Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0156/19.9BCLSB
Data do Acordão:09/10/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CLÁUDIO RAMOS MONTEIRO
Descritores:DISCIPLINA DESPORTIVA
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
TRIBUNAL ARBITRAL
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
LIBERDADE DE IMPRENSA
Sumário:I – Preenche o tipo de infração disciplinar previsto e punido nos artigos 19.º e 112.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP) a difusão de mensagens, na conta oficial de Twitter de um clube de futebol, onde se afirma que um determinado árbitro atuou com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhe um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso.
II – Aquelas normas não restringem desproporcionalmente a liberdade de expressão e de informação garantidas pelo artigo 37.º da CRP, que neste caso cedem para assegurar a salvaguarda de outros direitos e valores constitucionais, nomeadamente os direitos de personalidade inerentes à honra e à reputação do árbitro (artigo 26º/1 da CRP), e a prevenção da violência no desporto (artigo 79.º/2 da CRP).
Nº Convencional:JSTA000P26250
Nº do Documento:SA1202009100156/19
Data de Entrada:06/17/2020
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:SPORT LISBOA E BENFICA - FUTEBOL, SAD
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO


I. Relatório

1. FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL - identificada nos autos – recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), de 27 de fevereiro de 2020, que confirmou o acórdão arbitral proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), de 28 de outubro de 2019, que suprimiu a pena de multa, no valor de 22.950,00 €, aplicada à SPORT LISBOA E BENFICA – FUTEBOL, SAD, ora recorrida, pelo Acórdão da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), de 12 de março de 2019.
Nas suas alegações formulou, com relevo para a decisão de mérito, as seguintes conclusões:
« (…)
10. O bem jurídico a proteger no âmbito disciplinar é distinto daquele que se visa proteger no âmbito penal, ainda que existam normas punitivas semelhantes, por vezes coincidentes, que possam induzir o aplicador em erro. Deste modo, a análise subjacente num e noutro caso tem, também, de ser muito distinto.
11. A afirmação de que a responsabilidade disciplinar é independente e autónoma da responsabilidade penal está, desde logo, presente na Lei e nos Regulamentos Federativos.
12. Assim, quando analisado o artigo 112.º do RD da LPFP é possível vislumbrar, em abstrato, indícios do ilícito penal correspondente à injúria ou difamação.
13. Por outro lado, não se pode olvidar que a Recorrida tem deveres concretos que tem de respeitar e que resultam de normas que não pode ignorar.
14. A Recorrida tem, nomeadamente, o dever de “manter uma conduta conforme aos princípios desportivos de lealdade, probidade, verdade e retidão em tudo o que diga respeito às relações de natureza desportiva” (artigo 19.º, n.º 1, do RDLPFP19); e de “manter comportamento de urbanidade e correção entre si, bem como para com os representantes da Liga Portugal e da FPF, os árbitros e árbitros assistentes.” (artigo 51.º, n.º 1 do Regulamento de Competições da LPFP). 17
15. Naturalmente que as sociedades desportivas, clubes e agentes desportivos não estão impedidos de exprimir pública e abertamente o que pensam e sentem. Contudo, os mesmos estão adstritos a deveres de respeito e correção que os próprios aceitaram determinar e acatar mediante aprovação do RD e RC da LPFP.
16. Quando uma entidade, qualquer que seja, aceita aderir a determinada associação ou grupo organizado, aceita também as suas regras, deontológicas, disciplinares, sancionatórias, etc..
17. Com efeito, para que a Recorrida, ou qualquer outra sociedade desportiva, seja condenada pela prática do ilícito disciplinar previsto no artigo 112.º é essencial indagar se as declarações respetivas violam, pelo menos, um dos bens jurídicos visados pela norma disciplinar: a honra e bom nome dos visados ou a verdade e a integridade da competição, particularmente evidenciados pela imparcialidade e isenção dos desempenhos dos elementos das equipas de arbitragem.
18. Ao contrário daquilo que entende o TCA, não estamos, obviamente, perante a prática de um ilícito disciplinar que pretende, exclusivamente, proteger a honra e o bom nome dos árbitros visados, nem muito menos perante uma questão que deva ser analisada da perspetiva do direito penal.
19. Em suma, o Acórdão recorrido erra ao analisar a questão sub judice sob a perspetiva do direito penal e não da perspetiva do direito disciplinar, pelo que se impõe que este Supremo Tribunal proceda a uma correta aplicação do direito ao caso.
20. Ademais, a questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto este tipo de casos são cada vez mais frequentes, o que é facto público e notório.
21. O TCA entendeu, no seu aresto, que o conteúdo das publicações em causa não tem qualquer relevância disciplinar pois não configura uma lesão da honra e reputação dos órgãos ou equipas de arbitragem, mas sempre tendo por referência às normas penais que sancionam condutas típicas dos crimes de injúria ou difamação.
22. E é aí que reside o grande equívoco dos Exmos. Senhores Desembargadores. Com efeito, a questão deve ser colocada, como acima se referiu, no âmbito da apreciação no campo disciplinar e não no campo do direito penal, autónomo e distinto deste.
23. Conforme já deixámos bem patente na parte inicial deste recurso, o valor protegido pelo ilícito disciplinar em causa, à semelhança do que é previsto nos artigos. 180.º e 181.º, do Código Penal, é o direito “ao bom nome e reputação”, cuja tutela é assegurada, desde logo, pelo artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, mas que visa em primeira linha, e ao mesmo tempo, a proteção das competições desportivas, da ética e do fair play.
24. A nível disciplinar, como é o caso, os valores protegidos com esta norma (112.º do RD da LPFP), são, em primeira linha, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva, da lealdade e da probidade e, de forma mediata, o direito ao bom nome e reputação dos visados, mas sempre na perspetiva da defesa da competição desportiva em que se inserem.
25. Atenta a particular perigosidade do tipo de condutas em apreço, designadamente pela sua potencialidade de gerar um total desrespeito pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem, disciplinam e gerem o futebol em Portugal, o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros encontra fundamento na tarefa de prevenção da violência no desporto, enquanto fator de realização do valor da ética desportiva.
26. A Recorrida sabia ser o conteúdo dos textos publicados adequado a prejudicar a honra e reputação devida aos demais agentes desportivos, na medida em que tais declarações indiciam uma atuação do árbitro a que não presidiram critérios de isenção, objetividade e imparcialidade, antes colocando assim e intencionalmente em causa o seu bom nome e reputação.
27. O conteúdo da newsletter está longe de ter uma base factual, sendo, pelo contrário, a imputação de um juízo pejorativo não só ao desempenho da equipa de arbitragem mas às suas próprias características, colocando deste modo em causa a própria integridade da competição.
28. Para além de imputar a tal equipa de arbitragem a prática de atos ilegais, encerram em si um juízo de valor sobre os próprios árbitros que, face às exigências e visibilidade das funções que estes desempenham no jogo, colocam em causa a sua honra, pelo menos, aos olhos da comunidade desportiva.
29. Assim, não podemos deixar de considerar que se é legítimo o direito de crítica da Recorrida à atuação dos árbitros, já a imputação desonrosa não o é, e aquelas publicações usaram esse tipo de imputação sem que se revele a respetiva necessidade e proporcionalidade para o fim visado.
30. Não se nega que expressões como a usada pela Recorrida são corriqueiramente usadas no meio desporto em geral e do futebol em particular.
31. Porém, já não se pode concordar que por serem corriqueiramente usadas não são suscetíveis de afetar a honra e dignidade de quem quer que seja ou de afetar negativamente a competição, ademais quando nos referimos a uma suspeita de falta de isenção por parte de agentes de arbitragem, uma vez que tais afirmações têm intrinsecamente a acusação ou pelo menos a insinuação de que eventuais erros dos árbitros são intencionais. Deste modo, vão muito para além da crítica ao desempenho profissional do agente.
32. O futebol não está numa redoma de vidro, dentro da qual tudo pode ser dito sem que haja qualquer consequência disciplinar, ao abrigo do famigerado direito à liberdade de expressão, muito menos se pode admitir que o facto de tal linguarejo ser comum torne impunes quem o utilize e que retire relevância disciplinar a tal conduta.
33. Ao decidir da forma que fez, o Tribunal a quo violou o artigo 112.º do Regulamento Disciplinar da LPFP, pelo que deve ser a revista admitida e o Acórdão recorrido revogado, tendo em vista uma melhor aplicação do direito.»

2. A Recorrida contra-alegou, concluindo, no que ao mérito da causa diz respeito, que:
« (…)
2. A Recorrida agiu ao abrigo e dentro das margens do exercício da liberdade de expressão.
3. A opinião da Recorrida, ainda que legal e legítima, foi divulgada por terceiros (um jornal desportivo) e apenas e só por via deste se tornou conhecida do público.
4. A Recorrente confunde conceitos jurídicos com vista a legitimar um interesse superior que lhe permita punir a seu bel prazer.
5. A conduta punitiva da Recorrente corresponde a uma verdadeira censura do pensamento.
6. Foi a imprensa quem primeiro chamou à colação os factos em causa nos Autos, sendo legítimo à Recorrida que sobre eles tenha uma opinião e, bem assim, que a exprima.
7. A Recorrente pretende criar um estado de polícia, em que controla tudo e todos e apenas se admitem opiniões concordantes, nomeadamente, sobre as suas próprias condutas.
8. Os Árbitros e a própria Recorrente não são imunes ao erro (e a Decisão proferida pelo Conselho de Disciplina é exemplo bastante disso), sendo legítimo aos agentes desportivos opinar sobre esses erros, criticando-os e evidenciando-os para que não se repitam, ao invés de os branquear e ocultar atrás de sanções disciplinares.
9. O Tribunal Arbitral do Desporto e os Tribunais Administrativos são competentes para sindicar o conteúdo das Decisões do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, entendendo-se que posição diversa seria, conforme é intento da Recorrente, criar um espaço de insindicabilidade das ditas Decisões, permitindo à Recorrente proferir Decisões não sujeitas a Recurso e crivo de Tribunais Superiores, em suma, decidiria como quer e quando quer.
10. Não assiste, pois, qualquer razão ao Recurso interposto pela Recorrente.»

3. O recurso de revista foi admitido por Acórdão da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo, em formação de apreciação preliminar, de 21 de maio de 2020, por um lado, porque a decisão recorrida se afasta de outra proferida por esta mesma Secção no âmbito do Processo n.º 66/18.7BCLSB e, por outro, porque «(...) a questão colocada no recurso é relevante; pois importa saber até que ponto se pode disciplinarmente reagir – com base em normas disciplinares, aliás similares às do estrangeiro – contra declarações dos clubes que, para além de excitarem anormalmente os ânimos dos seus adeptos e assim induzirem comportamentos rudes, contribuam para o descrédito das competições desportivas e do negócio que as envolve».

4. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.

5. Sem vistos, dada a natureza urgente do processo, nos termos do n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, e do n.º 2 do artigo 36.º do CPTA.


II. Matéria de facto

O TAD deu como provados os seguintes factos:
«1º Em 22 de setembro de 2018 foi disputado o jogo, oficialmente identificado sob o n.º 10509 da 5.ª jornada da Liga …., entre o Vitória Futebol Clube – Futebol SAD e a Futebol Clube do Porto – Futebol, SAD, arbitrado por A………;
2.º Na edição de 23 de setembro de 2018 do jornal “……”, sob o título “…….., refere-se o seguinte: “A……… foi o árbitro escolhido para dirigir o jogo de sábado do FC Porto no terreno do V. Setúbal e tal notícia não foi bem recebida pelo Benfica. Os responsáveis do emblema da Luz consideram que houve falta de bom senso nesta nomeação, tendo em conta que o juiz portuense já foi visto nos camarotes dos dragões a assistir a jogos do emblema da Cidade Invicta. Esta foi mesmo a tónica das críticas que as águias fizeram na rede social ….., logo após o final da partida do Bonfim: “Porque se foi nomear um árbitro que recebe convites para o camarote dos ……? Para que se assista ao regresso em força de …….. Para que as faltas que todos veem só o árbitro não veja”., foi escrito, num primeiro ……., na conta SL Benfica ……., ao qual se seguiu outro com mais críticas à atuação de A………., nomeadamente ao facto de ter anulado um golo ao V. Setúbal: “Para que golos limpos sejam anulados. Porque a Liga …., para perdurar, perdeu a vergonha e esta noite assistimos a uma farsa com alto patrocínio”.
3.º Em 23 de setembro de 2018, foram difundidas através da conta ….. “SL Benfica ……..”, onde consta que se trata do …… oficial da comunicação do SL Benfica reservado a jornalistas, as seguintes expressões:
“Porque se foi nomear um árbitro que recebe convites para o camarote dos …….? Para que se assista ao regresso em força de …….. Para que as faltas que todos veem só o árbitro não veja”;
“Para que golos limpos sejam anulados. Porque a Liga …….., para perdurar, perdeu a vergonha e esta noite assistimos a uma farsa com alto patrocínio”.
4.º Na época 2014/2015, o árbitro A………. foi assistir a um jogo entre o Futebol Clube do Porto – Futebol SAD e o Estoril, nos camarotes do Estádio do Dragão, a convite de um amigo (………….) e não a convite de um clube ou seu dirigente;
5.º A conta ….. “SL Benfica ……. - …. oficial da comunicação do SL Benfica reservada a jornalistas”, é administrada por terceiros contratados pelo Departamento de Comunicação da Sport Lisboa e Benfica – Futebol, SAD, constituindo “imprensa privada ou sítio da Internet” e no qual foram veiculadas as afirmações referidas no ponto 3.º a um vasto leque de destinatários;
6.º A Demandante não impediu a difusão das aludidas mensagens, nem manifestou, em momento posterior, qualquer discordância com o seu conteúdo;
7.º A Demandante agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que o seu comportamento violava um dever geral de urbanidade nas relações entre competidores desportivos;
8.º À data dos factos, a Demandante tinha os antecedentes disciplinares constantes de fls. 95 a 114 tendo sido sancionada mediante decisão disciplinar já definitiva na ordem jurídica desportiva, pelo ilícito disciplinar p. e p. no artigo 112.º do RDLFPF, numa das três épocas desportivas anteriores à presente, designadamente nas épocas desportivas 2016/2017 e 2017/2018.»



III. Matéria de Direito

5. A questão que se discute neste recurso é a de saber se as mensagens difundidas pela Recorrida através da conta ….. “SL Benfica ………” preenchem o tipo de infração disciplinar previsto e punido no n.º 1 do artigo 112.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP).
Este Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou por diversas vezes sobre a integração daquele tipo disciplinar, nomeadamente nos seus Acórdãos de 26 de fevereiro de 2019, proferido no Processo n.º 066/18.7BCLSB, de 4 de junho de 2020, proferido no Processo n.º 154/19.2BCLSB e de 2 de julho de 2020, proferido no Processo n.º 0139/19.9BCLSB.
No citado Acórdão de 4 de junho de 2020, proferido em conferência por esta mesma formação, afirmou-se a este propósito o seguinte, que se reitera:

«independentemente da relevância penal que a conduta da Recorrida possa ter, que é autónoma, e que não cabe neste âmbito apreciar, a sua responsabilidade disciplinar não depende do preenchimento dos tipos legais de crime de difamação ou de injúria, mas apenas da violação dos deveres gerais ou especiais a que a mesma está adstrita no âmbito dos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável à realização das competições desportivas em que participa – v. artigo 17.º/2 do RDLPFP.
E esses deveres resultam, exclusivamente, da conjugação dos artigos 19.º e 112.º do citado RDLPFP, não sendo necessário o recurso ao Código Penal para preencher o respetivo tipo disciplinar.
No n.º 1 do artigo 19.º do regulamento disciplinar em questão, se estabelece que todos os clubes e agentes desportivos que, a qualquer título ou por qualquer motivo, exerçam funções ou desempenhem a sua atividade no âmbito das competições organizadas pela Liga Portugal, «devem manter conduta conforme aos princípios desportivos de lealdade, probidade, verdade e retidão em tudo o que diga respeito às relações de natureza desportiva, económica ou social». E, de forma muito expressiva, no n.º 2 da mesma disposição regulamentar se inibe aqueles mesmos sujeitos de «exprimir publicamente juízos ou afirmações lesivos da reputação de pessoas singulares ou coletivas ou dos órgãos intervenientes nas competições organizadas pela Liga».
É no quadro desses deveres gerais de lealdade, probidade, verdade e retidão, e da proibição expressa de publicitação de juízos ou afirmações lesivos da reputação de todos aqueles que intervenham nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, que o n.º 1 do artigo 112.º do RDLPFP comina com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 75 UC e o máximo de 350 UC, o uso «de expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros para com órgãos da Liga ou da FPF e respetivos membros, árbitros, dirigentes, clubes e demais agentes desportivos».
A questão em discussão nos autos resume-se, pois, em determinar se os factos dados como provados pelas instâncias se subsumem às citadas previsões normativas do RDLPFP».

6. No caso em apreço, não subsistem dúvidas de que as mensagens difundidas pela Recorrida através da conta ….. “SL Benfica ……….” são lesivas da reputação de A………, o árbitro que arbitrou a partida entre o Vitória de Setúbal e o Futebol Clube do Porto, nomeadamente quando nelas se afirma que o mesmo cometeu erros de arbitragem com a intenção de beneficiar o Futebol Clube do Porto.
Ao afirmar que A……….. foi nomeado para arbitrar um jogo do Futebol Clube do Porto para assegurar «que as faltas que todos veem só o árbitro não veja», ou «que golos limpos sejam anulados», ou ainda quando afirmam que a Liga Profissional de Clubes perdeu a vergonha e «esta noite assistimos a uma farsa com alto patrocínio», as mensagens difundidas pela conta oficial do clube não se limitaram a enunciar factos objetivos, ou a exprimir opiniões acerca da sua qualificação à luz das regras do jogo, atentando diretamente contra o bom nome e reputação de um árbitro, e da própria Liga Portuguesa de Futebol Profissional.
Aquelas mensagens não se limitaram, pois, a apontar erros de apreciação ao árbitro, na medida em que afirmam que o mesmo atuou com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhe um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso. São essas afirmações que preenchem o tipo de infração disciplinar em apreço, e não a afirmação lateral de que o Conselho de Arbitragem não agiu com bom senso ao nomear este árbitro.
Na verdade, ao afirmar que A……… não arbitrou aquela partida de acordo com os critérios de isenção, objetividade e imparcialidade a que está adstrito, o texto insinua que o mesmo foi corrompido pelo clube rival, colocando assim deliberadamente em causa o seu bom nome e reputação.
No Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, atrás citado, este Tribunal já afirmou, numa situação em tudo análoga à dos autos, que tais imputações «atingem não só os árbitros envolvidos, como assumem potencialidade para gerar um crescente desrespeito pela arbitragem e, em geral, pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem e disciplinam o futebol em Portugal, sendo o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros necessário para a prevenção da violência no desporto, já que tais imputações potenciam comportamentos violentos, pondo em causa a ética desportiva que é o bem jurídico protegido pelas normas em causa».
Andou, por isso, mal o tribunal a quo ao confirmar o Acórdão do TAD.

7. O acórdão recorrido, na linha do que decidiu o TAD, assentou a sua conclusão na liberdade de expressão e de informação garantida pelo artigo 37.º da Constituição, afirmando que «os árbitros e os membros do Conselho de Arbitragem são figuras públicas na sociedade portuguesa e sobre eles recai um maior escrutínio do público em geral e dos restantes agentes desportivos, o que não consente a pretendida compressão do direito de liberdade de expressão para a salvaguarda das competições desportivas, da ética e do respeito entre agentes desportivos».
Ora, as mensagens difundidas pela conta oficial de ….. do clube, como vimos, não se limitaram a apontar a A……… erros de apreciação, ou de arbitragem, na medida em que o acusam de ter atuado com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhe um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso. E isso não corresponde a um mero escrutínio público da sua atuação, que seria perfeitamente legítimo, mas a uma evidente ofensa do seu bom nome, honra e reputação. Como se afirmou a propósito do abuso de liberdade de imprensa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de dezembro de 2002, proferido na Revista n.º 3553/02, da 7.ª Secção, «o simples facto de se atribuir a alguém uma conduta contrária e oposta àquela que o sentimento da generalidade das pessoas exige do homem medianamente leal e honrado, é atentar contra o seu bom nome, reputação e integridade moral».
Naturalmente, a liberdade de expressão e de informação não protege tais imputações, quando as mesmas não consubstanciem factos provados em juízo, ou objetivamente verificáveis, pois aquelas liberdades não são absolutas e tem de sofrer as restrições necessárias à salvaguarda de outros direitos fundamentais, como são os direitos de personalidade inerentes à honra e reputação das pessoas, garantidos pelo n.º 1 do artigo 26º da Constituição.
O disposto nos artigos 19.º e 112.º do RDLPFP não é, por isso inconstitucional, nem os mesmos podem ser interpretados no sentido de que a liberdade de expressão e de informação se sobrepõe à honra e à reputação de todos aqueles que intervém nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, nomeadamente a dos respetivos árbitros, tanto mais que não está em causa a liberdade de expressão e de informação de órgãos de comunicação social independentes, mas da imprensa privada do próprio clube – cfr. artigo 112.º/4 do RDLPFP.
Acresce ainda, na linha do que se decidiu no Acórdão desta Secção, de 26 de fevereiro de 2019, atrás citado, que o respeito estrito pelos deveres de lealdade, probidade, verdade e retidão inerentes ao regime disciplinar estabelecido pelas normas em apreciação é indispensável à prevenção da violência no desporto, que é também um valor constitucional legitimador da compressão da liberdade de expressão e de informação dos clubes desportivos, nos termos do n.º 2 do artigo 79.º da CRP. O que nos permite responder afirmativamente à questão colocada no Acórdão Preliminar proferido nestes autos, sobre «(...) até que ponto se pode disciplinarmente reagir – com base em normas disciplinares, aliás similares às do estrangeiro – contra declarações dos clubes que, para além de excitarem anormalmente os ânimos dos seus adeptos e assim induzirem comportamentos rudes, contribuam para o descrédito das competições desportivas e do negócio que as envolve». Não só se pode, como se deve reagir sempre que os clubes extravasem o âmbito estrito da mera informação ou opinião, e ofendam a honra e a reputação dos árbitros e de todos aqueles que intervém nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional.
Assim, e sem necessidade de mais considerações, conclui-se que a sanção disciplinar foi bem aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF, devendo por isso a mesma manter-se, contra o que foi decidido pelas instâncias.


IV. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, reunidos em conferência, em conceder provimento ao recurso e, em consequência, em revogar a decisão recorrida e o Acórdão do TAD por ela mantido, confirmando-se assim o Acórdão da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, de 12 de março de 2019, que aplicou à Sport Lisboa e Benfica - Futebol, SAD a pena disciplinar de multa, no valor de €22.950,00.


Custas pela recorrida. Notifique-se


Lisboa, 10 de setembro de 2020. – Cláudio Ramos Monteiro (relator) – Carlos Carvalho – Maria Benedita Urbano.