Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01391/14
Data do Acordão:06/25/2015
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:AUDIÊNCIA DO INTERESSADO
PRINCÍPIO DO APROVEITAMENTO DO ACTO ADMINISTRATIVO
RECLAMAÇÃO GRACIOSA
RECLAMAÇÃO DE LIQUIDAÇÃO
Sumário:I - Destinando-se a audiência dos interessados a permitir a sua participação nas decisões que lhes digam respeito, contribuindo para um cabal esclarecimento dos factos e uma mais adequada e justa decisão, a omissão dessa audição constitui preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade da decisão, a menos que seja inequívoco que esta só podia, em abstracto, ter o conteúdo que teve em concreto e que, por isso, se impunha aproveitá-la pela aplicação do princípio geral do aproveitamento do acto administrativo.
II - A possibilidade de aplicação do princípio do aproveitamento do acto exige um exame casuístico, de análise das circunstâncias particulares e concretas de cada caso, com vista a aferir se se está ou não perante uma situação de absoluta impossibilidade de a decisão do procedimento ser influenciada pela participação da requerente.
III - Para a formulação do juízo de prognose póstuma, no âmbito de aplicação do princípio do aproveitamento do acto tributário, é irrelevante a procedência ou improcedência dos vícios invocados na impugnação judicial.
IV - O facto de a matéria tributável que serviu de base à liquidação se dever considerar já estabilizada e fixada em procedimento autónomo de avaliação no qual o contribuinte teve oportunidade de participar, não significa, sem mais, que seja dispensável a notificação para exercício do direito de audiência prévia à liquidação pois o direito de audiência não tem como única finalidade a possibilidade de participar na fixação da matéria colectável, antes podendo essa participação (que o direito de audiência visa assegurar) assumir muitos outros domínios da formação da decisão final.
V - Tendo o contribuinte interposto reclamação graciosa da liquidação adicional e neste meio de reacção administrativa tido a oportunidade de se pronunciar sobre a liquidação adicional e sobre todas as questões relativamente às quais lhe deveria ter sido previamente concedida a faculdade de se pronunciar, devemos considerar que ficou sanado o vício de preterição de formalidade legal por omissão de notificação para exercício do direito de audiência prévia à liquidação.
Nº Convencional:JSTA00069271
Nº do Documento:SA22015062501391
Data de Entrada:11/25/2014
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF AVEIRO
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - IMPUGN JUDICIAL.
Legislação Nacional:LGT98 ART60 N1 N2 ART86 N1.
CPA91 ART163 N1.
CPPTRIB99 ART134 N1 N2.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC01071/06 DE 2007/02/15.; AC STAPLENO PROC01374/13 DE 2014/10/15.
Referência a Doutrina:LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM RODRIGUES E JORGE DE SOUSA - LGT ANOTADA E COMENTADA 4ED PAG515.
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 18/14.6BEAVR

1. RELATÓRIO

1.1 A Fazenda Pública (a seguir Recorrente) vem recorrer para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença por que a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, julgando procedente a impugnação judicial deduzida por A……………. (a seguir Recorrido ou Impugnante) na sequência do indeferimento da reclamação graciosa, anulou, com fundamento em preterição do direito de audiência prévia, a liquidação adicional de Imposto de Selo (IS) efectuada relativamente aos imóveis que lhe foram adjudicados em excesso sobre a quota na escritura de partilhas por óbito de sua mãe.

1.2 O recurso foi admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e a Recorrente apresentou as alegações, com conclusões do seguinte teor:

« I – O objecto do recurso

I. Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença proferida nos autos em epígrafe, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A……………. contra a liquidação adicional de Imposto do Selo, datada de 14-05-2013, pretendendo a Fazenda Pública a sua revogação e substituição por decisão que considere tal impugnação totalmente improcedente.

II. O douto Tribunal a quo entendeu anular a liquidação com fundamento em vício de preterição de formalidade legal, por não ter sido o impugnante notificado para exercer o direito de audição previamente à liquidação de ISelo.

III. Assim, as questões decidendas a submeter ao julgamento do Tribunal ad quem consistem em saber se, na situação sub judice:
a) a preterição da audição prévia se pode converter em formalidade não essencial e, em caso negativo,
b) se deveria ter sido aplicado o “princípio do aproveitamento do acto administrativo”.


II – O entendimento do douto Tribunal a quo

IV. A liquidação adicional ficou a dever-se ao facto de, por força da avaliação desencadeada em sede de IMI após a celebração da escritura de partilha, ter sido achada uma matéria colectável superior à inicial.

V. Face a esta factualidade, entendeu o douto Tribunal a quo que a AT deveria, previamente à referida liquidação de ISelo, ter notificado o impugnante para o exercício do direito de audição.


III – Da degradação em formalidade não essencial

VI. Conquanto o direito de audição constitua uma importantíssima garantia de defesa dos administrados, não deixa de ser um direito instrumental podendo, em certos casos, ser dispensado.

VII. Desde logo, importa abordar a questão sob o prisma da relevância limitada dos vícios de forma, i.e., saber se, numa situação concreta como a dos presentes autos, a prática daquele acto (o exercício do direito de audição) reveste ou não um carácter de essencialidade.

VIII. Entende a recorrente que a falta de notificação do impugnante para a audiência prévia constitui uma formalidade que se degradou em não essencial, porquanto

IX. Não deverá ser ordenada a anulação do acto quando “se apure no processo contencioso que, se ela tivesse sido realizada, o interessado não teria possibilidade de apresentar elementos novos nem deixou de pronunciar-se sobre questões relevantes para determinar o conteúdo da decisão final”.

X. É que a liquidação adicional de ISelo impugnada resultou da avaliação aos prédios transmitidos na partilha outorgada pelo impugnante, pelo que

XI. Se tratou de uma liquidação que decorre expressa e inequivocamente da lei (artigo 9.º n.º 4 do CISelo, artigos 12.º n.º 4 regra 11.ª e 14.º do CIMT, artigo 15.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro).

XII. Destarte, tendo o VPT, que serviu de base à liquidação, sido alterado em função da avaliação que os prédios sofreram (nos termos do artigo 14.º do CIMT e do n.º 1 do artigo 15.º), não restaria outra possibilidade à AT que não promover a impugnada liquidação adicional, nos termos do n.º 2 do artigo 31.º do Código do IMT.

XIII. Logo, trata-se de um caso em que, por um lado, a AT se encontrava obrigada, por força da lei, a efectuar aquela liquidação e, por outro, atendendo a que em momento algum o recorrido manifestou qualquer discordância quanto ao quantum da liquidação ou aos seus fundamentos, a sua participação no procedimento decisório redundaria num acto totalmente inútil.

XIV. Por conseguinte, cremos que o acto consubstanciado na liquidação não deveria ter sido considerado inválido e anulado por preterição de formalidade legal.

XV. Porém, mesmo que assim se não entendesse, sempre haveria lugar à aplicação


IV - Do princípio do aproveitamento do acto administrativo

XVI. Com efeito, se atendermos à conexão entre o vício procedimental e o resultado, não faz qualquer sentido anular o acto, visto que, por força da vinculação a que a AT se encontra adstrita neste particular, o novo acto a ser praticado não poderia divergir do anterior (acórdão do STA, de 31.01.2012, processo n.º 017/12).

XVII. Deste modo, “se o tribunal não tiver dúvidas que a decisão tomada pela Administração corresponde à solução imposta pela lei, então, em aplicação dos princípios da eficiência e da «economia de actos públicos», tem o dever de não o anular”.

XVIII. Logo, concluindo-se que, in casu, a reinstrução do procedimento para efeito de audição da recorrida não vai ditar um acto de conteúdo diferente do impugnado ou que, mesmo com conteúdo idêntico, possa haver qualquer vantagem resultante da anulação do acto, tem aqui plena aplicabilidade o invocado princípio do aproveitamento do acto administrativo, o qual conduzirá a que a liquidação ora impugnada seja mantida na ordem jurídica.


V - Da caducidade do direito à liquidação

XIX. Embora a impugnante tenha invocado a caducidade do direito à liquidação, tratou-se de um vício cujo conhecimento ficou prejudicado em virtude de o douto Tribunal a quo ter anulado a liquidação pela aludida preterição de formalidade legal.

XX. No entanto, atendendo à possibilidade de o douto Tribunal ad quem fazer uso do preceituado no n.º 2 do artigo 665.º do CP Civil, sempre se dirá que,

XXI. Constituindo-se a obrigação tributária no momento da assinatura do contrato (escritura de partilhas, em 27/02/2007), alega o impugnante que a liquidação adicional ocorreu mais de quatro anos depois da transmissão, verificando-se a caducidade do direito de liquidar tal imposto.

XXII. Porém, a liquidação adicional de imposto poderá realizar-se até decorridos 4 anos contados da liquidação a corrigir, ou seja,

XXIII. O prazo de caducidade de 4 anos conta-se, não desde a data da transmissão (27/02/2007), mas desde a data da liquidação a corrigir (25/06/2009).

XXIV. Logo, tendo a liquidação agora impugnada sido emitida em 14/05/2013 e notificada ao impugnante em 17/05/2013, foi integralmente respeitado o prazo de caducidade de 4 anos previsto na lei.

XXV. Deste modo, em face do exposto, incorreu o douto Tribunal a quo em erro de julgamento da matéria de direito, tendo sido violado o disposto no artigo 60.º da LGT, bem como o artigo 135.º do CPA, devendo tais normas ser aplicadas e interpretadas no sentido de que a falta de notificação para o direito de audição pode degradar-se em formalidade não essencial ou, ainda que assim não seja, tal não impede a aplicação do princípio do aproveitamento do acto administrativo.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser considerado procedente, revogando-se a douta decisão por erro de julgamento de direito e substituindo-a por outra que considere a impugnação totalmente improcedente, assim se fazendo JUSTIÇA».

1.3 O Impugnante não contra-alegou.

1.4 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação: «Mantém-se a posição assumida a fls. 41, em face de pese embora não ter sido dada oportunidade à audição antes da liquidação, não resultar qualquer elemento no sentido de não ser de aproveitar o acto».
A fls. 41, a Procuradora da República junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro pronunciou-se pela improcedência da impugnação judicial nos seguintes termos: «O Ministério Público concorda, na íntegra, com a posição assumida pela AT, na contestação de fls. 27-33 dos autos, a cujos fundamentos aderimos, pelo que nos dispensamos de os enumerar, dando-os por integralmente reproduzidos, para todos os efeitos legais».

1.5 Colheram-se os vistos dos Juízes Conselheiros adjuntos.

1.6 A questão que cumpre apreciar e decidir é a de saber se o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro decidiu correctamente ao anular a liquidação com fundamento em violação do direito de audiência prévia à liquidação ou se, como sustenta a Recorrente, deveria fazer-se funcionar o princípio do aproveitamento do acto, o que, como procuraremos demonstrar, passa por indagar se estão verificados os pressupostos para o funcionamento desse princípio.


* * *

2. FUNDAMENTOS

2.1 DE FACTO

A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

«1- Por carta datada de 15.05.2013 foi o impugnante notificado para proceder ao pagamento do imposto de selo ora em discussão nos termos constantes de fls. 6 do PA e que aqui se dá por reproduzida, cujos extractos a seguir se transcrevem: “(...) Fica V. Exa. por este meio notificado, (.. .) para, (… ) efectuar o pagamento da quantia de € 12.212,46, sendo € 10.115,82 de IMT e de € 2.096,64 de IMPOSTO DE SELO, liquidada com base na escritura de partilhas, correspondente ao excesso de imóveis sobre a quota parte do adquirente, devido nos termos da alínea c) do n.º 5 do artigo 2.º do já citado diploma legal. Partilha por óbito de B….. (…)”.

2- Dá-se aqui por reproduzida a escritura de partilha celebrada em 27.02.2007 e constante do PA de fls. 8 a 13.

3- Dá-se aqui por reproduzida a demonstração da liquidação do imposto de selo ora impugnada e constante do PA a fls. 16.

4- Contra a liquidação identificada em 1), o impugnante apresentou reclamação graciosa nos termos constantes de fls. 2 a 5 do PA e que aqui se dão por reproduzidas.

5- A reclamação graciosa referida em 4) foi indeferida por despacho proferido em 13.12.2013, cfr. fls. 18 a 23 do PA e que aqui se dão por reproduzidas».


*

2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, com fundamento em preterição do direito de audiência prévia, julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A…………… na sequência do indeferimento da reclamação graciosa que deduziu contra a liquidação adicional de IS que lhe foi efectuada relativamente aos prédios que lhe foram adjudicados em excesso sobre a sua quota na escritura de partilhas por óbito de sua mãe.
Como se retira da escritura de partilhas e da demonstração da liquidação, este acto tributário teve origem na alteração da matéria tributável operada na sequência do procedimento de avaliação dos referidos imóveis [avaliação efectuada ao abrigo do disposto no art. 15.º, n.ºs 1 e 2 («1. Enquanto não se proceder à avaliação geral, os prédios urbanos já inscritos na matriz serão avaliados, nos termos do CIMI, aquando da primeira transmissão ocorrida após a sua entrada em vigor.
2. O disposto no n.º 1 aplica-se às primeiras transmissões gratuitas isentas de imposto do selo, bem como às previstas na alínea e) do n.º 5 do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo, ocorridas após 1 de Janeiro de 2004, inclusive».
Estas disposições legais foram ulteriormente revogadas pelo art. 5.º da Lei n.º 60-A/2011, de 30 de Novembro.), do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, diploma que aprovou o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI)], da qual resultou um valor patrimonial tributário (VPT) superior ao declarado na escritura, e foi efectuado ao abrigo do disposto no art. 9.º, n.º 4 («À tributação dos negócios jurídicos sobre bens imóveis, prevista na tabela geral, aplicam-se as regras de determinação da matéria tributável do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT)».), do Código do IS (CIS), e dos arts. 12.º, n.º 4, regra 11.ª («Nas partilhas judiciais ou extrajudiciais, o valor do excesso de imóveis sobre a quota-parte do adquirente, nos termos da alínea c) do n.º 5 do artigo 2.º, é calculado em face do valor patrimonial tributário desses bens adicionado do valor atribuído aos imóveis não sujeitos a inscrição matricial ou, caso seja superior, em face do valor que tiver servido de base à partilha».), e 14.º, n.º 1 («Quando houver de proceder-se à avaliação de bens imóveis, à discriminação ou à destrinça de valores patrimoniais tributários de prédios já inscritos na matriz, todas as diligências, procedimentos e critérios de avaliação serão os estabelecidos no CIMI».), e 31.º, n.º 2, do CIMT («Quando se verificar que nas liquidações se cometeu erro de facto ou de direito, de que resultou prejuízo para o Estado, bem como nos casos em que haja lugar a avaliação, o chefe de finanças promove a competente liquidação adicional», na redacção anterior à que lhe foi dada pelo art. 97.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro.).
A sentença, após tecer diversos considerandos em torno do direito de audição prévia, concluiu que no caso sub judice – de liquidação adicional de IS – o art. 60.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT), impunha que o ora Recorrido fosse notificado para o exercício daquele direito, não ocorrendo circunstância alguma daquelas que n.º 2 do mesmo artigo considera susceptíveis de determinar a dispensa da audiência. Assim, porque a AT não lhe concedeu a possibilidade de exercício daquele direito, considerou verificar-se a preterição de uma formalidade essencial, a determinar a anulação da liquidação.
A Fazenda Pública discorda da sentença; não porque não aceite que foi preterido o direito de audiência prévia, mas porque entende que, no caso, se verificam os pressupostos para que a omissão da formalidade se degrade em não essencial, fazendo-se funcionar o princípio do aproveitamento do acto que, note-se, a sentença recorrida não ponderou. Considera, assim, que, não havendo dúvida de que a actuação da AT ao proceder à liquidação adicional impugnada corresponde à solução imposta por lei e de que o novo acto a praticar (na sequência da anulação decretada) não poderia divergir do que foi anulado, deveria fazer-se funcionar aquele princípio, com a consequente manutenção na ordem jurídica do acto impugnado.
Assim, a questão que se coloca é apenas a de saber se, como alega a Recorrente, não devem reconhecer-se à reconhecida omissão de pronúncia efeitos invalidantes da liquidação adicional impugnada por estarem verificados os pressupostos do funcionamento do princípio do aproveitamento do acto.

2.2.2 DO PRINCÍPIO DO APROVEITAMENTO DO ACTO E RESPECTIVA APLICABILIDADE AO CASO SUB JUDICE

A doutrina e a jurisprudência têm vindo a acolher o princípio do aproveitamento do acto – princípio que não tem suporte directo em disposição legal alguma, mas que assenta no entendimento de que não se justifica a anulação de um acto administrativo que foi praticado no exercício de poderes vinculados e está de acordo com os pressupostos fixados na lei –, nos termos do qual se admite que a falta de audiência dos interessados, quando obrigatória, possa não conduzir à anulação do acto final do procedimento (in casu a liquidação adicional de IS), anulação que é a sua consequência, de acordo com o previsto no n.º 1 do art. 163.º do Código do Procedimento Administrativo («São anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas aplicáveis, para cuja violação se não preveja outra sanção».). Essa omissão nem sempre conduzirá à anulação, «designadamente não a justificando nos casos em que se apure no processo contencioso que, se ela tivesse sido realizada, o interessado não teria possibilidade de apresentar elementos novos nem deixou de pronunciar-se sobre questões relevantes para determinar o conteúdo da decisão final, ou acabou por ter oportunidade de pronunciar-se, em procedimento de segundo grau (reclamação graciosa ou recurso hierárquico), sobre questões sobre as quais foi indevidamente omitida a audiência no procedimento de primeiro grau» (DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, Encontro da Escrita, 4.ª edição, anotação 15 ao art. 60.º, págs. 515 e segs.).
«Com efeito, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo tem formado uma sólida orientação no sentido de que os vícios de forma não impõem, necessariamente, a anulação do acto a que respeitam, e que as formalidades procedimentais essenciais se podem degradar em não essenciais se, apesar delas, foi dada satisfação aos interesses que a lei tinha em vista ao prevê-las. Consequentemente, e tendo em conta que a audiência prévia dos interessados não é um mero rito procedimental, a formalidade em causa (essencial) só se podia degradar em não essencial (não invalidante da decisão) se essa audiência não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, e se se impusesse, por isso, o aproveitamento do acto – utile per inutile non viciatur. O que exige um exame casuístico, de análise das circunstâncias particulares e concretas de cada caso» (Cfr. o acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 22 de Janeiro de 2014, proferido no processo n.º 441/13, publicado no Apêndice ao Diário da República de 7 de Outubro de 2014 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2014/32410.pdf), págs. 13 a 20, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/212bcafe7f4d180f80257c6f004ea9c0?OpenDocument.).
Como também ficou dito no acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Fevereiro de 2007, proferido no processo n.º 1071/06 (Publicado no Apêndice ao Diário da República de 14 de Fevereiro de 2008
(https://dre.pt/application/dir/pdfgratisac/2007/32210.pdf), págs. 386 a 392, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/3d268a41bfe236798025728f0050532e?OpenDocument.), «[à] luz de tal princípio [do aproveitamento do acto], deverá entender-se que não se justifica a anulação, apesar da preterição do direito de audição, nos casos em que se apure no processo contencioso que, se a audiência tivesse sido realizada, o interessado não teria possibilidade de apresentar elementos novos nem de se pronunciar sobre questões relevantes para determinar o conteúdo da decisão final sobre as quais não tivesse já tido oportunidade de se pronunciar. Mas, apenas nessas situações em que não se possam suscitar quaisquer dúvidas sobre a irrelevância do exercício do direito de audiência sobre o conteúdo decisório do acto pode ser efectuada aplicação daquele princípio».
Vejamos:
No caso sub judice o acto impugnado é uma liquidação adicional de IS em que a AT se limita a aplicar a taxa correspondente à matéria colectável apurada na sequência da avaliação dos prédios que foram objecto da escritura de partilha, avaliação em que o ora Recorrido teve oportunidade de participar, motivo por que a matéria colectável se há-de ter como estabilizada. Na verdade, a mesma foi fixada em procedimento autónomo para fixação do VPT dos imóveis, não havendo notícia de que aí não tenha sido respeitado o direito de audiência, e a fixação desse valor fica sujeita a impugnação judicial autónoma [cfr. art. 134.º, n.ºs 1 e 2, do CPPT («1. O actos de fixação dos valores patrimoniais podem ser impugnados, no prazo de 90 dias após a sua notificação ao contribuinte, com fundamento em qualquer ilegalidade.
2. Constitui motivo de ilegalidade, para além da preterição de formalidades legais, o erro de facto ou de direito na fixação».) e art. 86.º, n.º 1, da LGT («A avaliação directa é susceptível, nos termos da lei, de impugnação contenciosa directa». )].
É certo, pois, que o Recorrido não poderia, em sede de audiência prévia à liquidação, questionar a matéria tributável ou, como diz a Recorrente, o quantum da liquidação. Mas não é por isso que, sem mais, poderemos ser levados à conclusão de que in casu é de aplicar o princípio do aproveitamento do acto.
Se é certo que «este princípio apenas poderá ser aplicado em situações em que não se possam suscitar quaisquer dúvidas sobre a irrelevância do exercício do direito de audiência sobre o conteúdo decisório do acto, o que conduz, na prática, à sua restrição aos casos em que não esteja em causa a fixação de matéria de facto relevante para a decisão» (Cfr. DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, ob. e loc. cit.), isso não significa necessariamente que, nessas situações, a audiência prévia não tenha utilidade alguma.
Como afirmou já este Supremo Tribunal Administrativo, «o direito de audiência não tem como única finalidade a possibilidade de participar na fixação da matéria colectável, antes podendo essa participação (que o direito de audiência visa assegurar) assumir muitos outros domínios da formação da decisão final» (Cfr. o acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Outubro de 2014, proferido no processo n.º 1374/13, ainda não publicado no jornal oficial, mas disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/29e75cff6637cdef80257d7800526d92?OpenDocument.).
A pedra-de-toque para a aplicação do referido princípio deve ser, isso sim, a insusceptibilidade de a participação do interessado influenciar a decisão final, seja no seu sentido seja nos seus fundamentos.
Na verdade, enquanto manifestação do direito de participação, constitucionalmente consagrado ( Cfr. art. 267.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, que reza: «O processamento da actividade administrativa será objecto de lei especial, que assegurará a racionalização dos meios a utilizar pelos serviços e a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito».), a audiência prévia destina-se a assegurar esse direito, que deve poder exercer-se não só sobre a quantificação da matéria tributável, mas também sobre todas as outras questões de facto e de direito susceptíveis de influir na decisão do procedimento.
Note-se ainda que nem sequer pode argumentar-se a favor do aproveitamento do acto com a natureza dos vícios invocados em sede de impugnação judicial ou sequer com a sorte que tal invocação venha a merecer. Como também já disse este Supremo Tribunal Administrativo, «[n]ão será pelos fundamentos invocados em sede de impugnação contenciosa do acto que se poderá aferir da relevância ou não do exercício do direito de audiência sobre o conteúdo decisório do acto, mas antes pela sua susceptibilidade de influir sobre o conteúdo decisório do acto, motivo por que aquele direito não poderá deixar de ser assegurado sempre que não seja de afastar a possibilidade de a decisão do procedimento tributário ser influenciada pela intervenção do interessado» e, se é certo que a aplicação do princípio do aproveitamento do acto implica necessariamente um juízo a posteriori, «este deve ser um juízo de prognose póstuma, pelo que não pode nem deve ser influenciado pela improcedência dos demais vícios (para além da preterição do direito de audiência) invocados no processo em que o acto foi impugnado, sob pena de esvaziamento do direito de participação e de impossibilidade prática de verificação do vício resultante da preterição desse direito» (Cfr. o já citado acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Outubro de 2014, proferido no processo n.º 1374/13.).
Isto não significa, no entanto, que a sentença recorrida mereça confirmação.
Merecê-la-ia, a nosso ver inequivocamente, caso o acto impugnado fosse simplesmente a liquidação adicional de IS. Mas, não podemos olvidá-lo, a presente impugnação judicial foi deduzida na sequência do indeferimento da reclamação graciosa que o ora Recorrido deduziu contra aquele acto tributário.
Como judiciosamente observam DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, «Poderá também considerar-se convalidado o acto primário que enferme de vício de violação do direito de audição se o interessado veio a utilizar meios de impugnação administrativa (reclamação graciosa ou recurso hierárquico) e neles acabou por ter oportunidade de se pronunciar sobre questões sobre as quais foi indevidamente omitida a audiência no procedimento de primeiro grau. Em situações deste tipo, quer o acto primário tenha sido mantido quer tenha sido revogado e substituído pelo acto de segundo grau, a decisão administrativa final acaba por ser o acto de segundo grau, pelo que deverá ser em relação a este acto que deverá aferir-se se o contribuinte teve ou não oportunidade de participar na sua formação. Porém, se a reclamação graciosa e o recurso hierárquico são facultativos e o interessado impugna contenciosamente o acto primário, não ocorrerá qualquer convalidação, subsistindo o vício de preterição do direito de audição, se o acto primário enfermava dele. Isto é, não é apenas por o interessado ter a possibilidade de impugnar administrativamente o acto primário, mas apenas quando tenha deduzido efectivamente uma impugnação e nela se tenha pronunciado sobre as questões sobre as quais era necessário dar-lhe oportunidade de se pronunciar, que se pode considerar convalidado o acto, por ter sido atingida, antes de ser concluída a actividade administrativa, a finalidade visada por lei com a concessão daquele direito» (Ob. e loc. cit.).
Ou seja, porque o ora Recorrido interpôs reclamação graciosa da liquidação adicional e neste meio de reacção administrativa teve a oportunidade de se pronunciar sobre a liquidação adicional e sobre todas as questões relativamente às quais lhe deveria ter sido previamente concedida a faculdade de se pronunciar, devemos considerar que ficou sanado o vício de preterição de formalidade legal por omissão de notificação para exercício do direito de audiência prévia à liquidação. Na verdade, parafraseando os citados Autores, podemos afirmar que a decisão administrativa final acaba por ser o acto de segundo grau (por que foi decidida a reclamação graciosa), pelo que deverá ser em relação a este acto que deverá aferir-se se o contribuinte teve ou não oportunidade de participar na sua formação.
Pelo que deixámos dito, entendemos que a sentença recorrida, que anulou a liquidação adicional impugnada com fundamento na preterição do direito de audiência, não fez correcto julgamento, pelo que, concedendo-se provimento ao recurso, será revogada.
Na improcedência desse vício, resta para apreciação o vício de caducidade do direito à liquidação invocado pelo ora Recorrido na petição inicial e que a sentença, implicitamente, deu como prejudicado (Salvo o devido respeito, atento o disposto no art. 124.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do CPPT, a sentença deveria ter começado por apreciar a invocada caducidade do direito à liquidação, quer porque foi esse vício que o Impugnante invocou em primeiro lugar (sendo que a preterição de formalidade legal por preterição do direito de audiência apenas foi invocada a título subsidiário, como resulta inequivocamente do facto dessa invocação, na petição inicial, surgir só depois da alegação tendente a demonstrar a caducidade do direito de liquidar e precedida da expressão «Sem conceder»), quer porque o seu conhecimento prioritário conferiria ao Impugnante uma mais eficaz tutela dos seus direitos (na medida em que, ao contrário do vício por preterição de formalidade legal, obstaria à renovação do acto impugnado).).
Devem, pois, os autos regressar à 1.ª instância, a fim de aí, após fixação da factualidade pertinente, ser apreciada a questão da caducidade do direito à liquidação.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - Destinando-se a audiência dos interessados a permitir a sua participação nas decisões que lhes digam respeito, contribuindo para um cabal esclarecimento dos factos e uma mais adequada e justa decisão, a omissão dessa audição constitui preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade da decisão, a menos que seja inequívoco que esta só podia, em abstracto, ter o conteúdo que teve em concreto e que, por isso, se impunha aproveitá-la pela aplicação do princípio geral do aproveitamento do acto administrativo.
II - A possibilidade de aplicação do princípio do aproveitamento do acto exige um exame casuístico, de análise das circunstâncias particulares e concretas de cada caso, com vista a aferir se se está ou não perante uma situação de absoluta impossibilidade de a decisão do procedimento ser influenciada pela participação da requerente.
III - Para a formulação do juízo de prognose póstuma, no âmbito de aplicação do princípio do aproveitamento do acto tributário, é irrelevante a procedência ou improcedência dos vícios invocados na impugnação judicial.
IV - O facto de a matéria tributável que serviu de base à liquidação se dever considerar já estabilizada e fixada em procedimento autónomo de avaliação no qual o contribuinte teve oportunidade de participar, não significa, sem mais, que seja dispensável a notificação para exercício do direito de audiência prévia à liquidação pois o direito de audiência não tem como única finalidade a possibilidade de participar na fixação da matéria colectável, antes podendo essa participação (que o direito de audiência visa assegurar) assumir muitos outros domínios da formação da decisão final.
V - Tendo o contribuinte interposto reclamação graciosa da liquidação adicional e neste meio de reacção administrativa tido a oportunidade de se pronunciar sobre a liquidação adicional e sobre todas as questões relativamente às quais lhe deveria ter sido previamente concedida a faculdade de se pronunciar, devemos considerar que ficou sanado o vício de preterição de formalidade legal por omissão de notificação para exercício do direito de audiência prévia à liquidação.


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e ordenar que os autos regressem à 1.ª instância, a fim de aí ser conhecida a questão respeitante à invocada caducidade do direito à liquidação.

Sem custas.


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Lisboa, 25 de Junho de 2015. - Francisco Rothes (relator) – Fonseca Carvalho – Casimiro Gonçalves.