Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0791/20.2BEPRT
Data do Acordão:03/06/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FERNANDA ESTEVES
Descritores:ACTO DE LIQUIDAÇÃO
RELATÓRIO DE INSPECÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO
Sumário:I - Nas liquidações adicionais praticadas após procedimento de inspecção tributária, o acto de liquidação tem de ser analisado e interpretado em conformidade com o conteúdo do relatório de inspecção.
II - Caso o acto de liquidação não contemple a referência expressa ao relatório de inspecção tributária, mas se verifique que este identifica cabalmente os factos tributários, os montantes sobre os quais incide o imposto, a taxa a aplicar e sustente a sua decisão na legislação aplicável, preanunciando ainda a emissão do acto de liquidação e a sua posterior notificação, e aquele acto venha a apresentar um conteúdo em tudo correspondente ao que resulta do relatório, tal é suficiente para que se considere preenchido o dever de fundamentação do acto de liquidação.
Nº Convencional:JSTA000P31998
Nº do Documento:SA2202403060791/20
Recorrente:AA E OUTROS
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. Relatório
AA e BB, devidamente identificados nos autos, inconformados, interpuseram recurso da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação de IRS relativa ao ano de 2016, no montante global de € 8.937,94.
Alegaram, concluindo da seguinte forma:
A) A liquidação impugnada não cumpre os requisitos legais de fundamentação exigidos pelos artigos 77º, n.º 1 e 2 da LGT e 153º do CPA,
B) No caso em apreço e conforme exposto, é absolutamente impossível estabelecer um paralelo suficientemente rigoroso, sem ambiguidade, entre a nota de liquidação e a acção inspectiva. Efetivamente,
C) O ato impugnado, não estabelece qualquer ligação, remissão ou mera declaração de concordância, nem ao relatório de inspeção, nem a qualquer outra decisão ou procedimento de liquidação,
D) Os números de processo não têm qualquer correspondência,
E) desconhece-se, por inexistente, qualquer norma legal pertinente.
F) A própria qualificação da natureza do acto que emerge do conteúdo da nota de liquidação em apreço, descrita como “Demonstração de Acerto de Contas” não tem correspondência no relatório de acção inspectiva que usa a designação “Correcções à matéria coletável”.
G) Do mesmo modo, desconhece-se, por inexistente, qualquer forma de cálculo ou sobre que valores em concreto incidia.
H) De tal modo descontextualizado que compromete irremediavelmente a sua finalidade.
I) Ao dessa forma não ter considerado, o Tribunal a quo violou artigos 77º, n.º 1 e 2 da LGT e 153º do CPA[.].

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto (EPGA) junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, por, em síntese, “na situação concreta, em que a liquidação de IRS impugnada encontra o seu suporte no relatório de inspeção tributária, deste se retira o itinerário cognoscitivo e valorativo, amplamente detalhado, subjacente às correções efetuadas em sede deste imposto, designadamente, a base legal, o valor tributável e os factos sujeitos a imposto”.

Cumpre decidir.

2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
2.1.1. A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:
1. Ao abrigo da ordem de serviço n.º ...67, foi efetuada inspeção interna aos Impugnantes, com o seguinte motivo, âmbito e incidência temporal:
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– fls. 21-22 do PA.
2. Em 02/10/2019, foi elaborado o relatório da inspeção referida em 1), do qual resultam correções em sede de IRS, no montante global de € 20.882,14, com a seguinte fundamentação:
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(…)
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– cfr. o relatório de inspeção constante do PA.
3. Pelo ofício n.º ...59, de 08/10/2019, remetido sob correio registado de 09/10/2019 com aviso de receção assinado por CC em 16/10/2019, foi a Impugnante foi notificada do relatório de inspeção referido em 2) com a indicação de que «A breve prazo, os Serviços da AT procederão à notificação da liquidação respectiva, a qual conterá os meios de defesa, bem como o prazo de pagamento» – cfr. fls. 36-38 do PA.
4. Sob correio registado com a ref.ª ..., entregue em 11/11/2019, foram os Impugnantes notificados da demonstração da liquidação de IRS, entre o mais, com o seguinte teor:
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- cfr. fls. 33,38,39 e 41 do p.a. apenso.
5. Sob correio registado com a refª ..., entregue em 11/11/2019, foram os Impugnantes notificados da demonstração da liquidação de juros compensatórios, com o seguinte teor:
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- cfr. fls. 36, 37, 38, 39, 42 do p.a. apenso.
6. Sob correio registado com a refª ... entregue em 12/11/2019, foram os Impugnantes notificados da demonstração de acerto de contas, com o seguinte teor:
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- cfr. fls. 36, 37, 38, 39, 40 do p.a. apenso e doc. 1 junto com a p.i..
7. Em 09/12/2019, a Impugnante requereu ao Sr. Chefe do Serviços de Finanças de Amarante a notificação dos requisitos omitidos na demonstração de compensação, nomeadamente, a indicação dos meios de defesa e prazos de reação contra o ato notificado – cfr. o doc. 2 junto com a p.i..
8. Em 16/12/2019, os Impugnantes procederam ao pagamento da nota de cobrança referida em 6) - cfr. fls. 35 do p.a. apenso.
9. Em 03/03/2020, a Impugnante reiterou junto do Sr. Chefe do Serviços de Finanças de Amarante, a notificação dos requisitos omitidos na demonstração de compensação, nomeadamente, a indicação dos meios de defesa e prazos de reação contra o ato notificado - cfr. o doc. 3 junto com a p.i..
10. Em 16/03/2020, a presente impugnação deu entrada neste TAF - cfr. fls. 2 dos autos.

2.2. O direito
A única questão que vem suscitada no presente recurso é a de saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao ter considerado que o acto de liquidação impugnado não padece do vício de falta de fundamentação.
Na sentença recorrida, estribando-se em jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo, escreveu-se o seguinte:
“(…) a liquidação de IRS impugnada encontra o seu suporte no relatório de inspeção tributária, de onde se retira o itinerário cognoscitivo e valorativo, amplamente detalhado, subjacente às correções efetuadas em sede deste imposto, designadamente, a base legal, o valor tributável e os factos sujeitos a imposto.
E embora se constate que da demonstração de liquidação de IRS não consta a referência expressa ao relatório de inspeção tributária, a mesma indica o ano a que se refere o imposto (2016) e o valor do rendimento coletável (€59.842,02), inteiramente coincidentes com o rendimento alterado/apurado constante do ofício de notificação do relatório de inspeção e o ano em causa (cfr. os itens 2), 3) e 4) do probatório), que constituem elementos bastantes para que se considere preenchido, in casu, o dever de fundamentação do ato de liquidação.
De notar, aliás, que os Impugnantes foram notificados do relatório de inspeção tributária, com a indicação de que «A breve prazo, os Serviços da AT procederão à notificação da liquidação respectiva, a qual conterá os meios de defesa, bem como o prazo de pagamento» (cfr. o item 3) do probatório).
Ou seja, a demonstração de liquidação de IRS representa o culminar da inspeção realizada aos Impugnantes, que foram em devido tempo notificado de todos os elementos que lhe permitiam saber as razões pelas quais lhes era dirigido tal documento a exigir o pagamento de imposto em falta, ou seja, insere-se num procedimento tributário que se desenvolveu de acordo com as regras legais previamente estabelecidas sendo mesmo o corolário lógico desse procedimento. (…)
Por outro lado, a demonstração de acerto de contas, de que os Impugnantes foram igualmente notificados, no valor a pagar de €8.937,94, como a própria designação indica, contem o acerto de contas, indicando o montante a pagar, correspondendo ao montante que resultou da liquidação impugnada (€4.497,85), acrescido do montante de €4.440,08 anteriormente reembolsado e dos respetivos juros compensatórios, cuja demonstração de liquidação lhes foi igualmente notificada, bem como o respetivo prazo e referências de pagamento (cfr. os itens 4), 5) e 6) do probatório).”
Concordamos inteiramente com o assim decidido.
É inquestionável que, nos termos do disposto no artigo 77.º, nº 2 da LGT, a fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.
E é jurisprudência uniforme, pacífica e reiterada que “o dever de fundamentação visa esclarecer o destinatário do acto acerca do seu itinerário cognoscitivo e valorativo, permitindo-lhe ficar a saber quais as razões, de facto e de direito, que levaram à sua prática e porque motivo a Administração se decidiu num sentido e não noutro. E, se assim é, pode dizer-se que um acto está fundamentado sempre que o administrado, colocado na sua posição de destinatário normal - o bonus pater familiae de que fala o art. 487.º, n.º 2 do CC - fica a conhecer as razões que estão na sua génese, de forma a que, se o quiser, o possa sindicar de uma forma esclarecida” - cf., entre tantos, acórdão do STA de 24/3/2004, 01868/02.
A liquidação impugnada foi emitida na sequência de uma acção de inspecção tributária ao exercício de 2016, de âmbito parcial - IRS, cujo relatório contendo os fundamentos das correcções à matéria colectável foi notificado aos ora Recorrentes, com a indicação de que “[A] breve prazo, os Serviços da AT procederão à notificação da liquidação respectiva, a qual conterá os meios de defesa, bem como o prazo de pagamento” [cf. pontos 2) e 3) do probatório].
Os Recorrentes não alegam desconhecer os fundamentos (de facto e de direito) das correcções que estão na origem do acto de liquidação nem invocam a falta ou insuficiência desses fundamentos. Argumentam é que é absolutamente impossível estabelecer um paralelo suficientemente rigoroso, sem ambiguidade, entre a nota de liquidação e a acção inspectiva, porquanto o acto de liquidação não estabelece qualquer ligação, remissão ou mera declaração de concordância, nem ao relatório de inspeção, nem a qualquer outra decisão ou procedimento de liquidação.
Ora, a fundamentação pode, como resulta da lei, ser uma fundamentação remissiva, por adesão às conclusões de um relatório de inspecção tributária (artigo 63.º, n.º 1 do RCPIT e 77.º, n.º 1 da LGT)” - assim, por todos, acórdão STA de 12/1/2022, Processo 0887/20.0BELRS.
E é isso que acontece no caso em apreço, já que do confronto entre as conclusões do relatório de inspecção tributária e a liquidação de IRS impugnada resulta evidente que esta se fundamenta nas correcções efectuadas pela Administração Tributária à matéria colectável declarada pelos Impugnantes no exercício de 2016, no montante global de € 20.882,14 sendo o montante de € 12.508,61 decorrente da imputação de rendimentos do regime de transparência fiscal resultante de correcções efectuadas ao rendimento tributável da sociedade “A... Lda.” e o montante de € 8.373,33 relativo a ajudas de custo que excedem os limites legais, como resulta do ponto 2) da matéria de facto dada como provada.
Assim, ainda que da demonstração da liquidação de IRS não conste qualquer referência expressa ao relatório de inspecção tributária, a verdade é que, como bem se entendeu na sentença recorrida, na mesma vem indicado o ano a que se refere o imposto (2016) e o valor do rendimento colectável (€ 59.842,02), inteiramente coincidentes com o rendimento alterado/apurado constante do ofício de notificação daquele relatório que continha a fundamentação de facto e de direito das correcções efectuadas à matéria tributável e em que já se anunciava a emissão da liquidação e a sua posterior notificação (cf. pontos 2, 3) e 4) do probatório), constituindo elementos bastantes para que se considere preenchido, in casu, o dever de fundamentação do acto de liquidação.
Por outro lado, ao contrário do que defendem os Recorrentes, também a demonstração de acerto de contas que lhes foi notificada, no valor a pagar de € 8.937,94, é clara quanto à proveniência e cálculo desse valor: €4.497,85 (valor do imposto a pagar na liquidação emitida com base nas correcções constantes do relatório de inspecção), acrescido de € 4.440.08 (correspondente ao valor do anterior reembolso de IRS), incluindo demonstração do cálculo dos juros compensatórios, números das liquidações e as referências de pagamento [cf. pontos 4), a 6) do probatório].
Em suma, e acompanhando o EPGA no parecer junto aos autos, na situação concreta, em que a liquidação de IRS impugnada encontra o seu suporte no relatório de inspeção tributária, deste se retira o itinerário cognoscitivo e valorativo, amplamente detalhado, subjacente às correções efetuadas em sede deste imposto, designadamente, a base legal, o valor tributável e os factos sujeitos a imposto.
Ou seja, nestas situações, o acto de liquidação não pode deixar de ser analisado e interpretado em conformidade com o relatório de inspecção - assim, acórdão do STA, de 16/9/2020, Processo 0921/15.6BEPRT.
Neste contexto, como se disse no acórdão que vimos de referir, citado na sentença recorrida e no parecer do EPGA, cujo entendimento se subscreve integralmente e tem plena aplicação no caso vertente: “(…) Ora, no caso, a existir alguma irregularidade (mera irregularidade), ela atem-se à falta de referência expressa no acto de liquidação aos elementos identificativos do relatório de inspecção; irregularidade que não prejudicou a correcta compreensão pelo sujeito passivo da relação entre ambos (como atesta a presente acção), não sendo sequer necessário mobilizar: i) primeiro, o princípio da razoabilidade para sustentar que, atento o conteúdo de ambos (do relatório de inspecção, cuja notificação antecedeu a do acto tributário), qualquer declaratório normal teria objectivamente estabelecido aquela relação e, com isso, teria tido acesso à fundamentação da liquidação; ou ii) subsidiariamente, a aplicação do regime do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 37.º do CPPT no quadro de uma relação de colaboração leal e de boa-fé nas relações tributárias, para concluir que não existe a alegada falta de fundamentação.”
Deste modo, é de concluir que a sentença recorrida não incorreu no erro de julgamento que lhe vem imputado, pelo que o recurso terá de improceder.

Em conclusão (cf. sumário do acórdão STA de 16/9/2020, Processo 0921/15.6BEPRT):
I - Nas liquidações adicionais praticadas após procedimento de inspecção tributária, o acto de liquidação tem de ser analisado e interpretado em conformidade com o conteúdo do relatório de inspecção.
II - Caso o acto de liquidação não contemple a referência expressa ao relatório de inspecção tributária, mas se verifique que este identifica cabalmente os factos tributários, os montantes sobre os quais incide o imposto, a taxa a aplicar e sustente a sua decisão na legislação aplicável, preanunciando ainda a emissão do acto de liquidação e a sua posterior notificação, e aquele acto venha a apresentar um conteúdo em tudo correspondente ao que resulta do relatório, tal é suficiente para que se considere preenchido o dever de fundamentação do acto de liquidação.


3. Decisão
Assim, pelo exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.
Custas pelos Recorrentes.

Lisboa, 6 de Março de 2024. - Fernanda de Fátima Esteves (relatora) - Anabela Ferreira Alves e Russo - José Gomes Correia.