Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01705/19.8BELSB
Data do Acordão:09/10/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:IMIGRAÇÃO
ASILO
Sumário:I - Apenas em casos devidamente justificados, ou seja, naqueles casos em que existam motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e que tais falhas implicam o risco de tratamento desumano ou degradante, nomeadamente por envolver tortura, é que se impõe ao Estado em causa diligenciar pela obtenção de informação actualizada acerca da existência de risco de o requerente ser sujeito a esse tipo de tratamentos;
II - A imigração ilegal, que ocorre por muitos e variados motivos, visando todos eles a melhoria das condições de vida do imigrante, não se pode confundir simplesmente com a situação do refugiado. Este, que em sentido amplo não deixa de ser imigrante, busca refúgio em país estrangeiro por recear, com razão, ser perseguido no seu país de origem em consequência de actividade exercida em favor da democracia, da liberdade social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, ou em virtude da sua raça, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social.
Nº Convencional:JSTA000P26258
Nº do Documento:SA12020091001705/19
Data de Entrada:06/23/2020
Recorrente:MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA - SERVIÇOS DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS
Recorrido 1:A.........
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:


I – Relatório

1 – O Ministério da Administração Interna, através do SEF, interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, que, em 13 de Fevereiro de 2020, por vislumbrar um défice de instrução, revogou a sentença absolutória do TAC de Lisboa — proferida na acção que A……….., com os sinais dos autos, propusera, a fim de impugnar o acto do SEF que considerara inadmissível o seu pedido de protecção internacional e ordenara a sua transferência para Itália — e anulou o mesmo acto para que no procedimento se averiguasse das condições de acolhimento de refugiados naquele país.

2 – Por acórdão de 7 de Maio de 2020, foi a presente revista admitida para melhoria da aplicação do direito, como o seguinte fundamento:
«[…]
a posição do TCA é manifestamente controversa. «Primo», porque a petição aludiu a essas «deficiências sistémicas» de um modo conclusivo, isto é, carente de decomposição factual — e isso parece comprometer o alegado. «Secundo», porque o STA já decidiu ao invés do aresto recorrido num caso semelhante («vide» o acórdão de 16/1/2020, proferido no proc. n.° 2240/18.7BELSB). […]».


3 – A Recorrente apresentou alegações que concluiu da seguinte forma:
«[…]
1.ª Resulta evidente que o Tribunal recorrido na sua ponderação e julgamento do caso sub judice, e refutando a decisão do recorrente, não deu cumprimento às normas legais vigentes em matéria de asilo, mormente no que respeita ao mecanismo da Retoma a Cargo, ao qual a Itália está vinculada;
2.ª O ora recorrente deu início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, que culminou com o apuramento de que essa responsabilidade pertencia a Itália (cf. art.º 252 , n.º 2 do citado Regulamento (UE) 604/2013 e art.º 372, nº 1 da Lei n.º 27/2008 (Lei de Asilo)), impondo a lei como consequência imediata (vinculada) que fosse proferido o acto de inadmissibilidade e de transferência;
3.ª De harmonia com o art.º 252 nº 2 do Regulamento (UE) 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, e o art.º 372, nº 1 da Lei de Asilo, o ora recorrente procedeu à determinação do Estado-Membro responsável pela análise do pedido de asilo, procedimento regido pelo art.º 362 e seguintes da Lei 27/2008, de 30 de junho (Lei de Asilo), tendo, no âmbito do mesmo sido apresentado, aos 11/07/2019, pedido de retoma a cargo às autoridades italianas, aceite tacitamente.
4.ª Consequente e vinculadamente, por despacho da Diretora Nacional, nos termos dos artºs 19º-A, nº 1, a) e 372 nº 2 da citada lei, foi o pedido considerado inadmissível e determinada a transferência do requerente para Itália, Estado-Membro responsável pela análise do pedido de Asilo nos termos do citado regulamento, motivo pelo qual o Estado português se torna apenas responsável pela execução da transferência nos termos dos artºs 29º e 30º do Regulamento de Dublin;
5.ª "Estamos, portanto, perante um acto estritamente vinculado, sendo que a validade dos atos praticados na exercício de poderes vinculados tem de ser feita em função dos pressupostos de facto e de direito fixados por lei, ou seja pela confrontação da factualidade dada como provada com a consequência jurídica imediatamente derivada da lei (...) é a própria lei nº 27/2008, de 30 de Junho, que no seu artigo 37.!2, n.º 2, lhe impunha a atuação levada a efeito" (cf. Acórdão do TCA SUL de 19/01/2012, proc. nº 08319/11);
6.ª Com a devida Vénia, afigura-se ao recorrente que o Acórdão, ora objeto de recurso, carece de fundamentação legal, porquanto não logrou fazer a melhor interpretação do regime que regula os critérios de determinação do estado membro responsável, em conformidade com o Regulamento (EU) que o hospeda.
7.ª Na verdade, não pode o ora recorrente aceitar o veredicto plasmado no Acórdão que considerou boa a tese do recorrido (Autor).
8.ª Estamos perante um procedimento em que o Estado Membro responsável já estava determinado, sendo este Estado a Itália, Estado onde foi apresentado o pedido de proteção internacional. Ao deslocar-se para Portugal, cabe às autoridades portuguesas, ora Recorrente, aplicar vinculadamente as regras da retoma a cargo, previstas no artigo 23º do Regulamento (UE) nº 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de julho, e ao Estado italiano cumprir com as obrigações previstas no artigo 182, do mesmo Regulamento.
9.ª Estatui a alínea a) do n.º 1 do art.º 19º-A da Lei 27/2008, de 30 de junho que "O pedido é considerado inadmissível, quando se verifique que está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, previsto no capítulo IV".
10.ª Sob a epígrafe «Procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional», o capítulo IV estabelece no art.º 36º que "quando haja lugar à determinação do Estado responsável pela análise de um pedido de proteção internacional é organizado um procedimento especial regulado no presente capítulo".
11.ª Quer isto dizer que, recebido o pedido de Proteção Internacional e verificando que, nos termos do nº 1 do art.º 37º, "a responsabilidade pela análise da pedida de proteção internacional pertence a outro Estado membro" as autoridades portuguesas, em conformidade com o legalmente estabelecido, iniciam um "procedimento especial", de acordo com o previsto no Regulamento (UE) nº 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho";
12.ª Nesse sentido e em sede de garantias dos requerentes, o regulamento Dublin vem estabelecer no art.º 4º o Direito à informação e, no art.º 5º, a realização de uma Entrevista pessoal "A fim de facilitar o processo de determinação do Estado-membro responsável (...). A entrevista deve permitir, além disso, que o requerente compreenda devidamente as informações que lhe são facultadas nos termos do art.º 4 º ";
13.ª No caso em escrutínio, e em cumprimento do disposto no art.º 5.º do Regulamento 604/2013 (Regulamento Dublin) ex vi art.º 36.º, n.º 1 da Lei 27/2008, foi realizada entrevista pessoal ao requerente (cf. pág. 19 a 26 do PA) que deu origem ao respetivo Relatório;
14.ª A Entidade Demandada, ora Recorrente, observou as exigências previstas no artigo 5º do Regulamento supra mencionado, tendo realizado, antes da decisão que determinou a transferência, uma entrevista pessoal com o requerente, ora Autor e, bem assim, elaborado um resumo escrito, através de relatório/formulário, do qual constam as principais informações facultadas pelo requerente;
15.ª Por outro lado, no âmbito desta entrevista, o recorrido foi informado da aplicação do referido Regulamento quanto aos critérios de determinação do Estado-Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional que formulou, tendo-lhe sido facultada a possibilidade de pronuncia quanto à eventual decisão de retoma a cargo a proferir pelo Estado onde o pedido foi apresentado, bem como alegar elementos susceptíveis de afastar a aplicação dos critérios de responsabilidade e, consequentemente, a sua transferência para Itália;
16.ª No âmbito do Procedimento Especial previsto no Capítulo IV da Lei de Asilo (artigos 36.º a 40.º) relativo à determinação do Estado-membro responsável pela análise do pedido, na medida em que não se vai analisar o mérito do pedido nem os fundamentos em que se baseiam a pretensão do recorrido, não se impõe à Administração que adaptasse quaisquer outras diligências de prova ou de instrução do pedido;
17.ª Não é aplicável o disposto no art.º 17º nº 2 da lei do Asilo, afastada pela certeza "especial" do procedimento plasmado no art.º 36º e ss. da referida Lei, tal como se comprova no nº 7 do art.2 37º, que estipula que: "em caso de resposta negativa do Estado requerido ao pedido formulado pelo SEF, nos termos do nº 1 observar-se-á o disposto no capítulo III".
18.ª A tramitação do procedimento de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional obedece a regras de procedimento diferente, que são as estabelecidas pelo Regulamento (EU) nº 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho (Regulamento Dublin). ln casu, a Itália aceitou a retoma a cargo, o que afasta decisivamente a aplicabilidade das normas do capítulo III (e de todas as suas normas), à situação vertente.
19.ª Quanto à questão da existência de eventuais falhas sistémicas nos procedimentos de receção dos pedidos de proteção internacional por parte das autoridades italianas, o Regulamento Dublin, no artigo 3º, n.º 2, prevê, efetivamente, que "Caso seja impassível transferir um requerente para o Estada-Membro inicialmente designada responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risca de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4. º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos na Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável''.
20.ª E nos termos do art.º 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) "Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes".
21.ª Ora, quer no tocante ao sistema de análise dos pedidos de asilo na Itália, quer nos elementos constantes nos autos, inexistem quaisquer indícios que permitam concluir pela existência de falhas sistémicas no procedimento de Asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes, que impliquem um risco de tratamento desumano ou degradante, ou que dadas as particulares condições do recorrido a transferência implique um risco sério e verosímil de exposição a um tratamento contrário ao art.º 4º da CDFUE, nem risco objetivo (direto ou indireto) de reenvio para o país de origem, para que Portugal não proferisse a decisão de transferência ora impugnada, motivos esses que o recorrido não invocou quando efetuou pedido de proteção internacional.
22.ª Para melhor corroborar a posição do ora recorrente vejamos a argumentação do TACL no Processo nº 471/19.1 BESB, a qual desde já subscrevemos:
"Em conformidade com a confiança mútua entre o Estados-Membros no âmbito do SECA, existe uma forte presunção e no que as condições materiais de acolhimento oferecidas aos requerentes de proteção internacional nos Estados-Membros serão adequadas, com respeito pelo Direito da União e pelo direito da União e pelos direitos fundamentais. Nesse sentido, vejam-se as considerações expendidas no Acórdão do Tribunal de Justiça, de 21/12/2011, proferido nos processos apensos nºs C-411/10 e C-493/10.
Entendimento que foi vincado muito recentemente pelo TJUE em Acórdão de 19/03/2019, proferido nos apensos C-297/17, C-318/17, C-319/17 e C-438/17, (...) E não poderia ser de outra forma, sob pena de o Sistema Europeu Comum de Asilo se tornar num "Asylum Shopping", em que o requerente de asilo apresenta pedidos de proteção internacional em mais do que um Estado Membro ou escolhe o Estado-Membro onde pretende ver o seu pedido apreciado em detrimento de outros, com fundamento nas condições de receção ou de assistência social que cada estado-membro tem para oferecer (optando pelo estado membro que ofereça melhores condições). Não é este o escopo da concessão de proteção internacional às pessoas que, legitimamente procurem a protecção da União.
Sublinhe-se que, sem prejuízo, como não poderia deixar de ser, da aplicação integral da Convenção de Genebra de 1951, completada pelo Protocolo de Nova Iorque de 31 de janeiro de 1967, a qual assegura que ninguém será enviado para onde possa ser novamente alvo de perseguições ou de maus tratos e ofensas, o Regulamento (EU) nº 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de julho de 2013, criou critérios objetivos e equitativos quanto à determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional, assegurando a igualdade de tratamento de todos os Requerentes e beneficiários de proteção internacional.(...)".
23.ª Na mesma linha, veja-se sentença proferida pelo TACL, no Processo nº 1741/18.lBELSB, a qual também desde já subscrevemos:
(...) como explicita o TJUE, "O artigo 49 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que: - mesmo não havendo razões sérias para crer na existência de falhas sistémicas no Estado-Membro responsável pela análise do pedido de asilo, a transferência de um requerente de asilo no âmbito do Regulamento n.º 603/2013 só pode ser feita em condições que excluam que essa transferência implique um risco real e comprovado de o interessado sofrer tratos desumanos ou degradantes, na aceção desse artigo (...)." (itálico nosso) -cfr. acórdão do Tribunal de Justiça de 16/02/2017. proferido no proc. nº C-578/16 PPU (disponível em www.curia.europa.eu).
(...)
A este propósito, há que sublinhar, também, que no que respeita às condições de acolhimento no Estado-Membro responsável, este está vinculado pela Diretiva 2013/33/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece normas em matéria de acolhimento dos requerentes de proteção internacional.
Assim, e em conformidade com a confiança mútua entre os Estados-Membros no âmbito do SECA, existe uma forte presunção de que as condições materiais de acolhimento oferecidas aos requerentes de proteção internacional nos Estados-Membros serão adequadas, com respeito pelo Direito da União e pelos direitos fundamentais. Neste sentido, vejam-se as considerações expendidas no acórdão do Tribunal de Justiça, de 21/12/2011, proferido nos processos apensos n.º 5 C-411/10 e c-493/10 (disponível em www.curia.europa.eu) (...).
Em face do exposto, considerando o princípio segundo o qual os pedidos são analisados por um único Estado-Membro, determinado em função dos critérios enunciados no capítulo III, do citado Regulamento, conforme dispõem os arts. 3º, 7º, nº 2, 18º, nº 1, al. b) e 23º, não estão reunidos os pressupostos legais para que o pedido de proteção internacional formulado pelo Autor possa ser apreciado por Portugal, como decidiu a Entidade Demandada, não cabendo, pois, às autoridades portuguesas proferir decisão de mérito acerca desse pedido (...).
No caso vertente, reitere-se, não ocorre a violação dos referidos princípios, em virtude de a decisão ora impugnada não ter considerado as circunstâncias pessoais do requerente para efeitos de concessão de proteção internacional, porquanto, não estão reunidos os pressupostos legais para que o pedido de proteção internacional formulado pelo Autor possa ser apreciado em território nacional, não competindo às autoridades portuguesas analisar e proferir decisão acerca desse pedido, para efeitos de saber se ao requerente deve ou não ser concedido o direito de asilo. Tal decisão deverá ser emitida pelo Estado responsável pela análise do pedido (...)."
24.ª Mais recentemente, o TCA Sul por Acórdão de 21/11/2019, sob o processo 1258/19.7BELSB deliberou que "(...) é certo que no procedimento concretamente observado, o SEF nada refere quanto à existência de motivos válidos indiciadores de eventuais falhas sistémicas no procedimento de asilo a observar pelo Estado italiano, nem quanto às condições de acolhimento dos requerentes aí existentes, a fim de ponderar se existe risco para o ora recorrente de vir a sofrer tratamento desumano ou degradante na acepção do art. 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Na entanto e cama se viu, o recorrente nada alegou quanto às concretas circunstâncias que viveu em Itália.
Para além disso e quanto à situação geral do país, o TJUE considerou no âmbito do proc. n.º C-163/17, de 19/03/2019 acessível em www.curia.europa.eu parcialmente transcrita na sentença recorrida "que o carácter pouco desenvolvido do sistema social italiano, cujas carências são supridas, no que respeita à população italiana, com a entreajuda e solidariedade familiar, que não existe no que respeita aos beneficiários de protecção internacional, não constitui motivo para entender que os requerentes de protecção internacional que sejam transferidos para a Itália, ficarão em situação de privação material extrema (...) as deficiências que possam existir na aplicação, pelo Estada-Membro normalmente responsável pela análise do pedido de protecção internacional, de programas de integração dos beneficiários de tal protecção não pode constituir um motivo sério e comprovado para crer que a pessoa m causa correria, em caso de transferência para esse Estado-membro, um risco real de ser sujeita a tratos desumanos ou degradantes, na acepção do art. 4.º da Carta (...) no que se refere à questão de saber quais são os critérios por referência aos quais as entidades nacionais devem proceder a essa apreciação (...) devem os mesmos ter um nível particularmente elevado de gravidade que depende do conjunto dos dados em causa e que seria alcançado quando a indiferença das autoridades de um Estado-Membro tivesse como consequência que uma pessoa completamente dependente do apoio público se encontrasse, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema, que não lhe permitisse fazer face às suas necessidades mais básicas, como, nomeadamente, alimentar-se, lavar-se e alojar-se, e que pusesse em risco a sua saúde mental ou a colocasse num estado de degradação incompatível com a dignidade humana (...)".
25.ª No mesmo sentido se pronunciou o TCA Sul no processo 1361/19.3BELSB em 30/12/2019, "A clausula de salvaguarda prevista no art. 3.º n.º 2 do Regulamento Dublin III, exige a verificação de um duplo condicionalismo - a) que existam "motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro" e b) e qua tais falhas "impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na acepção do art. 4.º da Carta das Direitos Fundamentais da União Europeia". A nosso ver nenhum dos requisitos se verifica. Com efeito, a A. não tem problemas de saúde e não referiu ter sofrido quaisquer problemas no seu acolhimento em Itália, mas apenas problemas familiares no seu país de origem, a Serra Leoa. (...) Tais condicionalismos têm, a nosso ver, de ser apreciados em concreto, por referência à situação concreta de cada requerente, e não em abstracto, com a mera invocação de falhas sistémicas generalizadas (...) tem de haver um risco real para o requerente e a este cabe demonstrar que existem circunstâncias excepcionais que lhe são próprias, o que no caso dos autos não se verifica, nem nunca foi alegado pela requerente, quer nas declarações iniciais, quer na petição do presente recurso, onde apenas é referido o conhecimento comum e generalizado das dificuldades de acolhimento em Itália. Assim o SEF não se encontrava obrigado a fazer quaisquer averiguações sobre eventuais falhas sistémicas do sistema de acolhimento italiano, uma vez que, no caso concreto, inexistem quaisquer indícios de que a A. tenha sido ou venha a ser vitima das mesmas, nomeadamente com a gravidade extrema que é pressuposto da aplicação da clausula de salvaguarda constante do art. 3.º n.º 2 do Regulamento de Dublin III".
26.ª E recentemente, o STA, no processo 2240/18.7BELSB, por Acórdão de 16/01/2020, "Mas, cremos, esta decisão não poderá manter-se, porque as circunstâncias deste caso, quer no tocante ao conteúdo das declarações do requerente quer ao conteúdo das ditas noticias, não impunham ao SEF o dever de proceder à pesquiso oficioso de informações relativas ao procedimento de asilo e às condições de acolhimento de refugiados em Itália. 3. Na verdade, das "declarações" prestados pelo requerente (ponto H do provado), apenas se colhe que ele veio de Itália para Portugal porque não se sentia em segurança dado haver muitos problemas no campo onde estava e porque era muito difícil ir ao hospital. Ou seja, ele invoca essencialmente razões de segurança, e de difícil assistência hospitalar, fazendo-o, diga-se, de forma muito genérica, dado que "não concretiza" qualquer episódio que possa ilustrar a sua queixa. ( .. )
Daí resultar que apenas em casos devidamente justificados, ou seja, naqueles casos em que existam motivos válidos para crer que "há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes" que tais falhas impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante, nomeadamente por envolver tortura, é que se impõe ao Estado em causa diligenciar pela obtenção de informação atualizada acerca da existência de risco de o requerente ser sujeito a esse tipo de tratamento. Nestes casos, de ponta, não há quaisquer razões de celeridade e eficiência que possam suplantar a proteção devida ao requerente de asilo.
O que obviamente não ocorre neste caso, no qual as queixas do requerente, relativas à sua permanência em campo de "refugiados", em Itália, e desde logo por falta da sua necessária densificação, não são de molde a induzir qualquer "suspeita séria" - motivos válidos - de vir o sofrer - por parte do Estado Italiano - tratamento "desumano ou degradante", nos termos expostos (...).
Assim, os epifenómenos traduzidos nas notícias oficiosamente respigados pelo tribunal, refletem toda essa inusitada situação vivida, nomeadamente em Itália, mas não são aptos a implicar o risco de tratamento desumano ou degradante, mormente tortura, dos requerentes de proteção internacional por parte do Estado Italiano.
Temos, por conseguinte, que as notícias levadas ao acervo factual provado, o título de factos notórios, não deixando de traduzir uma "situação anómala", não são, por si só, e atentas os contornos da situação, suscetíveis de configurar motivas válidos para crer que se preenche - no caso concreto - a hipótese legal previsto no 2º parágrafo do nº 2 do artigo 3º do regulamento (EU) 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26.06.2013. Isto é, elas não constituem razões sérias e verosímeis de que o requerente corra o risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, mormente tortura, por parte das autoridades italianas.
27.ª Com efeito, no tocante ao sistema de análise dos pedidos de asilo na Itália, afigura-se-nos curial que inexiste qualquer indício que permita concluir pela existência de falhas sistémicas no procedimento de Asilo, único óbice para que Portugal não proferisse a decisão de transferência ora impugnada.
28.ª Efetivamente, em momento algum, o ora recorrido, concretizou em que medida foi sujeito a uma situação de falha sistémica ou tratamento desumano durante a sua permanência em solo italiano.
29.ª Com todo o respeito, cabe aqui apenas reiterar que a ora recorrente deu início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, que culminou com o apuramento de que essa responsabilidade pertencia à Itália (cf. art.º 25º, n.º 2 do citado Regulamento (UE) 604/2013 e art.º 372 nº 1 da Lei n.º 27/2008 (Lei de Asilo), impondo a lei como consequência imediata (vinculada) que fosse proferido o ato de inadmissibilidade e de transferência.
30.ª Nesta sede, não podia o Estado Português concluir que estava impedido, por força do disposto no segundo parágrafo do nº 2, do artigo 32 do Regulamento (EU) nº 604/2013, de proceder à transferência do recorrido para a Itália.
31.ª Crê-se destarte inequívoco, que o Acórdão a qua carece de legalidade, porquanto, conforme precedentemente explanado, no estrito cumprimento do estatuto pelo direito vigente sobre a matéria, se lhe impunha considerar impoluto o acto da ora Recorrente.
32.ª Ao invés, assim não actuou, razão pela qual ora se pugna pela revogação do douto Acórdão, atenta a correta interpretação e aplicação da Lei.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve o presente recurso de revista ser admitido (cf. art.º 1502 nº 1 do CPTA) e dado provimento, com as legais consequências, com que V. Exas., Venerandos Conselheiros, farão JUSTIÇA!
[…]».


4 – O recorrido não contra-alegou.

5 - A Excelentíssima Senhora Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal, notificada nos termos e para os efeitos do artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.


Cumpre decidir.


II – Fundamentação

1. De facto
Remete-se para a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.


2. Questão a decidir
Verificar se o acórdão recorrido tem razão na interpretação que sufragou quanto ao procedimento administrativo que deve ser adoptado pelo SEF nos procedimentos de concessão de asilo regulados pela Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho, na redacção actualizada pela Lei n.º 26/2014, de 5 de Maio, em que seja alegado pelos requerentes o disposto no n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Dublin III, i. e., a existência de “falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia”.

3. De direito
Segundo o acórdão recorrido, “[…] não obstante o disposto nos art.s 19.º-A, nº 1, alínea a) da Lei nº 27/2008, de 30.06 e 25.º, n.º 2 do Regulamento de Dublin, não é verdade que tendo ocorrido uma situação de admissão tácita, se impunha ao Estado Português, de uma forma vinculada e sem mais, a tomada de decisão de transferência do requerente de proteção internacional (…). Não, sem antes o SEF averiguar acerca do procedimento de asilo e das condições de acolhimento em Itália, aferindo sobre eventuais falhas sistémicas nas condições de acolhimento, muito em particular porque se trata de um país em relação ao qual são conhecidas ocorrências que podem justificar a ponderação prevista no n.º 2 do art. 3º do Regulamento de Dublin III […]”.
Porém, desde o acórdão de 16 de Janeiro de 2020 (processo: 02240/18.7BELSB), cujo texto se encontra integralmente disponível em www.dgsi.pt (http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/bfe6e6782fe5db15802584f7003a2565?OpenDocument&Highlight=0,asilo,It%C3%A1lia), que a interpretação sufragada no acórdão recorrido tem sido, consolidadamente, rejeitada por jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo, proferida em casos semelhantes (i. e. em que o Estado legalmente responsável pela decisão do pedido de asilo é a Itália).
Por essa razão, usando a faculdade concedida no n.º 5 do art. 663.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA, limitamo-nos a transcrever o sumário do mencionado acórdão de 16 de Janeiro de 2020:
«I - Apenas em casos devidamente justificados, ou seja, naqueles casos em existam motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e que tais falhas implicam o risco de tratamento desumano ou degradante, nomeadamente por envolver tortura, é que se impõe ao Estado em causa diligenciar pela obtenção de informação actualizada acerca da existência de risco de o requerente ser sujeito a esse tipo de tratamentos;
II - A imigração ilegal, que ocorre por muitos e variados motivos, visando todos eles a melhoria das condições de vida do imigrante, não se pode confundir simplesmente com a situação do refugiado. Este, que em sentido amplo não deixa de ser imigrante, busca refúgio em país estrangeiro por recear, com razão, ser perseguido no seu país de origem em consequência de actividade exercida em favor da democracia, da liberdade social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, ou em virtude da sua raça, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social».
A mesma posição foi reafirmada nos acórdãos deste Supremo Tribunal Administrativo de 6 de Junho de 2020 (proc. 01322/19.2 BELSB), de 2 de Julho de 2020 (proc. 01088/19.6BELSB e 01786/19.4BELSB) e de 9 de Julho de 2020 (proc. 01419/19.9BELSB) e vai manter-se por efeito da presente decisão.

III – Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em revogar o acórdão recorrido, mantendo válido e eficaz o acto impugnado.

Sem custas (art.º 84.º da Lei 27/2008)

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Lisboa, 10 de Setembro de 2020 – Suzana Tavares da Silva
A Relatora atesta, nos termos do art.º 15-A do Decreto-Lei 10-A/2020, de 13 de Março, o voto de conformidade dos Ex.mos Senhores Conselheiros Cristina Santos e José Veloso
Suzana Tavares da Silva