Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0427/11.2BEBJA 0268/17
Data do Acordão:03/04/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P25663
Nº do Documento:SA2202003040427/11
Data de Entrada:03/15/2017
Recorrente:A........., SA
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1 – O Representante da Fazenda Pública, notificado do acórdão de 6 de Novembro de 2019, vem requerer que seja analisada a verificação de nulidade e, simultaneamente, pedir a sua reforma, tendo concluído do seguinte modo:
A. A decisão aqui tomada constitui uma surpresa uma vez que a solução encontrada nunca foi discutida, muito menos alegada por qualquer das partes nem pelo tribunal a quo, conforme se demonstrou.
B. Pelo que, salvo melhor opinião, foi violado o princípio do contraditório uma que as partes deveriam ter sido ouvidas para o efeito, conforme manda o artigo 665.º, n.º 2 e 3 do CPC aplicável ex vi artigo 2.º do CPPT, o que não se verificou.
C. Esta situação é cominada com nulidade nos termos do artigo 195.º, n.º 1 do CPC, o que, formalmente se alega, com as devidas consequências legais.
Sem conceder,
D. No presente aresto, parece-nos, com todo o respeito, que se verificam duas ordens de situações que constituem uma errónea qualificação jurídica dos factos dados como provados, originando um erro manifesto, como se demonstrou, na determinação da norma aplicável a este caso concreto.
E. o que constitui fundamento para a reforma do presente acórdão nos termos do n.º 2, alínea a) do artigo 616.º e 685.º do CPC o que formalmente se requer por duas ordens de razões que adiante se expõem.
F. Em primeiro lugar, uma vez que as "sinergias que se desenvolveriam em conjunto" entre a Impugnante e a Pirites Alentejanas, seriam aquelas que a B………. (sociedade-mãe do Grupo) previa, ou seja, o relançamento da exploração das minas de Aljustrel e a gestão conjunta das concessões de ……….. (exploração da mina feita pela impugnante) e Aljustrel (exploração da mina feita pela PA) permitisse a criação de vantagens muito significativas.
G. Resulta claro que todo o financiamento cedido pela impugnante à PA (onde se inclui o Papel Comercial) perante a situação de Insolvência da PA cuja cobrabilidade dos créditos seria duvidosa, tinha somente um único objetivo, aquele que a sociedade mãe desenhava para o Grupo.
H. Ou seja, a operação de financiamento à PA foi efetuada no interesse do Grupo e não no interesse da própria impugnante, já que não pode ser entendida como sendo contribuidora para a realização de proveitos ou ganhos financeiros futuros (atendendo à situação de insolvência da PA) ou para a manutenção da sua atividade de exploração de minas (atividade entendida como fonte produtora).
I. E tendo sido o próprio acto de cessão do papel comercial no valor de €50.000.000,00 pelo preço de apenas €1,00, cuja diferença a Impugnante pretende considerar como custo fiscal ao abrigo do artigo 23.º do CIRC foi simultâneo da venda da própria sociedade devedora do crédito por parte da sociedade-mãe, actos que, lembramos, foram qualificados como "indissociáveis, isto é, cada um pressupunha e dependia da existência do outro (cfr. 7. MATÉRIA DE FACTO, PP), fls. 16), só reforça o entendimento de que foi efetuada no interesse do Grupo.
J. De acordo com o autor Rui Morais: "[s]e à assunção do encargo que origina o custo presidiu uma genuína motivação empresarial - no entendimento dos sócios elou gestores da sociedade, os únicos a quem cabe decidir do interesse social -, o custo é indispensável. Quando se deva concluir que o encargo foi determinado por outras motivações (interesse pessoal dos sócios, administradores, credores, outras sociedades do mesmo grupo, parceiros comerciais, etc.), então tal custo não deve ser havido por indispensável.» (negrito nosso, Cfr. RUI DUARTE MORAIS, Apontamentos ao IRC, Coimbra: Almedina, 2007, pp. 85 a 87).
K. Por isso, salvo o devido respeito, o S.T.A., não andou bem quando enquadrou por manifesta errónea qualificação dos factos provados, a referida perda, no artigo 23.º do CIRC uma vez que não se verifica a condição base para ser aceite fiscalmente como custo: a sua indispensabilidade.
L. Em segundo lugar, na presente decisão entendeu-se que a dedução do valor da cessão do papel comercial deve ser deduzida como encargo financeiro no exercício de 2008 à luz do artigo 23.º, n.º 1, al. c) do CIRC.
M. Na nossa opinião, salvo o devido respeito, também pensamos que na previsão da norma invocada não pode enquadrar a situação aqui em causa o que, a nosso ver, também constitui um erro manifesto de aplicação do direito aplicável.
N. Na nossa opinião, na previsão desta norma enquadra-se os custos suportados por uma sociedade relacionados com operações financeiras e não a operação financeira propriamente dita, isto é, por exemplo, comissões bancárias ou registos na CMVM da emissão do papel comercial, ou os juros pagos a título de remuneração do capital emprestado, não o capital propriamente dito.
O. Como se diz na sentença "Sopesado o que nos autos resulta demonstrado e subsumindo tal prova aos pressupostos legais ora enunciados conclui-se que a perda de 50.000.000 € relativa ao capital social da Pirites Alentejanas adquirido pela A……….. e alienado por 1 € decorreu de efectivo prejuízo decorrente da transmissão onerosa verificada a título simbólico por este montante. (cfr. fls. 28).
P. Ou seja, a situação aqui em causa é completamente distinta. Trata-se na nossa opinião de um perdão de um crédito.
Q. Diz-nos a jurisprudência Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (Processo n.º 0963/13 datado de 04.11.2015) que: O perdão de um crédito no âmbito de um acordo particular não permite à sociedade que o concedeu relevar o montante que deixou de receber como custo para efeitos fiscais, a menos que respeite as regras fiscais, seja pela constituição de provisões para créditos de cobrança duvidosa (arts. 34.º e 35.º do CIRC, na redacção em vigor à data), seja pelo regime dos créditos incobráveis (art. 39.º do mesmo Código).
R. Como ficou plenamente demonstrado, nada foi feito nesse sentido pela Impugnante, pelo contrário, lembramos, as suas alegações foram sempre (desenvolvidas em termos de aplicação directa dos princípios da indispensabilidade dos custos assumidos e da prevalência da substância sobre a forma, como se demonstrou.
S. Pelo exposto, salvo melhor opinião, o custo da diferença entre o valor nominal do papel comercial e o valor porque foram alienados não podem ser deduzidos ao abrigo do artigo 23.º, n.º 1, alínea c), porque não se trata de encargo financeiro. Deverá ser qualificado como um perdão de um crédito no âmbito de um acordo particular, como se demonstrou e, assim sendo, sujeito à regulamentação prevista nos artigos 34.º e 35.º ou 39.º do CIRC, que, neste caso concreto, não foi respeitada.
T. o que, constitui, salvo o devido respeito, também um erro manifesto na aplicação do direito e também fundamento para a reforma da decisão que aqui se pede.
U. Assim sendo, a fazenda Pública não se pode conformar com a decisão aqui tomada, pois para além do montante extremamente elevado aqui em causa, o seu sentido pode configurar um precedente, eventualmente seguido em futuros juízos com consequências evidentes e muito significativas em termos do interesse público.
Nestes termos, e nos demais de direito, requer-se a V.Ex.ª que seja declarada procedente a arguição da nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, ou que admitido e apreciado o presente pedido de reforma da presente decisão por erro manifesto de aplicação de direito».

2 – A A…………………, S.A., recorrente nos presentes autos, notificada do requerimento apresentado pelo Representante da Fazenda Pública, vem arguir que inexiste a alegada nulidade, e ainda que não se verificam os pressupostos da reforma do acórdão, tendo concluído do seguinte modo:
A. O requerimento apresentado pela Fazenda Pública, em que esta invoca a nulidade do acórdão dos Autos e requer a sua reforma, é apenas uma tentativa desesperada de evitar o imediato trânsito em julgado do acórdão proferido por este venerando Tribunal no processo em apreço.
B. Este Supremo Tribunal limitou-se a revogar a sentença recorrida por esta ter, mas mal, aplicado à perda decorrente da alienação do papel comercial emitido pela Pirites Alentejanas limitação que se aplica apenas às perdas resultantes da alienação de partes de capital, nos termos alegados pela A…………. no seu recurso, e a, nessa medida, fazer aplicar àquela perda a mesma conclusão alcançada pelo TAF de Beja, já transitada em julgado, quanto à indispensabilidade da perda decorrente da cessão dos demais créditos da A………… sobre a Pirites Alentejanas.
C. Mostra-se, pois, improcedente a nulidade invocada pela Fazenda Pública com base na suposta prolação de decisão surpresa e com recurso ao artigo 665.º do CPC que nem sequer tem qualquer relevância in casu.
D. No que respeita ao pedido, pela Fazenda Pública, de reforma do acórdão dos Autos, subjacente ao mesmo está apenas uma mera discordância do julgado e não qualquer erro palmar ou patente por parte deste douto Tribunal, o que implica imediatamente a recusa do mesmo.
E. Mediante este pedido a Fazenda Pública procura contestar a decisão do acórdão em apreço, mas também, pasme-se, os factos e o direito da decisão de primeira instância quanto à parte em que decaiu e com a qual então se conformou.
F. Com efeito, a Fazenda Pública pretende discutir a questão da indispensabilidade das perdas decorrentes da cessão dos créditos decorrentes dos financiamentos concedidos pela A……….. à Pirites Alentejanas, a qual ficou assente em primeira instância e não foi pela Fazenda Pública atempadamente contestada.
G. Ademais, considerando a decisão deste venerando Tribunal no que respeita à inaplicabilidade da alínea a) do n.º 5 do artigo 23.º do Código do IRC ao caso da perda decorrente da alienação de papel comercial e, ademais, tendo em conta que a indispensabilidade daquela resulta dos factos provados e do enquadramento de direito conferido pelo TAF de Beja, não contestado e somente reafirmado por este Supremo Tribunal à luz do corpo do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC, a reforma do acórdão no que respeita à alínea c) do n.º 1 do artigo 23.º mostra-se inócua.
H. Tudo visto, fundando-se o pedido de reforma ora apresentado pela Fazenda Pública em oposição desta ao que foi julgado pelo TAF de Beja (!) e por este venerando Tribunal, e não em qualquer erro grosseiro ou patente, deve aquele ser, por isso e também por se mostrar totalmente insusceptível de efeito útil, negado, mantendo-se inalterado o acórdão em apreço.
Termos em que inexiste inequivocamente a nulidade arguida, assim como não se verificam os pressupostos de reforma do acórdão, devendo manter-se in totum o acórdão proferido por V. Exas., tudo com as demais consequências legais.»

3 - Cumpre apreciar e decidir, vindo o processo à conferência com dispensa de novos vistos dos Conselheiros adjuntos.
II – Fundamentação

1. A Fazenda Pública no seu requerimento de fls. 997 a 1015 imputa ao acórdão reclamado: i) nulidade, por se tratar de uma “decisão surpresa” (violação da obrigação de ouvir as partes nos termos do disposto no artigo 665.º, n.º 2 e 3 do CPC aplicável ex vi do artigo 2.º do CPPT) e ii) erro na qualificação jurídica dos factos.

Da alegada nulidade por se tratar de uma “decisão surpresa”

2. Importa, em primeiro lugar, esclarecer que a norma que a Reclamante apresenta como fundamento de nulidade – os n.ºs 2 e 3 do artigo 665.º do CPC – é totalmente deslocada da situação em apreço.

Com efeito, aquela norma impõe que sejam ouvidas as partes antes que o Tribunal ad quem, em sede de decisão de recurso e quando conheça em substituição, venha a conhecer de questões de que o tribunal a quo não tenha conhecido, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio. Ora, no acórdão que vem reclamado, não se conhece de qualquer questão que não tenha sido apreciada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, limitando-se a decisão a sufragar um entendimento diverso da sentença daquele tribunal, no âmbito do indeferimento parcial da impugnação judicial deduzida pela A………, quanto à admissibilidade da dedução, a título de custos, das perdas registadas com a alienação do papel comercial emitido pela Pirites Alentejanas.

Não há, pois, o conhecimento de nenhuma questão nova nesta decisão e não havia, por isso, qualquer obrigação de ouvir previamente as partes no âmbito do disposto no artigo 665.º, n.ºs 2 e 3 do CPC.

3. Acrescenta ainda a Reclamante como fundamento da nulidade imputável a “decisão surpresa” o facto de “a solução encontrada nunca [ter sido] discutida, muito menos alegada por qualquer das partes nem pelo tribunal a quo. Desconhece aparentemente a Reclamante que o princípio do contraditório, consagrado no artigo 3.º do CPC, e que está subjacente à “sanção” com que é culminada uma decisão-surpresa, consubstanciar uma garantia das partes perante as situações em que venham a ser fixados e apreciados factos novos ou em que venham a ser suscitadas questões que obstem ao conhecimento do pedido, casos em que as partes podem trazer elementos e argumentos jurídicos relevantes para a decisão de direito que sobre elas o tribunal há-de fazer incidir.

De resto, como sublinha até a A……. – impugnante e recorrente nos autos – da resposta à reclamação, não deixa de ser curioso que a Fazenda Pública, que não apresentou atempadamente as suas contra-alegações no âmbito do recurso, sendo esse o momento processual adequado para exercer o seu direito ao contraditório, tente agora reinventar esse direito processual, “trasvestindo” para o efeito um pedido de nulidade da sentença com fundamento em decisão-surpresa.

Por último, sublinhe-se que o argumento do favorecimento processual do princípio do contraditório, instituído (ou pelo menos reforçado) pelo novo CPC, não se estende (não se pode estender) à fixação do direito aplicável aos factos e à sua mais correcta interpretação quando está em causa, como sucede aqui, exclusivamente, a apreciação de um erro de julgamento relativo à interpretação do direito aplicável à factualidade assente no processo.
Mesmo o mencionado novo contexto ou ambiente em que o CPC inscreve o princípio do contrário não acomoda a amplitude de sentido que pretensamente a Reclamante lhe quer dar [neste sentido v., também, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de Setembro de 2017, no proc. 1427/16], e, sobretudo, não é funcionalmente correcto falar em exercício do direito ao contraditório quanto às tarefas que caracterizam o núcleo essencial da actividade jurisdicional, como é a interpretação e fixação do direito no âmbito da apreciação, em sede de recurso, de um erro de julgamento.

Em suma, é manifesto que o acórdão proferido por este Supremo Tribunal não incorreu em nulidade por violação do princípio do contraditório, i. e., por a sua decisão se poder reconduzir ao conceito jurídico de decisão-surpresa.

Do alegado erro na qualificação jurídica dos factos

4. Alega em segundo lugar a Reclamante que existiu erro manifesto na qualificação jurídica dos factos, o qual consubstancia fundamento para a reforma do acórdão nos termos do n.º 2, alínea a) do artigo 616.º e 685.º do CPC.

5. Ora, o pedido de reforma do acórdão, com fundamento no n.º 2 do artigo 616.º do CPC tem lugar, conforme expressamente prescreve aquele preceito, quando “[N]ão cabendo recurso da decisão (…) [exista] manifesto lapso do juiz”.

E o Supremo Tribunal Administrativo tem afirmado, de forma reiterada, que “[A] possibilidade de reforma de uma decisão judicial, ao abrigo do nº 2 do art. 616º do Código de Processo Civil, tem carácter de excepção, destinando-se unicamente a eliminar lapsos manifestos, erros evidentes, ostensivos, palmares, juridicamente insustentáveis e incontroversos, pelo que não há lugar a reforma de acórdão se o mesmo não padece de manifesto lapso nem na determinação da norma aplicável nem na qualificação jurídica dos factos” (neste sentido, por todos, v. acórdão de 6 de Março de 2014, processo 290/12). Importa, por isso, verificar se o erro que a Reclamante imputa à decisão se pode reconduzir a esta tipologia de “erro evidente, ostensivo e palmar”.

6. E da leitura da argumentação expendida pela Reclamante claramente se infere que não. Estamos apenas perante uma discordância quanto à subsunção jurídica da factualidade ao direito, quer quanto ao recorte dogmático do conceito de “indispensabilidade” de custos no âmbito das relações económico-financeiras dos grupos de sociedades; quer quanto à subsunção da factualidade em apreço na previsão normativa do artigo 23.º do CIRC pela sua qualificação ou não como encargo financeiro.

E as discordâncias quanto ao conteúdo da decisão, assim como os efeitos financeiros delas decorrentes, para as partes cuja pretensão decai na acção, não são aptos a preencher a previsão normativa do n.º 2 do art. 616.º do Código de Processo Civil.

Em suma, é igualmente manifesto que o acórdão proferido por este Supremo Tribunal não contém lapsos manifestos, erros evidentes, ostensivos, palmares, juridicamente insustentáveis e incontroversos, pelo que nada há que reformar quanto à sua decisão.

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em indeferir a requerida arguição de nulidade e o pedido de reforma do acórdão.

Custas pela Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs.


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Lisboa, 4 de Março de 2020. - Suzana Tavares da Silva (relatora) – Paulo Antunes – Francisco Rothes.