Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0217/11.2BECBR
Data do Acordão:03/22/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24361
Nº do Documento:SA1201903220217/11
Data de Entrada:02/26/2019
Recorrente:A................., SA
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE COIMBRA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA FORMAÇÃO PRELIMINAR DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

I. RELATÓRIO

A………………….., S.A. (doravante A……………) intentou, no TAF de Coimbra, contra o Município desta cidade, acção administrativa especial pedindo a anulação da deliberação da respectiva Câmara, de 22/11/2010, que, no âmbito de um procedimento de loteamento, lhe ordenou a conclusão das obras de urbanização relativas ao Lote 32, no prazo de 120 dias.

Indicou como Contra-interessados B……………… e Outros.

Aquele Tribunal julgou a acção procedente e o TCA, para onde os Contra-interessados apelaram, concedendo provimento ao recurso, julgou a acção improcedente.

É desse Acórdão que a Autora vem recorrer justificando a admissão desta revista com a relevância jurídica e social da questão e com a necessária intervenção do STA com vista a uma melhor interpretação e aplicação do direito (art.º 150.º do CPTA).

II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO
1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos para isso da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. Em 18/01/1994, a Câmara de Coimbra emitiu o Alvará nº 355, titulando uma licença que permitia à Autora dividir em lotes um conjunto de três prédios e proceder às respectivas obras de urbanização. Divisão que deu origem ao lote n.º 32 que, apesar de não estar incluído nas parcelas ou lotes cedidos para o domínio municipal e, portanto, continuar na esfera jurídica da Autora estava destinado à construção de um edifício social de apoio ao conjunto da urbanização.
Todavia, a Autora não edificou qualquer construção no identificado lote pelo que a Câmara deliberou, em reunião realizada no dia 22/11/2010, notificá-la para “concluir as obras de urbanização conexas com a operação de loteamento no prazo de 120 dias, sob pena de não poder haver recepção definitiva das mesmas (incluindo a edificação do lote 32, pela função a que está destinada)”.
Inconformada, a Autora instaurou a presente acção para o que, em síntese, alegou não ter a obrigação de construir no referido lote não só porque o mesmo continua a pertencer-lhe, por não ter feito parte das cedências envolvidas na operação, como por o alvará não concretizar a construção prevista para o mesmo.

O TAF julgou a acção procedente com a seguinte fundamentação:
“A al.ª b) do artigo 3° do DL n° 448/91 definia o sobredito conceito nos seguintes termos:
h) Obras de urbanização - todas as obras de criação e remodelação de infra-estruturas que integram a operação de loteamento e as destinadas a servir os conjuntos e aldeamentos turísticos e as ocupações industriais, nomeadamente arruamentos viários e pedonais e redes de abastecimento de água, de esgotos, de electricidade, de gás e de telecomunicações, e ainda de espaços verdes e outros espaços de utilização colectiva;
Dir-se-ia, em face do segmento final desta definição, que a edificação genericamente preconizada para o lote 32, enquanto "edifício social de apoio a todo o conjunto da urbanização", integra o conceito.
Tal interpretação, porém, considerados os concretos termos do alvará sub judice e, portanto, da operação de loteamento licenciada, desemboca em perplexidades que acabam por fazer o intérprete da lei e do acto administrativo do licenciamento, pender para a conclusão de que, conjugados os termos legais com os do mesmo alvará, não só não se pode considerar obra de urbanização o preconizado para o lote 32 como não foi disposto, no Alvará, que o que se construísse no lote 32 fizesse parte das obras de urbanização, tal como definidas em geral no artigo 3° b) e para os efeitos do artigo 46° n° 1 do DL n°448/2001.
A primeira perplexidade é essa de o licenciamento do loteamento ter sido emitido sem se saber que edifício e para que utilidade do conjunto da urbanização cumpriria construir no lote 32 para ficarem completas as obras de urbanização. Efectivamente, o licenciamento foi emitido sem ter sido apresentado o projecto do que quer que fosse para o lote 32.
......
Outra perplexidade consiste na manifesta dificuldade em se vestir a "luva" do artigo 46°, n° 1, do DL n° 448/91 na "mão" da situação concreta sub judice. Com efeito, in casu, não se trata da realização de obras de urbanização em desconformidade com os projectos aprovados, mas antes da absoluta inexistência de projecto aprovado quanto à alegada obra de urbanização.
Também o artigo 47° do mesmo diploma, ao prever a possibilidade de a Câmara Municipal se substituir ao Loteador na efectuação de obras de urbanização quando o titular do loteamento não execute as correcções ou alterações ordenadas ou deixe as obras paradas por mais de 15 meses ou para lá do prazo do alvará, dispõe expressamente que o faça segundo os projectos aprovados e condições fixadas no licenciamento.
...
Estas perplexidades mostram como é precipitada, por demasiado literal, a interpretação que pretendem Réu e CI da alínea b) vinda a referir.
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Considerando o até aqui exposto podemos dizer que, nos termos do n° 3, al.ª b), do DL n° 448/91 só poderão integrar o conceito de "obras de urbanização" e ser sujeitas ao regime, de ordem pública, dos artigos 46° e 47° do mesmo diploma, obras integrantes de espaços de utilização colectiva cedidos ao Município e definidos, concretizados e projectados no projecto de loteamento.
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Com efeito, não se tratando de obras de urbanização, não têm as obras no lote 32, sequer que estar feitas no termo do prazo concedido para a conclusão das obras do loteamento. Trata-se apenas de mais um lote para construção, sem bem que com destinação diversa da habitação.”


O TCA revogou essa decisão e julgou a acção improcedente pelas seguintes razões:
“Ora, bem vistas as coisas, o que tais “perplexidades” mostram não é a inadequação do enquadramento legal da obra prevista no lote 32 no conceito de “obras de urbanização”, mas sim a inadequação do procedimento seguido pela CMC, ao aprovar o loteamento sem cumprimento rigoroso de todas as normas aplicáveis, nomeadamente quanto à falta de projecto para o edifício do lote 32, em violação do artigo 22º do DL 448/91, de 29/11. Na verdade, se o pedido de licenciamento é indeferido em caso de irregularidades e deficiências dos projectos das obras de urbanização, por maioria de razão deveria ser indeferido no caso de falta absoluta de tal projecto.
Em suma, não é curial descaracterizar a obra como “obra de urbanização” apenas porque a entidade licenciadora não aplicou, ou aplicou mal, a legislação pertinente.
......
Ora, como este Tribunal não validou o pressuposto de partida da argumentação do TAF e, pelo contrário, afirma que a construção do lote 32 se integra, como pretendem os Recorrentes, no conceito de “obras de urbanização”, simplesmente relega esse desenvolvimento secundário do acórdão recorrido para o rol das coisas inúteis, pois a decisão final está firme, no sentido do não provimento do recurso e incolumidade do acto administrativo.

3. A questão que se suscita nesta revista é a de saber se a construção a edificar no lote 32, que se destina a dar apoio a todo o conjunto da urbanização onde se insere, se integra, ou não, o conceito de obras de urbanização identificadas no art. 3º, al.ª b) do DL 448/91, de 29/11.
Como se viu as instâncias divergiram radicalmente na resposta que lhe deram; com o TAF a considerar que tais obras não eram integráveis no conceito descrito na citada norma e o TCA a entender o contrário.
Com efeito, o TAF afirmou que, nos termos do mencionado preceito, só poderiam “integrar o conceito de "obras de urbanização" e ser sujeitas ao regime, de ordem pública, dos artigos 46° e 47° do mesmo diploma, obras integrantes de espaços de utilização colectiva cedidos ao Município e definidos, concretizados e projectados no projecto de loteamento.” Ora, verificando-se uma absoluta inexistência de projecto no tocante à obra de urbanização cuja execução foi imposta à Recorrente e, portanto, havendo um total desconhecimento do que poderia constitui tal obra não se poderia admitir que a mesma pudesse ser qualificada como "obras de urbanização.”
O TCA, porém, raciocinou diferentemente sustentando que o que sucedeu foi que a Câmara aprovou o loteamento sem o cumprimento rigoroso das normas aplicáveis, maxime no tocante à falta de projecto para o edifício do lote 32 e, por isso, em violação do artigo 22º do DL 448/91, de 29/11. Todavia, isso não era suficiente para descaracterizar a obra como “obra de urbanização” apenas porque a entidade licenciadora não aplicou, ou aplicou mal, a legislação pertinente.”
Sendo assim, é essencial saber se Município pode obrigar o loteador e proprietário do mencionado lote a nele construir um edifício que não se encontra concretizado nem projectado no loteamento aprovado, a quem se faz, apenas, uma menção genérica no respectivo alvará. O que nos leva a admitir que a Autora pode ter ficado perplexa quando foi notificada para a construção de um edifício social de apoio a todo o conjunto da urbanização que ainda não havia sido projectado e aprovado.
Ou seja, está em causa a legalidade da exigência de realização de obras de urbanização ainda por definir. Definição que era essencial porque no referido conceito tanto cabem obras de criação e remodelação de infra-estruturas que integram a operação de loteamento, nomeadamente arruamentos viários e pedonais e redes de abastecimento de água, de esgotos, de electricidade, de gás e de telecomunicações, como espaços de utilização colectiva não identificados.
Nesta conformidade, havendo fundadas dúvidas de que o Acórdão recorrido tenha feito correcto julgamento justifica-se a admissão da revista para melhor aplicação do direito.
Decisão.
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.
Sem custas.

Porto, 22 de Março de 2019. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.