Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01873/18.6BELSB
Data do Acordão:07/10/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24794
Nº do Documento:SA12019071001873/18
Data de Entrada:06/03/2019
Recorrente:A............
Recorrido 1:INSTITUTO DOS REGISTOS E DO NOTARIADO, IP E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do STA:

RELATÓRIO:
A………… intentou, no TAC de Lisboa, contra o INSTITUTO DOS REGISTOS E DO NOTARIADO, I.P. e o MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS, acção para protecção de direitos, liberdades e garantias requerendo a intimação do:
a) R. MNE para que aceite o pedido de emissão do cartão de cidadão;
b) R. IRN para que emita imediatamente o cartão do cidadão do A., remetendo-o com urgência ao Consulado Geral de Portugal em Goa; e
c) 2º R. para que ordene ao Consulado Geral de Portugal em Goa que proceda à entrega com urgência do cartão, após boa receção do mesmo por parte do 1º R.”.

Aquele Tribunal julgou improcedentes as excepções suscitadas pelos Réus e absolveu-os do pedido.
E o TCA Sul, para onde o Recorrente apelou, negou provimento ao recurso.

É desse acórdão que vem a presente revista com fundamento na errónea aplicação do direito (art.º 150.º do CPTA).

II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO

1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos para isso da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. Em 29/05/2015 foi atribuída ao Intimante, A…………, que reside na Índia, a nacionalidade portuguesa o que determinou a perda imediata da sua anterior nacionalidade por o Estado Indiano não reconhecer a dupla nacionalidade. O que o levou, em 16/07/2015, a solicitar no Consulado Geral de Portugal em Goa o cartão de cidadão, pedido que renovou, presencialmente, em 27/09/2018, tendo-lhe, nessa ocasião, sido solicitadas certidões de nascimento e de casamento dos seus pais destinadas a comprovar a sua identidade, por as autoridades consulares suspeitarem da veracidade desta. Desde então e até agora não voltou a apresentar-se naquele Consulado mas o seu mandatário dirigiu-se-lhe pedindo esclarecimentos quanto à exigência, e respectivo fundamento, da certidão de casamento dos seus pais, não tendo obtido resposta.

Não tendo sido emitido o requerido cartão, intentou a presente intimação onde, no essencial, alegou que a situação provocada pelos Réus criava-lhe o risco de extradição e da proibição de entrada no país onde nasceu, pondo em causa o seu «direito à identificação pessoal» ─ «que integra o direito fundamental à identidade, garantido pelo art. 26º, nº 1 da Constituição da República» ─ a sua «liberdade e segurança (…) num país estrangeiro» e «o direito à igualdade e não discriminação, garantido pelo art. 13º da Lei Fundamental»

O TAF julgou improcedentes as excepções suscitadas pelos RR - inadequação do meio processual e ilegitimidade do Instituto do Registos e do Notariado - mas absolveu-os do pedido com o argumento de que o Requerente não tinha provado a exactidão ou titularidade dos elementos de identificação apresentados não provando, portanto, ser titular da nacionalidade portuguesa. Ao que acrescia que nenhuma ilegalidade foi cometida quando lhe foi solicitada a apresentação das certidões de nascimento e de casamento de seus pais. Para tanto ponderou:

E o facto dos elementos de identificação constantes desses dois documentos serem idênticos apenas demonstra mesmo indivíduo, mas não demonstra que pertencem ao recorrente.
......
Finalmente, quanto à suposta inadequação dos documentos solicitados pelo Consulado, em que o recorrente consegue avistar a violação dos já citados artigos da Lei n.º 33/99, e do CPA, igualmente não tem razão o recorrente.
....
Assim, não descortinou erro grosseiro ou manifesto na solicitação das certidões, por não ser manifesta a sua irrelevância para dissipar as dúvidas suscitadas. Como não descortinou violação do princípio da proporcionalidade stricto sensu naquela solicitação, por não ser impossível de cumprir ou demasiado onerosa atentos os interesses em causa.
Está em causa o já citado n.º 3 do artigo 27.º da Lei n.º 7/2007 (“[q]uando se suscitem dúvidas sobre a exatidão ou titularidade dos elementos de identificação, o serviço de receção deve praticar as diligências necessárias à comprovação e pode exigir a produção de prova complementar.”)
Bem andou o Tribunal a quo, pois que o citado normativo permite uma margem de discricionariedade na atuação da administração, no âmbito da qual a sindicância judicial se deve quedar pela análise do cumprimento das normas e dos princípios jurídicos que vinculam a Administração e por verificar se a decisão assentou em erro patente ou critério inadequado ..... .
.... invoca o recorrente que o Tribunal a quo entrou no âmbito do procedimento administrativo, intimando o recorrente a apresentar os documentos requeridos pelo recorrido, para depois nem sequer estabelecer quaisquer parâmetros ou vinculações para a atuação da Administração, sendo que o procedimento administrativo está pendente desde 2015 e devia ter sido fixado prazo para encerramento da instrução, nos termos do disposto no artigo 71.º, n.º 2, do CPTA.
......
Conforme consta dos factos provados, após comparecer no Consulado no dia 27 de Setembro de 2018, e sendo-lhe solicitadas certidões de nascimento e de casamento dos seus progenitores, o recorrente não voltou a apresentar-se naquele Consulado.
O procedimento mantém-se em instrução, na medida em que aquelas solicitações ainda não foram integralmente cumpridas, nem foi ainda recebida informação da Polícia de Damão, sendo a Administração alheia à falta destes elementos.”

3. O Recorrente não se conforma com esta decisão pelo que pede a admissão desta revista para a qual formula, entre outras, as seguintes conclusões:
“VI. Contrariamente ao que decidiu o Tribunal a quo, não existe - nem nunca existiu - qualquer procedimento administrativo em curso com vista à averiguação da titularidade do assento de nascimento n.º ……….
VIII. O facto de os elementos do assento de nascimento n.º ……… e passaporte n.º ……… – que instruiu o processo junto da Conservatória dos Registos Centrais - estarem na posse do recorrente e os seus elementos identificativos serem coincidentes (nome, filiação, imagem facial constante da fotografia aposta no passaporte ser correspondente à imagem facial do recorrente) demonstram inequivocamente que o recorrente é o titular do assento n.º ……….
X. O Tribunal a quo reconheceu que os elementos identificativos constantes do passaporte n.º ………, (que o recorrente apresentou no Consulado, facto assente l)) e do assento de nascimento n.º ……… são idênticos, mas concluiu que tal não demonstra que os mesmos pertençam ao recorrente.
XII. O recorrido MNE justificou – em posição secundada pelo Tribunal a quo - a existência de dúvidas sobre a identidade do recorrente com o facto de este ter apresentado um documento para instruir o processo - i.e. “Ration Card” - que se encontra rasurado.
XVIII. Apenas e só quando sejam suscitadas dúvidas sobre a exatidão ou titularidade dos elementos de identificação é que os serviços podem requerer a produção de prova complementar. E a existência de dúvidas não poderá ser retirada ao escrutínio dos tribunais, sob pena de permitir-se a obscuridade e arbitrariedade da administração, onerando cidadãos portugueses com procedimentos burocraticamente tortuosos, verdadeiramente atentatórios dos seus direitos fundamentais, sem critério definível e sindicável.
XIX. Nunca existiram quaisquer dúvidas fundadas sobre a legítima titularidade do assento de nascimento n.º ……… e, sendo assim, a exigência arbitrária e injustificada ao recorrente para que este apresentasse prova complementar foi manifestamente ilícita por violação expressa do disposto no art. 27º da Lei n.º 7/2007, de 5/2.
XX. Além de não existirem dúvidas que, razoável e objetivamente, justificassem a realização de diligências instrutórias complementares, a identificação de cidadãos (ou mesmo o esclarecimento deste tipo de dúvidas) não se faz mediante a apresentação de certidões de nascimento ou casamento de terceiros.

4. Conforme se acaba de ver a questão suscitada nesta revista é, tão só, a de saber se o Acórdão recorrido ajuizou correctamente quando, sufragando a decisão do TAC, entendeu que a Administração não tinha cometido qualquer ilegalidade ao fazer depender a emissão do cartão de cidadão do Recorrente da apresentação das certidões de nascimento e de casamento dos seus pais, por se suscitarem dúvidas quanto à sua identidade.
Julgamento que o Recorrente censura pelas razões acima transcritas.
Colhe-se na M.F. que foi atribuída a A…………, que reside na Índia, a nacionalidade portuguesa. Por ser assim, o mesmo é cidadão nacional daí decorrendo o seu direito à obtenção do cartão de cidadão.
Todavia, as autoridades portuguesas podem recusar a emissão desse cartão se tiverem dúvidas de que o Requerente é, efectivamente, cidadão nacional podendo, nessas circunstâncias, exigir-lhe que prove a sua nacionalidade (art.º 27.º da Lei n.º 7/2007). Foi que ocorreu no presente caso, ao solicitarem-lhe certidões de nascimento e de casamento dos seus pais para comprovação da sua identidade, não tendo as instâncias vislumbrado qualquer ilegalidade nesse comportamento.
No entanto, também está provado que o Consulado-Geral de Portugal em Goa dispõe de cópias do assento de nascimento do Recorrente, do seu passaporte e do «Ration Card – livro familiar para descontos sociais a nível alimentar», o que leva o Recorrente a questionar a legalidade da exigência da apresentação das citadas certidões, uma vez que, por um lado, e numa primeira análise, tais documentos não nos dirão se o Requerente é, ou não, cidadão português e, por outro, os documentos por ele entregues são, por si só, suficientes para comprovarem a sua identidade.
As instâncias responderam a essas objecções com um discurso jurídico lógico e coerente tudo indicando que, por isso, a admissão da revista não é necessária para uma melhor aplicação do direito. Sendo certo, por outro lado, que questão ora em causa não é de relevante importância jurídica e social.
Decisão.
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em não admitir a revista.
Custas pelo Recorrente.
Porto, 10 de Julho de 2019. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.