Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:059/12
Data do Acordão:02/23/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL
DISPENSA DE PRESTAÇÃO DE GARANTIA
ACTO JURISDICIONAL
ACTO ADMINISTRATIVO
Sumário:I - O processo de execução fiscal constitui um processo judicial ou meio processual utilizado pelo Estado para a arrecadação coerciva das receitas previstas no artigo 148.º do CPPT através da actuação, ainda que “tutelar”, de um tribunal tributário, que é um órgão do poder judicial.
II - O Órgão da Execução que instaura, conduz e tramita a execução fiscal constitui um sujeito processual que age como interlocutor no diálogo processual, “substituindo” o juiz e praticando nele todos os actos que, não contendendo com qualquer composição de interesses, sejam legalmente necessários para a obtenção do fim a que o processo se destina. E a competência que detém no processo não brota, em princípio, da função tributária exercida pela Administração Fiscal nem emana de um poder de autotutela executiva da Administração, resultando, antes, de uma competência que a lei lhe confere para intervir no processo judicial como órgão auxiliar ou colaborador operacional do Juiz.
III - Todos os actos inscritos no procedimento processual pelos sujeitos processuais (partes, mandatários, órgão da execução, funcionários, juiz) estão submetidos a estritas regras processuais, que encontram previsão nas normas que regulam o processo tributário e, subsidiariamente, nas normas inscritas no Código de Processo Civil por força do disposto no artigo 2º, alínea e), do CPPT.
IV - Só assim não será nos casos em que no procedimento processual surge “enxertado” um procedimento administrativo/tributário, em que a Administração Tributária actua como tal, no exercício da sua função tributária, agindo sobre a relação jurídica tributária estabelecida entre si (como sujeito activo) e o contribuinte (como sujeito passivo) ou sobre a obrigação que dela emana, produzindo actos materialmente administrativos em matéria tributária.
V - Só a estes procedimentos tributários há que aplicar os princípios gerais que regulam a actividade administrativa e as normas que a Lei Geral Tributária prevê para os procedimentos tributários, designadamente a norma contida no seu artigo 60.º.
VI - A decisão sobre o pedido de dispensa de prestação de garantia deve qualificar-se como um verdadeiro acto administrativo em matéria tributária, inserido no âmbito de um procedimento tributário autónomo e funcionalmente diferente do procedimento processual dirigido à cobrança coerciva de determinadas quantias, submetido, por isso, aos princípios e normas que disciplinam a actividade tributária.
VII - Todavia, face à urgência objectiva, revelada pela norma ínsita no art.º 170.º do CPPT, de prolação dessa decisão, deve apelar-se ao regime contido no Código de Procedimento Administrativo, cujo artigo 103.º, n.º 1, estabelece que não há lugar a audiência dos interessados «Quando a decisão seja urgente», por força da aplicação subsidiária desta norma em conformidade com o disposto no artigo 2.º, alínea c) da LGT.
VIII - Ainda que não se aceite a aplicabilidade da referida norma do CPA, o próprio requerimento em que o interessado expõe a sua pretensão, indicando todas as razões que, em seu entender, a justificam, e ao qual é obrigado a juntar logo todos os elementos de prova, desempenha já a função de audiência prévia, não havendo que chamá-lo novamente a participar na formação da decisão dada a regra geral contida no n.º 3 do artigo 60.º da LGT quando aplicada a todos os procedimentos tributários que culminem com um acto final lesivo, seja ele ou não um acto de liquidação.
Nº Convencional:JSTA00067426
Nº do Documento:SA220120223059
Data de Entrada:01/23/2012
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A......, LDA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF PORTO DE 2011/11/28 PER SALTUM
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL
Legislação Nacional:LGT98 ART42 ART52 N4 ART56 ART57 N5 ART60 N3 ART103 N1
CONST97 ART103 N1 N2 N3 ART266 N1 ART267 N5
CPC96 ART715 ART726 ART749 ART762 N1
CPPTRIB99 ART10 N1 F ART148 ART151 N1 ART170 N3 N4 ART197 N2 ART199 N8 ART201 N1 N2 N3
CPA91 ART103 N1 A
Jurisprudência Nacional:AC TC 80/2003 DE 2003/02/12; AC STA PROC47953 DE 2003/09/25; AC STA PROC48417 DE 2002/11/20; AC STA PROC816/05 DE 2006/06/29; AC STAPLENO PROC35338 DE 2004/03/31; AC STAPLENO PROC1218/02 DE 2004/10/13
Referência a Doutrina:RUI DUARTE MORAIS A EXECUÇÃO FISCAL 2ED PAG45
PEDRO MACHETE A AUDIÊNCIA DOS INTERESSADOS NO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO PAG505
FREITAS DO AMARAL CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO VII PAG323
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A FAZENDA PÚBLICA recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença proferida em 28 de Novembro de 2011 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que julgou procedente a reclamação que a executada A………, LDA, deduziu contra o acto proferido pelo Chefe do Serviço de Finanças do Porto-2 no processo de execução fiscal n.º 3182 2011 01029860, de indeferimento do pedido de isenção de prestação de garantia com vista à suspensão dessa execução nos termos do artigo 169.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
Terminou a sua alegação enunciando as seguintes conclusões:
A- Vem o presente recurso interposto da douta sentença que concedeu provimento à reclamação apresentada e anulou o despacho de indeferimento do pedido de isenção de garantia no processo de execução fiscal, por considerar tal despacho ferido de vício de forma, por falta do exercício do direito de audição.
B- Centra-se a questão a decidir na aplicação ou não do princípio da participação dos executados na formação da decisão de indeferimento de um pedido de isenção de garantia formulado no âmbito de um processo de execução fiscal.
C- O art.º 60.° da LGT regula o direito de audição que assiste aos contribuintes interessados de serem ouvidos num determinado procedimento antes de ser proferida a decisão, com vista a garantir a real observância dos princípios do contraditório, da participação e da transparência procedimental.
D- A leitura deste preceito revela-nos que o direito de audição aí previsto depende de um procedimento dirigido à declaração de direitos tributários, não se aplicando quando o pedido dirigido à Administração Tributaria (doravante, AT) não tiver aptidão para iniciar esse tipo de procedimento.
E- Cumpre ter presente que o processo de execução fiscal tem natureza judicial, não sendo um procedimento tributário, pelo que, apesar de no mesmo puderem ser praticados actos que não tenham natureza jurisdicional, designadamente actos administrativos, uma vez que ao chefe do Órgão de execução fiscal cabe-lhe uma função administrativa,
F- O certo é que estamos no seio de um processo judicial e aos seus actos aplicam-se as normas de processo previstas na lei, seja do CPPT, LGT, seja em casos omissos o CPC (ex vi art. 2°, alínea e) do CPPT).
G- Analisadas as regras processuais relativas ao processo de execução fiscal, dada a sua natureza judicial, as mesmas não prevêem o exercício do direito de audição antes de tomada de uma decisão no âmbito do processo de execução fiscal, excepção feita ao acto de reversão, que antes da decisão fundamentada, tal como previsto na lei – art.º 23°, n.º 4 da LGT - deverá ser precedido de audição do revertido.
H- Por aqui se vê que as normas do procedimento tributário não são aplicáveis ao processo de execução fiscal, ou seja, no exemplo em concreto, face à não aplicação do principio da participação previsto no art.°. 60° da LGT aos actos praticados no âmbito do processo de execução fiscal, teve o legislador necessidade de prever expressamente na lei o cumprimento desse principio aquando do acto de reversão da divida exequenda.
I- O art. 60.º da LGT respeita a um direito que os contribuintes têm durante o procedimento tributário, procedimento tributário esse que, tal como refere o art.°. 54.° da LGT, onde descreve o âmbito e a forma do procedimento tributário, exclui do mesmo no seu n.º 1, alínea h) “A cobrança das obrigações tributárias, na parte que não tiver natureza judicial”.
J- Mesmo que se considere que apesar do processo de execução fiscal ter natureza judicial, os actos ou decisões aí tomadas são de natureza administrativa, as normas que lhe são aplicáveis são tão só as respeitantes a esse mesmo processo de execução fiscal e não as previstas para todo e qualquer procedimento tributário, que como se viu a alínea h) do n.º 1 do art.°. 54.° da LGT, até expressamente exclui.
K- Vale isto por dizer que não foi violado qualquer princípio de participação antes da decisão, pela simples razão de que o mesmo se não aplica no processo executivo.
L- No âmbito de um processo de execução fiscal, após requerimento do executado, impõe-se ao órgão decisor a consequente decisão, sem necessidade de previamente facultar àquele um projecto da decisão ou de ouvi-lo sobre a matéria, uma vez que as normas processuais aplicáveis ao processo de execução judicial não contemplam a necessidade de obter a colaboração do interessado na formação da decisão.
M- Aliás, tal se compreende dadas as características da execução fiscal.
N- Pois, “A execução fiscal, dado o seu fim de arrecadação coerciva de dívida ao Estado ou entidades equiparadas, caracteriza-se, em primeira linha, pela sua celeridade (...) [tendo] este princípio geral (...) uma notável premência nesta forma de processo” - cfr. Laurentino da Silva Araújo, Processo de Execução Fiscal, Almedina, p. 27.
O- Como refere, Soares Martinez, in Direito Fiscal, 7ª edição, p. 444, “(...) no processo de execução fiscal está em causa a cobrança de receitas tributárias que visam “a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas” e a promoção da justiça social, da igualdade de oportunidades e das necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento - artigo 5.°, n.º 1, da Lei Geral Tributaria”.
P- E foi em consonância com o interesse público e a maior celeridade processual, de molde a obter-se a mais rápida arrecadação de receitas públicas a cobrar coercivamente, que o legislador fiscal no processo de execução fiscal regulou integral e imperativamente o regime de cobrança coerciva, não tendo expressamente previsto o exercício de audição prévia aquando da decisão do pedido de isenção ou dispensa de garantia, face desde logo à natureza judicial que lhe quis imputar.
Q- De resto, o processo de execução fiscal como processo judicial que é, permite todos os meios de impugnação próprios dos actos judiciais, garantindo um esclarecido e conveniente exercício e defesa dos direitos do executado, como o presente meio processual - reclamação prevista no art. 276° do CPPT;
R- Ou seja, a um requerimento segue-se uma decisão, passível, como decorre da lei do respectivo recurso (no caso, reclamação) para o tribunal competente, acrescendo ainda a possibilidade do Órgão de execução fiscal antes da subida da reclamação apresentada ao Tribunal competente, poder revogar o acto reclamado, nos termos do art.°. 277.°, n.º 1 e 2 do CPPPT, caso entenda que os argumentos apresentados pelo reclamante são coerentes com uma decisão em sentido diferente.
S- Destarte, decidindo como decidiu o Tribunal a quo, incorreu em erro de julgamento na aplicação do direito.
Sem prescindir,
T- Na hipótese de se entender, o que não se concede, que perante uma decisão de indeferimento de um pedido de isenção ou dispensa de garantia, estamos perante um procedimento tributário ínsito num processo judicial, aplicando-se então o art.°. 60.° da LGT,
U- Tendo por base toda a análise doutrinal e jurisprudencial que se faz do direito de audição prévia dos interessados, diremos que esta prerrogativa apenas se configura como obrigatória nos procedimentos em que se verifica a existência de diligências instrutórias capazes de alterar a posição da AT,
V- O que no caso do pedido de isenção ou dispensa de garantia, uma vez que não se verifica esta fase instrutória, não existe obrigatoriedade de audição procedimental, pois é dispensável o exercício do direito de audição prévia quando a questão é exclusivamente de direito, em que o que está em causa é apenas questão de subsunção dos factos tributários e jurídicos ao direito aplicável.
W- À AT não se impõe a notificação do interessado para o exercício do direito de audição quando a mesma apenas aprecia os factos que lhe foram oferecidos pelo contribuinte, limitando-se na sua decisão a fazer a interpretação das normas legais aplicáveis ao caso, o que sucederá relativamente a todas as decisões sobre petições ou requerimentos, em que aquela se limita a concluir, face aos factos e argumentos invocados pelo contribuinte e a lei aplicável, pela improcedência da sua pretensão.
X- Veja-se neste ponto, António Lima Guerreiro, in Lei Geral Tributária - Anotada, Lisboa, Editora Rei dos Livros, 2001, pp. 277-278, onde se lê que “O direito de audição depende igualmente do que a doutrina chama de uma «prévia instrução procedimental» (ver Pedro Manchete, «Conceito de instrução procedimental e relevância invalidante da preterição da audição dos interessados» in «Justiça Administrativa» número 12, págs. 3 e sgs.): ou seja, de um conjunto de formalidades, informações, pareceres, apresentação ou produção de prova, realização de diligências, vistorias e exames necessários à prolação do acto. Sem instrução nesse sentido amplo, não há dever de audição procedimental, que incide, assim, apenas sobre a matéria de facto e não sobre as normas de direito aplicáveis”.
Y- E ainda que, “O próprio principio da participação inscrito no artigo 267.°, número 5, da C.R.P. incide, apenas, sobre a verificação e identificação dos factos relevantes para a decisão”. No mesmo sentido concorrem o artigo 100.°, número 1, que prevê exclusivamente o exercício do direito de audição junto do Órgão instrutor, e o artigo 103°, número 2, alínea a), que dispõe esse direito ter por objecto as provas produzidas. As questões meramente de direito não cabem, assim e salvo legislação especial, no âmbito do mero direito de audição”.
Z- Por não se prever uma fase de instrução prévia na decisão a proferir quanto ao pedido de isenção ou dispensa de garantia, a falta de audição não prejudica a validade da decisão porquanto, segundo um juízo de prognose póstuma, este seria sempre praticado da mesma forma e com o mesmo conteúdo, atenta a sua natureza absolutamente vinculada, uma vez que ao chefe do Órgão de execução fiscal apenas lhe competia decidir se o pedido preenchia ou não os requisitos exigidos por lei.
AA- Decidindo favoravelmente o pedido de isenção ou dispensa de garantia se preenchidos os requisitos exigidos por lei ou decidindo, desfavoravelmente esse mesmo pedido se não preenchidos os requisitos exigidos por essa mesma lei, como ocorreu no caso em concreto.
BB- Não podia ser outro o “sentido provável da decisão”, que exprime uma condição de admissibilidade da audição prévia dos interessados prevista no art.º 60° da LGT.
CC- Destarte, o caso em concreto da decisão num processo de execução fiscal sobre um pedido de isenção ou dispensa de garantia, constitui um paradigma ao qual a dispensa do exercício de audição prévia se justifica, porque dispensável face à ausência de fase instrutória na decisão a tomar.
Ainda sem prescindir,
DD- Caso se entenda que nunca será de dispensar o exercício do direito de audição antes de uma decisão de indeferimento de um pedido de isenção ou dispensa de garantia no âmbito de um processo de execução fiscal, no que não se concede,
EE- Entende a Fazenda Pública que, ao contrário do doutamente decidido, no caso em concreto, a preterição da audiência do reclamante não teria a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, impondo-se assim, o aproveitamento do acto, e consequentemente, permanecer o despacho de indeferimento na sua estabilidade e vigência no ordenamento jurídico.
FF- Na verdade, o direito do contribuinte na participação da formação do acto de que é destinatário só será verdadeiramente violado se através dessa participação omitida houver a possibilidade, ainda que ténue, de vir a exercer influência, pelos esclarecimentos prestados e pela prova que poderia apresentar, na decisão a proferir, no termo da instrução,
GG- Ou seja, quando seja possível concluir, que através da sua participação antes da decisão final, o contribuinte podia, mesmo ligeiramente, influir, pelo direccionar de atenções para determinados aspectos de facto ou de direito, no sentido da decisão a proferir.
HH- Desta forma, a formalidade da audição prévia, sendo essencial, degrada-se em não essencial, não sendo, por isso, invalidante do acto controvertido, nos casos em que não tem a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, pelo que se impõe o aproveitamento do acto - utile per inutile non vidatur.
II- Com o devido respeito que nos merece, parece óbvio e intransponível que o formalismo do exercício do direito de audição prévia, no caso em concreto, se degradou em não essencial, porquanto, nem tenuemente influenciaria na decisão final da AT (vg. Acórdão deste STA de 30/11/2011 in proc. 0983/11).
JJ- Desde logo, o Órgão de execução fiscal apenas poderia cumprir com o legalmente estipulado pelo legislador no que a esta matéria concerne.
KK- Nunca poderia a argumentação expendida pelo reclamante no que concerne à interpretação legal do Órgão de execução fiscal alterar a decisão reclamada, porque esta era a única possível face ao preceituado legalmente,
LL- Entendeu ainda o Tribunal a quo que o projecto de decisão a ser notificado ao reclamante poderia colmatar as faltas de instrução cometidas no requerimento apresentado, cujo formalismo se encontra claramente definido no dispositivo legal.
MM- Ora, com o devido respeito, a ser assim, influenciaria a pretensão do reclamante e não a do Órgão de execução fiscal, e mais uma vez com a presente reclamação se confirma que assim não seria.
NN- Ficou assim demonstrado nos autos que, mesmo não tendo sido cumprida tal formalidade, a se entender que deveria ser satisfeita, a decisão final do procedimento nunca poderia ser diferente, pois não tinha o Órgão de execução fiscal outra alternativa senão decidir como decidiu, uma vez que não poderia ir para além do previsto pelo legislador.
OO- Razão pela qual a falta de notificação para exercício do direito de audição tem forçosamente de degradar-se em formalidade não essencial, não sendo fundamento para anulação da decisão reclamada.
PP- Assim, decidindo da forma como decidiu, a douta sentença recorrida enferma de erro de julgamento.
1.2. A Recorrida não apresentou contra-alegações.
1.3. O Exm.º Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido de que «Apesar dos termos vagos em que o mesmo se encontra previsto, mas podendo ainda obter enquadramento no art.º 60.º n.º 1, nomeadamente na al. b) da Lei Geral Tributária, sendo o acto em causa de natureza administrativa, apesar de inserido já em execução fiscal, parece ser de reconhecer o referido direito. Caso assim se não entenda: sempre haveria de se conhecer dos demais fundamento da reclamação – artigo 715.º n.º 2 do CPC. Ora, a requerente A………, Ldª alegou que nunca chegou a adquirir bens, razão pela qual não lhe era possível prestar garantia, nos termos do previsto no art. 52.° n.º 4 da L.G.T., sendo relativamente a tal que ofereceu provas.
O entendimento tido pela A.F. que se funda no estabelecido no of. circulado 60077 de 2010-07-29, da Direcção de Serviços de Gestão de Créditos Tributários da DGCI, vai no sentido de lhe ser ainda imputável fazer prova da sua falta de responsabilidade. Em anterior parecer emitido a fls. 124 e 125 defendeu-se já, com base no entendimento doutrinal que se cita de “D. Leite de Campos e Outros, em Lei Geral Comentada e Anotada”, que tal era de aplicar, sendo apenas de decidir face à “manifesta falta de meios económicos”.
Crê-se que, podendo estar-se face a um planeamento fiscal não é de admitir, sem mais, que assim fosse de entender, pois quanto àquele falta de responsabilidade não deve repugnar que seja, pelo menos, obtida, pelo menos, uma justificação sobre a causa da dita inexistência de bens, sem que daí pareça resultar violada a liberdade fundamental prevista no art. 80.° al e) da C.R.P., sabido como é terem de existir controlos fiscais para a sustentabilidade do Estado.
Concluindo, parece que pode ser de julgar o recurso improcedente quanto ao direito de audição, mas, caso assim se não entenda, é de conhecer do demais invocado na reclamação, em termos de não excluir a possibilidade de aplicação ao caso do previsto no art. 52.° n.º 4 da L.G.T., quanto aos seus vários requisitos.».
1.4. Com dispensa dos vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, atenta a natureza urgente do processo, cumpre decidir.
2. Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte matéria de facto:
1 O Serviço de Finanças do Porto-2 instaurou, em 27.04.20011, o processo de execução fiscal n° 3182201101029860, contra A………, Ldª, para cobrança de dívida proveniente de Imposto sobre o Valor Acrescentado, não entregue ao estado, no valor de 42.866.85 € (fls. 1 e 2 do autos).
2 A requerente em 02.06.2011, em requerimento dirigido ao Chefe de Finanças da Porto, pediu a isenção de prestação de garantia (fls. 8 a 11 dos autos);
3 Em 21.06.2011, foi elaborada a informação pela Divisão de Gestão da Dívida Executiva, conforme constante de fls. 19/21 dos autos, que aqui se dá por integralmente por reproduzida;
4 Por despacho do Chefe de Divisão, de 07.07.2001, a referida informação mereceu concordância, sendo indeferido o pedido, conforme documento que aqui se dão por integralmente reproduzidos (fls. 19/21 dos autos);
5 O despacho do Chefe de Finanças, de 07.07.2001, nem a informação que suportou a decisão, não se pronunciou quanto a audiência prévia e não foi realizada a audiência prévia.
6 O reclamante foi notificado pelo ofício n. 63008, datado de 2011.07.18, com o RM 6903 2548 5 PT, o qual foi recepcionado em 21.07.2001 (fls. 24/25 dos autos);
7 A presente reclamação foi interposta em 28.07.2011.
3. A questão que se coloca no presente recurso jurisdicional é a de saber se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento em matéria de direito ao ter considerado que o órgão da execução fiscal tinha o dever de observar a formalidade prevista no artigo 60.º da Lei Geral Tributária (audição prévia) antes da prolação da decisão de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia formulado pela executada no âmbito do processo executivo, e ao ter julgado que a falta de observância desse dever determinava a anulação dessa decisão de indeferimento que constitui o objecto da presente reclamação. O que passa, necessariamente, por saber se é ou não aplicável ao processo de execução fiscal o princípio da participação previsto no artigo 60.º da Lei Geral Tributária, tendo em conta que, como resulta dos autos, é incontornável que o órgão de execução indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia apresentado pela executada sem que lhe tivesse dado a possibilidade de se pronunciar sobre o teor da decisão que veio a proferir.
Vejamos.
Como se sabe, o direito à audiência que o artigo 60.º da Lei Geral Tributária consagra sob a epígrafe de “princípio da participação” constitui uma concretização do direito de participação dos cidadãos na formação das decisões proferidas em procedimentos tributários que lhes digam respeito, garantido pelo artigo 267.º nº 5 da Constituição da República, e que visa assegurar-lhes uma tutela preventiva contra lesões dos seus direitos ou interesses legítimos, razão pela qual deve ser assegurado o exercício desse direito antes, designadamente, do “indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições”. Trata-se, em suma, do direito que assiste aos contribuintes interessados de serem ouvidos num determinado procedimento tributário, antes de ser proferida a decisão, com vista a garantir a observância de princípios que regem a actividade procedimental no plano da relação jurídica tributária e que impõem a participação e a transparência procedimental, pilares fundamentais de um Estado de direito.
Deste modo, sempre que se esteja na presença de um procedimento tributário há que permitir a participação dos cidadãos nas decisões que lhes digam respeito, de modo a que possam contribuir para um cabal esclarecimento dos factos e para uma mais adequada e justa decisão, sob pena de preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade da decisão (a menos que seja manifesto que a decisão só podia, em abstracto, ter o conteúdo que teve em concreto, sabido que os vícios de forma não impõem, necessariamente, a anulação do acto, pois as formalidades procedimentais essenciais degradam-se em não essenciais se, apesar delas, foi dada satisfação aos interesses que a lei tinha em vista ao prevê-las).
Neste contexto, se o processo de execução fiscal fosse um procedimento tributário não teríamos dúvidas em afirmar a aplicabilidade do artigo 60.º da Lei Geral Tributária.
Todavia, o processo de execução fiscal constitui, perante a lei fiscal portuguesa, um processo judicial (entendido como meio ou instrumento de que se vale o Estado para exercer a função judicial, e que compreende uma sucessão ordenada de actos concatenados para a obtenção de um determinado fim processual, que constituem o procedimento processual) e não um procedimento tributário (Na noção legal contida no artigo 54.º da Lei Geral Tributária o procedimento tributário compreende toda a sucessão de actos dirigida à declaração de direitos tributários.) ou um procedimento administrativo (Na noção legal contida no artigo 1.º do Código de Procedimento Administrativo o procedimento administrativo é a sucessão ordenada de actos e formalidades tendentes à formação e manifestação da vontade da Administração Pública ou à sua execução.), constituindo, pois, o meio processual utilizado pelo Estado para arrecadação das receitas previstas no artigo 148.º do CPPT que não tenham sido pagas durante o prazo de pagamento voluntário, originando a execução do património do devedor através da actuação, ainda que “tutelar”, de um tribunal tributário, que é um órgão do poder judicial.
Com efeito, o artigo 103.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária estipula expressamente que o processo de execução fiscal tem natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional e aos quais compete «instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a este respeitantes, salvo os previstos no n.º 1 do artigo 150.º do presente Código» [artigo 10.º, n.º 1, alínea f), do CPPT], ficando, assim, reservado aos tribunais tributários a apreciação e decisão sobre «os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária e a reclamação dos actos praticados pelos órgãos da execução fiscal» [artigo 151.º, n.º 1, do CPPT].
O que significa que, apesar de serem possíveis dois sistemas para cobrança coerciva de dívidas tributárias – o sistema judicial e o sistema administrativo (este vertido num mero procedimento administrativo através do qual a Administração executa o património do devedor suportada em poderes executivos próprios e exclusivos, que brotam do seu poder de autotutela executiva, e que foi acolhido, por exemplo, no ordenamento jurídico espanhol – cfr. artigo 129.º da Ley General Tributaria) – foi clara a opção do legislador português pelo sistema judicial, atribuindo expressamente essa natureza ao processo de execução fiscal, o qual vai, assim, decorrer sob a “tutela” de um juiz tributário, a quem compete, ainda que através da via de reclamação no próprio processo pelos interessados, através da via do incidente inominado (Incidentes cuja apreciação cabe ao juiz no âmbito da competência para decidir “incidentes” atribuída pelo art.º 151.º do CPPT e arts. 49.º, n.º 1, al. d), e 49.º-A, n.ºs 1, al. c), 2, al. c), e 3, al. c), do ETAF de 2002), da oposição, dos embargos ou do pedido de anulação da venda, controlar a legalidade dos actos nele praticados, pertencendo-lhe, por essa via, a competência última do processo. O que, nas palavras de RUI DUARTE MORAIS (In “A Execução Fiscal”, 2ª Edição, Almedina, pág. 45.), «parece dar tradução a uma das dimensões do direito de acesso ao direito e aos Tribunais, consagrado no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa, em cujo âmbito se inclui o direito ao processo de execução como instrumento para a realização efectiva do direito, mas, também, o direito do executado à protecção perante uma execução injusta».
Opção que se compreende, na medida em que a doutrina sempre questionou a validade do poder de autotutela executiva da Administração Pública em termos de princípio geral, isto é, o poder de ela própria assegurar directamente a execução coactiva das suas decisões, sem necessidade de recurso à via judicial, com o argumento de que ela não seria permitida à luz da nossa Constituição, por ser incompatível com a atribuição exclusiva de poder jurisdicional aos órgão do Poder Judicial, constituindo uma prerrogativa da administração demasiado gravosa para os destinatários, não permitida pela 2ª parte do artigo 266.º, n.º 1, da CRP, e que confere uma posição de supremacia à Administração que põe em causa o princípio da igualdade.
Esta opção não impediu, porém, o legislador de conferir a serviços da administração tributária competência e poderes para “Instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a estes respeitantes, salvo os previstos no n.º 1 do artigo 151.º do presente Código”, reservando para o tribunal a prática dos actos materialmente jurisdicionais (Os quais só podem, à luz da nossa Constituição e dos princípios que a inspiram, ser levados a cabo pelos tribunais.), atribuindo, assim, a um órgão administrativo competência funcional para agir como agente ou operador auxiliar do juiz na realização da função executiva, praticando todos os actos inscritos nesse meio processual, tendo em vista a agilização do processo e a obtenção da maior eficácia na arrecadação de receitas do Estado, libertando o juiz de todos os actos que não envolvam uma função materialmente jurisdicional.
Tal possibilidade de uma ampla intervenção da administração tributária não destrói nem altera a natureza judicial do processo, pois, como se deixou explicado no acórdão n.º 80/2003 do Tribunal Constitucional, proferido em 12 de Fevereiro de 2003, a Constituição Portuguesa não obriga a que todos os actos em que se desenrola o processo de execução devam ser obrigatoriamente praticados pelo juiz. «Ao incluir-se este tipo de processo entre os processos de natureza judicial, apenas se pretende afirmar que os conflitos de interesses que dentro dele se suscitem – mesmo que sejam emergentes, não só da actuação das partes ou até de terceiros no processo, como também de qualquer decisão que nele seja tomada pela administração fiscal, relativamente aos actos para cuja prática a lei lhe atribui competência – serão sindicados, no próprio processo, sempre pelo juiz tributário.
Sendo assim, a prática dos actos do processo de execução fiscal, de natureza não jurisdicional, bem pode ser confiada, segundo os próprios termos daquele art. 103.º, n.º 3 da Constituição à administração fiscal. Daí a razão de ser da ressalva feita no referido art.º 103º, n.º 2 da Lei Geral Tributária “[o processo de execução fiscal tem natureza judicial,] sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional”. Daí também, igualmente, a salvaguarda estabelecida na segunda parte da acima transcrita alínea g) do art.º 43º do CPT.».
O Órgão de Execução que dirige e tramita a execução fiscal, tal como o Solicitador de Execução na acção executiva comum, constitui, assim, o agente da execução, um sujeito processual que age como interlocutor no diálogo processual, “substituindo” o juiz no processo executivo, praticando nele todos os actos que, não contendendo com qualquer composição de interesses, sejam legalmente necessários para a obtenção do fim a que o processo se destina. A competência que esse Órgão detém no processo executivo não brota, assim, em princípio, da função tributária exercida pela Administração Fiscal, não se situando, sequer, no plano da relação jurídica tributária, nem emana de um poder de autotutela executiva da Administração, resultando, antes, de uma competência que a lei lhe confere para intervir no processo judicial como órgão auxiliar ou colaborador operacional do Juiz. Razão por que essa intervenção não provoca qualquer metamorfose ou transformação do processo judicial num procedimento tributário, estando todos os actos que nele são inscritos pelos sujeitos processuais (partes, mandatários, órgão da execução, funcionários, juiz) submetidos a estritas regras processuais, que encontram previsão nas normas que regulam o processo tributário e, subsidiariamente, nas normas inscritas no Código de Processo Civil por força do disposto no artigo 2º, alínea e), do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
Deste modo, mesmo quando esses actos vão para além da produção de efeitos internos a nível da ordenação e tramitação intraprocessual e projectam os seus efeitos jurídicos externamente na esfera jurídica do executado ou de terceiros, lesando direitos e interesses legalmente protegidos [como acontece com o acto de apreensão e venda forçada de bens], eles não deixam de constituir actos inscritos no processo ou procedimento processual por um sujeito processual, submetidos, por isso, aos princípios e normas que regem a actividade processual, e não aos princípios gerais que disciplinam a actividade tributária, designadamente ao princípio da participação contido no artigo 60.º da LGT, ao princípio da decisão e formação de indeferimento tácito (arts. 56.º e 57.º n.º 5 da LGT), ao princípio da confidencialidade, ao princípio do duplo grau de conhecimento ou às regras sobre prazos contido no artigo 55.º da LGT.
Só assim não será nos casos em que no procedimento processual surge “enxertado” um procedimento administrativo/tributário, gerador de um acto materialmente administrativo em matéria tributária. Com efeito, apesar da estrutura do processo executivo se traduzir, fundamentalmente, na prática de actos funcionalmente orientados para atingir o fim específico de cobrança judicial de determinada quantia, essencialmente constituído por actos e operações que não contendem com a composição de interesses [actos de chamamento à execução, actos de desapossamento do devedor de coisas do seu património (penhora), acto de venda forçada seguida de pagamento com o preço da venda, etc.], esse processo apresenta uma particularidade, que se traduz no facto de a administração tributária gozar nele de uma dupla condição: a de credora/exequente e a de órgão auxiliar do juiz que “tutela” o processo.
Como a presente Relatora teve oportunidade de referir na declaração de voto que deixou exarada no acórdão proferido por este Supremo Tribunal em 30 de Novembro de 2011, no Recurso n.º 0983/11, apesar de a administração tributária ser chamada a colaborar com o tribunal na cobrança dos seus próprios créditos, praticando no processo executivo todos os actos administrativos de cariz processual, conduzindo, assim, o rito ou procedimento processual com submissão às regras processuais, a lei permite-lhe ainda, em determinadas situações, agir no processo executivo na qualidade de credora/exequente, como acontece, por exemplo, quando profere decisão a responsabilizar, solidária ou subsidiariamente, outras pessoas pelo pagamento da dívida tributária (praticando um acto administrativo de asserção dos pressupostos legais para essa responsabilização, mudando a titularidade da dívida exequenda através do mecanismo da reversão) ou quando decide os pedidos que os devedores/executados lhe dirigem no sentido de aceitar o pagamento da dívida através de dação em pagamento de bens ou quando autoriza o seu pagamento em prestações.
Nessas situações, abre-se no processo de execução fiscal um verdadeiro procedimento administrativo/tributário, que é apreciado e decidido pela administração tributária nessa própria qualidade, enquanto credora/exequente, como resulta à evidência do disposto nos artigos 196.º a 199.º do CPPT (no que toca ao pagamento em prestações) e do disposto nos artigos 201.º e 202.º do mesmo Código (no que toca à dação em pagamento), produzindo actos materialmente administrativos em matéria tributária. E tanto assim é que a entidade competente para deferir ou indeferir esses pedidos pode nem pertencer ao órgão da execução fiscal, isto é, ao órgão administrativo que conduz e dirige o processo executivo, mas a outro órgão da administração tributária (cfr. n.º 2 do art.º 197.º e n.ºs 2 e 3 do art.º 201.º do CPPT) (Actos que só estão sujeitos a um controle de legalidade pelo Tribunal dentro da própria execução fiscal por virtude a Lei Geral Tributária ter vindo consagrar, de modo inovador, um direito de reclamar no processo executivo dos actos materialmente administrativos nele praticados (art.º 103.º). Se não fosse esta norma, esses actos teriam de ser impugnados através de acção administrativa especial (art.º 97.º, n.º 2 do CPPT e 191.º do CPTA) e ficariam sujeitos ao prazo geral de revogação que consta do art.º 141.º do CPA, e não ao curtíssimo prazo de revogação previsto no art.º 277.º, n.ºs 2 e 3 do CPPT.).
Ou seja, nesses casos a Administração Tributária actua como tal, no exercício da sua função tributária, agindo sobre a relação jurídica tributária estabelecida entre si (como sujeito activo) e o contribuinte (como sujeito passivo), produzindo actos materialmente administrativos em matéria tributária, inseridos, assim, no âmbito de um procedimento tributário autónomo e funcionalmente diferente do procedimento processual dirigido à cobrança coerciva de determinadas quantias, embora “enxertado” neste ou a correr paralelamente a ele.
E a esses procedimentos tributários há que aplicar, naturalmente, os princípios gerais que regulam a actividade administrativa e as normas que a Lei Geral Tributária prevê para os procedimentos tributários, designadamente a norma contida no seu artigo 60.º.
Posto isto, a questão que se coloca é a de saber se o pedido de dispensa de prestação de garantia dá origem a um procedimento tributário no seio do processo de execução fiscal, cuja decisão fique a cargo da administração tributária enquanto exequente/credora, conducente à prolação de um acto materialmente administrativo em matéria tributária – caso em que seria necessário observar o dever de audiência prévia – ou se, pelo contrário, constitui um mero acto administrativo de carácter disciplinador dos termos do processo executivo, nele inserido pelo colaborador operacional do juiz face ao quadro normativo que regula o legal andamento do processo, sujeito a estritas regras e princípios processuais.
A resposta a esta questão não é fácil e tem merecido, por parte da jurisprudência, decisões antagónicas.
Na nossa perspectiva, o facto de a lei dispor, no artigo 52.º, nº 4, da Lei Geral Tributária, que a administração tributária pode, a requerimento do executado, isentá-lo da prestação de garantia no caso de essa prestação lhe causar prejuízo irreparável ou no caso de manifesta falta de meios económicos revelada por insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido, logo indicia que a apreciação e decisão desse pedido está a cargo da própria administração tributária, isto é, do sujeito activo da relação jurídica tributária e não do órgão ou agente da execução que auxilia o juiz, dando origem a um procedimento tributário específico, sujeito às regras que regem esses procedimentos, designadamente ao princípio da audiência prévia plasmado no artigo 60.º da LGT.
E, na verdade, quando o pedido de prestação de garantia ou da sua dispensa se insere no âmbito de uma autorização de pagamento da dívida em prestações, da competência da entidade que autoriza essa forma de extinção da relação jurídica tributária (art.º 199.º, n.º 8, do CPPT), não temos quaisquer dúvidas em afirmar que ele gera um verdadeiro procedimento administrativo/tributário, apreciado e decidido pela administração tributária, por vontade própria, na qualidade de credora, pois só ela tem competência para autorizar essa modalidade de pagamento da dívida prevista no artigo 42.º da LGT e regulamentada nos artigos 196.º e segs. do CPPT.
Mas também fora desse enquadramento, a decisão sobre o pedido de dispensa de prestação de garantia deve qualificar-se, salvo o devido respeito por contrária opinião, como um verdadeiro acto administrativo em matéria tributária, uma vez que o órgão da execução está ainda a exercer uma actividade materialmente tributária que passa pela expressão de uma vontade própria, enquanto sujeito activo da obrigação tributária, de dispensar ou não o sujeito passivo de lhe prestar uma garantia que assegure o pagamento da dívida exequenda e do acrescido face a situações de prejuízo irreparável ou de manifesta falta de meios económicos que o executado tem de alegar e documentar perante si e que a ela caberá avaliar.
Aliás, a utilização da expressão “A administração tributária pode, a requerimento do executado, isentá-lo da prestação de garantia...”, contida no n.º 3 do artigo 52.º da LGT, aponta no sentido de se estar perante um poder discricionário que é atribuído à administração tributária na qualidade de titular do crédito cujo pagamento o executado deve assegurar. Tratar-se-á, pois, de um poder que o sujeito activo da relação tributária obrigacional ou titular do crédito exercerá em conformidade com o julgamento que realize, no âmbito de competências próprias, sobre a situação económica do executado e o prejuízo que a prestação de garantia lhe poderá causar. E, assim sendo, esse pedido dá origem a um procedimento tributário específico, “enxertado” no processo executivo, estando a respectiva decisão sujeita aos princípios que regem os procedimentos tributários previstos nos artigos 55.º e segs. da Lei Geral Tributária.
Razão por que se impunha, em princípio, observar o princípio da participação contido no artigo 60.º da LGT.
Todavia, segundo o disposto no artigo 170.º do CPPT, o pedido de dispensa de prestação de garantia «deve ser fundamentado de facto e de direito e instruído com a prova documental necessária» (n.º 3) e «será resolvido no prazo de 10 dias após a sua apresentação» (n.º 4), o que revela o carácter urgente deste procedimento, justificado pela necessidade de proteger o interesse do Estado, enquanto titular de créditos tributários, assegurando a sua efectiva cobrança através de garantias suficientes e idóneas que devem ser prestadas pelo executado durante a fase de discussão da legalidade do acto de liquidação, e a necessidade de evitar que através da dedução de pedidos de dispensa de prestação de garantia se facilite ou provoque a inviabilidade dessa cobrança, pela oportunidade concedida ao executado de dissipação de bens no período de tempo que decorra até à prolação da decisão, ficando definitiva ou gravemente comprometida a satisfação da necessidade pública de assegurar a efectiva cobrança de receitas tributárias.
Ora, embora o artigo 60.º da LGT não preveja expressamente situações de dispensa do dever de audição prévia no procedimento tributário para os procedimentos em que há, de forma objectiva e revelada pela lei, urgência na prolação da decisão, cremos que deve apelar-se ao regime contido no Código de Procedimento Administrativo, cujo artigo 103.º, n.º 1, estabelece que não há lugar a audiência dos interessados «Quando a decisão seja urgente», por força da aplicação subsidiária desta norma em conformidade com o disposto no artigo 2.º, alinea c) da LGT.
Com efeito, de acordo com a doutrina (Cfr. Pedro Machete, in “A Audiência Dos Interessados No Procedimento Administrativo”, pp. 505 e segs. e Freitas do Amaral, in “Curso de Direito Administrativo”, II, p. 323.) e a jurisprudência (Cf., entre outros, os acórdãos da Secção de 20.11.2002, no Rec. n° 48417, de 25.09.2003, no Rec. nº 47953, de 29.06.2006, no Rec. n.º 816/05, e os acórdãos do Pleno de 31.03.2004, no Rec. n° 35338 e de 13.10.2004, no Rec. nº1218/02.) da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, a audiência prévia dos interessados, não tendo, embora, natureza jusfundamental, releva como princípio estruturante da lei especial sobre o processamento da actividade administrativa e, bem assim, como direito subjectivo procedimental, tendo natureza excepcional as normas que prevêem, em certas situações, o sacrifício desse direito; e, por essa razão, a urgência referida no artigo 103.° do CPA só se justifica nas situações em que o tempo seja determinante do sucesso ou insucesso da decisão a adoptar, em termos tais que se possa antever que, sem esse sacrifício, ficará definitiva ou gravemente comprometida a satisfação de uma necessidade pública indeclinável, incompatível com a observância do prazo mínimo legalmente previsto para o exercício do direito do interessado a ser ouvido no procedimento.
E se é verdade que o direito de participação dos cidadãos na formação das decisões que lhes dizem respeito tem de ser norteado pelo princípio superior da salvaguarda dos seus direitos ou interesses legítimos na feitura de uma decisão que se deseja correcta, não o é menos que tal exercício não deve criar obstáculos a situações objectivas de urgência legal, razão por que se impõe observar, também nos procedimentos tributários de carácter urgente, a norma que prevê a dispensa de audição contida no referido artigo 103.º, n.º 1, alínea a), do CPA.
No caso vertente, o curtíssimo prazo concedido à administração tributária para a decisão do pedido, conjugado com a obrigatoriedade de o executado apresentar imediatamente toda a prova no requerimento onde formula a sua pretensão, denuncia objectivamente o carácter urgente deste procedimento tributário, onde o tempo constitui um elemento determinante na finalidade pública que se visa prosseguir, de obviar ao sumiço de bens que possam garantir o pagamento integral da dívida exequenda, assim se justificando a não observância da formalidade prescrita no artigo 60.º da LGT, ao abrigo do disposto na alínea a), do n° 1, do artigo 103.° do CPA, face à aplicação subsidiária das normas do CPA ao procedimento tributário.
Sempre se dirá, porém, para os que não aceitem a aplicabilidade da referida norma do Código de Procedimento Administrativo, que o próprio requerimento em que o interessado expõe a sua pretensão, indicando todas as razões que, em seu entender, a justificam, e ao qual é obrigado a juntar logo todos os elementos de prova, desempenha aqui a função da audiência prévia, pois que seguindo-se uma imediata decisão fica afastada a possibilidade daquele ser surpreendido com diligências instrutórias que só por si justificassem um acto de sentido contrário àquele que aguardava.
Nesse requerimento o interessado deve fazer a subsunção dos factos que alega ao direito aplicável, fazer a sua interpretação das normas que são chamadas a justificar a decisão e dar logo o seu contributo para que seja proferida uma decisão correcta, tanto no que toca aos pressupostos de facto como aos pressupostos de direito do acto a proferir, pelo que não havendo instrução, mas tão-só a apreciação por parte do órgão decisor dos factos invocados face à prova oferecida e sua subsunção ao direito aplicável, como se de um deferimento ou indeferimento liminar se tratasse, não há que chamá-lo novamente a participar na formação da decisão, não há que renovar ou duplicar essa audição. É o que resulta, aliás, da regra geral contida no n.º 3 do artigo 60.º da LGT, segundo a qual “tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais ainda não se tenha pronunciado”, quando aplicada a todos os procedimentos tributários que culminem com um acto final lesivo, seja ele ou não um acto de liquidação.
Nesta conformidade, tem de ser revogada a sentença recorrida, que em sentido contrário decidiu.
Face a essa revogação, importaria passar ao conhecimento, por substituição, da outra questão suscitada na reclamação com vista à pretendida anulação do acto reclamado e cujo conhecimento ficara prejudicado pela solução dada ao litígio na sentença recorrida (erro nos pressupostos de facto na decisão de indeferimento do pedido de dispensa de garantia).
Na verdade, o artigo 715.º, n.º 2 do CPC determina que “Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhecerá no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários”, e tal norma é aplicável ao recurso de revista interposto para o Supremo Tribunal Administrativo por força do disposto nos artigos 749.º e 762.º, nº 1, e do preceituado no artigo 726.º, todos do CPC, desde que não esteja em causa matéria de facto.
Todavia, não constando da decisão recorrida a matéria de facto pertinente à apreciação desse fundamento e dada a falta do poder/dever de, nessas condições, este tribunal se substituir ao tribunal recorrido para fixar os factos relevantes, não se entrará no conhecimento dessa questão e antes se determinará a baixa dos autos ao TAF do Porto a fim de aí ser conhecida.
4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e ordenar que os autos regressem à 1.ª instância a fim de aí serem conhecidas as restantes questões suscitadas na reclamação.
Sem custas, dado que a Recorrida não contra-alegou.
Lisboa, 23 de Fevereiro de 2012. – Dulce Manuel Neto (relatora) – Ascensão Lopes – Pedro Delgado.