Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0474/20.3BELLE
Data do Acordão:05/27/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ADRIANO CUNHA
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO
DIREITO DO URBANISMO
DIREITO A INFORMAÇÃO PROCEDIMENTAL
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
LEI APLICÁVEL
Sumário:I – A partir de 1/9/2016, por força da atual redação da alínea l) do nº 1 do ETAF, conferida pelo DL nº 214-G/2015, passou a ser da competência dos tribunais administrativos a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, nesta competência se compreendendo, para além da execução jurisdicional dessas decisões administrativas, a apreciação das impugnações admissíveis (cfr. art. 55º do DL nº 433/82) de decisões das autoridades administrativas proferidas nesse tipo de processos contraordenacionais.
II – Assim, a apreciação da impugnação de uma decisão da autoridade administrativa relativa a pedido de acesso a tais autos contraordenacionais é da competência do juiz dos tribunais administrativos, que decide por despacho irrecorrível, nos termos, “devidamente adaptados”, regulados nos arts. 89º e 90º do Código de Processo Penal, por força do disposto no art. 41º nº 1 do DL nº 433/82.
Nº Convencional:JSTA00071158
Nº do Documento:SA1202105270474/20
Data de Entrada:04/28/2021
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE ALBUFEIRA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Legislação Nacional:ART. 04.º Nº 1, AL. L), do ETAF/2015
ARTS. 32º, 41º, Nºs 1 e 2, 55º e 61º, Nº 1, 89.º, N.º 1, DL N.º 433/82
ARTS. 89º e 90º CPP
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:


I – RELATÓRIO

1. O Ministério Público interpôs recurso para o TCA Sul da sentença do TAF de Loulé de 19/11/2020 (cfr. fls. 49 e segs. SITAF) que julgou procedente a intimação para prestação de informações deduzida pelo Requerente A…………, ao abrigo do art. 104º nº 1 do CPTA, contra o Município de Albufeira para, através do respetivo Presidente da Câmara Municipal, prestar, no prazo de 10 dias, as informações solicitadas.

As informações solicitadas em causa referiam-se ao: “Estado atual do processo de Contra-Ordenação nº 1-228-2019, com indicação do serviço onde o mesmo se encontra, com especificação dos atos e diligências já praticados e do respetivo conteúdo, e daqueles que ainda devam sê-lo, bem como dos prazos aplicáveis a estes últimos”.

2. O TCA Sul, por Acórdão de 4/2/2021 (cfr. fls. 89 e segs. SITAF), negou provimento ao referido recurso interposto pelo Ministério Público e confirmou a sentença proferida pelo TAF de Loulé (ainda que com um voto de vencida).

3. Inconformado, veio o Ministério Público interpor o presente recurso de revista, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (cfr. fls. 104 e segs. SITAF):

«1. O presente recurso de Revista vem interposto pelo Ministério Público do Douto Acórdão proferido em sede do TCA - Sul, em 4 Fevereiro 2021, que julgou improcedente o recurso de Apelação interposto pelo Ministério Público da sentença proferida no TAF de Loulé, em 19 Novembro 2020, no âmbito da qual aquele TAF decidiu, a pedido do A. e Recorrido, a intimação do Município de Albufeira, através do Presidente da respectiva Câmara Municipal a, no prazo de 10 dias, prestar a informação sobre o estado actual do processo de contraordenação nº 1 – 228 – 2019 [colocação de portão e implantação de pilar pelo condomínio do prédio designado por lote …… da Rua ………, em Albufeira, em licenciamento municipal], com indicação do serviço onde o mesmo se encontra, com especificação dos actos e diligências já praticados e do respectivo conteúdo e daqueles que ainda devam sê-lo, bem como dos prazos aplicáveis a estes últimos;

2. Tanto na decisão de 1ª instância, quanto no Douto Acórdão do TCA, ficou claramente consignado o entendimento de que os Tribunais Administrativos detêm a necessária competência para, em sede de fase investigatória nos Autos de Contraordenação, determinar a aplicação do regime jurídico consignado no artigo 82.º e segs. do CPA e 104.º e segs. do Código de Processo nos Tribunais Administrativos;

3. Tal conclusão das duas instâncias fundamenta-se, no entendimento de que a mesma não colide com a imposição expressa de aplicação subsidiária das normas do Código Penal e Código de Processo Penal, conforme regime expressamente consignado no artigo 32º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 Outubro, mormente nas que versam sobre o pedido de informações no âmbito da pendência dos Autos em fase instrutória, especialmente sobre o tipo de diligências e respectivos conteúdos, levada a cabo pelas entidades administrativas;

4. Tal entendimento afigura-se-nos, salvo o devido respeito, manifestamente contrário ao regime geral das contraordenações, às normas de Processo Penal sobre o acesso aos Autos, por manifesta inaplicabilidade do regime consignado no citado artigo 82.º e segs. do CPA, e 104.º e segs. do Código de Processo nos Tribunais Administrativos;

5. Ao decidir no sentido ora impugnado, entende o Ministério Público que o Acórdão objecto do presente recurso incorreu em clamoroso erro de direito, que importa rectificar por esse Colendo Tribunal;

6. Decorre, assim, claramente dos Autos que o thema decidendum da presente Revista assume especial acuidade jurídica, tanto mais que se trata de matéria transversal não só no âmbito do Direito Administrativo Contraordenacional, mas também noutros ramos do Direito, mormente do Processo Penal, matéria essa que denota sérias implicações jurídicas, especialmente no âmbito do acesso aos Autos, maxime do segredo de Justiça;

7. Assim, impõe-se, necessariamente, a intervenção desse Colendo Tribunal no sentido de a respectiva Formação de Juízes proferir decisão que admita o presente recurso de Revista, contribuindo-se, deste modo, para uma necessária e melhor aplicação do Direito, atenta a relevância jurídica subjacente às consequências da decisão tomada pelo TCA;

DO MÉRITO DO RECURSO
8. Como bem se alcança do teor do Douto Acórdão prolatado em sede do TCA e objecto de impugnação pela presente Revista, foi sufragado o entendimento, em consonância com o decidido no tribunal de 1ª instância, de que o pedido formulado pelo A. e Recorrido, no âmbito de Processo de Contraordenação em fase (administrativa) de investigação – pedido de informações acerca do estado e conteúdo material de diligências instrutórias levadas a cabo no âmbito de processo de contra-ordenação a correr os seus termos na Câmara Municipal de Albufeira –, se mostra compatível com o disposto nos art.º 82.º e segs. do CPA, e 104.º e segs. do Código de Processo nos Tribunais Administrativos;

9. Em bom rigor, entende-se que o Processo de Contraordenação não pode ser qualificado como um (mero) procedimento administrativo para efeitos de aplicação do CPA, pois que “o processo de contra-ordenação instruído e decidido pela autoridade administrativa não tem a natureza jurídica de procedimento administrativo na acepção em que este conceito é tomado no art.º 1.º do CPA. Na fase administrativa o processo de contra-ordenação tem por escopo o apuramento da existência de um tipo de ilícito de mera ordenação social, ou seja, da existência “da notícia de uma contra-ordenação”, tendo-se por contraordenação “todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima” – art.º 1.º DL 433/82” (Acórdão TCA Sul, de 24 Abril 2008, Processo n.º 3497/08);

10. Ao invés, e como expressamente resulta do citado Decreto-Lei n.º 433/82 ao direito de mera ordenação social é aplicável, subsidiariamente, o Código Penal e de Processo Penal;

11. Ao contrário do que decorre do entendimento vertido no Douto Acórdão recorrido, um processo de contra-ordenação não é um processo administrativo, nem corporiza um qualquer procedimento administrativo;

12. Assim, salvo melhor opinião desse Colendo Tribunal, seria no âmbito da jurisdição Penal, sob as regras Código de Processual Penal que poderia e deveria, em bom rigor, ser apreciado o pedido efectuado pelo Autor;

13. No âmbito do disposto nos artigos 86.º e 89.º do Código de Processo Penal não está prevista a prestação das informações pretendidas pelo Autor, sendo apenas possível consultar o processo, se o mesmo não estiver em segredo de justiça, e obter cópias ou certidões do mesmo;

14. A Douta decisão ora impugnada ignorou, por completo, o cariz de direito sancionatório que caracteriza o regime das contraordenações, com todas as consequências que daí derivam;

15. O processo das contra-ordenações é um todo que se desdobra por várias fases, não pode o mesmo procedimento ter como direito subsidiário numa fase o Código do Procedimento Administrativo e noutra fase o Código de Processo Penal, o que criaria distorções inaceitáveisvide Parecer PGR de 22 de Fevereiro de 2008, já citado;

16. O disposto no citado artigo 110.º, nº 1, do RJUE, não tem aplicação no caso vertente, ali se prevendo, ao invés, o direito de acesso dos particulares à informação relativamente aos processos de cariz administrativo pendentes e para os quais evidenciem a necessária legitimidade ou interesse – vg. Processos de licenciamento, etc. -, o que, manifestamente, não é o caso dos Processos de Contraordenação;

17. A Douta decisão ora sob recurso violou, de forma clara, os dispositivos legais ora citados, mormente na conclusão seguinte, o que, com todo o respeito, é susceptível de colocar em crise o regime de acesso actos de processo, associado aos Autos de Contraordenação, e que, em sentido lato, se poderá traduzir numa afronta ao princípio do secretismo dos actos de processo, em sede de direito sancionatório;

18. Ao decidir como decidiu, o Douto Acórdão ora recorrido laborou em manifesto erro de direito, consubstanciado na violação do disposto nos artigos 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 Outubro, 86.º e 89.º do Código de Processo Penal e também o disposto nos artigos 82.º e segs. do CPA e 104.º e segs. do CPTA.

Nestes termos,
Impõe-se, necessariamente, a intervenção desse Colendo Tribunal no sentido de, por um lado, a respectiva formação de Exmos. Juízes - Conselheiros proferir decisão que admita o presente recurso de Revista, e, por outro, julgar o presente recurso procedente, revogando-se, em conformidade, o Douto Acórdão sob recurso e contribuindo, assim, esse Colendo Supremo Tribunal Administrativo para uma necessária e melhor aplicação do Direito, atenta a relevância jurídica subjacente às consequências da decisão tomada pelo TCA.

Assim, se fazendo a exigida JUSTIÇA»


4. Notificados o Requerente e o Requerido para, querendo, apresentar contra-alegações (cfr. fls. 126 e 127 SITAF), apenas o Requerido Município de Albufeira veio informar não pretender apresentar contra-alegações neste recurso de revista, mas não deixou de expressar a sua aderência aos termos e fundamentos do Acórdão do TCA Sul recorrido (cfr. fls. 130 SITAF).

5. O presente recurso de revista foi admitido por Acórdão de 8/4/2021 (fls. 139 e segs. SITAF), proferido pela formação de apreciação preliminar deste STA prevista no nº 5 do art. 150º do CPTA, designadamente nos seguintes termos:

«(…) 7. Presente a quaestio juris em discussão nos autos e que se mostra colocada na presente revista, envolvendo a definição da via/meio processual adequados para o assegurar do acesso e obtenção de satisfação de um pedido de informação procedimental apresentado na fase administrativa de processo contraordenacional em matéria urbanística, temos que a mesma reveste de importância fundamental pela sua relevância jurídica e social.

8. Com efeito, a mesma, sendo suscetível de vir a ser repetida e recolocada em casos futuros, envolve análise de matérias de algum melindre e complexidade, revelada/indiciada pelo juízo não unânime que veio a ser firmado no TCA, e que detém implicações claras em termos da realização e tutela do direito de acesso à informação procedimental, mostrando-se carecida de um juízo atualizador por parte deste Supremo Tribunal no contexto da alteração produzida em 2015 com o alargamento do âmbito da jurisdição administrativa às impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.

9. Flui do exposto a necessária a intervenção deste Supremo Tribunal, e daí que se justifique a admissão da revista».


6. Sem vistos, atento o disposto no art. 36º nºs 1 d) e 2 do CPTA, mas com prévia divulgação do projeto de acórdão pelos Srs. Juízes Adjuntos, o processo vem submetido à Conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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II - DAS QUESTÕES A DECIDIR

7. Constitui objeto do presente recurso - como, aliás, resulta dos termos do Acórdão que admitiu a presente revista (cfr. ponto 5 supra) - saber se o Ac.TCAS recorrido, confirmativo da sentença de 1ª instância, julgou bem ao reconhecer, através desta jurisdição administrativa e do meio processual previsto no art. 104º nº 1 do CPTA, e, ainda, com base no regime de acesso à informação procedimental regulado nos art. 82º a 85º do CPA, a procedência do pedido de intimação para prestação de informações formulado nos presentes autos pelo Requerente.
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III – FUNDAMENTAÇÃO

III. A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

8. As instâncias deram como provados os seguintes factos:

«1. No dia 22 de setembro de 2020 foi carimbado, nos serviços do Município de Albufeira, requerimento com o assunto “Pedido de informação sobre o Processo de Contraordenação N° 1-228-2019”, pelo qual A………… pretendia ser “informado, nos termos e ao abrigo das disposições legais referidas nos Pontos 14 e 15, e dentro do prazo legal, sob pena de, uma vez mais, se ver forçado a recorrer ao mecanismo da intimação judicial, sobre o seguinte: Estado atual do processo de Contraordenação n° 1-228-2019, com indicação do serviço onde o mesmo se encontra, com especificação dos atos e diligências já praticados, e do respetivo conteúdo, e daqueles que ainda devam sê-lo, bem como dos prazos aplicáveis a estes últimos” – cfr. requerimento, a págs. 8 a 10 do suporte digital dos autos;

2. No dia 21 de outubro de 2020, foi apresentado o requerimento que deu início ao presente processo – cfr. comprovativo, a págs. 1 a 3 do suporte digital dos autos;

3. Pelo ofício S-CMA/2020/14627, de 02 de novembro de 2020 e referente ao pedido referido em 1), foi o Requerente informado de que “por referência ao pedido de V Exa. datado de 22/09/2020 e que mereceu a nossa melhor atenção, somos a notificá-lo de que sobre o mesmo proferi, a 27/10/2020, Despacho de Intenção de Indeferimento, nos termos e com os fundamentos do parecer emitido a 14/10/2020, cujo teor, na íntegra se transcreve: "Intenção de indeferir, nos termos e com os fundamentos da informação dos serviços. Concede-se ao requerente, no âmbito do direito de audiência prévia, previsto nos art 121 e seguintes do Código do Procedimento Administrativo, o prazo de 10 (dez) dias úteis, contados a partir da receção do presente, para vir, quendo, dizer por escrito o que tiver por conveniente." Mais se dá a conhecer a V. Exa, o referido parecer, que se transcreve na íntegra: "Após análise do processo de contraordenação e, atendendo à fase em que o mesmo se encontra - fase de instrução -, verifica-se que, o processo em apreço contém um conjunto de diligências que visam investigar, determinar a responsabilidade existente ou não da arguida e ainda, recolher provas. Face ao exposto somos de parecer de que não deverá ser permitido esclarecer o requerente do ponto da situação do processo de contraordenação. Podendo apenas, informá-lo que, o processo de contraordenação corre termos nesta Divisão jurídica e de contencioso e que, o mesmo encontra-se em fase de instrução, nomeadamente a reunir esforços para notificar a arguida. Nestes termos, no nosso entender, deverá o pedido ser indeferido” – cfr. ofício, a págs. 30 e 31 do suporte digital dos autos;

4. Por requerimento de 10 de novembro de 2020, o Requerente reiterou o pedido efetuado em 1) – cfr. requerimento, a págs. 39 a 43 do suporte digital dos autos».

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III. B – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

9. Como resulta do ponto 7 supra, cumpre decidir se o Ac.TCAS recorrido, confirmativo da sentença de 1ª instância, julgou bem ao reconhecer, através desta jurisdição administrativa, e do meio processual previsto no art. 104º nº 1 do CPTA, e, ainda, com base no regime de acesso à informação procedimental regulado nos art. 82º a 85º do CPA, a procedência do pedido de intimação para prestação de informações formulado nos presentes autos pelo Requerente.

A presente revista comporta, pois, duas questões a dilucidar: confirmar se a intimação em causa, para prestação de informações, é (como foi entendido) da competência dos tribunais administrativos – e, em caso afirmativo, se deve ser processada através do meio processual previsto nos arts. 104º a 108º do CPTA - sendo que o Recorrente defende que é da competência dos tribunais comuns (criminais); e confirmar se o regime aplicável é (como foi) o previsto nos arts. 82º a 85º do CPA – sendo que o Recorrente defende que deveria ser o regime previsto no CPP.

10. Está em causa, nos autos, um pedido de intimação do Município de Albufeira para a prestação de informação procedimental relativa a um processo de “contraordenação por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo” que corre na respetiva Câmara Municipal.

A informação pretendida é sobre: o “Estado atual do processo de Contraordenação n° 1-228-2019, com indicação do serviço onde o mesmo se encontra, com especificação dos atos e diligências já praticados, e do respetivo conteúdo, e daqueles que ainda devam sê-lo, bem como dos prazos aplicáveis a estes últimos”.

11. Como é sabido, a revisão do ETAF de 2015, operada pelo DL nº 214-G/2015, de 2/10, com efeitos a 1/9/2016, atribuiu aos tribunais administrativos a competência para conhecer das «impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo».

Atento o teor literal desta nova norma – “impugnações judiciais de decisões (…)” – logo se abriu a discussão sobre o real alcance da mesma. Isto é, se a apreciação agora deferida aos tribunais administrativos abrange apenas a impugnação da decisão final do processo contraordenacional (interpretação minimalista ou literal) ou se pretende abranger todas as decisões concernentes à tramitação de tais processos.

A questão colocou-se, desde logo, relativamente à competência para a execução das decisões proferidas nesses processos contraordenacionais, em que um entendimento literal começou por atribuir aos tribunais comuns a respetiva competência, não obstante a nova atribuição legal da competência dos tribunais administrativos para a apreciação da impugnação da decisão final (exequenda).

E, num primeiro momento, várias decisões dos tribunais administrativos – TAFs e TCAs – negaram a competência material da jurisdição administrativa para a execução de coimas e custas aplicadas em processos de contraordenação em matéria de urbanismo sob a argumentação de que aos tribunais administrativos fora apenas conferida competência para conhecer das impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social em matéria de urbanismo, com exclusão dos demais litígios respeitantes a tais contraordenações, designadamente os que respeitam à execução das decisões de aplicação de coimas.

Porém, esta jurisprudência veio a ser negada pelo Tribunal de Conflitos que, através de diversos arestos (v.g., de 11/1/2018, proc. 60/17, de 8/2/2018, proc. 66/17 e de 15/3/2018, proc. 49/17), estabilizou o entendimento contrário, isto é, de que:
«Sendo a jurisdição administrativa e fiscal a competente para conhecer do recurso da impugnação judicial da decisão de aplicação de coima, é igualmente competente para a execução da coima (arts. 89.º, n.º 1, e 61.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27 de outubro)».

Este entendimento do Tribunal de Conflitos fundamentou-se, além do mais, como explicitado, nos arts. 89º nº 1 do DL nº 433/82 [“O não pagamento da coima dará lugar à execução, que será promovida, perante o tribunal competente, segundo o artigo 61º”] e 61º nº 1 do mesmo DL [“É competente para conhecer do recurso o tribunal em cuja área territorial se tiver consumado a infração”], argumentando que «não podendo interpretar-se o art. 61º, nº 1, do DL nº 433/82, sem a norma legal definidora da competência material para o recurso da decisão que aplica a coima no âmbito do ilícito de mera ordenação social, por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, é inadequado limitar o seu âmbito a uma mera regra de competência territorial, sob pena de se perder o sentido útil da remissão consignada no art. 89º, nº 1, do DL n.º 433/82. A lei, com efeito, quis afirmar que o tribunal competente para a execução de coima era o tribunal competente para conhecer do recurso da impugnação da decisão que aplica a coima no âmbito do ilícito de mera ordenação social, nomeadamente por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo».

Posteriormente, em expresso seguimento deste entendimento firmado pelo Tribunal de Conflitos, veio este STA, através do Acórdão nº 4/2020 do Pleno da Secção Administrativa de 7/5/2020 (proc. 19/19.8BESNT-A), uniformizar jurisprudência nos seguintes termos:
«A partir de 1 de setembro de 2016 e para as ações executivas que vierem a ser instauradas em juízo desde aquela data, “ex vi” dos arts. 04º, nº 1, als. l) e n), do ETAF, 157º, nº 5, do CPTA, 61º e 89º do DL nº 433/82, de 27/10, 15º, nº 5, do DL nº 214-G/2015, de 2/10, cabe à jurisdição administrativa a competência para a execução jurisdicional das decisões administrativas que, por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, hajam aplicado coimas e tenham estas sido alvo ou não de impugnação».

12. Note-se que, para além dos indicados artigos 61º nº 1 e 89º nº 1, o DL 433/82 prevê, no seu art. 55º (epígrafe: “Recurso das medidas das autoridades administrativa”), que:
1 - As decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo são suscetíveis de impugnação judicial por parte do arguido ou da pessoa contra as quais se dirigem.
2 - O disposto no número anterior não se aplica às medidas que se destinem apenas a preparar a decisão final de arquivamento ou aplicação da coima, não colidindo com os direitos ou interesses das pessoas.
3 - É competente para decidir do recurso o tribunal previsto no artigo 61.º que decidirá em última instância”.

Ora, daqui resulta que, para além das impugnações (“recursos”) das decisões que apliquem coimas em processos de contraordenações em matéria de urbanismo – como resulta literalmente da atual alínea l) do nº 1 do art. 4º do ETAF - e das execuções de tais decisões (como entendido pelo Tribunal de Conflitos e pelo STA), também há-de competir aos tribunais administrativos a apreciação das impugnações (“recursos”) das decisões e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas, a que se refere este art. 55º do DL 433/82, desde que no âmbito dos mesmos processos de contraordenação em matéria de urbanismo.

É que, determinando o nº 3 deste art. 55º a competência para o conhecimento/decisão de tais impugnações ao “tribunal previsto no art. 61º”, então é, aqui, plenamente aplicável a jurisprudência do Tribunal de Conflitos que fundamentou a competência dos tribunais administrativos para a execução das decisões aplicadoras de coimas no entendimento de que «não podendo interpretar-se o art. 61º, nº 1, do DL nº 433/82, sem a norma legal definidora da competência material para o recurso da decisão que aplica a coima no âmbito do ilícito de mera ordenação social, por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, é inadequado limitar o seu âmbito a uma mera regra de competência territorial».

E, se ali se concluiu que: «A lei, com efeito, quis afirmar que o tribunal competente para a execução de coima era o tribunal competente para conhecer do recurso da impugnação da decisão que aplica a coima no âmbito do ilícito de mera ordenação social, nomeadamente por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo», também, forçosamente, a lei (nº 3 do art. 55º) quis afirmar que o tribunal competente para o conhecimento das impugnações/”recursos” de todas as decisões da Administração no âmbito do processo de contraordenação em matéria de urbanismo (salvas as referidas no nº 2, inimpugnáveis por não colidirem com os direitos ou interesses das pessoas) é, desde 1/9/2016, o tribunal administrativo.

Deste modo, conclui-se que, muito diversamente do que se entendeu em decisões judiciais tomadas logo na sequência da entrada em vigor da alteração de 2015 ao ETAF – em que se interpretou a nova alínea l) do nº 1 do art. 4º de forma literal/minimalista, outorgando à competência dos tribunais administrativos o conhecimento, apenas, das impugnações das decisões aplicativas de coimas nos processo contraordenacionais em questão -, a jurisprudência do Tribunal de Conflitos e do STA veio, depois, corrigir aquele primeiro entendimento, e fê-lo em adoção de uma interpretação daquela norma que aponta, decididamente, no sentido de a competência dos tribunais administrativos abarcar o controlo judicial de todas as decisões tomadas no âmbito de tais processo contraordenacionais.

13. Ainda antes da intervenção jurisprudencial retificativa, por parte do Tribunal de Conflitos e do STA, a que nos referimos, já vozes da doutrina vinham criticando o entendimento literal/minimalista adotado por decisões judiciais na sequência da entrada em vigor da atual alínea l) do nº 1 do art. 4º do ETAF.

Por exemplo, Licínio Martins, veio criticar uma dessas decisões (in CJA nº 126, Nov./Dez./2017, págs. 46 e segs., “Âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contra-ordenações urbanísticas”), onde apontava já para uma mais ajustada interpretação daquela nova norma de competência:
«(… ) ainda que, em termos literais, a alínea l) do nº 1 do art. 4º do ETAF esteja eventualmente expressa de modo incompleto (ao referir-se a impugnação de decisões de aplicação de coimas), o âmbito da jurisdição administrativa é de matéria – contra-ordenações “em matéria de urbanismo” – e não apenas de “blocos”, “segmentos” ou “aspectos” parcelares dela (ou seja, no caso, apenas - e tão-só – a decisão administrativa de aplicação da sanção principal – a coima)».

E, perspetivando as consequências inaceitáveis daquela criticada interpretação literal, referia:
«Adianta-se no art. 55º que se encontra garantido o recurso das medidas das autoridades administrativas: as decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo são suscetíveis de impugnação judicial por parte do arguido ou da pessoa contra a qual se dirijam (por exemplo, pode ser até um terceiro, desde que seja afetado pela medida) (nº 1); para este efeito é competente para decidir do recurso o tribunal previsto no art. 61º, que decidirá em última instância (nº 3).
Se bem entendemos, a consequência, no plano prático e processual, é bem visível: contra a decisão administrativa final (decisão de aplicação de coima e da sanção acessória que também seja aplicada) o arguido dirige-se aos tribunais administrativos, mas já terá de se dirigir a outra jurisdição caso pretenda reagir contra decisões impugnáveis ao longo do procedimento, incluindo para obter uma (eventual) tutela cautelar (…)».

14. No seguimento do sentido da jurisprudência firmada pelo Tribunal de Conflitos e pelo STA, nomeadamente no que toca a uma interpretação mais abrangente da norma de competência da atual alínea l) do nº 1 do art. 4º do ETAF, abarcando o controlo de todas as decisões da administração no âmbito dos processo de contraordenação em matéria de urbanismo – e não, apenas, restrito à decisão final de aplicação de uma coima em tais processos -, não podemos deixar de negar razão ao aqui Recorrente Ministério Público quando defende que, no caso dos autos, de intimação para prestação de informações num tal processo, caberia ao foro criminal, e não aos tribunais administrativos, a respetiva competência (cfr. conclusão 12ª das suas alegações: «Assim, salvo melhor opinião desse Colendo Tribunal, seria no âmbito da jurisdição Penal, sob as regras do Código do Processo Penal, que poderia e deveria, em bom rigor, ser apreciado o pedido efetuado pelo Autor»).

Efetivamente, quer porque, como bem defende Licínio Lopes, a atribuição da competência aos tribunais administrativos outorgada pela atual alínea l) do nº 1 do art. 4º do ETAF não pode ser vista como apenas de “blocos”, “segmentos” ou “aspetos” parcelares do processo contraordenacional em matéria de urbanismo, quer porque a intimação para prestação de informações também se assume, materialmente, aqui, como uma reação à decisão da Administração no âmbito de tal processo, nos mesmos termos do que qualquer outra das referidas e abrangidas pelo art. 55º do DL nº 433/82, não há qualquer razão para, atribuindo aos tribunais administrativos a competência para a impugnação da decisão final aplicativa de coima, a competência para a sua execução e a competência, em geral, para sindicar quaisquer decisões, despachos e demais medidas tomadas ao longo desse processo contraordenacional, ficasse de fora apenas a competência para reagir contra uma alegada falta ou defeituosa prestação de informação devida.

Como salienta Licínio Lopes, também aqui resultaria incompreensível a solução de que o arguido, ou interessado, tivesse que se dirigir aos tribunais administrativos para sindicar, em geral, as decisões tomadas ao longo e no final do processo contraordenacional em causa, mas já tivesse que se dirigir aos tribunais comuns (designadamente, aos criminais, como defendido pelo Recorrente) para sindicar uma atitude ou decisão tomada no mesmo processo contraordenacional relativamente ao seu direito de informação ou de acesso aos autos.

E, de todo o modo, sempre a solução resultaria contrária a uma interpretação conjugada dos arts. 4º nº 1 l) do ETAF e 55º nºs 1 e 3 e 61º nº 1 do DL nº 433/82.

Note-se que, muito embora a alínea l) do nº 1 do art. 4º do ETAF se refira, por si, apenas a “impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo”, o corpo do nº 1 (que integra a norma, iniciando-a) desde logo explicita que a competência em causa se refere à “apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a (…)”, o que leva a concluir que o próprio elemento literal indica, ou pelo menos não contraria, a interpretação abrangente assumida.

É, pois, de confirmar a competência dos tribunais administrativos para dirimir tal litígio relativo à prestação de informações, como entendido pelo TAF de Loulé no caso “sub judice” e confirmado pelo TCA Sul.

Improcede, portanto, o recurso de revista nesta parte (quanto à jurisdição competente).

15. Mas, adiantamo-lo já, se o Recorrente não tem razão ao defender a incompetência dos tribunais administrativos, atribuindo-a aos tribunais comuns (criminais), já entendemos que tem plena razão quando defende que o regime aplicável ao litígio em causa, sobre o direito de acesso à informação, deve ser o regime plasmado no CPP e não – como foi – o contido nos arts. 82º a 85º do CPA.

É que, independentemente da discussão que se possa manter sobre a natureza “administrativa” do processo contraordenacional, a verdade é que a mesma se torna inútil ou imprestável uma vez que a solução da questão aqui em causa não depende dela, mas sim do critério exclusivamente prático seguido pelo legislador. Caso contrário, como é sabido, todos os litígios referentes aos processos contraordenacionais seriam da competência dos tribunais administrativos.

Ora, a verdade é que, atualmente, independentemente da real natureza das atividades ou dos procedimentos, constata-se, como se refere, em tom de crítica à «incoerente e desequilibrada repartição de competências entre a jurisdição comum e a jurisdição administrativa a que por via da revisão do ETAF se chegou», João Raposo (in CJA nº 113, págs. 3 e segs.: “Contencioso contraordenacional e revisão do ETAF”): «Agora temos, de um lado, os tribunais comuns, com competência para todo o contencioso contraordenacional (salvo o tributário), e, do outro, os tribunais administrativos, com competência limitada ao contencioso contraordenacional… do urbanismo».

Mas se é inconsequente a real natureza das atividades ou dos procedimentos, a verdade é que temos, no caso, lei clara que impõe que o regime subsidiário ao DL nº 433/82, aplicável nos processos contraordenacionais, é o regime constante do Código Penal e do Código de Processo Penal.

É o que consta, incontornavelmente, dos arts. 32º e 41º nº 1 do DL nº 433/82:

Em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal” (art. 32º do DL nº 433/82); e

Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal” (art. 41º nº 1 do DL 433/82).

16. Ainda que mantendo em perspetiva que nos referimos, agora, a período anterior a 2015, é de notar que o entendimento, mesmo na jurisdição administrativa, sempre foi o de que o regime aplicável ao acesso à informação em sede de processos contraordenacionais era o previsto no CPP, e não o do CPA.

Seguindo a exposição de Vítor Gomes (in CPA nº 71, de Set./Out. de 2008, págs. 6 e segs., “As sanções administrativas na fronteira das jurisdições. Aspectos jurisprudenciais”):

«(…) 6. No segundo grupo de casos, discutiu-se se o arguido em processo de contra-ordenação tem ou não direito à informação administrativa procedimental, nos termos do art. 268º da CRP e dos arts. 61º a 65º do CPA, a exercer pelo meio previsto nos arts. 104º e segs. do CPTA (cfr. Acs. do TCA-Sul de 29/6/2008, Ps. 3650/08 e 3803/08, e de 10/7/2008, P. 3872/08, no sentido positivo, e de 24/4/2008, P. 3497/08, em sentido contrário).

Numa perspectiva ancorada de que “o processo das contra-ordenações [é] um todo que se desdobra por várias fases, não pode o mesmo procedimento ter como direito subsidiário numa fase o Código do Procedimento Administrativo e noutra fase o Código de Processo Penal (CPP), o que criaria distorções inaceitáveis”, tem-se sustentado (cfr. Parecer da Procuradoria-Geral da República, de 28/2/2008, publicado no Diário da República, II Série, de 7/4/2008) que os termos do acesso aos elementos constantes do processo de contra-ordenações são os previstos para o processo penal supletivamente aplicável. E que os interesses da investigação podem justificar a aplicação no processo contra-ordenacional do regime do segredo de justiça resultante dos nºs 2 e 3 do art. 86º do CPP, nos termos do nº 1 do art. 41º do DL nº 433/82, de 27/10. Imposto o regime de segredo, a autoridade administrativa pode permitir ou indeferir, conforme o caso, o acesso por parte do arguido ao processo, nos termos da parte final do nº 1 do art. 89º do CPP. As decisões administrativas que decretem ou indefiram a sujeição a segredo, ou impeçam o acesso ao processo com fundamento no segredo, são susceptíveis de recurso de impugnação judicial, nos termos do art. 55º do DL nº 433/82, de 27/10. Sujeito o processo ao regime de segredo de justiça, essa situação cessa para o arguido com a notificação para se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre e mantém-se, na sua dimensão externa, até à decisão proferida nos termos do art. 59º do DL nº 433/82, de 27/10, se antes não cessar por se ter esgotado o seu fundamento, a requerimento, ou oficiosamente.

Contra este entendimento argumenta-se que estamos perante um direito atuado num subprocedimento autónomo, ainda que enxertado no procedimento contra-ordenacional, correspondendo ao exercício de um direito fundamental, expressamente consagrado no nº 1 do art. 268º da Constituição, o que só permitirá excluir o acesso do arguido nos termos regulados nos arts. 61º a 65º do CPA. Para esta corrente, só a investigação criminal, e não também a investigação tendente à aplicação de uma sanção administrativa, poderia justificar a restrição (cfr. Ac. do TCA-Sul de 10/7/2008).

Também esta questão foi julgada de relevo fundamental para justificar recurso excepcional de revista, vindo o STA, por Acs. de 1/10/2008, P. 584/08, e de 22/10/2008, P. 583/08, a decidir no sentido de que o direito de acesso aos elementos do processo na fase administrativa do procedimento de contra-ordenação se encontra regulado e assegurado pelos arts. 86º e 89º do CPP, na redacção introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29/8, aplicável subsidiariamente ao processo de contra-ordenação, por força do art. 41º nº 1 do DL nº 433/82, de 27/10, concluindo pela incompetência dos tribunais administrativos para conhecer do pedido de intimação da autoridade administrativa a satisfazer o pedido de informações».

Note-se que esta conclusão final sobre a incompetência dos tribunais administrativos para decidir sobre o acesso à informação em tais processo contraordenacionais era adequada, à altura, antes de 2015/2016, isto é, anteriormente à vigência do atual art. 4º nº 1 l) do ETAF. Atualmente impõe-se solução diferente, como acima dissemos.

Mas, quanto ao regime aplicável, esta jurisprudência, no sentido da aplicação do regime previsto no CPP (arts. 86º e 89º) ao direito de acesso à informação no procedimento contraordenacional, ainda que na fase administrativa, não fazia mais, na verdade, do que reconhecer a imperatividade de tal solução imposta pelo legislador no art. 41º nº 1 do DL 433/82: «Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal».

E é este o regime que continua a impor-se legalmente e a vigorar atualmente.

17. Para além de, como se disse, termos lei incontornável que impõe, no caso, a aplicabilidade subsidiária do Código Penal e do Código do Processo Penal (citados arts. 32º e 41º nº 1 do DL nº 433/82), acresce que este é, em face do direito constituído – e enquanto este não for alterado -, a solução mais adequada.

Não nos podemos esquecer que estão em causa, nos processo contraordenacionais, investigações para-criminais, e que, embora o seu processamento e a aplicação das sanções principais (coimas) e acessórias estejam a cargo de “autoridades administrativas” (cfr. art. 33º do DL nº 433/82), estas, nestes processos, «gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal» (art. 41º nº 2 do mesmo DL), podendo, também, deferir a investigação, no todo ou em parte, «às autoridades policiais» (art. 54º nº 3 do mesmo DL).

18. É verdade que resulta do entendimento exposto a aplicação de regras penais e processuais penais no âmbito de processos contraordenacionais (em matéria de urbanismo) cuja tramitação e decisões judiciais estão, agora, inovatoriamente, postas a cargo dos tribunais administrativos.

Mas esta eventual incongruência é uma consequência incontornável do direito constituído: concretamente, da atribuição da nova competência aos tribunais administrativos, pela versão de 2015 do ETAF, conjugada com o caráter criminal e processual criminal das contraordenações e do respetivo processo tal como legalmente se encontra estabelecido.

E, nesta perspetiva, a incongruência relativamente ao controlo do acesso à informação não é diferente do que se passa relativamente ao controlo das decisões finais aplicadoras de coimas, das respetivas execuções, ou dos diversos despachos, decisões ou demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo contraordenacional a que alude o art. 55º do DL nº 433/82.

Todo este controlo é agora efetuado pelos tribunais administrativos (nos processos contraordenacionais em matéria de urbanismo) segundo as regras do DL nº 433/82 e segundo as regras supletivas do Código Penal e do Código do Processo Penal.

Aliás, por assim ser é que, já no Parecer do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF), de março de 2014, referente à lei de autorização de revisão do ETAF (Lei nº 100/2015, de 19/8) – consultável no site do Parlamento, nos documentos respeitantes à Proposta de Lei nº 331/XII/4 –, se alertava:
«(…) este alargamento, no seu conjunto, em particular o que se prende com a aplicação de coimas “no âmbito do ilícito de mera ordenação social, por violação de normas de direito administrativo em matéria de ambiente, ordenamento do território, urbanismo, património cultural e bens do Estado”, integra matérias totalmente inovadoras para os juízes de contencioso administrativo dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Na verdade, pese embora estejamos perante um tipo de decisões de entidades administrativas, estas têm a particularidade de trazerem à colação, quer a aplicação do Código de Processo Penal quer do Regime Geral das Contra-ordenações, o que implica a prévia formação dos magistrados no âmbito das matérias em causa, sob a égide do CEJ, formação esta que deverá incidir não só sobre os aspectos teóricos, mas também nos aspectos práticos» (sublinhado nosso).

Não se pode, pois, dizer que se apresenta como inesperada ou controversa a aplicação de regras penais ou processuais penais, supletivamente às normas do regime geral das contraordenações, nas decisões inovatoriamente deferidas aos tribunais administrativos no âmbito dos processos de contraordenação em matéria de urbanismo.

19. Refira-se, ainda, que, congruentemente, a jurisprudência da “Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA)” sempre foi no sentido de excluir a aplicação do regime de acesso aos documentos administrativos ao direito de acesso procedimental no âmbito dos processos de contraordenação, durante a sua pendência, ainda que na chamada fase “administrativa”, apenas se aplicando a LADA aos processos findos.

«No que respeita aos processos de contraordenação e respetivo conteúdo, tal como vem sendo dito pela CADA, enquanto estes se encontrarem em curso, o acesso regula-se pelas disposições do Código de Processo Penal (artigo 41.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro) e depois de concluído reger-se-á pela LADA» - Parecer nº 30/2016, de 26/1/2016, Processo nº 531/2015.

«- O acesso a procedimento contraordenacional pendente não se rege pela LADA, antes pelo regime jurídico próprio (Código da Estrada e demais legislação rodoviária complementar ou especial), ao qual se aplica subsidiariamente, o regime geral das contraordenações e o regime do Código de Processo Penal;
- Findo o procedimento rege a LADA (…)» - Parecer n.º 244/2020, de 20/10/2020, Processos nºs 353/2020 e 354/2020;

«- O acesso a procedimento contraordenacional pendente não se rege pela LADA, antes pelo regime jurídico próprio (Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais, aprovada pela Lei n.º 50/2006 de 29 de agosto), ao qual se aplica subsidiariamente o Código de Processo Penal;
- Findo o procedimento, o acesso será regido pela LADA (…)» - Parecer n.º 69/2020, de 21/4/2020, Processos nºs 128/2020 e 167/2020.

20. Note-se que a aplicação de um ou de outro regime, isto é, a opção entre a aplicação do regime previsto nos arts. 82º e segs. do CPA (decidida, no caso, pelas instâncias) e a aplicação do regime previsto nos arts. 86º a 90º do CPP (como, com razão, defende o Recorrente MºPº), pode conduzir a soluções muito diversas, desde logo porque o CPA prevê um direito à informação – direito a ser informado (cfr. nºs 1 e 2 do art. 82º e art. 85º do CPA) – ao lado do direito de acesso aos autos (arts. 83º a 85º do CPA), e o CPP apenas prevê este direito de acesso aos autos, regulado para os sujeitos processuais, ou para terceiros, respetivamente nos seus arts. 89º e 90º, mas já não contempla, contrariamente ao CPA, um direito à informação, no sentido de um direito a obter informações.

Ora, no caso dos presentes autos, conforme a matéria de facto fixada, o Requerente veio, precisamente, solicitar ser informado pela entidade administrativa (sobre o estado do processo, sobre a indicação do serviço onde o mesmo se encontra, sobre os atos e diligências já praticados e sobre o respetivo conteúdo, e ainda sobre os atos e diligências a praticar e respetivos prazos) – direito que se não encontra previsto ou assegurado pelo regime de acesso aos autos aplicável (arts. 89º e 90º do CPP).

Por isso, e bem, tendo em conta este regime aplicável, a entidade administrativa em causa, aqui Requerida, indeferiu o pedido de informação assim formulado, tendo-se limitado a prestar informação ao Requerente sobre o local onde o processo em causa corria termos (Divisão Jurídica e de Contencioso da Câmara Municipal de Albufeira) e que o mesmo se encontrava em fase de instrução, nomeadamente em diligência de notificação da arguida, recusando-se a prestar as demais informações pretendidas, designadamente sobre os atos e diligências efetuadas ou a efetuar e respetivo prazo (cfr. matéria de facto fixada).

Como o Recorrente MºPº corretamente alega, quanto a esta parte (cfr. conclusão 13ª das suas alegações): «No âmbito do disposto nos artigos 86º e 89º do Código de Processo Penal não está prevista a prestação das informações pretendidas pelo Autor, sendo apenas possível consultar o processo, se o mesmo não estiver em segredo de justiça, e obter cópias ou certidões do mesmo».

As instâncias decidiram de modo contrário, no sentido de deverem ser prestadas as informações solicitadas pelo Requerente, mas com base num errado entendimento de aplicação ao caso do regime do CPA.

21. Por último, resta-nos apreciar a questão da aplicabilidade aos litígios sobre o acesso a este tipo de autos contraordenacionais, em matéria de urbanismo, do meio processual “intimação para prestação de informações” regulado nos arts. 104º a 108º do CPTA.

Como vimos, as instâncias entenderam que, sendo a jurisdição administrativa a competente, a via processual da intimação prevista nos arts. 104º e segs. do CPTA seria também a adequada. Pelo contrário, como também vimos, o MºPº Recorrente defende, nesta revista, que aquele entendimento é «manifestamente contrário ao regime geral das contraordenações, às normas de Processo Penal sobre o acesso aos Autos, por manifesta inaplicabilidade do regime consignado no citado artigo 82.º e segs. do CPA, e 104.º e segs. do Código de Processo nos Tribunais Administrativos» (cfr. conclusão 4ª das suas alegações).

Ora, tendo já concluído pela aplicação subsidiária, por clara imposição legal (art. 41º do DL 433/82), do regime previsto no CPP, devem ser as normas deste diploma que hão-de regular quer o regime de acesso, em si próprio, quer o meio de o efetivar, pois tudo ali está regulado e, por isso, de aplicação obrigatória.

Decorre daqui que a alteração legislativa que determinou a passagem para a jurisdição administrativa da competência para a apreciação dos litígios referentes a este tipo de processos contraordenacionais, não tendo bulido com a aplicação subsidiária do regime do CPP, como previsto no nº 1 do art. 41º do DL 433/82, impõe que, para além do regime do direito do acesso aos autos propriamente dito, também a via para efetivar este direito deva ser o ali delineado: os sujeitos processuais (art. 89º) ou terceiro que revele interesse legítimo (art. 90º) pode requerer à entidade administrativa (que seja, no caso, o “dominus” dos autos contraordenacionais) a consulta dos autos bem como a obtenção de cópias ou certidões. Se a entidade administrativa se opuser, o requerimento é presente ao juiz – administrativo, neste caso -, que decide por despacho irrecorrível (cfr. nº 2 do art. 89º).

Nesta conclusão, está pressuposta a “devida adaptação” prevista no nº 1 do art. 41º do DL 433/82, atribuindo-se à “entidade administrativa”, no caso responsável, as referências ao “Ministério Público” constantes dos nºs 1 e 2 do art. 89º do CPP, bem como a referência à “autoridade judiciária” constante do nº 1 do art. 90º do CPP. E, por força do atual art. 40º nº 1 l) do ETAF, deve ser lida como “juiz administrativo” a referência a “juiz” constante do nº 2 do aludido art. 89º do CPP.


22. Face a tudo o exposto, conclui-se não ter razão o Recorrente Ministério Público quanto à, por si, alegada incompetência dos tribunais administrativos para conhecer da pretensão, em causa nos presentes autos, de acesso à informação respeitante a processo de contraordenação em matéria de urbanismo pendente, sendo, porém, de dar razão ao Recorrente quando defende que o regime aplicável ao direito a tal acesso – incluindo o da via processual para tornar este direito efetivo - é o que consta dos preceitos, “devidamente adaptados”, do Código do Processo Penal (arts. 86º a 90º) – por imposição do nº 1 do art. 41º do DL nº 433/82, de 27/10 -, e não o previsto nos arts. 82º a 85º do CPA, pelo que, nesta parte, deve revogar-se o Acórdão do TCA Sul recorrido, e, em consequência, indeferir-se o pedido de informações efetuado pelo Requerente, cuja satisfação se verifica inadmissível pelo aplicável regime do CPP.


*

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202º da Constituição da República Portuguesa, em:

- Conceder parcial provimento ao presente recurso jurisdicional de revista deduzido pelo Ministério Público, revogando-se parcialmente o Ac.TCAS recorrido, e indeferindo-se o pedido de informações efetuado pelo Requerente, nos termos explicitados no ponto 22 supra.

Sem custas.

D.N.

Lisboa, 27 de maio de 2021 – Adriano Cunha (relator, que consigna e atesta que, nos termos do disposto no art. 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13/3, aditado pelo art. 3º do DL nº 20/2020, de 1/5, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Juízes integrantes da formação de julgamento, Conselheiro Carlos Luís Medeiros de Carvalho e Conselheira Maria Benedita Malaquias Pires Urbano).