid juris?
A questão encontra-se hoje resolvida no n. 3 do citado art. 60º da LGT, que dispõe:
“Tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n. 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais ainda se não tenha pronunciado”.
É certo que este normativo resulta do n. 1 do art. 13º da Lei n. 16-A/2002, de 31/5, ou seja, posterior à acção de fiscalização e à notificação da inspecção tributária.
Porém, o n. 2 daquele art. 13º estatui que o citado n. 1 tem natureza interpretativa.
E, como é sabido, a norma interpretativa integra-se na norma interpretada, retroagindo os seus efeitos ao início da vigência desta (art. 13º, n. 1, do C. Civil).
A lei interpretativa, que é uma interpretação autêntica da lei, é vinculativa.
Acresce dizer – e já o referimos acima – que a lei interpretativa “retroage os seus efeitos até à data da entrada em vigor da antiga lei, tudo ocorrendo como se tivesse sido publicada na data em que o foi a lei interpretada” ( Código Civil Anotado, Pires de Lima e Antunes Varela, 2ª Edição, anotação ao art. 13º).
Vale isto por dizer que, no caso, e face ao probatório, atento o respectivo quadro legal, não havia lugar à audição do impugnante antes da liquidação, por isso que o mesmo fora ouvido sobre o projecto de conclusões do relatório de inspecção. Mais. Resulta expressamente do probatório que foi exercido o direito de audição. E, no caso, não foram invocados factos novos sobre os quais o impugnante não se tenha pronunciado.
Assim, o impugnante não tinha que ser ouvido antes da liquidação.
As liquidações adicionais de IVA não padecem pois do alegado vício de violação de lei.
4. Face ao exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revoga-se a sentença recorrida e julga-se improcedente a impugnação.
Sem custas neste STA, condenando-se o impugnante em custas na 1ª instância.
Lisboa, 15 de Fevereiro de 2007. Lúcio Barbosa (relator) - Baeta de Queiroz - António Calhau.