Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0414/10
Data do Acordão:09/20/2011
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:FERNANDA XAVIER
Descritores:RECURSO CONTENCIOSO
ACTO ADMINISTRATIVO
LICENCIAMENTO DE CONSTRUÇÃO
SINDICABILIDADE
CONCEITO INDETERMINADO
JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO
RECTIFICAÇÃO DE ERRO MATERIAL
NULIDADE DE SENTENÇA
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário:I - Os recursos contenciosos são de mera legalidade (art. 6.º da LPTA), visando-se neles apreciar a legalidade da actuação da Administração tal como ela ocorreu, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua actuação poderia basear-se noutros fundamentos, designadamente invocados a posteriori nas peças apresentadas no processo.
II- A legalidade do acto administrativo afere-se pela realidade fáctica existente no momento da sua prática e pelo quadro normativo então em vigor, segundo o princípio tempus regit actum.
III- A regra, em contencioso administrativo é a de que todos os actos da administração são passíveis de fiscalização contenciosa, devendo ser excepcionais as possibilidades de subtracção a esse juízo.
IV- O facto de os requisitos exigidos pelo artº30º, nº2 do Regulamento do PU de São Cosme e Valbom, para o licenciamento de habitações de outros tipos diferentes do tipo predominante na zona residencial tipo II (moradias uni e bi-familiares, isoladas ou geminadas – cf. seus artº29º, nº1 e 30º, nº1), conterem conceitos indeterminados não significa que a sua verificação pela Administração caia no âmbito do um seu poder discricionário, antes se trata de um poder vinculado.
V- Isto, sem prejuízo de existir alguma liberdade de apreciação no preenchimento desses conceitos, em cada caso concreto, na medida em que tal possa envolver o recurso a regras técnicas, científicas e/ou da experiência comum, mas que também não está excluída da apreciação pelo tribunal em caso de erro, de utilização de um critério desadequado, ou ainda de violação de princípios fundamentais e da actividade administrativa.
VI- O STA, funcionando como tribunal de apelação, só pode alterar o julgamento da matéria de facto nos termos limitados do artº712º, nº1, conjugado com o artº690ºA, ambos do CPC.
Nº Convencional:JSTA00067154
Nº do Documento:SA1201109200414
Data de Entrada:05/20/2010
Recorrente:PRES DA CM DE GONDOMAR E OUTRO
Recorrido 1:B... E MULHER
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF PENAFIEL PER SALTUM
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM CONT - ACTO
DIR URB - LICENCIAMENTO CONSTRUÇÃO
Legislação Nacional:CPC96 ART660 N2 ART668 N1 ART690-A ART712 N1 ART715 N2
CCIV66 ART1360 N1 N2
CPA91 ART3 N1
RGEU51 ART73 ART75
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC351/07 DE 2007/07/05; AC STA PROC648/08 DE 2009/03/25; AC STAPLENO PROC37633 DE 2002/02/06
Referência a Doutrina:FREITAS DO AMARAL CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO VII PAG79
AZEVEDO MOREIRA IN RDP N1 PAG67
REBELO DE SOUSA LIÇÕES DE DIREITO ADMINISTRATIVO VI PG111
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
I- RELATÓRIO
O PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE GONDOMAR, bem como o contra-interessado A…, com os sinais dos autos, vieram recorrer da sentença do Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel proferida a fls. 759 e segs., que concedeu provimento ao presente recurso contencioso e declarou nulo o despacho da entidade recorrente que deferiu, ao ora recorrente particular, o licenciamento de uma construção e a emissão do respectivo alvará.
A entidade recorrente terminou as suas alegações, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1. O acto recorrido é o despacho datado de 6 de Setembro de 2002 que deferiu o pedido de licenciamento e não, conforme refere a sentença recorrida, o despacho de aprovação do projecto de arquitectura.
2. Face à prova produzida e aos elementos do p.a. o tribunal deveria ter dado como não provado que: a construção do prédio recorrido eleva-se em mais de três metros das construções vizinhas, que a sua volumetria é o dobro das construções vizinhas, que toda e qualquer construção vizinha do prédio do Recorrido particular fique por este ensombrado.
3. O edifício em causa foi construído antes de 18 de Maio de 1995, data da entrada em vigor do Plano Director Municipal, constando do processo administrativo tal facto a fls.273,299 e 369.
4. O RPDM não é aplicável ao caso atento a sua irrectroactividade e a salvaguarda dos direitos legitimamente adquiridos.
5. Na sequência do exposto, o artigo 66 do PU refere « A Câmara Municipal poderá proceder à legalização de construções efectuadas ilegalmente, sem licença de construção, comprovadamente edificadas antes da entrada em vigor do Plano Director Municipal e que obedeçam cumulativamente aos requisitos seguintes: satisfaçam a legislação aplicável ao licenciamento municipal de obras particulares; não prejudiquem, de forma grave, quer o interesse público, quer o ordenamento do território municipal, não prejudiquem a capacidade construtiva das parcelas confinantes; cumpram o definido no Regulamento Geral das Edificações Urbanas
6. Face ao exposto, nos presentes autos era apenas necessário verificar se a aprovação em causa respeitou as condições previstas nesse artigo.
7. Ora, a construção foi aprovada com base em dois pareceres técnicos que referem, sem margem para dúvidas, que a construção não prejudica o interesse público, nem o ordenamento do território municipal, porque a volumetria e a tipologia estão de acordo com o nº2 do artº30º e nº. 2 do artº31º do Regulamento do Plano de Urbanização de S. Cosme, não prejudicando a capacidade construtiva das parcelas confinantes, e por outro, pelo facto de a construção respeitar o definido no RGEU.
8. O artº30º do PU prevê a possibilidade de naquele local construir habitação multifamiliar, desde que esta não afecte negativamente a área envolvente, quer do ponto de vista paisagístico e funcional.
9. A edificação em causa destina-se a habitação pelo que se enquadra na área envolvente – área predominantemente residencial.
10. Por outro lado e conforme consta dos autos, a Rua de … não é uma rua plana, tendo uma inclinação, ora a edificação em causa encontra-se no início da Rua, no sentido ascendente, pelo que apesar da edificação do Recorrido particular se elevar das demais construções, tal facto não se evidencia, nem afecta negativamente a área envolvente face a característica própria da Rua.
11. A edificação em questão encontra-se num gaveto, assim sendo, apesar da sua volumetria exceder a volumetria das construções vizinhas, tal facto não consubstancia uma afectação negativa da área envolvente, em virtude da sua localização específica – gaveto – isto é encontra-se numa zona mais desafogada, pelo que a sua volumetria, apesar de superior não se destaca negativamente.
12. O tribunal a quo não teve em linha de conta as características específicas na Rua em que se encontra a edificação em causa.
13. Acresce ainda que tem sido entendido pela jurisprudência, que os conceitos como os referidos no nº2 do artº30º do PU, assentam em critério do domínio da discricionariedade técnica, no qual o controle jurisdicional só é possível em caso de erro manifesto ou grosseiro.
14. Ora atento aos elementos dos autos, a edificação em causa destina-se a habitação, situa-se num gaveto, no início de uma rua com inclinação.
15. E aos factos não provados, ou seja, não ficou provado que a rua em questão tem um alinhamento constante, nem que a construção do prédio recorrido se eleva em mais de três metros das construções vizinhas, nem que a volumetria do prédio do recorrido é o dobro das construções vizinhas, nem que toda e qualquer construção vizinha do prédio do Recorrido particular fique por este ensombrado.
16. Não resulta ter havido erro grosseiro por parte da aqui Recorrente pelo que o Tribunal não poderia ter concluído que o prédio habitacional não permite estabelecer uma correcta relação com a tipologia predominante.
17. Relativamente ao nº2 do artº29º do PU, o prédio em questão, à data, era servido por uma fossa séptica à semelhança do que acontece com o prédio dos Recorrentes e já se encontrava previsto a rede geral de saneamento.
18. O tribunal a quo não se pronunciou sobre a questão da aplicabilidade ou não do artigo 66 do PU, pelo que a sentença é nula por força do disposto no artº668º, nº1 d) do CPC.
19. Por tudo o exposto a sentença recorrida viola o disposto nos artº668º, nº1 CPC, 660º, nº1 CPC e artº66º do PU, tendo feito uma incorrecta interpretação e aplicação do artigo 30º do PU.
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O recorrente particular formulou, por sua vez, as seguintes CONCLUSÕES:
1ª. Este recurso é interposto da douta sentença proferida a fls. 758 e seguintes, nos termos da qual o tribunal “ a quo” concedeu provimento ao recurso contencioso, e declarou o acto recorrido nulo, consistindo este despacho do Sr. Presidente da Câmara Municipal de Gondomar datado de 6.9.2002 que aprovou o projecto de arquitectura para o prédio do aqui Recorrente Particular e mandou emitir o alvará de licenciamento.
2ª. Deve ser ampliada a matéria de facto no sentido de consignar que a edificação do recorrente particular já estava concluída em data anterior a 18.5.1995 com os mesmos elementos de facto que constam dos pontos 3º a 11º da matéria de facto constante da douta decisão recorrida ( cf. fls. 762 e 763).
3ª. A douta decisão recorrida incorreu em erro na determinação da norma aplicável, porquanto é inaplicável o disposto nos artº29º e 30º do Regulamento do Plano de Urbanização S. Cosme e Valbom ao caso vertente, face ao facto de o prédio do recorrente particular estar concluído antes da data de 18.05.1995, que é a data da entrada em vigor do PDM Gondomar.
4ª. É aplicável à construção do recorrente particular a norma do artº66º do predito Regulamento, tendente à legalização da edificação, encontrando-se presentes todos os pressupostos de facto e de direito previstos no preceito.
5ª. Sem prescindir e quanto à aplicação dos artº29º e 30º do predito Regulamento, o certo é que não está provada a afectação da área envolvente nas vertentes paisagística ou funcional.
6ª. Não obstante, as conclusões retiradas pelo distinto tribunal recorrido acerca dos conceitos insertos no nº2 do mencionado artigo 30º não exaram que ocorreu erro grosseiro ou manifesto, únicos casos em que a sindicância jurisdicional desses conceitos é admissível, pelo que o entendimento diverso do recorrente público enquadra-se dentro de juízos de mérito admissíveis de acordo com o conceito de discricionariedade técnica.
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Contra-alegaram os recorrentes contenciosos, ora recorridos, CONCLUINDO assim:
1ª. Não deve a fundamentação de facto da sentença ser alterada no sentido de se incluir como não provado, de forma discriminada e especificada, que:
1- A construção do prédio recorrido eleva-se em mais de três metros das construções vizinhas;
2- Que a volumetria do prédio do recorrido é o dobro das construções vizinhas.
3- Que toda e qualquer construção vizinha do prédio do recorrido particular fique por este ensombrado.
2ª. Contrariamente ao pretendido pela autoridade administrativa recorrida, a douta sentença em crise não viola o disposto nos artº 668º, nº1 e 660º, nº2 do Código de Processo Civil, porquanto conheceu de todas as questões suscitadas pelas partes que lhe competia conhecer.
3ª. Dos elementos juntos aos autos a que o recorrido particular e a autoridade administrativa recorrida fazem alusão ( requerimento de fls.273 do PA, registado sob o nº2316 de 7 de Julho de 1993, com uma fotografia anexa pelo recorrente, requerimento de fls.299 do PA, datado de 19 de Abril de 1995, registado sob o nº5517, relatório de fls.369 do PA que descreve, em súmula, um resumo cronológico dos factos relativos ao processo de licenciamento nº 1655/87 ), não é possível concluir que a edificação do recorrente particular já estava concluída em data anterior a 18 de Maio de 1995 ou em data anterior a Maio de 1995, mas apenas e tão só que, não obstante o embargo administrativo decretado pela edilidade sobre a obra de edificação em causa, o recorrido particular continuou a obra e que a mesma, em Maio de 1995, já se encontrava em estado muito avançado, sem contudo se poder precisar qual seja esse estado.
4ª. Para além disso, esse concreto ponto da matéria de facto em questão não reveste qualquer interesse para a descoberta da verdade material e a boa decisão da causa segundo as diversas soluções plausíveis de direito.
5ª. Pelo que não deverá esse concreto ponto da matéria de facto em questão ser julgado provado.
6ª. Contrariamente ao defendido pela autoridade administrativa recorrida, não assiste ao recorrido particular qualquer direito adquirido em relação à obra de edificação em apreço, que mereça a tutela do direito, antes da prática em 6/9/2002, do acto administrativo judicialmente impugnado, isto é, antes da entrada em vigor do RPDM e ou do respectivo PU.
7ª. Tendo o recorrido particular pedido, através do requerimento registado sob o nº4547 em 2/07/2001, a emissão de nova licença de construção – vide PA – esse pedido de licenciamento tem de observar e dar cumprimento às normas legais e regulamentares aplicáveis nessa data, designadamente o RPDM e o PU.
8ª. Uma realidade de facto criada à revelia e em violação de um embargo administrativo não é constitutiva de direitos legítimos para o prevaricador e não merece a tutela de Direito, sob cominação de se premiar esse mesmo prevaricador e dar cobertura à ilegalidade.
9ª. O disposto no artigo 30º do Regulamento do Plano de Urbanização de S. Cosme e Valbom não pressupõe a incidência do licenciamento da construção sobre uma realidade fáctica ainda inexistente, não resultando do respectivo preceito legal qualquer indicação ou imposição nesse sentido.
10ª. A aplicação do disposto no artigo 66º do Regulamento do Plano de Urbanização de S. Cosme e Valbom pressupõe que a legislação das edificações realizadas ilegalmente sem licença de construção, tenham sido comprovadamente edificadas antes da entrada em vigor do PDM e que obedeçam, cumulativamente, aos seguintes requisitos:
- Satisfaçam a legislação aplicável ao licenciamento municipal de obras particulares;
- Não prejudiquem, de forma grave, quer o interesse público quer o ordenamento do território municipal;
- Não prejudiquem a capacidade construtiva das parcelas confinantes.
- Cumpram o definido no RGEU.
11ª. A edificação levada a efeito pelo recorrido particular não se encontrava concluída à data da entrada em vigor do PDM, tendo sido concluída após a prática do acto administrativo recorrido.
12ª. Para além disso, não satisfaz a legislação aplicável ao licenciamento municipal de obras particulares, prejudica, de forma grave, quer o interesse público quer o ordenamento do território municipal e não cumpre o definido no RGEU, designadamente no que concerne aos afastamentos ao prédio dos recorrentes.
13ª. A fundamentação de direito subjacente à prática do acto administrativo em causa nestes autos, sustenta-se no pretenso cumprimento do disposto nos artigos 30º, nº2 do Regulamento do Plano de Urbanização de S. Cosme e Valbom e não no artº 66º do referido diploma legal.
14ª. A construção em causa não reúne os requisitos para ser licenciada em cumprimento do disposto no artº30ºº do Regulamento do Plano de Urbanização de S. Cosme e Valbom, porquanto afecta negativamente a envolvente directa, quer no aspecto paisagístico quer no aspecto funcional, não permite um correcto relacionamento com a tipologia predominante na sua envolvência directa e não cumpre as exigências previstas na parte final do nº2, nos termos previstos nonº3, do referido preceito legal.
15ª. Contrariamente ao sustentado pelos recorridos, os poderes ínsitos na redacção do nº2 do artº30º do Regulamento do Plano de Urbanização de S. Cosme e Valbom, são poderes vinculados e não poderes discricionários.
16ª Ainda que se entenda que a redacção utilizada: “ Poderão ser licenciados outros tipos” é expressão do poder discricionário conferido pela lei à autoridade administrativa, certo é que, a lei ao impor os limites em que poderão ser licenciados “outros tipos” vinculou/limitou, objectivamente, o exercício desse poder discricionário, o qual, por conseguinte, pode e deve ser sujeito ao controle jurisdicional.
17ª. Acresce que, ainda que se entenda que o ajuizamento da afectação negativa, ou não, da área envolvente, do ponto de vista paisagístico e funcional, bem como da correcta ou incorrecta relação com a tipologia predominante na sua envolvente directa, se reconduz a juízos de discricionariedade técnica, o certo é que mesmo essa discricionariedade técnica é susceptível de controle jurisdicional, quando a decisão tiver sido tomada com base em erro manifesto ou segundo um critério ostensivamente inadmissível, ou ainda quando o critério adoptado se revele manifestamente desacertado e inaceitável.
18ª. Não são necessários conhecimentos técnicos especiais para se chegar à conclusão que o acto administrativo recorrido licenciou a construção de uma edificação que, de forma notória e grosseira, afecta negativamente a área envolvente, do ponto de vista paisagístico e funcional, bem como não estabelece uma correcta ou incorrecta relação com a tipologia predominante na sua envolvente directa, para além de não cumprir as exigências de melhoria dos acessos locais e criação de todas as redes e órgãos próprios de infra-estruturas necessários ao bom funcionamento da intervenção, em especial da rede de saneamento e de águas residuais.
19ª. Contrariamente ao pretendido pelos recorridos (aqui recorrentes), a douta sentença recorrida fez boa interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis - artº29º, nº1 e 30º nº1 e 2 do Regulamento do Plano de Urbanização de S. Cosme e Valbon e artº68º, a) do RJUE – DL 555/99 de 16.12 e do disposto no artº668º,nº1 d) do CPC, não merecendo qualquer censura ou reparo.
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O Digno PGA junto deste STA emitiu parecer no sentido do não provimento de ambos os recursos, porquanto e em síntese, tendo a sentença sido proferida em cumprimento do acórdão do STA de fls. 518 e segs, que considerou o acto aqui impugnado um novo licenciamento, não pode proceder a alegação dos recorrentes quanto à necessidade de ampliação da matéria de facto e quanto à não aplicação dos artº 29º e 30º do Regulamento do PU se S. Cosme e Valbom, por ser aplicável o seu artº66, bem como a arguida nulidade quanto a esta última questão.
Igualmente considera improcedente a pretendida insindicabilidade dos requisitos do artº30º, nº2 do PU, por, em síntese, não estarmos aqui no âmbito de um poder discricionário da Administração, mas sim de um poder vinculado, sendo certo que a Administração deve actuar segundo o princípio da legalidade, estando sujeita à Constituição e à lei, que já não constituem apenas limite à sua actividade, mas passaram a ser fundamento da sua actuação. Sendo certo que a criação e existência de PDM e respectivos Regulamentos se destinam a reduzir ao mínimo o poder discricionário da Administração em matéria de ordenamento do território e planeamento urbanístico.
Conclui, a final, que face à matéria de facto assente, é por demais manifesto que o acto de licenciamento impugnado viola o disposto nos artº29º, nº1, 30º, nº1 e 2 do Regulamento do PU de S. Cosme e Valbom, e, por isso, é nulo.
Colhidos os vistos legais, cabe decidir.
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II- OS FACTOS
1. A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
1º. Pelo despacho de 06 de Setembro de 2002 do Sr. Presidente da Câmara Municipal de Gondomar foi aprovado o projecto de arquitectura para o prédio do ora Recorrido Particular e mandado emitir o respectivo alvará de licenciamento (cf. fls. 11 dos autos) – acto recorrido.
2º. Em 03 de Outubro de 2002, o Recorrido Público emitiu em nome de A… o Alvará de Obras de Construção nº 557/2002, com as seguintes características: três pisos acima da cota da soleira; nº de fogos -12 T3, uso da edificação –habitação (cf. fls.650 do PA e fls.35 dos autos).
3º. As guardas das varandas da edificação aprovada pelo despacho recorrido distam 1,42m do prédio dos Recorrentes (cf. fls. 14, 15 e 17 dos autos).
4º. A parte virada a poente do edifício licenciado pelo acto recorrido tem várias janelas abertas, varandas com parapeito e portas e está afastado lateralmente da parede dos anexos dos Recorrentes em 2,5m ( cf. fls. 12, 14, 15, 17, 18 e 54 dos autos).
5º. A distância entre o limite das varandas do prédio licenciado até à perpendicular do muro dos Recorrentes é de 1,44m (cf. fls. 18 dos autos).
6º. No alinhamento ao arruamento (R. de …), a construção em questão encontra-se menos recuada que as demais construções de habitação uni e bifamiliares vizinhas.
7º. Não existe mais habitações multifamiliares na área envolvente à edificação em questão.
8º. A edificação em questão não segue o alinhamento das cérceas dominantes, elevando-se das demais construções vizinhas.
9º. Em volumetria, a edificação em causa excede a volumetria das construções vizinhas.
10º. A edificação ensombra as construções vizinhas.
11º. Inexiste rede de saneamento para escoamento de esgotos e águas residuais no local onde se insere a construção em causa.
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III - O DIREITO
1. Questão prévia – rectificação de erros materiais:
Alega o recorrente público, nas suas alegações de recurso, sob a epígrafe supra que, ao contrário do referido na sentença, o acto recorrido é o despacho datado de 6 de Setembro de 2002 que deferiu o pedido de licenciamento aqui impugnado e não o despacho de aprovação do projecto de arquitectura, pretendendo, ao que parece, a correcção desse erro material.
Porém, o recorrente público não identifica onde, na sentença recorrida, ocorre esse pretendido erro material e o mesmo não resulta da sua leitura, antes dela decorre claramente que o Mmo. Juiz a quo considerou que o referido despacho de 06 de Setembro de 2002 consubstancia o deferimento do pedido de licenciamento aqui impugnado, cuja validade apreciou.
É verdade que a sentença fez constar do ponto 1 do probatório, transcrito supra em II, que «Pelo despacho de 06 de Setembro de 2002 do Sr. Presidente da Câmara Municipal de Gondomar foi aprovado o projecto de arquitectura para o prédio do ora Recorrido Particular e mandado emitir o respectivo alvará de licenciamento (cf. fls.11 dos autos) = acto recorrido».
Porém, tal ponto limitou-se a transcrever o teor do oficio da própria CM de Gondomar, dirigido ao recorrente contencioso e constante dos autos a fls.11, como ali se fez referência, onde se informava que «Relativamente a queixa acima referenciada, informo V. Exa. que por despacho do Sr. Presidente de 6.09.2002, foi aprovado o projecto de arquitectura e mandado emitir o respectivo alvará de licenciamento».
Na verdade, o tribunal a quo sempre interpretou o referido despacho como consubstanciando um (novo) acto de licenciamento da edificação aqui em causa, nesta e na anterior sentença proferida a fls.286 e segs. que, nesse ponto, foi confirmada nos autos por este STA, nos acórdãos proferidos a fls. 459/477 e fls. 518/535 (cf. pontos 2.2.1 das respectivas fundamentações), sendo, portanto, essa uma matéria assente.
Não ocorre, pois, o pretendido erro material.
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2. Nulidade da sentença – artº668º, nº1 d) CPC:
Alega a entidade recorrente que o tribunal a quo se não pronunciou sobre a questão da aplicabilidade do artº 66º do Regulamento do Plano de Urbanização de São Cosme e Valbom ao caso sub judicio, suscitada na sua contestação, pelo que a sentença é nula por força dos artº 660, nº2 e 668, nº1 do CPC.
A questão da não aplicabilidade do referido Regulamento ao licenciamento aqui em causa, por a situação sub judicio se enquadrar no seu artº66 e não no seu artº 30º, nº2, foi efectivamente suscitada pelo recorrente público, na sua contestação apresentada no tribunal a quo (cf. 35º a 41º desse articulado), pretendendo, desse modo, afastar a aplicação ao caso sub judicio do preceituado no citado artº30º, nº2 daquele Regulamento e, consequentemente, a nulidade do acto impugnado invocada pelos recorrentes contenciosos com fundamento na violação deste preceito legal.
Ora, é verdade que a sentença recorrida não se pronunciou, expressamente, sobre a pretendida aplicabilidade do artigo 66º do PU à situação sub judicio.
No entanto, resulta claro da respectiva fundamentação que o Mmo. Juiz a quo considerou aplicáveis os citados artº29º e 30º, nº1 e 2 desse Regulamento do PU, à luz dos quais apreciou a legalidade do acto aqui impugnado, pelo que, implicitamente, rejeitou a tese contraposta do ora recorrente público, ali recorrido, de que aqueles preceitos não eram aplicáveis à situação sub judicio, por se aplicar o já supra referido artº66º.
Se o tribunal decidiu bem ou mal é questão que se prende já com o mérito da causa e não com a arguida nulidade da decisão que, assim, improcede.
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3. Quanto à pretendida ampliação da matéria de facto:
Alegam ambos os recorrentes que, face aos elementos constantes do p. a. ( requerimentos do próprio recorrente contencioso juntos a fls. 273 e 299 e súmula constante a fls. 369), o tribunal deveria ter dado como provado que a construção em crise já estava concluída aquando da entrada em vigor do PDM de Gondomar, o que ocorreu em 18 de Maio de 1995, facto, a seu ver, relevante, face ao disposto no artº66º do Regulamento do PU de São Cosme e Valbom, que consideram aplicável ao caso sub judicio.
Dispõe este preceito legal, sob a epígrafe « Prédios urbanos edificados sem licença»:
«A Câmara Municipal poderá proceder à legalização de construções efectuadas ilegalmente, sem licença de construção, comprovadamente edificadas antes da entrada em vigor do Plano Director Municipal e que obedeçam, cumulativamente, aos requisitos seguintes:
Satisfaçam a legislação aplicável ao licenciamento municipal de obras particulares;
Não prejudiquem de forma grave, quer o interesse público quer o ordenamento do território municipal;
Não prejudiquem a capacidade construtiva das parcelas confinantes;
Cumpram o definido no Regulamento Geral das Edificações Urbanas.» ( negrito nosso)
Ora, contrariamente ao que pretendem os aqui recorrentes, não resulta dos autos que a construção em causa estivesse comprovadamente edificada antes da entrada em vigor do PDM de Gondomar como exige o citado artº66º do Regulamento do PU, pois os elementos do p.a., a que aludem os recorrentes, não são concludentes nesse sentido, já que os invocados requerimentos do recorrente contencioso de fls. 273 e 299 do p.a. não provam, nem podiam provar, naturalmente, esse facto e ele também não pode resultar demonstrado de um resumo cronológico efectuado a fls. 369 do p.a, não vindo invocada qualquer outra prova que o evidencie.
Acresce que, como reconhece o próprio recorrente público e é observado pelos recorrentes contenciosos, ora recorridos, nas respectivas alegações de recurso, o acto aqui impugnado apreciou a situação face aos artº29º, 30º, nº2 e 31º, nº2 desse Regulamento, que o recorrente público pretende agora não serem aplicáveis (vide conclusão 7ª das alegações de recurso do próprio recorrente público e conclusão 13ª das contra-alegações dos recorrentes contenciosos).
Ora, estando como estamos em sede de recurso contencioso e, portanto, de mera legalidade (artº6º da LPTA), a apreciação da legalidade do acto aqui impugnado deve ser aferida face à respectiva fundamentação, sendo irrelevante qualquer fundamentação a posteriori, ainda que invocada em sede de contestação do recurso e, consequentemente, os factos que a suportam (Cf. por todos, o recente ac. do STA de 07.09.2011 e a jurisprudência ali citada.) .
Pelas razões referidas, improcede a pretendida ampliação da matéria de facto.
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O recorrente público pretende ainda que o tribunal a quo deveria ter considerado expressamente na sentença, como factos não provados, que: (i) a construção do prédio recorrido eleva-se em mais de três metros das construções vizinhas, (ii) a sua volumetria é o dobro das construções vizinhas e (iii) toda e qualquer construção vizinha do prédio do Recorrido particular fique por este ensombrada.
E isto porque apesar de o tribunal a quo ter dado uma resposta restritiva aos quesitos 1º, 2º e 3º da base instrutória, que continham os factos supra mencionados, estes não se provaram e constituem o desenvolvimento lógico dos factos dados como assentes.
Contudo, o recorrente público não retira qualquer consequência jurídica dessa sua alegação, nem invoca sequer violação pelo tribunal a quo de qualquer preceito legal. E, na verdade, não se vê que a não especificação, na fundamentação da sentença recorrida, dos referidos factos como não provados, constitua qualquer irregularidade ou vício desta susceptível de influenciar a decisão da causa, sendo certo que da fundamentação das respostas restritivas dadas aos referidos quesitos 1º, 2º e 3º da base instrutória (cf. decisão sobre a matéria de facto a fls. 731 e segs., com referência à base instrutória constante de fls. 544 dos autos), resulta claramente que o tribunal a quo ponderou e apreciou criticamente toda a prova produzida nos autos e concluiu que os referidos factos, tal como alegados pelos recorrentes contenciosos, não se provaram totalmente, mas apenas parcialmente, na justa medida que fez constar daquelas respostas e que, posteriormente, foi levada aos pontos 8º, 9º e 10º, respectivamente, do probatório da sentença recorrida.
Com efeito e após mencionar, na resposta a cada um dos referidos quesitos, os meios de prova, testemunhal, documental e inspecção judicial ao local, que a suportam, o tribunal esclareceu ainda:
Quanto ao quesito 1º, que « (…) A resposta ao presente quesito é restritiva, porquanto, embora se considere provado que o prédio do Recorrido Particular se eleva das demais construções vizinhas, não se dá por provado que tal elevação seja concretamente em mais de 3 metros, por ausência de medições precisas e com recurso a meios fidedignos que apontem tal valor».
Quanto ao quesito 2º, que « (…) A resposta ao presente quesito é restritiva, porquanto a comparação das volumetrias concretas da edificação do Recorrido Particular e das construções vizinhas, numericamente falando, e a conclusão de que a primeira tem um valor em dobro das demais, depende do resultado de cálculos aritméticos que não foram demonstrados nos presentes autos. Não obstante, o Tribunal recorrendo às regras da experiência comum e às observações colhidas aquando da inspecção ao local, cujo auto assim o demonstra, convictamente conclui que o tamanho do prédio do Recorrido Particular é notoriamente superior ao das construções vizinhas.»
Quanto ao quesito 3º, que « (…) não ficou provado que toda e qualquer construção vizinha do prédio do Recorrido Particular fique por este ensombrada. Contudo, como o quesito não se limita a saber se há sombra ou não, na moradia dos Recorrentes, antes se refere de um modo geral às “construções vizinhas”, resulta convictamente ao Tribunal que no período da manhã e, mormente, aos alvores de cada dia, o prédio do Recorrido Particular impede que algumas das casas erigidas para o lado da sua fachada posterior (a fachada reversa à da entrada principal do prédio), sensivelmente a Poente, obtenham exposição solar.»
O recorrente público afirma que os factos «não provados» deviam ter sido consignados na sentença por constituírem o desenvolvimento lógico dos factos dados como assentes e transcreve, em apoio desta sua afirmação, um extracto de um acórdão da Relação de Lisboa, onde se refere que « … da resposta restritiva a uma pergunta apenas se pode retirar o que resultou dessa mesma resposta restritiva. Na parte de que não se fez prova, tudo se passa como se não tivessem sido articulados os factos desse trecho não provado. É lícito extrair da matéria de facto as ilações que desta se entende resultar, desde que constituam o desenvolvimento lógico dos factos assentes.».
Ora, a afirmação do recorrente é logicamente ininteligível, pois não se vê como os factos não provados possam constituir o desenvolvimento lógico dos factos assentes e, naturalmente, não é isso que consta do extracto do acórdão por ele citado, mas sim que o tribunal «pode extrair da matéria de facto ilações, desde que constituam o desenvolvimento lógico dos factos assentes», o que é completamente diferente.
Face ao exposto, improcede também nesta parte a pretensão do recorrente público.
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4. Quanto ao erro na determinação da norma aplicável:
Os recorrentes contenciosos pediram, na petição inicial, que o acto aqui impugnado fosse declarado nulo, por violação do artº 30º do Regulamento do Plano de Urbanização de S. Cosme e Valbom e anulado, por violação dos artº 1360º, nº1 e 2 do CC, artº3º, nº1 do CPA, e artº73º e 75º do RGEU.
A sentença, ora sob recurso, foi proferida na sequência e em cumprimento do acórdão deste STA proferido nos autos a fls. 518 e segs., que, em sede de recurso jurisdicional interposto de anterior sentença que julgara improcedentes as excepções de irrecorribilidade do acto e intempestividade do recurso contencioso e anulara o acto impugnado com fundamento na invocada violação do artº73º do RGEU, a revogou por julgar intempestivo o recurso contencioso quanto aos invocados vícios de violação de lei geradores de mera anulabilidade, designadamente a invocada violação dos artº73 e 75 do RGEU e ordenou a baixa do processo ao tribunal a quo, para conhecer da invocada nulidade do acto impugnado por violação do Regulamento do Plano de Urbanização de S. Cosme e Valbom (artº715º, nº2 do CPC), de que aquele Tribunal não conhecera, por a julgar prejudicada face à decisão que proferiu.
O tribunal a quo, depois de elaborar o despacho saneador e base instrutória, de proceder à audiência de discussão e julgamento da causa e a uma inspecção judicial ao local e de responder aos quesitos da base instrutória decidiu, pela sentença ora recorrida, dar provimento ao recurso contencioso e declarar nulo o acto aqui impugnado, por ter sido proferido em desconformidade com o estipulado nos artº29º, nº1 e 30º, nº1 e 2 do Regulamento do PU de S. Cosme e Valbom e atento o artº68º, a) do RJUE.
Os recorrentes jurisdicionais continuam a afirmar que os citados preceitos do Regulamento do PU não são aplicáveis mas sim o seu art.º 66º, por se tratar da legalização de uma construção já edificada antes da entrada em vigor do Regulamento do PDM de Gondomar e que, por isso, a legalidade do acto impugnado tem de ser aferida face aos requisitos exigidos por aquele art.º 66º do Regulamento do PU e não face aos seus artº 29º, nº1 e 30º, como decidido.
Contudo e como decorre do já exposto supra em 3, não assiste razão aos recorrentes, pois, desde logo, não resulta comprovado nos autos que a edificação em causa se encontrava já concluída à data da entrada em vigor do PDM de Gondomar, ou seja, em 18 de Maio de 1995, requisito de que depende a aplicação do citado artº66º do PU.
O que, desde logo, importa a improcedência da sua pretendida aplicação ao caso sub judicio.
Aliás, e como também já se referiu no ponto 3 supra, o próprio acto, aqui impugnado, analisou a situação à luz dos artº30º, nº2 e 31º do PU, como, aliás, o próprio recorrente público reconhece na conclusão 7ª das suas alegações de recurso.
E bem, pois como já ficou decidido nos presentes autos, estamos aqui perante um novo acto de licenciamento, como já ficou decidido nos autos, uma vez que e passamos a citar, « …a aprovação do projecto de arquitectura e a ordem de emitir o respectivo alvará de licenciamento consubstancia a legalização da obra anteriormente edificada em desconformidade com o projecto, definindo a situação individual e concreta do destinatário, com produção de efeitos jurídicos inovadores…» (cf. fls. 531/2 do referido acórdão), sendo que, como se provou, este novo licenciamento teve lugar em 06.09.2002, portanto, já na vigência do PU de S. Cosme e Valbom, publicado no DR nº141, da 1ª Série-B, de 20 de Junho de 2001.
Ora, na apreciação da legalidade desse novo acto, deve atender-se à lei e aos regulamentos em vigor aplicáveis à data em que o mesmo foi praticado, face ao princípio urbanístico tempus regit actum.
Com efeito, é jurisprudência deste Supremo Tribunal que “a legalidade do acto administrativo afere-se pela realidade fáctica existente no momento da sua prática e pelo quadro normativo então em vigor, segundo o princípio «tempus regit actum»” e que a aplicação do referido princípio implica que, “(…) embora tecnicamente a conformidade com os instrumentos de gestão territorial seja aferida na altura de apreciação do projecto de arquitectura, a aplicabilidade ou não de um instrumento de gestão territorial válido nos termos da lei, estende-se em última análise à decisão final de licenciamento .” (Cf., entre outros, os acórdãos deste STA (Pleno da Secção) de 06.02.2002, rec. 37 633 e da Secção de 7-10-2003, recurso 790/03, de 05.05.98, rec. 39 097, de 05.05.98, rec. 43 497 e de 25.03.2009, rec. 648/08)
Improcede, assim, a pretensão dos recorrentes quanto à inaplicabilidade do referido Regulamento do PU e nomeadamente dos seus artº29º e 30º, ao caso sub judicio.
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5. Quanto ao erro na interpretação e aplicação do 30º, nº2 do PU:
Os artº 29º e 30º do Regulamento do PU de São Cosme e Valbom, enquadram-se no seu Capítulo II, que respeita à «Morfologia urbana e uso do solo», mais precisamente na Secção II, que respeita à « Zona residencial do tipo II- Área predominantemente residencial destinada a moradia unifamiliar» e são do seguinte teor:
Artº 29º
Definição
1. São espaços urbanos que se caracterizam por uma ocupação onde predomina a habitação correspondente a tipologia pouco densa (moradia isolada ou geminada), sendo igualmente admissível a instalação de outros tipos e actividades, desde que compatíveis com a função habitacional.
2. A esta secção aplica-se o disposto nos artigos 5º a 23º deste Regulamento.
Artº30º
Tipologia e uso dominantes
1. Esta zona destina-se preferencialmente à construção de habitação uni ou bifamiliar isolada ou geminada, sem prejuízo da localização de outras actividades compatíveis.
2. Poderão ser licenciados outros tipos, designadamente de habitação unifamiliar em banda e multifamiliar, desde que não afectem negativamente a área envolvente, quer do ponto de vista paisagístico quer funcional, permitindo, nomeadamente, a preservação de áreas livres de interesse colectivo, devendo, em qualquer caso, estabelecer uma correcta relação com a tipologia predominante na sua envolvência directa e cumprir cumulativamente as seguintes exigências a especificar em altura própria pela Câmara Municipal:
Melhoria dos acessos locais e, se necessário, ligação à rede viária principal;
Criação de todas as redes e órgãos próprios de infra-estruturas necessários ao bom funcionamento da intervenção;
Criação, no âmbito da própria operação, de áreas de comércio e serviços considerados necessários pela Câmara Municipal.
3. Todas as exigências referidas no número anterior ficarão a cargo do requerente.
A sentença recorrida considerou que o acto impugnado é nulo, nos termos do artº68º do RJUE, por violação do artº. 30º, conjugado com o artº. 29º, ambos do PU.
Depois de salientar os pontos 6º a 11º do probatório supra, que considerou essenciais para a sua decisão e de transcrever o nº1 e 2 do artº30º do Regulamento do PU, a sentença recorrida fundamentou assim a sua decisão:
« (…)
No que toca à morfologia e uso do solo, a edificação licenciada pelo acto recorrido está inserida numa zona residencial do tipo II – área predominantemente residencial destinada a moradia unifamiliar – indo nesse sentido o próprio artº29º, nº1 do Regulamento, que prevê para o local a habitação pouco densa (moradia isolada ou geminada), previsão que logo a seguir foi reiterada pelo teor do nº1 do artº30º do Regulamento – preferencialmente construção de habitação uni ou bifamiliar.
Portanto, segundo o Regulamento o prédio do Recorrido Particular está enquadrado numa área que elege a baixa densidade construtiva, assenta na moradia isolada ou geminada. Significa isto também que o licenciamento de habitação multifamiliar, que escapa à tipologia preferida e dominante, deve obedecer a requisitos apertados, elencados, como já vimos, no nº2 do artº30º do Regulamento.
Em primeiro lugar, a habitação multifamiliar não pode afectar negativamente a área envolvente, quer do ponto de vista paisagístico, quer funcional. Em termos de área envolvente, designadamente, ao nível paisagístico, o prédio do Recorrido Particular está menos recuado que as demais construções de habitação uni e bifamiliar vizinhas, não segue o alinhamento das cérceas dominantes, elevando-se das demais construções limítrofes, ensombrando-as.
Ora, o cenário atrás descrito, que as fotos patentes no auto de inspecção ao local bem demonstram, é suficiente para concluirmos que a habitação multifamiliar licenciada pelo acto recorrido destoa das restantes moradias vizinhas, percebendo-se que apresenta uma manha de implantação em desarmonia com a área envolvente. Do ponto de vista funcional, regista-se que o prédio do Recorrido Particular conta com doze fogos, Tipo 3, o que potencia uma densidade populacional superior à desejada para a uma área de tipologia “ pouco densa” ( cf. artº29º, nº1 do Regulamento).
Além do acima exposto, o nº2 do artº30º do Regulamento, exige “ uma correcta relação com a tipologia predominante na sua envolvência directa”. Uma vez que foi dado como provado que não existe mais habitações multifamiliares na área envolvente à edificação em questão, só podemos concluir que o prédio habitacional do Recorrido Particular é caso único na envolvência directa, não apresentando, com efeito, uma correcta relação com a tipologia dominante, que é, como sabemos, a habitação uni ou bifamiliar.
Seja como for, o licenciamento de habitação multifamiliar deve ainda obedecer ao cumprimento cumulativo das exigências previstas na parte final do nº2 do artº30º do Regulamento, coisa que não se vê ter sido feita pelo Recorrido Público. Antes pelo contrário, exigindo o comando legal acabado de citar a “ criação de todas as redes e órgãos próprios de infra-estruturas necessários ao bom funcionamento da intervenção”, bens e vê que, “ in casu”, à data da prolação do acto recorrido inexistia rede de saneamento para escoamento de esgotos e águas residuais no local onde se insere a construção em causa, o que nos mostra o incumprimento de uma das exigências e, consequentemente, a inviabilidade do licenciamento.
Em suma, o acto recorrido que licenciou a construção da habitação multifamiliar do Recorrido Particular foi proferido em desconformidade com o estipulado nos artº29º, nº1 e 30º, nº1 e 2 do Regulamento do Plano de Urbanização de São Cosme e Valbom.
O artº68º, alínea a) do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação aprovado pelo DL nº559/99 de 16.12, dispõe que « São nulas as licenças ou autorizações previstas no presente diploma que:
a) Violem o disposto em plano municipal de ordenamento do território, plano especial de ordenamento do território (…).».
Assim sendo, o acto recorrido será declarado nulo.»
Os recorrentes jurisdicionais discordam do decidido porque:
- por um lado, entendem que o tribunal a quo errou no julgamento da matéria de facto, porque não tomou em consideração as características da rua onde se situa a edificação em causa e a exacta localização dessa edificação na dita rua, pois, segundo agora alegam, trata-se de uma rua com inclinação, a referida edificação situa-se, num gaveto, no início da rua, atento o seu sentido ascendente, pelo que não obstante se elevar das demais habitações e exceder a volumetria destas, tal não afecta negativamente a área envolvente, do ponto de vista paisagístico.
- por outro lado, consideram que o tribunal a quo só poderia sindicar o acto aqui impugnado quanto à verificação ou não dos requisitos exigidos pelo artº30º, nº2 do Regulamento do PU, no que respeita à afectação, pela edificação em causa, da área envolvente, do ponto de vista paisagístico e funcional, se ocorresse erro grosseiro ou utilização de critério manifestamente desadequado, uma vez que estamos perante matéria da discricionariedade técnica da Administração.
E, começando, naturalmente, pela última questão, cumpre referir que o facto de os requisitos exigidos pelo artº30º, nº2 do Regulamento do PU conterem conceitos indeterminados não significa, como parecem pretender os recorrentes, que a verificação desses requisitos pela Administração caia no âmbito do um seu poder discricionário (que supõe sempre que a Administração possa escolher entre, pelo menos, duas soluções alternativas, tenha, pois, uma opção de escolha entre duas decisões diferentes, que aqui não tem, pois só pode existir uma única solução legal possível para o caso concreto (Vide, a este propósito, o Prof. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, II, p.79 ), antes se trata de um poder vinculado, sem prejuízo de existir alguma liberdade de apreciação no preenchimento desses conceitos, na medida em que tal possa envolver o recurso a regras técnicas, científicas e/ou da experiência comum, mas que também não está excluída da apreciação pelo tribunal em caso de erro, ou de utilização um critério desadequado, ou ainda de violação de princípios fundamentais e da actividade administrativa e não só em caso de erro grosseiro ou critério manifestamente desadequado, como pretendem os recorrentes. - (cf. neste sentido, entre outros, a mais recente jurisprudência do STA constante, por ex., dos acórdãos do STA de 14.10.04, rec. 220/02, de 23.11.05, rec. 1112/04 e de 05.07.07, rec. 351/07 e Cons. Azevedo Moreira, in Revista de Direito Público nº1, p. 67 e segs. e Marcelo Rebelo de Sousa, in Lições de Direito Administrativo, I, 111.)
Aliás, a regra em contencioso administrativo é a de que todos os actos da Administração são passíveis de fiscalização contenciosa, devendo ser excepcionais as possibilidades de subtracção a esse juízo judicial, excepção que, no presente caso, não se justifica, pois o preenchimento dos conceitos indeterminados que integram os requisitos do artº30º, nº2 do PU, para efeitos da decisão deste caso concreto, atento a realidade fáctica existente, não exigia conhecimentos técnicos especiais, sendo certo que, como se vê da fundamentação das respostas aos quesitos, as testemunhas inquiridas, quer dos recorrentes contenciosos, quer da entidade recorrida, eram engenheiros civis, engenheiros técnicos civis e agentes técnicos de arquitectura e engenharia e, portanto, técnicos naturalmente habilitados a esclarecer o tribunal sobre qualquer dúvida na matéria.
Portanto, face ao exposto, bem andou o Mmo juiz ao sindicar a verificação dos referidos requisitos.
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Questão diferente é a de saber se o Mmo. Juiz errou no seu julgamento, por não ter ponderado, como alegam os recorrentes, as características da rua onde se situa a edificação em causa e a sua exacta localização na mesma, o que, a seu ver, levaria a uma conclusão diferente da que o Mmo. Juiz a quo retirou quanto à verificação dos requisitos do artº30º, nº2 do PU.
Só que, além de tais factos (inclinação da rua e localização da edificação em causa num gaveto, no início dela, atento o sentido ascendente,) nunca terem sido alegados nos autos pelos ora recorrentes e ademais terem sido impugnados pelos ora recorridos, nas suas contra-alegações, no que respeita à pretendida localização da edificação, o certo é que, nada evidencia nos autos, nem os recorrentes demonstram, que o Mmo. Juiz a quo não ponderou as características dessa rua e a exacta localização nela da referida edificação, no juízo que formou face à prova produzida nos autos e que o levou a concluir pela não verificação dos requisitos exigidos pelo artº30º, nº2 do PU.
E, pelo contrário, resulta dos autos que o Mmo juiz a quo, na audiência de julgamento, ordenou e presidiu a uma inspecção judicial ao local, precisamente para, como fez constar do seu despacho, « …melhor poder inspeccionar a rua e os prédios aqui em discussão nos autos…» (cf. fls. 668), o que se mostra, de resto, reflectido no respectivo auto de inspecção e nas fotografias a ele anexas (cf. auto de fls. 670/708), as quais apreciou, conjuntamente com a demais prova produzida no processo, designadamente a prova testemunhal, como se vê claramente da fundamentação das respostas aos quesitos constante a fls. 731/734.
Ora, o STA, funcionando como tribunal de apelação, só poderia alterar o julgamento da matéria de facto nos termos limitados do artº712º, nº1 do CPC, conjugado com o artº690ºA do mesmo diploma, que aqui se não verificam.
Finalmente e, do ponto de vista funcional, o que releva para efeitos do licenciamento, não é, naturalmente, o número de pessoas que, concretamente, irão habitar o prédio, como parece pretender o recorrente público, nas suas alegações, mas o seu número previsível. E um prédio com 12 fogos T3, possibilita uma densidade populacional naturalmente muito superior, segundo as regras da experiência comum, à de uma moradia uni ou bi-familiar, isolada ou geminada, que é a tipologia predominante de habitação prevista para a zona residencial aqui em causa e a única existente na área envolvente, como se provou.
Face ao exposto, não resulta demonstrado o desacerto do julgamento da matéria de facto efectuado pelo tribunal a quo, incluindo aqui as ilações retiradas dos factos assentes e, consequentemente o invocado erro na interpretação e aplicação, ao presente caso, do artº 30º do Regulamento do PU, pelo que improcede, também nesta parte, a pretensão dos recorrentes jurisdicionais.
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IV- DECISÃO
Termos em que acordam os juízes deste Tribunal em negar provimento a ambos os recursos jurisdicionais.
Custas pelos respectivos recorrentes.
Lisboa, 20 de Setembro de 2011. – Fernanda Martins Xavier e Nunes (relatora) – Américo Joaquim Pires Esteves – António Bento São Pedro.