Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0737/17
Data do Acordão:11/08/2017
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO
FALTA DE ENTREGA DE IMPOSTO
Sumário:Não incorre em erro de julgamento a decisão recorrida que, perante a multiplicidade de processos semelhantes em que figura como arguida a recorrente, determina que o Serviço de Finanças apure da possibilidade de se verificar “contra-ordenação continuada”, pois que nem a natureza do imposto não entregue (IVA), nem o disposto do artigo 25.º do RGIT, in limine exclui tal possibilidade.
Nº Convencional:JSTA000P22468
Nº do Documento:SA2201711080737
Data de Entrada:06/19/2016
Recorrente:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............, LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

A Fazenda Pública, inconformada, recorre da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, datada de 15.07.2016, que anulou a decisão administrativa de aplicação de coima a "A…………, Lda.", para efeitos de ponderação de uma pena única a determinar em função do regime de infracção continuada.

Alegou, tendo concluído;

A. Reportam-se as infracções sindicadas pela Recorrida à prática dos mesmos factos, a saber: falta de pagamento de imposto liquidado e não entregue nos cofres do Estado, correspondente a IVA que por aquela foi apurado na decorrência da sua actividade comercial.

B. Tratando-se o IVA de imposto de obrigação única, é devido de cada vez que se realiza uma operação sujeita a tal imposto.

C. Assim sendo, a natureza do IVA, salvo o devido respeito por entendimento diverso, afigura-se incompatível com o carácter continuado que a douta sentença atribui à prática das infracções em causa.

D. Acresce que, para que se verifique uma contra-ordenação continuada necessário se torna que, entre outros pressupostos, ocorra persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.

E. Ora, ao não prover pela entrega do imposto ao Estado, o qual se encontrava à sua guarda, tal significa que a infractora lhe deu indevidamente outro destino.

F. Deste modo, não se verificou, in casu, qualquer circunstância diminuidora da culpa da infractora pelo que, também por esta via, inexiste situação de contra-ordenação continuada.

G. Mesmo que assim não se entenda sempre se dirá que, perante o quadro estabelecido no art. 25° do RGIT, que determina o cúmulo material das contra-ordenações em concurso, parece ser de afastar a punição por contra-ordenação continuada.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que julgue a oposição judicial totalmente improcedente.

Não foram produzidas contra-alegações.

O Ministério Público emitiu o seguinte parecer:
Está em causa decidir:
- se o regime de IVA é incompatível com a aplicação dos "artigos 30.º, n.º 2, e 79.º do Cód. Penal, aplicáveis por remissão do artigo 3.º, alínea b), do RGIT e do artigo 32.º do RGCO "; e
- se há erro no decidido para o que se invoca a necessidade de "persistência" dos factos, o disposto no art: 25º, 2 do R.G.I.T. e a culpa já apurada contra a arguida.
Quanto à primeira questão foi entretanto já decidida pelo acórdão do S.T.A. de 31-5-2017, proferido no proc. n.º 01302/16, em termos que permite concluir agora pela inexistência de tal incompatibilidade, pelo que não é de alongar sobre a mesma, resultando a sem razão da recorrente, por motivos que aí foram já devidamente ponderados.
Quanto à segunda questão, há que reconhecer ser o caso dos autos diverso do que foi considerado nesse acórdão, pode impor-se uma solução diversa da que aí foi aí aplicada quanto a "múltiplos" processos contra a arguida.
Com efeito, no caso apura-se a existência de mais dois processos que, aliás, são posteriores aos do presente caso e sem que resulta qualquer circunstância exterior que faça supor uma sensível diminuição de culpa por parte da arguida.
Assim, a anulação e remessa que foram determinadas para verificação de se ocorrem os pressupostos do art. 30.º n.º 2 do C. Penal não obedece a razões justificativas bastantes.
Por outro lado, foi previsto no art. 25.º do R.G.I.T., na redação dada pela lei n.º 15/2001, de 5/6, que as sanções aplicadas às contraordenações fiscais sejam sempre cumuladas materialmente.
Tal norma é especial relativa ao previsto no processo contraordenacional comum em que a regra é, de acordo com o previsto no n.º 2 do art. 19.º do R.G.C.O., considerar-se ainda como limite o dobro da coima mais elevada em concurso, num regime punitivo que já foi considerado como de cúmulo material, mas mitigado - Frederico Costa Pinto, em Direito Penal Económico e Europeu, Textos Doutrinários, vol. I, p. 248, Coimbra Ed., 1998/99.
Em face da dita redação dada ao art. 25.º, não é de aplicar tal limite, conforme aliás, ocorre se encontra previsto noutros regimes especiais como o rodoviário.
Por essa razão não se colhe razão justificativa para se proceder também à aplicação subsidiária do art. 36.º n.º 1 do R.G.C.O., em que se prevê a competência da autoridade administrativa para proceder a uma tal aplicação.
Aliás, a arguida apenas invocou não ter cometido a infração, arguiu nulidades insanáveis e a falta de notificação para exercício do direito de defesa, questões de que não se conheceu na decisão recorrida.
E relativamente a tal não foram apreciados os pertinentes factos, apenas se tendo feito constar os respeitantes à questão que se entende conhecer - veja-se, nomeadamente, o que ficou a constar quanto aos ''factos não provados" (fls. 53).
Assim, e na procedência do que se invoca quanto à segunda questão quanto a não haver justificação para se ter procedido de modo a ser de mandar verificar se ocorrem os pressupostos relativos à aplicação do art. 30.º n.º 2 do C. Penal, bem como quanto à não aplicação do art. 36.º n.º 1 do R.G.C.O., é de reenviar os autos a fim de que seja proferida nova decisão que, após apuramento da respetiva matéria de facto, conheça das ditas questões invocadas pela recorrida no recurso que oportunamente interpôs, caso a tal nada mais obste.
Concluindo:
O regime da contraordenação que foi imputada por referência ao IVA não é incompatível com a aplicação das normas relativas ao crime continuado e à sua punição.
No entanto, o recurso procede, pois não se colhem razões justificativas para ser determinada a anulação da aplicação da coima e os autos serem remetidos à autoridade administrativa, nem para a aplicação do art. 36.º n.º 1 do R.G.C.O.
É de revogar a decisão proferida e substituí-la por outra que mande baixar os autos para que no tribunal recorrido se conheça das questões suscitadas no recurso interposto pela recorrida, uma vez fixada a pertinente matéria de facto, caso a tal nada mais obste.

Cumpre decidir.

Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte matéria de facto:
a) No dia 08/03/2013, foi lavrado auto de notícia, imputando-se à arguida, ora recorrente, a não entrega, até 11/02/2013, de IVA no montante de € 8.476,61 respeitante ao período 2012/12 - auto de notícia de fls. 4 e 5 dos autos, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido, para todos os legais efeitos.
b) Em 02/05/2013, foi proferida, pelo chefe do serviço de finanças de Odivelas, decisão administrativa que condenou a recorrente, na coima de € 2.245,87 (dois mil, duzentos e quarenta e cinco euros e oitenta e sete cêntimos), pela prática da infracção prevista pelos artigos 27.°, n.º 1 e 41.°, n.º 1, alínea a) do CIVA (falta de pagamento do imposto) e punida pelos artigos 26.°, n.º 4 e 114.°, n.º 2 e n.º 5, alínea a) do CIVA, cuja ocorrência respeita ao seguinte período: 2012/12 - decisão administrativa de fixação de coima de fls. 12 e 13 dos autos, cujo conteúdo aqui dou por reproduzido.
c) Da decisão recorrida, consta taxativamente a seguinte fundamentação de facto e de direito:
"Descrição Sumária dos factos:
À arguida foi levantado auto de notícia pelos seguintes factos: 1. Montante de imposto exigível: € 8.467,61; 2. Valor da prestação tributária entregue: € 2.000,00; 3. Valor da prestação tributária em falta: € 6.467,61; 4. Termo do prazo para cumprimento da obrigação: 2013/02/11; 5. Período a que respeita a infracção: 2012/12; os quais se dão como provados.
Normas Infringidas e Punitivas
Os Factos relatados constituem violação dos artigos abaixo indicados, punidos pelos artigos do RGIT referidos no quadro, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05/07, constituindo contra-ordenação.
Normas Infringidas: artigo 27.º n.º 1 e 41.º n.º 1, alínea a) do CIVA - Falta de pagamento do imposto.
Normas Punitivas: Artigo 114.º nº 2, n.º 5 a) e 26 n.º 4 do RGIT - Falta de entrega prestação Tributária dentro prazo.
Período Tributação: 201212
Data infracção: 2013-02-11 Coima fixada: 2.245,87. Responsabilidade contra-ordenacional
A responsabilidade própria do arguido deriva do artigo 7° do Dec-Lei nº 433/82 de 27/10, aplicável por força do artº 3º do RGIT, concluindo-se dos autos a prática, pela arguida e como autora material da contra-ordenação identificada supra.
Medida da coima
Para fixação da coima em concreto deve ter-se em conta a gravidade objectiva e subjectiva da contra-ordenação praticada, para tanto importa ter presente e considerar o seguinte quadro (Artº 27º do RGIT):
Requisitos/Contribuintes
Actos de Ocultação: Não Benefício Económico: 0,00 Frequência da prática: Acidental
Negligência: Simples
Obrigação de não cometer infracção: Não
Situação Económica e Financeira: Baixa
Tempo decorrido desde a prática da infracção: < 3 meses. Despacho:
Assim, tendo em conta estes elementos para a graduação da coima e de acordo com o disposto no artigo 79° do RGIT aplico ao arguido a coima de Eur. 2.245,87 cominada nos artigos 114º nº 2, n.° 5 a) e 26º nº 4, do RGIT, com respeito pelos limites do Artº 26º do mesmo diploma, sendo ainda devidas custas nos termos do n° 2 do Dec-Lei n° 29/98 de 11 de Fevereiro."
d) A arguida não entregou nos cofres do Estado a quantia relativa a lVA respeitante ao período 2012/12, no montante de € 6.467,61 - citada decisão e facto admitido por acordo das partes.
e) A arguida foi regularmente notificada para proceder ao pagamento da coima, identificada nas alíneas antecedentes, tendo apresentado o presente recurso a 13/06/2013 - documentos de notificação de fls. 15 a fls. 17 dos autos e articulado de fls. 18 e segs. dos autos, donde consta o respectivo carimbo de recepção, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido.
f) À ora recorrente foram aplicadas coimas, por decisões administrativas proferidas em 2014, pela prática de factos idênticos aos referidos em b) e c), relativamente aos períodos 2014/04 (Recurso de C.O. n.º 725/15.6 BELRS) e 2014/07 (Recurso de C.O. n.º 851/15.1) - Consulta do SITAF, relativamente aos processos de contra-ordenação n.ºs 725/15.6 e 851/15.1, que nos estão distribuídos.
Não há factos não provados, com relevância para a questão a apreciar. Nada mais se levou ao probatório.

Há agora que apreciar o recurso que nos vem dirigido.
A questão de que trata o presente recurso está intimamente ligada com o que foi decidido por este Supremo Tribunal no recurso n.º 01302/16, acórdão de 31.05.2017, uma vez que este processo e o processo que deu origem àquele recurso, o proc. n.º 725/15.6BELRS do TT de Lisboa, cfr. facto f) do probatório, tratam de determinada factualidade que deu origem a duas punições contra-ordenacionais, sendo que o TT de Lisboa, ali como aqui, ordenou a remessa dos autos à entidade administrativa para ponderação da possibilidade de aplicação das regras respeitantes à contra-ordenação continuada, o que foi confirmado por este Supremo Tribunal.
Assim, também agora se decidirá de igual modo, por razões de uniformidade no tratamento da questão, e de modo a que aquela decisão do TT de Lisboa, já transitada em julgado, possa ser devidamente cumprida pela entidade Administrativa.
Apelando à necessária simplicidade e celeridade no tratamento da questão comum em ambos os processos, dá-se aqui por reproduzido o que se deixou dito naquele nosso acórdão:
Perante requerimento da sociedade recorrente pedindo a apensação aos autos de vários processos de contra-ordenação pendentes no Tribunal ou ainda no Serviço de Finanças, alegadamente todos eles pela prática da mesma infracção e que, na sua perspectiva, atento o condicionalismo que rodeou a prática continuada das alegadas acções ilícitas, constituiria “infracção continuada”, a decisão recorrida, concedendo provimento do recurso, anulou a decisão administrativa de aplicação da coima e determinou a remessa dos autos à Administração Fiscal para que esta proceda à devida apreciação da conduta da ora recorrente, de modo integrado com os restantes processos contra-ordenacionais identificados nos artigos 7.º e 8.º do requerimento antecedente, levando em consideração o quadro jurídico de referência conforme explicitado (cfr. fls. 13 da decisão recorrida).
Insurge-se contra o decidido a Autoridade Tributária, imputando-lhe erro de julgamento, por violação designadamente dos normativos constantes dos artigos 19.º do RGCO e 30.º, 12.º e 79.º do Código Penal e art.º 25.º do RGIT, alegando, em síntese, e se bem o entendemos, que estando em causa IVA a figura da infracção continuada não logra aplicação pois que trata-se de um imposto que é devido de cada vez que é realizada uma operação tributável, pelo que estamos perante um imposto de obrigação única, resultante de eventos que mesmo que se repitam, são tratados tributariamente como factos autónomos ou instantâneos, porque não se verifica um dos pressupostos da infracção continuada, a saber a persistência de uma situação exterior ao infractor que facilita a resolução criminosa e diminui consideravelmente a sua culpa e porque o artigo 25.º do RGIT, ao determinar que as sanções aplicadas às contra-ordenações em concurso são sempre objecto de cúmulo material, se afigura incompatível com a punição por contra-ordenação continuada.
O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste STA no seu parecer junto aos autos e supra transcrito pronuncia-se no sentido de que o recurso não merece provimento, pois que nem a natureza do imposto, nem o disposto no artigo 25.º do RGIT obstam, em abstracto, à aplicação da figura da contra-ordenação continuada no domínio tributário, verificados que sejam os respectivos pressupostos estabelecidos no artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal, subsidiariamente aplicável e salientando que o tribunal tributário não ordenou à autoridade tributária a aplicação imperativa do regime da infracção continuada; limitou-se a determinar que, após a apensação de todos os processos pendentes, fosse averiguada a verificação do preenchimento dos pressupostos de uma determinação psicológica semelhante no cometimento de cada uma das infracções e a existência de um mesmo quadro externo que diminua consideravelmente a culpa do agente (sentença fls. 12/13 paginação própria).
Acompanhamos inteiramente o parecer do Ministério Público junto deste STA na interpretação que faz da decisão recorrida, que, aliás, nem sequer parece comportar outra.
Em lado algum se descortina na decisão sindicada que, in casu, se verificam ou deixam de verificar os pressupostos legais da figura da continuação criminosa prevista no n.º 2 do artigo 30.º do Código Penal. Apenas se determina que o Serviço de Finanças, perante a multiplicidade de processos semelhantes em que figura como arguida a recorrente, apure dessa eventual possibilidade que, nem a natureza do imposto não entregue (lVA), nem o disposto do artigo 25.º do RGIT, in limine exclui.
Também nós perfilhamos tal entendimento, que a doutrina e jurisprudência citadas na decisão recorrida e no parecer do Ministério Público sustentam.
O artigo 25.º do RGIT trata da punição do concurso efectivo de contra-ordenações e a sua aplicação pressupõe, logicamente, que tenham sido efectivamente cometidas várias contra-ordenações. Ora, na infracção continuada, verificados os respectivos pressupostos, há uma unificação (legal) de uma pluralidade de condutas, que constituem uma só infracção, e não infracções em concurso. Para a punição do concurso efectivo de contra-ordenações, o RGIT prevê expressamente norma especial, que se afasta da que vigora do domínio do RGCO. Sobre a figura da infracção continuada nada diz, sendo esta aplicável por via da aplicação subsidiária do Código Penal, verificados que seja, in casu, os respectivos pressupostos.
Também não surge evidente, nem a recorrente minimamente demonstra, que o facto de em causa estar o não pagamento atempado do IVA, um imposto de obrigação única, exclua em abstracto a possibilidade de se terem como preenchidos os pressupostos da “continuação criminosa”, a saber e concretamente a verificação de uma determinação psicológica semelhante no cometimento de cada uma das infracções e a existência de um mesmo quadro externo que diminua consideravelmente a culpa do agente. A verificação, ou não, de tais pressupostos terá de ser feita caso a caso, em concreto, e não em abstracto, fundada apenas do facto de em causa estar um imposto de determinada espécie.
Acresce finalmente que, como bem diz a decisão recorrida, citando jurisprudência deste STA, ninguém melhor que a AT se encontra em condições de verificar, prima facie, se estão ou não preenchidos os pressupostos legais da infracção continuada e daí retirar as necessárias consequências, sendo esse o caso, ou, não sendo, e verificando haver in casu um efectivo concurso de contra-ordenações, proceder à respectiva punição através da aplicação de uma coima única, resultante do cúmulo material das sanções aplicadas às várias contra-ordenações em concurso, como prescreve o artigo 25.º do RGIT.

Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
D.n.
Lisboa, 8 de Novembro de 2017. - Aragão Seia (relator) - Casimiro Gonçalves - Francisco Rothes.