Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0340/17
Data do Acordão:10/04/2017
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:ESTRANGEIROS
AFASTAMENTO COERCIVO
FAMILIAR
Sumário:I - Se o recorrente, na revista, não impugnou o entendimento perfilhado pelo acórdão recorrido quando considerou preenchidas as previsões das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 134.º do RJEPSAE (Lei n.º 23/2007, de 4/7, alterada pele Lei n.º 29/2012, de 9/8) e inaplicáveis ao caso os limites das alíneas a) e b) do art.º 135.º, não pode o acórdão ser alterado nessa parte.
II - A vida familiar não tem um valor absoluto, sendo valorada apenas na medida em que foi concretizada nos limites estabelecidos pelo referido art.º 135.º que o acórdão recorrido considerou inaplicáveis no caso concreto.
III - A imposição do afastamento coercivo para o país de que é nacional ao estrangeiro que se considerou ter praticado actos criminosos graves, atentando contra a ordem pública, não viola o princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana.
Nº Convencional:JSTA000P22312
Nº do Documento:SA1201710040340
Data de Entrada:05/02/2017
Recorrente:A...
Recorrido 1:MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:


1. A……………., residente na Av. …………, Lote ……., ……... em Palmela, inconformado com o acórdão do TCA-Sul que, concedendo provimento ao recurso interposto pelo Ministério da Administração Interna da sentença do TAF de Almada, julgou improcedente a acção administrativa especial que intentara contra este Ministério, dele interpôs recurso de revista, tendo na respectiva alegação, formulado as seguintes conclusões:
“1 – A ser mantida a douta decisão em crise, de afastar o ora recorrente do território nacional, o mesmo ficará inapelavelmente privado de contactar, quer com os seus dois filhos biológicos; mas também com a sua companheira e mesmo com os filhos daquela, que já assume como seus;
2 – Por outro lado, relativamente aos filhos biológicos, ainda para mais cidadãos portugueses, o respectivo afastamento do pai não envolveu, como deveria ter acontecido, que os menores tivessem participação no processo, designadamente através de representante legal (as mães intervieram, tão somente como testemunhas);
3 – Por outro lado, é consabida a importância social das questões atinentes ao Direito da Família, considerada esta como célula primordial da Sociedade (vide art.º 36.º da Constituição);
4 – Acresce o facto de a douta decisão, ora em apreciação, estar em contra-ciclo com a generalidade de outras tomadas sobre a mesma matéria, dado que, tradicionalmente, se entende que, quando o pai presta apoio, designadamente económico a menores, deve beneficiar de um estatuto de residente em Portugal, justamente em consideração aos filhos;
5 – Mas, neste caso, entende-se que mesmo esta solução não será líquida, devendo ser ponderado caso a caso, se prevalecerá o interesse público na segurança e na tranquilidade dos cidadãos ou o interesse da estabilidade das famílias;
6 – Ora, para se obter uma melhor aplicação do direito, faz sentido que esta questão seja apreciada e melhor explicitada por Vossas Excelências em douta decisão a proferir;
7 – Neste sentido, deve o presente recurso ser aceite e, a final, julgado procedente;
8 – Para este efeito, o recorrente entende que se deve privilegiar as famílias, não afastando pais, filhos e companheiros quando o interesse dos menores seja salvaguardado;
9 - Mais considera o recorrente que os seus filhos deveriam sempre ser representados no processo, para não recair sobre eles o excessivo ónus de, sem defesa, ficarem absolutamente impossibilitados de conviverem com um dos progenitores;
10 – Finalmente, o recorrente tem a convicção de que devem ser seguidas as regras atinentes ao papel fundamental das famílias no âmbito da Sociedade;
11 – Acresce que o ora recorrente não conhece ninguém em Cabo Verde, nunca lá esteve e, a ser deportado, será cortado qualquer vínculo seguro entre o recorrente e tudo o que diga respeito ao contacto com a família, com amigos ou com quem quer que seja que o possa ajudar, tudo em violação, além de outros, do disposto no art.º 1.º da Constituição Portuguesa que privilegia o respeito pela dignidade da pessoa humana, que é inalienável;
12 – Acresce que a situação familiar do recorrente é analisada, não à data da prolação da decisão, mas por referência aos já longínquos tempos em que o aqui recorrente se encontrava em cumprimento de pena;
13 – Finalmente, o relatório social do recorrente embora apresente diversos problemas apresenta, ainda assim, perspectivas de o aqui recorrente conseguir vencê-los e adotar uma postura afastada da criminalidade”.
O recorrido, Ministério da Administração Interna, contra-alegou, tendo concluído pela improcedência do recurso.
Pela formação a que alude o art.º 150.º, do CPTA, foi proferido acórdão a admitir a revista.
A digna Magistrada do MP, notificada nos termos do art.º 146, do CPTA, não emitiu parecer.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

2. Nos termos do n.º 6 do art.º 663.º do CPC, dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto considerada provada pelo acórdão recorrido.

3. Na acção que intentou, o ora recorrente impugnou o despacho, de 27/2/2013, do Director Nacional Adjunto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que determinara o seu afastamento coercivo do território nacional, com a interdição de entrada no país pelo período de 10 anos.
Por sentença do TAF de Almada, foi essa acção julgada procedente e anulado o despacho impugnado, por o afastamento ter sido determinado por entidade administrativa ao abrigo da al. a) do n.º 1 do art.º 134.º do RJEPSAE (Regime Jurídico da Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional, aprovado pela Lei n.º 23/2007, de 4/7, alterado pela Lei n.º 29/2012, de 9/8) e o A. beneficiar das excepções previstas nas als. a) e b) do art.º 135.º do mesmo diploma, por ter nascido em território português e aqui residir habitualmente e ter dois filhos menores nascidos em Portugal a quem tinha de prestar alimentos.
Esta sentença veio a ser revogada pelo acórdão recorrido que, depois de considerar que estavam preenchidas as previsões das als. a) e b) do n.º 1 do mencionado art.º 134.º e que o A. nunca poderia beneficiar do limite à decisão de afastamento coercivo previsto na al. b) do citado art.º 135.º - por não se ter provado que tivesse filhos menores residentes em Portugal que estivessem a seu cargo e sobre os quais exercesse efectivamente as responsabilidades parentais –, entendeu que, de qualquer modo, nenhuma das alíneas deste preceito lhe era aplicável, dado que praticou actos criminosos graves pelos quais foi condenado e, em consequência, também atentou contra a ordem pública. Julgou ainda não verificada a violação dos artºs. 1.º, 13.º, 15.º, 25.º, 33.º e 36.º, todos da CRP, referindo o seguinte:
“Com efeito, é descabido invocar o art.º 25.º da CRP. O autor é que violou o n.º 1 do art.º 25.º, ao cometer os crimes de roubo e de tráfico de estupefacientes. E a expulsão do autor não configura, obviamente, trato cruel ou desumano.
Por outro lado, não há qualquer discriminação. Não há entre cidadãos estrangeiros (caso do autor), sendo que, dentro dos limites dos artºs. 15.º/1 e 33.º/2 da CRP, estes se referem a estrangeiros em situação regular (cfr. assim GOMES CANOTILHO/V.M., C.R.P. Anot., 4ª ed., pág.531). Não é este o caso do autor.
Já quanto ao direito-dever subjectivo de educar os filhos (cfr. art.º 36º/5 da CRP, artºs. 1877.º ss. do Código Civil e art.º 5.º do Protocolo n.º 7 à CEDH), trata-se, como todos os direitos fundamentais, de um direito não absoluto. No caso presente, está provado que o autor, cidadão estrangeiro que cometeu crimes graves, não educou, nem educa os filhos, que vivem com as suas mães.
E a possibilidade teórica de o vir a fazer não tem maior peso de partida do que o dever do Estado defender a legalidade, a segurança e a ordem pública da sociedade civil nacional (cfr. artºs. 3.º/2 e 27.º/1 da CRP).
Relativamente ao direito de pais e filhos não serem separados, salvo quando os pais não cumpram os seus deveres fundamentais (art.º 36.º/6), trata-se de um direito (não absoluto também) que nasce ou existe desde que a união tenha alguma vez existido e, sobretudo, desde que a expulsão do progenitor implique a expulsão dos filhos menores (cfr. assim o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 232/04). Nenhuma destas limitações existe no caso em apreço.
Com efeito, o Tribunal Europeu dos D.H. considera que as medidas que possam conflituar com o direito à vida familiar têm de ser justificadas por necessidades sociais imperiosas e, além do mais, proporcionais aos fins legítimos prosseguidos. E, como tal, tem-se pronunciado no sentido de considerar como violadoras do art.º 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem medidas de expulsão de estrangeiros com vínculos familiares no país de residência: assim acontece no caso “Moustaquin c. Bélgica” (“Revue des Droits de l’Homme”, vol. 3, n.º 3, 1991, págs. 90 e segs.), bem como no caso “Beldjoudi c. França” (“Revue des Droits de l’Homme”, vol. 5, n.º 1-2, 1993, págs. 40 e segs.).
No caso presente, como os filhos nunca viveram com o autor e vivem com as mães respetivas, que os têm a seu cargo, não há o perigo da consequente expatriação deles para evitar uma separação. Diferente seria se o autor vivesse (ou tivesse vivido, este caso) com os filhos, atento o papel primordial e insubstituível dos pais na educação e acompanhamento dos filhos (cfr. assim Acs. do Tribunal Constitucional n.º 181/97 e 470/99, referentes à medida de expulsão enquanto aplicável a cidadãos estrangeiros que tenham filhos menores de nacionalidade portuguesa com eles residentes em território nacional, que tenham filhos portugueses a seu cargo). Como já se viu, não é este o caso presente.
Não se ignora que se pode retirar do art.º 67.º da CRP o direito à unidade da família e à convivência familiar. Mas, uma vez mais, não sendo tal direito social (e não “direito, liberdade e garantia”) absoluto, também não se ignora que o art.º 33.º da CRP e a Lei 23/2007 demandam a defesa de outros valores constitucionais, como a segurança, a ordem pública e a legalidade.
Ora, se o estrangeiro cometeu crimes graves como os referidos, por que foi condenado a pesada pena de prisão, é justificado e racional que o sistema jurídico não excecione da expulsão o pai estrangeiro a que se refere o proémio do art.º 135.º da Lei 23/2007 “apenas” por este ter filhos menores a cargo das mães, com quem o pai nunca conviveu e que nunca estiveram, nem estão, a cargo dele.
Trata-se de uma ponderação ou sopesamento, habitual na concretização de direitos fundamentais, que, no caso normativo presente, é feita a dois ritmos: primeiro pelo legislador (constituinte e ordinário), depois pela A.P. e pelo juiz.
Em suma, o direito (social) à família, a inserção dos delinquentes, a segurança e a dignidade humanas não foram negados por este ato administrativo. Com exceção da dignidade humana como superprincípio jurídico e ético, o restante referido não tem valor ou peso absoluto e está concretizado nas normas aqui aplicadas da Lei 23/2007, com conta, peso e medida.
A dignidade humana (como dado prévio à Constituição e como valor constitucional: o ser humano como sujeito e não como objeto; cfr. assim GOMES CANOTILHO/V.M., C.R.P. Anot., I, 4.ª ed., págs. 198 ss; PAULO OTERO, Manual…, I, págs. 309 ss e 345-347), também invocada pelo autor de modo vago e genérico, não está aqui em causa, ao se extraditar um cidadão estrangeiro com passado criminoso grave e em situação indocumentada em Portugal, mesmo que tenha nascido no país e tenha aqui filhos com quem não vive”.
Conforme resulta das conclusões da sua alegação, o recorrente, na presente revista, não contesta o entendimento perfilhado pelo acórdão recorrido quando considerou preenchidas as previsões das als. a) e b) do n.º 1 do art.º 134.º e inaplicáveis ao caso as als. a) e b) do art.º 135.º, limitando-se a invocar os seguintes argumentos:
- O seu afastamento dos filhos menores implicaria a participação destes no processo através do representante legal;
- O interesse na estabilidade das famílias deveria prevalecer sobre o interesse público na segurança e na tranquilidade dos cidadãos;
- Nunca esteve em Cabo Verde, nem conhece lá ninguém, implicando a sua deportação o corte dos vínculos que mantém com os familiares e amigos que o poderiam ajudar, em violação da dignidade humana consagrada no art.º 1.º da CRP.
Vejamos.
A obrigatoriedade da participação no processo dos filhos do A. foi suscitada pela primeira vez no presente recurso, de uma forma vaga e genérica, sem enunciação de qualquer suporte argumentativo e sem que da omissão verificada se retirem quaisquer consequências jurídicas.
A mera afirmação genérica sem qualquer enquadramento factual e de direito dessa questão nova e sem que se extraiam consequências integrativas de vícios do acórdão recorrido, não permite considerar essa questão fundamento do recurso, sendo certo que, de qualquer modo, o tribunal sempre estaria impossibilitado de a conhecer, quer por se tratar de matéria nova que não foi objecto de decisão do tribunal “a quo”, quer por se desconhecer a que se referia a participação pretendida, designadamente se respeitaria ao processo administrativo ou ao judicial e se estava em causa a omissão de uma diligência que deveria ter sido efectuada pela entidade administrativa ou uma ilegitimidade processual.
Quanto ao interesse na estabilidade da família, ele mostra-se assegurado pelo RJEPSAE, quando estabelece, no art.º 135.º, limites à decisão de afastamento coercivo.
Assim, porque a vida familiar não tem um valor absoluto, sendo valorada apenas na medida em que foi concretizada nos referidos limites que o acórdão recorrido considerou inaplicáveis ao caso concreto e que nessa parte não foi impugnado pelo recorrente, nunca o interesse na estabilidade da família nos termos em que foi alegado poderia fundamentar a revogação desse acórdão.
Finalmente, quanto ao princípio constitucional do respeito pela dignidade da pessoa humana, condensado no art.º 1.º e inspirador dos direitos fundamentais, não se mostra violado por não se estar perante uma situação negadora dessa dignidade, a qual legitima a imposição do afastamento coercivo do estrangeiro para o país de que é nacional em consequência da prática de actos criminosos graves.
Nestes termos, não pode proceder a presente revista.

4. Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.
Sem custas.

Lisboa, 4 de Outubro de 2017. – José Francisco Fonseca da Paz (relator) – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – António Bento São Pedro.