Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:089/19.9BCLSB
Data do Acordão:03/11/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
REGULAMENTO DISCIPLINAR
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P27354
Nº do Documento:SA120210311089/19
Data de Entrada:02/11/2021
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:SPORT LISBOA E BENFICA – FUTEBOL, SAD
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO

1. RELATÓRIO

SPORT LISBOA E BENFICA – FUTEBOL, SAD, devidamente identificada nos autos, recorreu para o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), do Acórdão do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), que a condenou numa sanção de multa no valor de 8.645,00€, pela prática de uma infracção disciplinar p.p pelos artigos 187º, nºs 1, alínea b) e, 182º, nº 2, ambos do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP).

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Por acórdão do TAD, proferido em 23 de Maio de 2019, com um voto de vencido, foi julgada a acção improcedente.
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A SLB- SAD apelou para o TCA Sul e este, com um voto de vencido, por acórdão proferido a 07 de Novembro de 2019, concedeu provimento ao recurso, anulou a decisão de 02.10.2018, proferida em via de recurso hierárquico impróprio nº 10-18/19 pelo Pleno do Conselho de Disciplina – Secção Profissional da Federação Portuguesa de Futebol e revogou o julgado do TAD de 23.05.2019.
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A FPF, inconformada, veio interpor o presente recurso de revista, tendo na respectiva alegação, formulado as seguintes conclusões:
«1. A Recorrente vem interpor recurso de revista para o STA do Acórdão proferido pelo TCA Sul em 7 de novembro de 2019, que revogou a decisão recorrida e anulou a deliberação que condenou a ora Recorrida a pagar, a título de sanção disciplinar, o valor total de 8.645,00€ pelas infrações p.e p. pelos artigos 187º, nº 1, al. b) e 182º, nº 2 do RD da FPF;
2. A questão em apreço diz respeito à responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos por ocasião de jogo de futebol, o que, para além de levantar questões jurídicas complexas, tem assinalável importância social uma vez que, infelizmente, os episódios de violência em recintos desportivos têm sido uma constante nos últimos anos em Portugal e o sentimento de impunidade dos clubes dado por decisões como aquela de que agora se recorre nada ajudam para combater este fenómeno;
3. A questão essencial trazida ao crivo deste STA – responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos - revela uma especial relevância jurídica e social e sem dúvida que a decisão a proferir é necessária para uma melhor aplicação do direito;
4. Assume especial relevância social a forma como a comunidade olha para o crescente fenómeno de violência generalizada no futebol – seja a violência física, seja a violência verbal, seja perpetrada por adeptos, seja perpetrada pelos próprios dirigentes dos clubes;
5. Em causa nos presentes autos estão, essencialmente, comportamentos dos adeptos relacionados com agressões físicas entre os próprios adeptos e para com as forças policias, entre outros, tudo por ocasião de jogos de futebol;
6. São deveres dos clubes assegurar que os seus adeptos não têm comportamentos incorretos, o que decorre dos regulamentos federativos, é certo, mas também da Lei e da Constituição;
7. Admitir, como fez o TCA Sul, que os clubes devem ser desresponsabilizados pelos comportamentos dos seus adeptos – ao arrepio do entendimento de toda a comunidade desportiva e das instâncias internacionais do Futebol, onde esta questão, de tão clara e evidente que é, nem sequer oferece discussão – é fomentar este tipo de comportamentos o que se afigura gravíssimo do ponto de vista da repercussão social que este sentimento de impunidade pode originar;
8. Esta questão tem conhecido posições contraditórias por parte do TAD, sendo que em mais de vinte e nove processos arbitrais a questão foi decidida de forma contrária à que fez o Tribunal a quo, contra apenas cinco em sentido coincidente;
9. A questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto desde o início de 2017 até à presente data deram entrada no Tribunal Arbitral do Desporto mais de 70 processos relativos a sanções aplicadas a clubes por comportamento incorreto dos seus adeptos;
10. Não existe nenhuma crítica a fazer à decisão proferida pelo TAD, ao contrário do que entendeu o TCA Sul;
11. O SLB não colocou, em momento algum, em causa que estes factos aconteceram, colocou em causa, sim, que tenham sido adeptos do SLB os responsáveis pelos mesmos;
12. Tal como consta dos Relatórios de Jogo cujo teor se encontra a fls. … do processo arbitral, os Delegados da Liga, bem como as forças de segurança, são absolutamente claros ao afirmar que tais condutas foram perpetradas pelos adeptos do Sport Lisboa e Benfica, sem deixar qualquer margem para dúvidas;
13. Com base nesta factualidade, e atendendo à gravidade dos factos perpetrados, o Conselho de Disciplina instaurou o competente processo disciplinar à Recorrida;
14. Ao mencionado processo disciplinar foi junto, como não poderia deixar de ser, entre outros documentos, o relatório elaborado pelos delegados da Liga. Este relatório goza, consabidamente, da presunção de veracidade do seu conteúdo (cfr. artigo 13º, al. f) do RD da LPFP);
15. Os Delegados da LPFP são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos adeptos que possam originar responsabilidade para o respetivo clube;
16. Assim, quando os Delegados da LPFP colocam nos seus relatórios que foram adeptos de determinada equipa que levaram a cabo determinados comportamentos, tal afirmação é necessariamente feita com base em factos reais, diretamente visionados pelos delegados no local. Até porque, caso coloquem nos seus relatórios factos que não correspondam à verdade, podem ser alvo de processo disciplinar;
17. Ainda, para formar uma convicção para além de qualquer dúvida razoável que permitisse chegar à conclusão de que a ora Recorrida devia ser punida pelas infrações prevista na alínea b), do nº 1 do artigo 187º e no artigo 182º, nº 2 do RD da LPFP, o CD coligiu ainda outra prova, que consta dos autos, tal como, por exemplo, o Relatório das Forças Policiais;
18. Neste particular, os relatórios das forças policiais, por serem exarados por “autoridade pública” ou “oficial público”, no exercício público das “respetivas funções” (para as quais é competente em razão da matéria e do lugar), constituem documento autêntico (art.º 363º, nº 2 do Código Civil), cuja força probatória se encontra vertida nos artigos 369º e ss. do Código Civil. Com efeito, tal relatório faz «prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora» (cf. art.º 371º, nº 1 do Código Civil);
19. Sucede que, não obstante os relatórios de jogo juntos aos autos serem claríssimos ao afirmar que foram adeptos afetos ao SLB, em concreto, afetos ao GOA “No Name Boys” que, entre outros comportamentos, cometeram as agressões físicas em análise, o TCA alega que nada existe nos autos que permita concluir que os atos sub judice – punidos pelo RD da LPFP – foram praticados por sócio, adepto ou simpatizante do SLB;
20. Manifestamente, o acórdão recorrido não tomou em consideração a presunção de veracidade legal e regulamentarmente estabelecida para os relatórios de policiamento desportivo e dos delegados da LPFP, respetivamente;
21. E é, precisamente, esta presunção de veracidade que, inscrevendo-se nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP e pelas forças policiais relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado.
22. Isto não significa que os Relatórios Delegados da LPFP e das forças de segurança contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo dos Relatórios, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que foram adeptos ou simpatizantes da recorrida que levaram a cabo os comportamentos sub judice;
23. Tal não significa que quem acusa não tenha o ónus de provar. Trata-se de abalar uma convicção gerada por documentos que beneficiam de uma especial força probatória;
24. E, para abalar essa convicção, cabia ao clube, no lugar de se remeter ao silêncio, apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346º do Código Civil;
25. Quanto à questão de saber se a ora recorrida pode ser responsabilizada a título de culpa por esses comportamentos, mais uma vez, nenhuma crítica há a fazer à decisão do Conselho de Disciplina;
26. Entende o TCA Sul que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta dos Relatórios de Jogo) que o SLB violou deveres de formação a que se encontra adstrito, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como sabemos, não é possível;
27. Ora, o Relatório dos Delegados da LPFP, bem como o Relatório de Policiamento Desportivo do jogo dos autos, atento os respetivos conteúdos, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição do SLB no caso concreto.
28. Ademais, há que ter em conta, nos termos acima explanados, que no caso concreto existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tais documentos.
29. Isto significa que, o conteúdo dos Relatórios juntos aos autos, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrida incumpriu os seus deveres.
30. Para abalar essa convicção, cabia ao SLB apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346º do Código Civil;
31. Em sede sancionatória, o “arguido”, não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.
32. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido dos Relatórios dos Delegados da LPFP, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não o SLB.
33. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrida demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitral. Mas a Recorrida não o demonstrou, em nenhuma sede;
34. Por seu turno, o TCA Sul nada analisa, nem nada fundamenta;
35. Do conteúdo do Relatório de Jogo elaborado pelos Delegados da Liga, é possível extrair, desde logo, diretamente duas conclusões: (i) que o Sport Lisboa e Benfica incumpriu com os seus deveres, senão não tinham os seus adeptos perpetrado condutas ilícitas (violação do dever de formação); (ii) que os adeptos que levaram a cabo tais comportamentos eram apoiantes do Sport Lisboa e Benfica, o que se depreendeu por manifestações externas dos mesmos;
36. Isto significa que para concluir que quem teve um comportamento incorreto foram adeptos do SLB e não adeptos do clube visitante (e muito menos de um clube alheio a estes dois, o que seria altamente inverosímil), o Conselho de Disciplina tem de fazer fé no relatório dos delegados, os quais têm presunção de veracidade. Posteriormente, o SLB pode fazer prova que contrarie estas evidências, porém, no caso concreto, tal não aconteceu;
37. O próprio Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 730/95, diz claramente que “o processo disciplinar que se manda instaurar (…) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infração, sendo que, por essa via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)”;
38. Neste sentido, veja-se o Acórdão deste STA proferido no âmbito do recurso nº 297/18, interposto da decisão do TCA Sul tirada no processo nº 144/17.0BCLSB que, dando provimento ao recurso de revista, diz que é lícito o uso das presunções judiciais e que cabe ao clube apresentar prova que contrarie a presunção de veracidade dos relatórios, o que no caso, não sucedeu;
39. Ainda que se entenda – o que não se concede – que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir o SLB, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido – a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrida e a violação dos respetivos deveres – foi retirado de outros factos conhecidos.
40. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com nenhum princípio constitucional, tal como o princípio da presunção de inocência ou o princípio da culpa, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.
41. A tese sufragada pelo TCA é um passo largo para fomentar situações de violência e insegurança no futebol e em concreto durante os espetáculos desportivos, porquanto diminuir-se-á acentuadamente o número de casos em que serão efetivamente aplicadas sanções, criando-se uma sensação de impunidade em que pretende praticar factos semelhantes aos casos em apreço e ao invés, mais preocupante, afastando dos eventos desportivos, quem não o pretende fazer, em virtude do receio da ocorrência de episódios de violência;
42. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado por erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 13º, al. f), 182º e 187º, nº 1, al. b), do Regulamento Disciplinar da LPFP».
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A recorrida SLB- Futebol SAD contra-alegou no sentido da improcedência do recurso, e caso assim se não entenda, devem ser declaradas as seguintes inconstitucionalidades:
«1. A inconstitucionalidade dos arts. 182º e 187º do RD-LPFP/2017, por violação do princípio da presunção de inocência em sede de processo disciplinar, à luz do regime constante do art.º 32º, nºs 2 e 10, da CRP, quando interpretados no sentido de:
a) De permitir o efeito automático de imputação ao clube do delito omissivo impróprio de violação do dever jurídico de garante (cfr. art. 35.º do Regulamento das Competições da LPFP/2016) e/ou
b) De imputar a autoria ao clube, seja por efeito automático da concretização dos ilícitos disciplinares comissivos descritos nos citados artigos (arts. 182º e 187º do RD-LPFP/2017), cometidos por pessoa física cuja identidade é desconhecida, seja presumindo a qualidade funcional de "sócio ou simpatizante" (ligação ao clube) exigida pelos mesmos artigos (arts. 182º e 187º do RDLPFP/2017) relativamente a essa pessoa física de identidade desconhecida, seja por associação à concretização dos ilícitos.
2. A inconstitucionalidade dos arts. 13º, alínea f), 186º, nº 2, e 187º, nº 1, alíneas a) e h), todos do RDLPFP, por violação do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2º da CRP) e do princípio da presunção de inocência, presunção de que o arguido beneficia em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (arts. 32.º, nºs 2 e 10 da CRP), no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social e desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube.»
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Do acórdão recorrido foi previamente interposto pelo Ministério Público um recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea a), do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), que contudo não foi admitido por o Tribunal Constitucional ter entendido que o mesmo não desaplicou qualquer norma legal ou interpretação normativa com fundamento na sua inconstitucionalidade, decidindo não tomar conhecimento do objecto do recurso interposto pelo Ministério Público.
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O “recurso de revista” foi admitido por acórdão deste STA [formação a que alude o nº 5 do artº 150º do CPTA], proferido em 21 de Janeiro de 2021.
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O Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artºs 146º, nº 1 e 147º do CPTA, pronunciou-se no sentido de ser concedido provimento ao recurso.
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Sem vistos, por não serem devidos [artºs 8º, nº 2 da Lei nº 74/2013 de 06.09 e 36º, nº 2 do CPTA].
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2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. MATÉRIA DE FACTO
A matéria de facto assente nos autos, é a seguinte:
«1. No dia 15 de Abril de 2018, no Estádio SL Benfica realizou-se o jogo a contar para a 30ª jornada da Liga NOS, oficialmente identificado pelo nº 13005 (203.01.266), que opôs a Sport Lisboa e Benfica - Futebol SAD e a Futebol Clube do Porto - Futebol, SAD.
2. No âmbito do referido jogo, no que respeita ao comportamento dos adeptos visitados, registaram-se agressões entre adeptos do GOA "No Name Boys" e de seguida aos elementos policiais.
3. Entre as 18h00 e 22h30, antes do início do encontro, na Praça Centenário, existiram alguns focos de tensão e agressões físicas entre os elementos do GOA "No Name Boys".
4. No decorrer do encontro, na bancada onde o GOA "No Name Boys" se encontrava, ocorreu a alteração da ordem pública, por duas vezes, entre adeptos pertencentes ao GOA, sendo necessária a intervenção verbal por parte dos elementos policiais para serenar os ânimos.
Após o final do encontro, foi determinado aos adeptos do referido GOA para abandonarem a bancada, tendo estes começado a abandonar o local.
Porque um deles continuou sentado no espaço afirmando que não saía, outros, que adotavam comportamento diferente voltaram para trás, insurgindo-se contra os elementos policiais, pelo que houve necessidade de efectuar uma vaga de dispersão, por forma a que os adeptos abandonassem o estádio.
5. Já no exterior do estádio, mas ainda no interior do complexo desportivo, os mesmos derrubaram caixotes do lixo e vidrões ali existentes, começando a arremessar garrafas de vidro e outros objectos, em direcção dos elementos policiais (e de outros adeptos que ali circulavam), pelo que houve necessidade de efectuar uma vaga de dispersão, vindo os adeptos a concentrarem-se na Praça Centenário.
Posteriormente verificou-se a necessidade de esterilizar a referida Praça.
Desta ocorrência foi lavrado auto de notícia com o NPP 180329/2018 e NUIPC 66/18.7P5LSB.
6. Na saída de adeptos do GOA "No Name Boys" do interior da bancada os mesmos agrediram por diversas vezes, com murros e pontapés, um elemento policial, pelo que foi necessário efetuar uma vaga de dispersão, utilizando-se de meios coercivos de baixa potencialidade letal, nomeadamente o uso de bastões.
7. Depois, porque permaneciam na Praça Centenário, foi feito um varrimento dos adeptos que ali se encontravam a fim de se poder fechar o portão do complexo desportivo.
Aquando da chegada destes adeptos ao mencionado portão que dá acesso à Avª Machado dos Santos, um destes arremessou uma grade de ferro contra os elementos policiais, pelo que foi intercetado e detido conforme o Auto de Notícia por detenção com o NPP 178970/2018 e NUIPC 65/18.9P5LSB.
8. Ainda dentro do recinto desportivo quando os adeptos se encontravam no interior a abandonar as bancadas, elementos policiais que se encontravam no interior da porta 10, foram informados que adeptos que estavam a abandonar as bancadas se encontravam em desordem entre eles, pelo que ali se deslocaram para verificar.
Aquando da sua chegada, os adeptos começaram a ficar agressivos para com a força de segurança, pelo que houve necessidade de recorrer à força física necessária para repor a ordem pública.
Ao encaminhar todos os adeptos para as portas de segurança que dão acesso ao corredor de saída do estádio, encontrava-se uma lona (da coreografia usada pelo GOA) no solo o que dificultava que todos alcançassem a porta.
Quando os policiais tentavam passar pela porta os adeptos começaram a fechar a mesma, retaliando.
Houve ferimentos em policiais - o Agente ……… ficou com o braço entalado na porta;
Agente …….. tentou libertar o colega, altura em que adeptos lhe puxaram o cacete de ordem pública e pelo chapéu tendo-o levado consigo, bem como uma das platinas do ombro esquerdo.
No seguimento desta ação foram-lhe danificadas luvas, vindo durante este período a ser agredido com socos e pontapés.
Recebeu tratamento médico no Hospital de Santa Maria;
Agente ………… ficou com dores num dos joelhos, não tendo, no entanto, necessidade de receber tratamento hospitalar.
Destas ocorrências foi lavrado auto de notícia com o NPP 183860/2018 e NUIPC 1244/18.4PYLSB.
9. A "Praça Centenário" corresponde a zona de acesso ao estádio, aí se encontrando as respetivas bilheteiras.
10. Os adeptos da Demandante ofenderam, assim, o corpo de vários outros adeptos da Arguida e de vários Agentes da PSP, alguns dos quais necessitaram de assistência hospitalar.
11. A Demandante não preveniu ou impediu, de forma suficiente e eficaz, tais comportamentos, não garantindo ou procedendo no sentido de os seus adeptos e/ou simpatizantes se absterem dos mesmos, pois, não acautelou, preveniu, formou, zelou e incentivou o espírito ético e desportivo junto destes, especialmente, junto dos grupos organizados de adeptos.
12. A omissão da Arguida levou à ocorrência dos fatos referidos nos supra referidos pontos 3, 4, 5 e 6.
13. A Demandante providenciou a exibição, aquando do jogo, nos painéis/ecrãs instalados próximo do limite do terreno de jogo do estádio em que aquele decorreu, mensagens com os seguintes dizeres: "Diz não à pirotecnia/Diz não ao arremesso de objetos".
14. A Demandante agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que o seu comportamento, ao não cumprir com o seu dever de acautelar, precaver, formar, zelar e incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados, constituía comportamento previsto e punido pelo ordenamento jus-disciplinar desportivo, não se abstendo, porém de o realizar.
15. Na presente época desportiva, à data dos factos, a Demandante já havia sido sancionada, por decisão definitiva na ordem jurídica desportiva, pelo cometimento de diversas infrações disciplinares.
Por referência a prova testemunhal que identifica a fls. 43 e 44 do acórdão, o Tribunal Arbitral deu ainda como provada a seguinte factualidade:
16. Quando na qualidade de clube visitado, [a Demandante] exibe faixas com mensagens contra o uso de violência;
17. Toma habitualmente medidas de prevenção e profiláticas;
18. Desenvolve o projeto "Benfica faz bem", que visa a intervenção junto de escolas, no sentido de fomentar os valores anti violência e incentivar a prática desportiva;
19. Realiza reuniões periódicas com os elementos proeminentes dos grupos de adeptos, no sentido de minimizar qualquer tipo de comportamento menos adequado.
20. Foi feita reunião de segurança relativa ao jogo no dia 09;
21. A informação com o número de autocarros, áreas de serviço para paragens foi enviada (como é) com uma semana de antecedência para as instituições que colaboram a nível de segurança;
22. Tinham um total de 446 elementos de segurança privada requisitados à ……….;
23. Têm 457 câmaras só no complexo do estádio;
24. A PSP pede sempre imagens de videovigilância e levou-as na hora.»
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2.2. O DIREITO.
Como supra se referiu a Federação Portuguesa de Futebol interpôs o presente recurso de revista do Acórdão proferido pelo TCA Sul em 07.11.2019 que concedeu provimento ao recurso que a SLB - SAD havia deduzido da decisão arbitral do TAD [proferida no processo nº 74/2018, datada de 23.05.2019], que julgou improcedente o pedido de anulação da multa aplicada ao abrigo dos artºs artigos 187º, nºs 1, alínea b), e 182º, nº 2 do Regulamento Disciplinar da LPFP, movido pela ora recorrida SPORT LISBOA E BENFICA – FUTEBOL, SAD.
Defende a recorrente na presente revista que o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento por errada interpretação e aplicação do disposto nos artºs 187º, nº 1, al. b) e 182º, nº 2, ambos do Regulamento Disciplinar da LPFP.
Vejamos, sendo evidente que, o que se discute no presente recurso é matéria respeitante à responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorrectos dos seus adeptos por ocasião da realização de jogos de futebol, considerando a violência associada às suas acções contra adeptos ou bens dos clubes rivais e agressões a espectadores e outros intervenientes.
E, mais concretamente, a questão do valor probatório dos relatórios de jogo elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa de Futebol Profissional que, nos termos do disposto na al. f) do artº 13º do respectivo Regulamento de Disciplina, gozam de uma presunção de veracidade dos factos neles vertidos e atestados.
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Consta do acórdão recorrido, em sustento da decisão tomada:
«Todavia, como já referido, a responsabilidade objectiva mostra-se afastada pela circunstância de os normativos em causa (182º/187º) do RD–LPFP/2017) exigirem para efeito de imputação aos clubes e punição destes por factos ocorridos nos recintos desportivos, que as faltas sejam praticadas por espectadores sócios ou simpatizantes do clube.
Por esta razão, porque as normas exigem a imputação da qualidade pessoal de sócio ou simpatizante ao clube especificamente objecto da punição, não é admissível, do ponto de vista jurídico, presumir a qualidade de sócio ou simpatizante relativamente a pessoa que nem se sabe quem é no processo disciplinar, para efeitos de operatividade da ligação funcional do (desconhecido) sócio ou simpatizante ao clube desportivo nos termos consignados nos artºs. 182º/187º do RD–LPFP/2017.
Por esta razão, porque as normas exigem a imputação da qualidade pessoal de sócio ou simpatizante ao clube especificamente objecto da punição, do ponto de vista jurídico não é admissível, presumir a qualidade de sócio ou simpatizante relativamente a pessoa que nem se sabe quem é por não estar identificada no processo disciplinar, para efeitos de operatividade da ligação funcional do (desconhecido) sócio ou simpatizante ao clube desportivo nos termos consignados nos artºs. 182º/187º do RD–LPFP/2016.
Efectivamente, a interpretação dos artºs. 182º/187º do RD–LPFP/2017 no sentido:
(i) da imputação de autoria ao clube por efeito automático da concretização dos ilícitos disciplinares comissivos descritos nos citados artigos (182º/187º), cometidos por pessoa física cuja identidade é desconhecida,
(ii) presumindo a qualidade funcional de “sócio ou simpatizante” (ligação ao clube) exigida pela norma (182º/187º) relativamente a essa pessoa física de identidade desconhecida,
(iii) associando à concretização dos ilícitos (182º/187º) o efeito automático de imputação ao clube do delito omissivo impróprio de violação do dever jurídico de garante (artº 35º do Regulamento das Competições da LPFP/2016),
configura-se inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência em sede de processo disciplinar, à luz do regime constante do artº 32º nºs. 2 e 10º CRP.
(…) Pelos fundamentos expostos conclui-se que a decisão de 02.OUT.2018 proferida em via de recurso hierárquico impróprio nº 10-18/19 pelo Pleno do Conselho de Disciplina – Secção Profissional da Federação Portuguesa de Futebol se mostra inquinada de vício de violação de lei por erro de facto e de direito sobre os pressupostos, passível de anulação nos termos do artº 163º nº 1 CPA.
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Trata-se de matéria já muito discutida e abundante neste Supremo Tribunal [cfr. Acórdãos de 18 de Outubro de 2018, in Processo nº 0144/17.0BCLSB, de 20 de Dezembro de 2018, in Processo nº 08/18.0BCLSB, de 21 de Fevereiro de 2019, in Processo nº 033/18.0BCLSB, de 21 de Março de 2019, in Processo nº 075/18.6BCLSB, de 4 de Abril de 2019, in Processos nºs 040/18.3BCLSB e 030/18.6BCLSB, de 2 de maio de 2019, in Processo nº 073/18.0BCLSB, de 19 de Junho de 201, in Processo nº 01/18.2BCLSB, de 5 de Setembro de 2019, in Processos nºs 058/18.6BCLSB e 065/18.9BCLSB, de 16 de Janeiro de 2020, in Processo nº 039/19.2BCLSB, 7 de maio de 2020, in Processos nº 144/17.0BCLSB e 074/19.0BCLSB, e de 18 de Junho de 2020, in Processo nº 42/19.2BCLSB], todos no sentido de que «a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional [LPFP] que tenham sido por eles percepcionados, estabelecida pelo artº 13º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP [RD/LPFP], conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos artºs 2º, 20º, nº 4, e 32º, nºs 2 e 10º, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo» - cfr. Acórdão de 21 de Fevereiro de 2019, proferido no Processo nº 0033/18.0BCLSB.
E porque se trata de jurisprudência reiterada, vejamos o que se se deixou consignado no Acórdão supra mencionado, a propósito de um caso em tudo idêntico ao dos presentes autos:
«51. O conceito de «infração disciplinar» mostra-se definido no nº 1 do art. 17º do referido RD ali se preceituando que se considera «infração disciplinar o facto voluntário, por ação ou omissão, e ainda que meramente culposo, que viole os deveres gerais ou especiais previstos nos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável», elencando-se nos seus arts. 29º e 30º o leque de sanções disciplinares [principais e acessórias] e quais aquelas que são aplicáveis aos clubes.
52. Resulta, por sua vez, do capítulo IV do RD/LPFP-2017 o elenco de infrações disciplinares, prevendo-se na sua secção I as «infrações específicas dos clubes», as quais podem ser «muito graves» [cfr. subsecção I, arts. 62.º a 83.º], «graves» [cfr. subsecção II, arts. 84.º a 118.º] e «leves» [cfr. subsecção III, arts. 119.º a 127.º], seguindo-se depois as infrações de dirigentes, de jogadores, de delegados dos clubes e dos treinadores, e na secção VI o regime das «infrações dos espectadores», resultando enunciado no art. 172.º, como princípio geral, o de que os «clubes são responsáveis pelas alterações da ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial» [n.º 1] e de que «[s]em prejuízo do acima estabelecido, no que concerne única e exclusivamente ao autocarro oficial da equipa visitante, o clube visitado será responsabilizado pelos danos causados em consequência dos atos dos seus sócios e simpatizantes praticados nas vias públicas de acesso ao complexo desportivo» [n.º 2] [sublinhado nosso].
53. Também as «infrações dos espectadores» se mostram qualificadas como podendo ser «muito graves» [cfr. subsecção II, arts. 173.º a 178.º], «graves» [cfr. subsecção III, arts. 179.º a 184.º] e «leves» [cfr. subsecção IV, arts. 185.º a 187.º], estipulando-se, no que releva para o litígio, no seu art. 187.º, respeitante a «comportamento incorreto do público», que «[f]ora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos: a) o simples comportamento social ou desportivamente incorreto, com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC; b) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 15 UC e o máximo de 75 UC» [n.º 1].
54. Decorre, por outro lado, do art. 34.º do RC/LPFP-2017, relativo à segurança e utilização dos espaços de acesso público, que os «clubes estão obrigados a elaborar um regulamento de segurança e utilização dos espaços de acesso ao público relativo ao estádio por cada um utilizado na condição de visitado e cuja execução deve ser concertada com as forças de segurança, a ANPC e os serviços de emergência médica e a Liga» [n.º 1], e que tal regulamento deverá conter, designadamente, medidas relativas à «a) separação física dos adeptos, reservando-lhes zonas distintas, nas competições desportivas consideradas de risco elevado; … d) instalação ou montagem de anéis de segurança e adoção obrigatória de sistemas de controlo de acesso, de modo a impedir a introdução de objetos ou substâncias proibidas ou suscetíveis de possibilitar ou gerar atos de violência, nos termos previstos na lei» [n.º 2].
55. Resulta do art. 35.º do mesmo RC que «[e]m matéria de prevenção de violência e promoção do fair-play, são deveres dos clubes: a) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; b) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; c) aplicar medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública, impedindo o acesso aos recintos desportivos nos termos e condições do respetivo regulamento ou promovendo a sua expulsão do recinto; (…) f) garantir que são cumpridas todas as regras e condições de acesso e de permanência de espetadores no recinto desportivo; (…) k) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, com a redação dada pela Lei n.º 52/2013, de 25 de julho; l) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas, xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; (…) o) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) s) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos» [n.º 1], e que «[p]ara efeito do disposto na alínea f) do número anterior, e sem prejuízo do estabelecido no artigo 24.º da Lei n.º 39/2009 (…) e no Regulamento de prevenção da violência constante do Anexo VI, são considerados proibidos todos os objetos, substâncias e materiais suscetíveis de possibilitar atos de violência, designadamente: (…) f) substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; g) latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis» [n.º 2], sendo que «[p]ara além do disposto nos números anteriores, os clubes visitados, ou considerados como tal, devem proceder à colocação, em todas as entradas do estádio, de um mapa-aviso, de dimensões adequadas, com a descrição de todos os objetos ou comportamentos proibidos no recinto ou complexo desportivo, nomeadamente invasões do terreno de jogo, arremesso de objetos, uso de linguagem ou cânticos injuriosos ou que incitem à violência, racismo ou xenofobia, bem como a introdução (…) material produtor de fogo-de-artifício ou objetos similares, e quaisquer outros suscetíveis de possibilitar a prática de atos de violência» [n.º 6] [sublinhados nossos].
56. E quanto aos regulamentos de prevenção da violência [cfr. art. 36.º daquele RC] a matéria surge regulada nos referidos RD/LPFP e no anexo VI ao RC/LPFP [o RPV/RC/LPFP - adotado ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 05.º da Lei n.º 39/2009 (cfr. art. 02.º do mesmo RPV - «norma habilitante»)], extraindo-se do seu art. 04.º que «[c]ompete à Liga e aos seus associados, incentivar o respeito pelos princípios éticos inerentes ao desporto e implementar procedimentos e medidas destinados a prevenir e reprimir fenómenos de violência, racismo, xenofobia e intolerância nas competições e nos jogos que lhes compete organizar», constituindo deveres do «promotor do espetáculo desportivo» [no caso os «clubes» - cfr. art. 05.º, al. h), do referido RPV], no que aqui ora releva, os de «(…) b) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; c) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; (…) l) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009 (…); m) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube, associação ou sociedade desportiva participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; p) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) t) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos; u) instalar e manter em funcionamento um sistema de videovigilância, de acordo com o preceituado nas leis aplicáveis» [cfr. art. 06.º do mesmo Regulamento].
57. Constituem, por último, condições de acesso dos espetadores ao recinto desportivo definidas no art. 09.º do referido Regulamento, nomeadamente, o: «f) não entoar cânticos racistas ou xenófobos ou que incitem à violência; (…) l) consentir na revista pessoal e de bens, de prevenção e segurança, com o objetivo de detetar e/ou impedir a entrada ou existência de objetos ou substâncias proibidos ou suscetíveis de possibilitar atos de violência; m) não transportar ou trazer consigo objetos, materiais ou substâncias suscetíveis de constituir uma ameaça à segurança, perturbar o processo do jogo, impedir ou dificultar a visibilidade dos outros espetadores, causar danos a pessoas ou bens e/ou gerar ou possibilitar atos de violência, nomeadamente: (…) vi. substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; vii. latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis», sendo que o acesso e permanência dos grupos organizados de adeptos [cfr. art. 11.º] se mostra disciplinado pelo estabelecido, nomeadamente, no art. 09.º, sendo sempre obrigatória a revista pessoal aos mesmos e seus bens.
58. Encerrando-se aqui o elencar do quadro normativo tido por pertinente para a análise do litígio temos que a previsão do ilícito desportivo disciplinar em questão, no caso o inserto no art. 187.º do RD/LPFP-2017, mostra-se clara e perfeitamente integrada naquilo que, por um lado, são os deveres legais e regulamentares atrás aludidos e que nesta matéria impendem, nomeadamente, sobre os clubes e sociedades desportivas, e, por outro lado, no que, mais vastamente, constituem os objetivos e os fins da política de combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança e desportivismo, prevenindo a eclosão e reprimindo a existência ou a manifestação de tais fenómenos.
59. Através da previsão do referido ilícito desportivo disciplinar visa-se a prossecução e realização daqueles objetivos e fins, prevenindo e reprimindo os comportamentos e as condutas que nele se mostram tipificados e que são atentatórios e desconformes com aqueles objetivos e fins, fazendo responder clubes e sociedades desportivas por tais condutas e comportamentos incorretos, tidos pelo público aos mesmos afeto ou simpatizante, enquanto reveladores da inobservância por estes, por ação ou por omissão, do que constituem os seus deveres legais e regulamentares gerais e especiais constantes dos comandos normativos atrás convocados.
60. Na formulação do que constitui o tipo de ilícito disciplinar inserto no art. 187.º do RD/LPFP-2017 e do que, em decorrência, se exige para o seu preenchimento em concreto, estão subjacentes, tão-só, as condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube/sociedade desportiva e pelos quais os mesmos respondem, porquanto decorrentes ou fruto do que constitui o incumprimento pelos mesmos, por ação ou omissão, do dever in vigilando que têm sobre as suas claques e adeptos, nomeadamente e no que releva para a discussão objeto dos autos sub specie, de que houve alguma falha no dever de revista dos adeptos, no dever de revista do estádio, no dever de controlar os adeptos dentro do estádio, no dever de demover os adeptos de praticarem ou desenvolverem tal tipo de comportamentos e condutas.
61. Ora no caso vertente inexiste, por não aportado aos autos, um qualquer elemento densificador e revelador do cumprimento por parte da demandante dos deveres a que está subordinada no que respeita aos deveres de formação, controlo e vigilância do comportamento dos seus adeptos e espectadores, bem sabendo que estava obrigada a cuidar dos mesmos e que eram os seus adeptos que ocupavam a denominada «bancada sul», onde se verificaram as ocorrências registadas no Relatório.
62.Sobre os clubes de futebol e as respetivas sociedades desportivas, como é o caso da demandante aqui recorrida, recaem especiais deveres na assunção, tomada e implementação de efetivas medidas não apenas dissuasoras e preventivas, mas, também, repressoras, dos fenómenos de violência associada ao desporto e de falta de desportivismo, de molde a criar as condições indispensáveis para que a ordem e a segurança nos estádios de futebol português sejam uma realidade.
63. Neste contexto, ao invés do sustentado pela demandante na sua impugnação e que veio a ter acolhimento no acórdão recorrido, não estamos em face de uma qualquer situação de responsabilidade disciplinar objetiva violadora dos princípios e comandos constitucionais.
64. Com efeito, mostra-se ser in casu subjetiva a responsabilidade desportiva na vertente disciplinar da demandante aqui recorrida, já que estribada naquilo que foi uma violação dos deveres legais e regulamentares que sobre a mesma impendiam neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.
65. É que se no domínio da prevenção da violência associada ao fenómeno desportivo o quadro normativo impõe deveres a um leque alargado de destinatários, nomeadamente, aos clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e também para os violar, pelo que apurando-se a violação de deveres legalmente estabelecidos os destinatários dos mesmos serão responsáveis por essa violação.
66. Socorrendo-nos e transpondo para o caso vertente a jurisprudência do TC expendida no acórdão n.º 730/95 [consultável in: «www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/» e que foi firmada no quadro da apreciação da conformidade constitucional da sanção de interdição dos estádios por comportamentos dos adeptos dos clubes prevista nos arts. 03.º a 06.º do DL n.º 270/89, de 18.08 (diploma no qual se continham medidas preventivas e punitivas de violência associada ao desporto) e 106.º do Regulamento Disciplinar da FPF], temos que os ilícitos disciplinares ou disciplinares desportivos imputados e pelos quais a demandante aqui recorrida foi sancionada resultam de «condutas ilícitas e culposas das respetivas claques desportivas (assim chamadas e que são os sócios, adeptos ou simpatizantes, como tal reconhecidos) - condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que eles não cumpriram de forma capaz», «[d]everes que consubstanciam verdadeiros e novos deveres in vigilando e informando», presente que cabe a cada clube desportivo o «dever de colaborar com a Administração na manutenção da segurança nos recintos desportivos, de prevenir a violência no desporto, tomando as medidas adequadas», concluindo-se no sentido de que «[n]ão é, pois, (…) uma ideia de responsabilidade objetiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres».
67. É, por conseguinte, neste ambiente de proteção, salvaguarda e prevenção da ética desportiva, bem como do combate a manifestações de violência associada ao desporto, que incidem ou recaem sobre vários entes e entidades envolvidos, designadamente sobre os clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, um conjunto de novos deveres in vigilando e in formando e em que a inobservância destes deveres assenta não necessariamente numa valoração social, moral ou cultural da conduta do infrator, mas antes no incumprimento de uma imposição legal, sancionando-se aqueles por via da contribuição omissiva, causal ou co causal que tenha conduzido a um comportamento ou conduta dos seus adeptos.
68. Na verdade, não estamos in casu, pois, perante uma responsabilidade objetiva já que o regime previsto nos arts. 17.º, 19.º, 20.º, 127.º, 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RD/LPFP-2017 em articulação, nomeadamente, com os arts. 06.º, al. g), e 09.º, n.º 1, al. m), do RPV/RC/LPFP-2017 e com o que resulta do demais quadro normativo atrás convocado, observa o princípio da culpa, tanto mais que em sua decorrência apenas se sancionam os clubes de futebol ou as suas sociedades desportivas pelos comportamentos incorretos do seu público havidos em violação por aqueles dos deveres que sobre os mesmos impendiam.
69. Daí que, no contexto, o princípio constitucional da culpa, enquanto servindo, igualmente, de elemento conformador e basilar ao Estado de direito democrático, e tendo como pressuposto o de que qualquer sanção configura a reação à violação culposa de um dever de conduta, considerado socialmente relevante e que foi prévia e legalmente imposto ao agente, não se mostra minimamente infringido, tanto mais que será no quadro do processo disciplinar a instaurar [cfr. arts. 212.º e segs., 225.º e segs., do RD/LPFP-2017] que se terão de averiguar e apurar todos os elementos da infração disciplinar, permitindo, como se refere no citado acórdão do TC, que «por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)».
70. Frise-se que é na e da inobservância dos deveres de assunção da responsabilidade pela segurança do que se passe no recinto desportivo e do desenvolvimento de efetivas ações de prevenção socioeducativa que radica ou deriva a responsabilidade disciplinar desportiva em questão, dado ter sido essa conduta que permitiu ou facilitou a prática pelos seus adeptos dos atos ou comportamentos proibidos ou incorretos.
71. E que cabe aos clubes de futebol/sociedades desportivas a demonstração da realização por parte dos mesmos junto dos seus adeptos das ações e dos concretos atos destinados à observância daqueles deveres e, assim, prevenirem e eliminarem a violência, e isso sejam esses atos e ações desenvolvidos em momento anterior ao evento, sejam, especialmente, imediatamente antes ou durante a sua realização.
72. Para o efeito, aportando prova demonstradora, designadamente, de um razoável esforço no cumprimento dos deveres de formação dos adeptos ou da montagem de um sistema de segurança que, ainda que não sendo imune a falhas, conduza a que estas ocorrências e condutas sejam tendencialmente banidas dos espetáculos desportivos, assumindo ou constituindo realidades de carácter excecional.
73. A previsão no quadro disciplinar do ilícito desportivo em crise mostra-se, assim, devidamente legitimada já que encontra, ou vê radicar, repousar os seus fundamentos não apenas naquilo que é a necessária prevenção, mas, também, na culpa, sancionando-se o que constitui um negligente cumprimento dos deveres supra enunciados, sem que, de harmonia com o exposto, um tal entendimento atente ou enferme de violação dos princípios da culpa e do Estado de direito, ou constitua um entorse aos direitos de defesa e a um processo equitativo, dado que assegurados e garantidos em consonância e adequação com o entendimento e interpretação fixados.
74. E também não vemos que tal entendimento e interpretação possam envolver uma pretensa violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo, pois, não estamos em face da assunção duma presunção de culpa da arguida ou de regra que dispense, libere ou inverta o ónus probatório que colida com o primeiro princípio, nem, como atrás referido, no caso em presença somos confrontados com uma situação de inexistência de prova relevante de que foi cometido ilícito e de quem é o sujeito responsável à luz da prova produzida para, mercê da existência de legítima dúvida, fazer apelo ao segundo princípio.»
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Aderindo aos presentes considerandos, somos a concluir que o TAD não se encontrava impedido de assentar e firmar no relatório elaborado pelos delegados da Liga a presunção de que os factos neles relatados e que assumem alguns deles relevante gravidade, são imputáveis a sócios ou simpatizantes da ora recorrida.
Com efeito, resulta da factualidade provada [cfr. pontos 2, 4 a 8, e 10] que a ora recorrida incumpriu, com culpa, os deveres de vigilância, controlo e formação a que estava obrigada, em virtude do disposto nos artºs 13º, al. f), 182º, nº 2 [agressões graves a espectadores e outros intervenientes] e 187º, nº 1, al. b) [comportamento incorrecto do público], todos do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, pelo que, é manifesto o erro de julgamento em que incorreu o acórdão recorrido quando decidiu existir violação do princípio da presunção de inocência do arguido, por força do regime constante dos nºs 2 e 10 do artigo 32º CRP.
E a conclusão a que chegamos, também não viola o disposto nos artºs 182º e 187º do RD-LPFP, no sentido da inconstitucionalidade que lhe é assacada pela recorrida – violação do princípio da culpa (artº 2º da CRP) e princípio da presunção de inocência do arguido (artº 32º, nº 2, e 10º da CRP), pois como referido no Acórdão supra citado, o que aqueles normativos sancionam é o negligente cumprimento dos deveres enunciados, pelo que nada mais se nos afigura dizer a este respeito.
Impõe-se, pelo exposto, revogar o acórdão recorrido e manter na ordem jurídica o acórdão do TAD que confirmou a multa aplicada à recorrida.
3. DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal em conceder provimento ao recurso, revogar o Acórdão recorrido e confirmar o Acórdão do TAD que manteve a pena disciplinar de multa aplicada à recorrida no valor de 8.645,00€.

Custas pela recorrida, neste Tribunal e no TCAS.
Notifique

Lisboa, 11 de Março de 2021

[A relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 3º do DL nº 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, Conselheiro Cláudio Ramos Monteiro e Conselheiro José Veloso].
Maria do Céu Neves