Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01768/13.0BALSB
Data do Acordão:09/24/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:LOTEAMENTO
NULIDADE
ILÍCITO EM MATÉRIA DE URBANISMO
LICENÇA DE CONSTRUÇÃO
Sumário:I - Os “encargos ou ónus do loteador”, designadamente a obrigação de cedências e/ou de prestar compensação, assim como a de urbanizar os terrenos, decorrem da promoção do interesse público, assegurando que as incidências dessas operações no solo, no ordenamento do território, no ambiente e recursos naturais e na qualidade de vida das populações são devidamente salvaguardadas. II - Na vigência do Decreto-Lei n.º 448/91 e até à aprovação do artigo 57.º, n.º 5 do RJUE, que introduziu entre nós o conceito de “edificações com impactes urbanísticos semelhantes aos de uma operação de loteamento”, a operação de loteamento era um conceito tipificado na lei que se impunha, apenas, para o fraccionamento de um ou vários prédios em lotes, não sendo possível ao município exigir “encargos de loteador” ao operador urbanístico que, num único prédio, ou num prédio resultante de uma operação de destaque se propunha construir um edifício em regime de propriedade horizontal.
III - A inexistência de um alvará de loteamento numa operação de urbanística, que, na vigência daquele regime jurídico, não obrigava à divisão em lotes, não é fundamento de nulidade do acto que aprova a licença de construção.
Nº Convencional:JSTA000P26378
Nº do Documento:SA12020092401768/13
Recorrente:CÂMARA MUNICIPAL DE ODEMIRA E OUTROS
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1 – A Câmara Municipal de Odemira, com os sinais dos autos, inconformada com a sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, de 11 de Julho de 2012, que declarou nula a sua deliberação de 16.12.1998, pela qual foi aprovado o alvará de construção n.º 37/99, de 21.01.99, a favor de A………., recorre para este Supremo Tribunal Administrativo, apresentando para tanto alegações que concluiu da seguinte forma:
«[…]

1.ª O aresto em recurso julgou procedente o recurso contencioso e declarou a nulidade da deliberação camarária que aprovara em 1998 o alvará de construção de uma edificação apenas com fundamento na inexistência de um alvará de loteamento, uma vez que, para o Tribunal a quo, "A ausência de alvará de loteamento constitui facto impeditivo do direito ao licenciamento da construção válido.,. ", pelo que a deliberação impugnada violava o nº 1 do art.º 1.º do DL n.º 448/91.

2.ª Salvo o devido respeito, julga-se ser manifesto o erro de julgamento em que incorreu o Tribunal a quo, pois não só a deliberação impugnada não era ilegal -e veja-se que a única norma que o aresto cita nesse sentido e o art.º 1.º do DL n" 448/9 J, que é de todo inaplicável ao licenciamento de edificações – como jamais enfermava de nulidade – até por não haver norma alguma a sancionar a deliberação impugnada com tal vício –, pelo que, para além de errar ao considerar nula uma deliberação que nenhuma norma viciou e que nenhuma norma sancionava como sendo nula, o aresto em recurso violou ainda a alínea c) do n.º 1 do art.º 28.° de LPTA, permitindo que se conhecesse do mérito de umo acção que fora interposta muito para além do prazo máximo de um ano previsto naquela disposição legal.

Na verdade,

3.ª No nosso ordenamento jurídico a prévia existência de um alvará de loteamento não é pressuposto obrigatório de emissão de um alvará de licença de construção, pelo que é manifesto o erro de julgamento em que incorreu o aresto em recurso ao considerar nulo um alvará de licença de construção com o exclusivo argumento de que não havia previamente um alvará de loteamento.

4.ª Neste sentido, veja-se que os DL nº s 445/91 e 446/91, à data em vigor, não só autonomizavam as operações de loteamento das operações de licenciamento como em parte alguma determinavam que a licença de construção caducava ou se tornava nula quando não existisse ou deixasse de existir um alvará de loteamento, sendo o art.° 52.° do DL nº 445/91 bem claro no sentido de que só a desconformidade com alvará de loteamento em vigor é que tornava nulo o licenciamento da construção, pelo que, não havendo no caso sub judicie qualquer alvará em vigor na data em que foi proferida a deliberação impugnada é por demais notório que a mesma não é por qualquer forma nula.

5.ª O mesmo continua a suceder no regime actualmente vigente, onde também continua a não ser obrigatória a prévia existência de um loteamento para se poder licenciar a construção de uma edificação, para além de também só ser nulo o acto de licenciamento que seja desconforme a alvará de loteamento em vigor (v. artº 68º do DL nº 555/99), o que significa que se o alvará não existir ou já tiver caducado não há qualquer nulidade por se licenciar uma construção sem que tal alvará exista.

6.ª A prévia existência de um alvará de loteamento não é pressuposto da emissão de um alvará de licença de construção, pelo que jamais a inexistência ou caducidade do alvará de loteamento era motivo determinante da impossibilidade de se licenciar a construção ou motivo determinante da nulidade do acto que licenciou a construção.

7.ª Não sendo nulo o acto de licenciamento da construção nem havendo norma legal a prever tal nulidade, é por demais manifesta a extemporaneidade da presente acção, uma vez que por ela se pretende impugnar uma deliberação de 16 de Dezembro de 1998 quando essa mesma acção apenas deu entrada em 20 de Junho de 2000, muito para além do prazo de um ano que à data assistia ao Ministério Público para interpor a acção.

8.ª Por isso mesmo, pode-se dizer que o Tribunal a quo errou duplamente, tendo-o começado por fazer ao considerar nula uma deliberação que não era nula nem a lei sancionava como tal, para depois voltar a errar ao considerar tempestiva uma acção interposta muito para além do prazo de um ano.

Nestes termos, deve o presente recurso jurisdicional ser julgado procedente, revogando-se a sentença em recurso com as legais consequências.

[…]».



3 – Notificado para contra-alegar, o Ministério Público apresentou as seguintes conclusões:
«[…]

1. Nos termos do nº 1 do artº 2° do D.L. nº 351/93, de 07.10, as licenças de loteamento, de obras de urbanização e de construção, devidamente tituladas, designadamente por alvarás, emitidas anteriormente à data da entrada em vigor de plano regional de ordenamento do território ficam sujeitas a confirmação da respectiva compatibilidade com as regras de uso, ocupação e transformação do solo constantes de plano regional de ordenamento do território

2. A não solicitação por parte do titular do loteamento da confirmação da compatibilidade, com a consequente não emissão da mesma leva "in casu" à caducidade do alvará de loteamento, a qual foi declarada em 17 de Junho de 1998, pela Câmara Municipal de Odemira.

3. Tendo a Câmara Municipal de Odemira aprovado o alvará de construção nº 37/99, de 21.01.1999 - a favor de A……….., tal deliberação camarária é nula, nos termos do artº 52º nº 1[sic], al. b) do D.L. nº 445/91, de 20.11.

4. A declaração de caducidade de um loteamento faz com que este deixe de vigorar na ordem jurídica, subtraindo ao seu ex-titular qualquer direito dele decorrente. (AC. do STA de 14.12.2005, Proc. nº 0883/03, in www.dgsi.pt).

5. Caducado o licenciamento de loteamento (titulado por alvará) e declarada essa caducidade, extinguem-se os efeitos jurídicos e os direitos dele decorrentes, deixando de ser possível o licenciamento de construção ao abrigo desse loteamento. (AC. do STA, de 18.02.2004 (Proc. nº 0663/03, in www.dgsi.pt)

6. A caducidade é, uma forma de extinção de direitos pelo decurso do tempo, que tem como pressuposto o não exercício daqueles em determinado prazo (cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, pg. 373).

7. Com a deliberação camarária, que declarou a caducidade do alvará, o licenciamento do loteamento titulado por esse alvará deixou de produzir quaisquer efeitos jurídicos.

8. São nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade. (artº 133º, nº 1 do C.P.A.).

9. In casu, é o artº 52° nº 1 [sic], al. b) do D.L. nº 445/91, de 20.11., que comina expressamente essa forma de invalidade - nulidade.

10. O acto nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade. (artº 134º, nº 1 do C.P.A).

11. A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada, também a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal. (artº 134°, nº 2 do C.P.A.).

12. Nesta conformidade deverá a, aliás douta, sentença ora em crise, que declarou o acto impugnado nulo, com todas as legais consequências, por padecer da ilegalidade apontada, ser mantida, nos seus precisos termos.

No entanto, V. Exas. Colendos Conselheiros, farão como sempre a costumeira Justiça.

[…]».


4 – O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal não teve vista dado tratar-se de um processo reconduzível ao n.º 3 do artigo 109.º da LPTA, ou seja, em que o Ministério Público intervém apenas enquanto recorrido e em defesa da legalidade.

5 - Colhidos os vistos legais, cabe decidir.


II – Fundamentação

1. De facto
Remete-se para a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.

2. Questões a decidir
Saber se no caso em que um alvará de loteamento caduca por efeito do disposto no n.º 1 do art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 351/93, a posterior emissão de uma licença de construção enferma ou não, necessariamente, do vício de nulidade previsto no artigo 52.º n.º 2, al. b), do Decreto-Lei n.º 445/91.


3. De direito
3.1. A sentença recorrida concluiu, em linha com o que vinha alegado pelo Ministério Público, no âmbito do recurso contencioso de anulação (pedido de declaração de nulidade) da deliberação da Câmara Municipal de Odemira, de 16 de Dezembro de 1998 deliberação que aprovou o alvará de construção n.º 37/99, de 21 de Janeiro de 1999, a favor de A……….. , que a mesma enfermava de nulidade por violação do disposto no artigo 52.º n.º 2, al. b), do Decreto-Lei n.º 445/91 (falta de alvará de loteamento), na medida em que, no caso, a caducidade do alvará de loteamento n.º 8/89 tinha como consequência legal a necessidade de subordinação da operação urbanística a um novo licenciamento de loteamento (artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 448/91).

3.2. Inconformado, o Recorrente Município de Odemira alega erro de julgamento da referida sentença por considerar, fundamentalmente, que o alvará de loteamento não era pressuposto legal necessário da emissão da licença de construção declarada nula, e que a nulidade apenas poderia advir de uma desconformidade com o alvará de loteamento, mas não da falta do mesmo em resultado da respectiva caducidade.

3.3. Importa ter presente na decisão do litígio os seguintes elementos e factos levados ao probatório: i) a Câmara Municipal de Odemira aprovou em 2 de Outubro de 1989 o alvará de loteamento n.º 7/89; ii) em 27 de Agosto de 1993 foi aprovado, pelo Decreto Regulamentar n.º 26/93, o Plano Regional de Ordenamento do Território do Litoral Alentejano (PROTALI) (Os artigos 41.º, n.º 4 e 42.º n.º 2 do PROTALI, assim como as Portarias n.ºs 760/93 e 761/93, ambas de 27 de Agosto, seriam declarados ilegais, com forma obrigatória geral, por acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 21 de Junho de 2000 (proc. 37246).) ; iii) o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, fazia depender as licenças de loteamento, obras de urbanização e construção anteriores à entrada em vigor daquele Plano (salvo se já iniciadas e não interrompidas) da obtenção de uma declaração de conformidade com o mesmo, sob pena da respectiva caducidade (O Supremo Tribunal Administrativo teve já oportunidade de se pronunciar sobre a condição resolutiva implícita que decorre da entrada em vigor de um PROT, sempre que o titular de uma licença emitida anteriormente à entrada em vigor desse plano (excepto nos casos em que existissem obras já em curso e as mesmas não fossem interrompidas) não solicite, atempadamente, a declaração de conformidade da mesma com o conteúdo do plano – v., por todos, acórdão de 28.09.2017 (proc. 288/17).); iv) o Decreto-Lei n.º 61/95, de 7 de Abril, alargou o prazo para o pedido da declaração de conformidade com o PROT aos interessados que comprovassem ter tido justo impedimento na formulação atempada daquele pedido; v) após diversas decisões, formou-se jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional (por todos, o acórdão n.º 517/99) no sentido da não inconstitucionalidade do regime jurídico imposto pelo Decreto-Lei n.º 351/93; vi) a deliberação da Câmara Municipal de Odemira de 16 de Dezembro de 1998, que aprovou o alvará de construção n.º 37/99 (o acto que é objecto de recurso nos autos), foi tomada após a declaração de caducidade do alvará de loteamento n.º 7/89 (declaração da Câmara Municipal de Odemira de 17 de Junho de 1998) e sem que tivesse sido previamente deliberada a aprovação de um novo alvará de loteamento; vii) não foi provada a conformidade do projecto de construção titulado pelo alvará n.º 37/99 com o PROTALI, embora exista indicação no processo (v. fls 33, nota de rodapé 1) de que essa conformidade foi requerida à CCR; viii) à data da aprovação do alvará de construção n.º 37/99 a zona de edificação da construção estava abrangida pelo Plano Geral de Urbanização de Vila Nova de Milfontes de 15 de Março de 1982, revisto e registado com o n.º 04.02.11/03-95 PU, em 14 de Dezembro de 1995, e publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 43, de 20 de Fevereiro de 1996; e que ix) a operação urbanística licenciada, tal como consta do alvará de licença de construção n.º 37/99 (fls. 7 do processo), é um “Bloco de Apartamentos, composto por 10 apartamentos”.

3.4. Apesar do que se alega e discute quanto à conformidade ou desconformidade com o PROTALI, a questão jurídica principal subjacente ao presente recurso é a de saber se a operação urbanística em apreço carecia ou não de uma prévia operação de loteamento, porquanto a declaração de nulidade assenta, exclusivamente, na ausência de alvará de loteamento.
A Câmara Municipal de Odemira alega que a decisão recorrida se limitou a fazer uma aplicação formal do disposto no artigo 1.º, n.º 1 do artigo 448/91, para concluir (erradamente) que a ausência de alvará de loteamento determinava a nulidade da deliberação que aprovou a licença de construção. Na sua perspectiva, a lei admitia, naquele caso, a emissão da licença de construção sem a prévia aprovação da operação de loteamento, defluindo da sua argumentação ao longo das diversas peças processuais (nas alegações de recurso a sua argumentação é mais limitada) que nada de ilegal lhe pode ser apontando, porquanto: i) não era possível obter a declaração de conformidade do alvará de loteamento n.º 7/89 com o PROTALI, atendendo a que teriam já sido ultrapassados os 90 dias (prazo do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 351/93) para requerer aquela declaração e não existia justo impedimento que pudesse ser invocado, razão pela qual aquele título urbanístico teria caducado, como veio a ser declarado expressamente; ii) não era possível (como atestara a CCDR) obter uma declaração de conformidade da operação urbanística a licenciar (a obra de construção) como o PROTALI, desde logo por esta ser posterior àquele e, nessa medida, não estar legalmente abrangida pela previsão legal (i. e., pelo regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 61/95); iii) a construção a realizar estava incluída no PGU de Vila de Nova Milfontes na versão da revisão aprovada em 1995, que, para a Zona B (zona mista segundo o ponto 2.2. do referido PGU), previa uma “ocupação baseada na coexistência de habitações permanentes ou secundárias e de instalações destinadas ao turismo, com os índices de densidade máxima de 125hab/ha e de construção de 0,52 para os particulares”; iv) embora o índice de construção do projecto fosse superior ao do plano, o mesmo estava “dentro dos valores médios aprovados para a zona”; pelo que, v) o escrutínio do projecto teria de fazer-se à luz das regras do referido PGU e, mesmo que no caso se verificasse haver violação do PGU, esta violação era sancionada com anulabilidade e, por isso, a impugnação da mesma, no âmbito do recurso contencioso de anulação interposto pelo Ministério Público, era intempestiva.
Já o Ministério Público sustentou o seu recurso na nulidade da licença de construção por inexistência de alvará de loteamento prévio, uma vez que o existente caducara por não ter sido obtida, atempadamente, a declaração da respectiva conformidade com o PROTALI [artigo 2.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 351/93, artigo 1.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 448/91 e 52.º, n.º 2, al. b) do Decreto-Lei n.º 445/91].
Em suma, para o Município recorrido no processo e aqui Recorrente a declaração de caducidade do alvará de loteamento teria “removido” do ordenamento jurídico o fundamento de nulidade da licença de construção, uma vez que, segundo a al. b), do n.º 2 do 52.º do Decreto-Lei n.º 445/91, só pode ser nula a licença que viola um alvará de loteamento em vigor; já para o Ministério Público, recorrente nos autos, a “remoção” do alvará e sua não substituição por outro, atendendo a que a operação urbanística em causa carecia legalmente de loteamento, constituía o fundamento da nulidade da licença de construção – repousava a sua argumentação no decidido por este Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 17 de Maio de 1994 (proc. 33641) (Pode ler-se no sumário deste aresto o seguinte:
“[…]
I - A alínea a) do n. 1 do art. 63 do Dec. Lei n. 445/91 de 20/11 impõe vinculadamente o indeferimento do pedido de licenciamento de uma obra particular em caso de "desconformidade com alvará de loteamento ou com instrumentos de planeamento territorial válidos nos termos da lei".

II - No espírito dessa previsão-estatuição legal não pode deixar de ter estado, para além da simples desconformidade, a própria inexistência do alvará, se a lei no caso concreto o tornava necessário - argumento de maioria de razão ou "a fortiori".
III - A eventual violação do princípio da protecção da confiança só será de encarar se, uma vez licenciada a obra, a Câmara Municipal a inviabilizar com invocação "ex-novo" da falta de loteamento legal e não também quando o administrado pretenda introduzir, na obra primitivamente autorizada e já concluída conforme o projecto inicial, modificações ou autorizações inovatórias, designadamente a construção de uma garagem adjacente.
IV - Os princípios da igualdade e da proporcionalidade possuem a sua raiz na actividade discricionária da Administração, só podendo revelar pois, e em princípio, nos casos do exercício de poderes não vinculados, sendo certo que o princípio da igualdade não confere um direito de igualdade na ilegalidade […]”.)
, em que se equipara a ausência de alvará de loteamento (quando ele é pressuposto legal necessário da licença de construção) à desconformidade da licença com o mesmo.
Assim, percebe-se que aquilo que verdadeiramente há que apreciar no âmbito do presente recurso, para determinar se existe ou não nulidade do acto recorrido e erro de julgamento, não é a conformidade jurídica da operação urbanística licenciada com o PROTALI, mas sim a exigência legal ou não, in casu, de operação de loteamento prévia à licença de construção.

3.5. Ora, a obrigação de lotear – operação urbanística que existe no ordenamento jurídico nacional desde a aprovação do Decreto-lei n.º 46 673, de 29 de Novembro de 1965 – impunha-se, na vigência do Decreto-Lei n.º 448/91, para as operações urbanísticas em que se operasse uma divisão em lotes de um ou mais prédios fundiários, sempre que um deles se destinasse imediata ou subsequentemente à edificação.
Embora em 1991, a obrigação de lotear já tivesse como finalidade o enquadramento jurídico das “iniciativas dos particulares visando a urbanização do solo” para acautelar o interesse público “quer no âmbito das incidências que tais operações possuem ao nível do ordenamento do território, do ambiente e dos recursos naturais, quer pelas repercussões que delas resultam para a qualidade de vida dos cidadãos”, impondo, por efeito do loteamento, a afectação de áreas a espaços verdes e de utilização colectiva, a construção de infra-estruturas associadas ao bem-estar dos moradores (ex. estacionamento e instalações aptas ao alojamento de redes de serviços públicos) e, ainda, no âmbito do princípio da igualdade na contribuição para os encargos públicos, a realização de cedências de parcelas ou a prestação de contribuições compensatóriasa verdade é que a norma legal repousava num conceito normativo determinado (divisão em lotes para edificar um ou mais prédios) e, como tal, sem deixar margem de valoração aos municípios quanto ao impacto do projecto a edificar e às exigências a que o mesmo poderia ficar subordinado, sempre que estivesse dentro dos parâmetros do plano urbanístico.
Com efeito, a delimitação normativa da obrigação de loteamento no âmbito do Decreto-Lei n.º 448/91 (Lembre-se que no âmbito deste regime jurídico já se havia transitado para um conceito unitário de loteamento e para um único procedimento, ultrapassando as dificuldades geradas pelo Decreto-Lei n.º 400/84, de 31 de Dezembro.) – o regime jurídico aplicável à data dos factos – circunscrevia-se ao fraccionamento de um ou vários prédios (divisão em lotes) para neles erigir edificações urbanas, não podendo o município impor a obrigação de lotear quando estivesse em causa a mera edificação em parcela urbana de um prédio com várias fracções autónomas. Ainda que esta segunda operação urbanística tivesse um impacto efectivo no solo e na qualidade de vida dos moradores equivalente ou até superior ao de um loteamento, a verdade é que o conceito legal, por ser tipificado, impedia que o município pudesse impor a aplicação deste regime jurídico a situações que não estivessem abrangidas pela definição da lei. Num caso como o dos autos – de edificação numa parcela de terreno urbano de um edifício em propriedade horizontal –, estando previsto no plano urbanístico o aproveitamento urbano daquele solo para aquele fim ― i. e. de “edificação de habitações permanentes ou secundárias e de instalações destinadas ao turismo” (v. 2.2. do PGU de Vila Nova de Milfontes) ―, o titular do lote ou parcela de terreno, que pretendia nele implantar apenas um prédio (mesmo que destinado à constituição de 10 fracções autónomas no âmbito do regime de propriedade horizontal), podia limitar-se a solicitar uma licença de construção.
Talvez seja importante até sublinhar que a aparente (Dizemos aparente porque a “igualdade” no aproveitamento do solo e nos encargos comunitários decorrentes do aproveitamento do mesmo era fixada pelas regras impostas nos planos urbanísticos.) “incompletude e indeterminação legal” sobre a “obrigação de lotear” e a “iniquidade” decorrente da impossibilidade de impor “encargos de loteador” aos promotores urbanísticos de edificações de prédios em regime de propriedade horizontal agravar-se-ia com o aditamento ao Código Civil, pelo Decreto-Lei n.º 267/94, de 25 de Outubro, do artigo 1438.º-A, que veio consagrar entre nós a propriedade horizontal de conjuntos de edifícios. A questão foi muito discutida na doutrina e só seria solucionada pelo legislador mais tarde, com a aprovação do n.º 5 do artigo 57.º do RJUE (Decreto-Lei n.º 555/99), que permitiu “submeter” as edificações com impactes urbanísticos semelhantes aos de uma operação de loteamento às obrigações dos artigos 43.º (cedências) e 44.º (compensação). De resto, mais recentemente, com a aprovação da Lei n.º 60/2007, o legislador acentuou a possibilidade de se assegurar, na prática, a justiça equitativa, ao introduzir no n.º 5 do artigo 44.º o conceito de “operação urbanística que nos termos de regulamento municipal seja considerada como de impacte relevante”, para efeitos da possibilidade da respectiva equipação nos PDM às obrigações legalmente previstas paras as operações de loteamento.
Porém, em Dezembro de 1998, data em que foi praticado o acto impugnado, não podia o município, em face do regime jurídico do Decreto-Lei n.º 448/91, exigir ao promotor imobiliário a realização de uma operação de loteamento para o tipo de operação urbanística que o mesmo submeteu a licenciamento, nem impor àquele os encargos típicos de um loteamento.
Veja-se que o Município chega a alegar – e com razão – que no caso de o promotor pretender “renovar” a licença de loteamento entretanto caducada, sempre poderia a mesma, em face do respectivo conteúdo (constituição de 2 lotes), ser “substituída” por uma operação de destaque (artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 448/91), “limitando-se o controlo” à verificação do cumprimento das regras do PGU pelo projecto de edificação (num resultado que seria equiparável ao que acabou por suceder na prática) (No caso não parece existir sequer fundamento para alegar que a via procedimental adoptada é uma forma de o promotor “evitar” (sem violação da lei) as obrigações e os encargos que decorreriam da operação de loteamento, pois tendo a mesma sido até aprovada, presume-se que ele terá cumprido os encargos que legalmente lhe incumbiriam, os quais, mesmo depois de declarada a caducidade, ter-se-iam consolidado, ou seja, se tivesse existido uma cedência e/ou o pagamento de uma compensação, elas consolidar-se-iam.).

Assim, verifica-se o alegado erro de julgamento da decisão recorrida, na medida em que a inexistência de alvará de licença de loteamento no presente caso não determina a nulidade da deliberação que aprovou o alvará de licença de construção.
No mais, como bem se conclui na sentença recorrida, eventuais desconformidades da licença com o PGU de Vila Nova de Milfontes, que determinariam a anulabilidade do acto, não podem ser conhecidas no âmbito do presente processo por o pedido, nesta parte, ser extemporâneo.

Por todas as razões precedentes, há que revogar a sentença recorrida.

III – Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida.
Sem custas.


*

Lisboa, 24 de Setembro de 2020 – Suzana Tavares da Silva

A Relatora atesta, nos termos do art.º 15-A do Decreto-Lei 10-A/2020, de 13 de Março, o voto de conformidade das Ex.mas Senhoras Conselheiras Adjuntas Cristina Santos e Maria Benedita Urbano

Suzana Tavares da Silva