Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01997/17.7BELSB
Data do Acordão:03/21/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ANA PAULA PORTELA
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24358
Nº do Documento:SA12019032101997/17
Data de Entrada:02/01/2019
Recorrente:CP - CAMINHOS DE FERRO PORTUGUESES, EP E OUTRAS E D... SA
Recorrido 1:E... SA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo

I. RELATÓRIO

1. CP – COMBOIOS DE PORTUGAL, E.P.E., e restantes entidades adjudicantes que integram o Agrupamento de A…………., S.A., B……………, S.A. e C……………., S.A., vêm interpor recurso de revista do Acórdão do TCAS de 4/10/2018 que, revogando a sentença do TAC de Lisboa, determinou a anulação da adjudicação à D……………, S.A., condenando a entidade recorrida a adjudicar à E……………, S.A. a prestação de serviços de Rede Móvel de Voz, Dados e Suporte Aplicacional para o Agrupamento em questão.

Por outro lado, a D…………., SA, também interpôs recurso de revista do referido acórdão do TCA Sul.

2. A CP e restantes empresas que com ela formam o agrupamento concluem as suas alegações da seguinte forma:

“I. O douto Acórdão recorrido do Tribunal Central Administrativo Sul, de 08.10.2018, não fez uma correta aplicação do regime legal aplicável, pelo deve ser admitido o presente recurso de revista e, a final, ser o mesmo julgado procedente, revogando-se o Acórdão do TCAS e confirmada a douta Sentença de 1ª Instância do T.A.C. de Lisboa;

II. Com efeito, o n.° 1 do artigo 150° do CPTA (recurso de revista) prescreve que das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, o que é o caso dos autos;

III. Ora, no caso dos autos está em causa saber se a al. b) do n.° 1 do artigo 57º do Código dos Contratos Públicos, determina a exclusão automática de uma proposta em que existem dois parágrafos contraditórios e em que um está em contradição com o Caderno de Encargo, ou seja, está em causa saber se, em primeiro lugar, se deve resolver a contradição entre os dois parágrafos de uma proposta, de acordo com as regras da interpretação das declarações negociais, e resolvida esta, apreciar a contradição com o Caderno de Encargos, caso, face à interpretação realizada, a contradição persista;

IV. Trata-se de uma questão nova que não tem sido objeto de decisão dos Tribunais e especialmente do Supremo Tribunal Administrativo de enorme relevância, social e jurídica, que afeta desde logo todo o universo da contratação pública, sujeita ao Código dos Contratos Públicos, e é essencial para uma correta aplicação do direito;

V. Trata-se de uma questão muito diferente da já por várias vezes abordada e relativa ao Anexo I do Código dos Contratos Públicos;

VI. Assim, é manifesto que se verificam os requisitos previstos no n.° 1 do artigo 150° do CPTA, devendo, por isso, ser admitido o presente RECURSO DE REVISTA;

VII. Ora, o Acórdão recorrido do T.C.A. Sul não fez uma correta interpretação quer da proposta da Contrainteressada quer do artigo 70° n° 1, Al. b) do CCP;

VIII. As declarações constantes dos n°s 1 e 8 da Proposta da Contrainteressada D………. devem ser interpretadas e aplicadas em conjunto, de acordo com as regras constantes dos artigos 236.° e 238° do Código Civil;

IX. Se um concorrente declara num único documento da sua proposta que em caso de algum dos seus pontos (da proposta) contrariar o caderno de encargos o mesmo se deve considerar não escrito, não há fundamento legal para assim não proceder, face ao regime dos artigos 236.° e 238.° do CC acima referidos;

X. A aplicação do regime da alínea b) do n.° 1 do artigo 70.° do CCP não prescinde da prévia análise e interpretação da proposta dos concorrentes;

XI. Afastada através das regras de interpretação da declaração negocial uma contradição entre um ponto de uma proposta e o regime do caderno de encargos não existe fundamento legal para excluir essa proposta;

XII. Sem conceder, acresce que o CCP contém no artigo 96.°, n.° 5, uma regra que tem precisamente o propósito de resolver antinomias ou divergências entre o disposto na proposta e o disposto no caderno de encargos, e que em caso de divergência, define a prevalência do caderno de encargos sobre a proposta;

XIII. Neste contexto, é desproporcionada a sanção de exclusão de uma proposta especialmente ditada para prevenir um problema que a lei resolve, devendo ainda aplicar-se o princípio do aproveitamento de atos jurídicos e “salvar” uma proposta que, afinal, contém uma patologia que não vai comunicar-se ao contrato;

XIV. Mesmo que se entenda que tal aproveitamento só pode ocorrer quando a divergência da proposta com o caderno de encargos se puder resolver de uma forma imediata, pela substituição integral do termo ou condição da proposta pela cláusula do caderno de encargos que descreve o aspeto da execução do contrato que foi violado, tal é a situação dos autos;

XV. Assim, deve ser revogado o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 04.10.2018 mantendo-se, consequentemente, a Sentença de 1ª Instância do TAC de Lisboa.

Termos em que face ao exposto, e com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser admitido o presente recurso, e a final ser o mesmo julgado procedente, revogando-se o Acórdão do TCAS de 04.10.2018 e confirmada a douta Sentença da 1ª Instância, julgando totalmente improcedente a ação, com o que se fará a costumada JUSTIÇA.”

3. D…………., S.A deduz as suas alegações e conclui:

“a) O presente Recurso de Revista é um recurso ordinário com base nos termos do art.° 150°, nº 1 do C.P.T.A. porque considera a ora Recorrente que está em causa uma questão que, pela sua relevância jurídica, é de importância fundamental, claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito.

b) Sendo a problemática relacionada com a aceitação do Caderno de Encargos, sem qualquer reserva ou objeção, tendo complementado a proposta com uma oferta comercial adicional (constante do ponto 8 da Proposta) adicional ao art° 27° do Caderno de Encargos;

c) O Douto Acórdão recorrido, com perceção diametralmente oposta ao Tribunal de 1ª Instância entende que a proposta da D………. não se conformou com o art.° 27° do CE, quando o que a D……… referiu em sede de proposta é que aceita, em absoluto o CE e complementarmente envia mais informação do que aquela que é requerida;

d) Mas envia sempre a informação requerida, nos moldes e formatos determinados pelo CE!

e) Pelo que não se verifica a existência de qualquer ilegalidade, violação de Lei, nem quaisquer violações de Princípios aleatoriamente invocados sem fundamento;

f) Devendo a Douta Sentença de 1ª Instância ser considerada conforme o Direito e não enfermando de qualquer vício, revogando-se assim, o Douto Acórdão Recorrido.

Pelo que conclui a Recorrente que o presente recurso, deve ser admitido, ser considerado procedente, devendo manter-se a Douta Sentença do Tribunal de 1ª Instância com as demais legais consequências, fazendo assim, V. Exas., a COSTUMADA JUSTIÇA”

4. E…………, S.A. vem apresentar as contra-alegações, concluindo:

“1. O recurso de revista apresentado pelas Recorrentes é, em primeiro lugar, inadmissível, porquanto não cumpre os requisitos estabelecidos no art.° 150.° do CPTA

2. As questões trazidas a este Venerando Supremo Tribunal não merecem dignidade para importar a admissão do recurso de revista pretendido, dado que as mesmas não tratam de questões de especial complexidade, não se verifica divergência de Jurisprudência sobre as mesmas e a Instância foi clara, segura e correta na conclusão a que chegou.

3. A decisão recorrida é clara, lógica e percebe-se o raciocínio do Julgador para chegar às conclusões a que chegou, inexistindo erro grosseiro ou palmar que possa justificar a intervenção deste Venerando Tribunal.

4. Por outro lado, uma decisão tomada sobre as questões aqui trazidas pelas recorrentes pouco ou nenhum reflexo teriam em casos futuros, pois que o Concurso em apreço se rege ainda pelo CCP na sua anterior redação.

5. Acresce que a questão que as Recorrentes pretendem aqui debater cai fora do âmbito das questões que este Supremo Tribunal Administrativo pode apreciar.

6. Por fim, é questão que se cinge totalmente ao caso concreto, o que nada abona para a sua suposta relevância jurídica e social.

7. Por sua vez, no que toca à questão mais substancial que as recorrentes pretendem ver discutida, é manifesto que a mesma foi já tratada, até por Jurisprudência deste Venerando Supremo Tribunal, em sentido totalmente coincidente com o que se encontra no Acórdão recorrido.

8. Como aliás ficou bem apontado, sobretudo no Acórdão recorrido, a interpretação das recorrentes não tem a mínima das expressões nas normas do Caderno de Encargos e na Lei.

9. A decisão tomada pelo Tribunal Central Administrativo Sul não merece qualquer crítica, devendo manter-se na íntegra, sendo inadmissível o presente recurso de revista.

10. Quanto ao mérito da questão, ainda que a mesma venha a ser apreciada, é manifesto que a tese das Recorrentes importaria uma total deturpação do previsto no art° 70, nº 2, alínea b), do CCP.

11. Estando definitivamente firmado que a proposta da D……… viola o Caderno de Encargos, é inescapável a sua exclusão.

12. Não se admite que, pelo facto de na proposta se declarar que qualquer lapso da mesma se deve dar por não escrito se desconforme com o Caderno de Encargos, se deve dar por corrigida a violação desta peça do concurso.

13. Tal não é admitido em lado nenhum pelo legislador.

14. Tal é proibido pelo princípio da intangibilidade das propostas.

15. E aquele vício da proposta da D………. não constituiu um lapso, mas foi algo de intencional, como ficou já definitivamente firmado pelas Instâncias.

16. O conteúdo da proposta da D……… viola o art.° 27.° do Caderno de Encargos, o que, face ao disposto no art.° 70.°, n.° 2, alínea b), do CCP, determina a sua exclusão.

17. Pelo que esteve muito bem o Tribunal Central Administrativo Sul, cujo Acórdão se deve manter na íntegra, posto que o mesmo, não só é corretíssimo, como concretiza Jurisprudência e Doutrina há muito estabelecida, em particular deste Supremo Tribunal Administrativo.

Nestes termos e nos mais de Direito que V.ª Excelências Senhores Juízes Conselheiros, doutamente suprirão, deve o presente recurso de revista ser julgado inadmissível ou improceder in totum, mantendo-se a validade do Acórdão recorrido, o que respeitosamente se requer.”

5. Por Acórdão da Formação, proferido neste STA, em 11.1.2019, que aqui se dá por reproduzido, foi o recurso de revista admitido.

6. Notificado o EMMP, ao abrigo do art. 146°, n° 1 do CPTA, pugnou pela improcedência do recurso.

7. Cumpre decidir sem vistos, dada a natureza urgente do processo (art. 36°, n° 2 CPTA).


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II. FUNDAMENTAÇÃO

Matéria de facto fixada pelas instâncias:

“1) Em 27.04.2017 foi publicado na Parte L da II Série do Diário da República o anúncio de procedimento n.° 3401/2017, nos termos do qual o R. CP – Comboios de Portugal, E.P.E. dá conta da abertura de “Concurso público com publicidade no JOUE para a prestação de serviços de rede móvel de voz, dados e suporte aplicacional para o Grupo CP” tendente à “prestação de serviços de rede móvel de voz, dados, suporte aplicacional, assim como equipamentos e acessórios necessários a prestar às empresas do Grupo CP (CP/A……../C………/B……) nos seus serviços que se encontram localizados no território nacional continental, de acordo com o estipulado no caderno de encargos”, com um preço base de EUR 291.648,00 (cf. cópia do anúncio junta entre fls. 12 e 14 do processo administrativo apenso, documento que se dá por integralmente reproduzido).

2) Em 27.04.2017, os RR. disponibilizaram “online” o Programa de Concurso (“PC”) do procedimento concursal referido no ponto anterior, cujo teor se reproduz parcialmente infra:

“(...) 5.7. A proposta é constituída pelos seguintes elementos:

a. Declaração do concorrente de aceitação do conteúdo do caderno de encargos, elaborada em conformidade com o Modelo constante nos Anexos A e C ao presente programa de concurso;

b. Documentação a que se refere o n.° 1 e o n.º 2 do artigo 57° do Código dos Contratos Públicos (adiante brevemente designado por CCP), se for caso disso;

c. Documento comprovativo do poder de representação do assinante indicado da declaração de aceitação do conteúdo do Caderno de Encargos, nomeadamente, certidão do registo comercial;

d. Indicação dos preços unitários para os serviços solicitados de acordo com o preenchimento do Anexo E (formato Excel); (…)

12.1. O critério de adjudicação é o do mais baixo preço, apresentado para o total de todos os serviços solicitados” (cf. cópias da informação de abertura do procedimento e do PC juntas entre fls. 1 e 7 e 19 e 36 do processo administrativo apenso, respetivamente, documentos que se dão por integralmente reproduzidos).

3) Em 27.04.2017, os RR. disponibilizaram “online” o CE do procedimento concursal referido no ponto 1. supra, aí estabelecendo que:

“ARTIGO 27° RELATÓRIOS MENSAIS

1. O prestador do serviço deverá disponibilizar os dados de consumo e faturação, através de download via web, em formato standard, que permitam ao AEAs elaborar relatórios de gestão, devendo conter pelo menos as seguintes informações por cada chamada efetuada ou tráfego consumido.

a) Data

b) Hora

c) Número originador

d) Número de destino

e) Identificador do tipo de chamada e ou ligação

f) Duração / Volume

g) Custo

h) Volume de dados (se aplicável).

2. Os dados disponibilizados não deverão ter antiguidade superior a 24 horas no momento da sua disponibilização. (...)” (cf. cópias da informação de abertura do procedimento e do CE juntas entre fls. 1 e 7 e 37 e 67 do processo administrativo apenso, respetivamente, documentos que se dão por integralmente reproduzidos).

4) Em 12.06.2017, a A. apresentou uma proposta ao procedimento concursal referido no ponto 1. Supra, aí afirmando que “Pretendemos celebrar contrato de acordo com o definido nas peças concursais, pelo que preparámos esta proposta de acordo com as exigências aí definidas./ / Declaramos inclusivamente aceitar a prevalência, em caso de contradição, dúvida ou omissão na nossa proposta, dos requisitos definidos nas peças concursais, dando assim cumprimento integral dos requisitos técnicos, funcionais e de níveis de serviço neles constantes e aceitando, sem reservas, todas as cláusulas aí mencionadas”, propugnando um preço de EUR 234.003,85, juntando a declaração a que se refere a alínea a) do nº 1 do artigo 57° do CCP e não juntando o DEUCP (cf. cópia da proposta e respetivos anexos junta entre fls. 80 e 121 do processo administrativo apenso, documento que se dá por integralmente reproduzido).

5) Em 12.06.2017, a CI apresentou uma proposta ao procedimento concursal referido no ponto 1. supra, aí afirmando que “A D……., concorrente ao presente procedimento, aceita, sem reservas, todo o conteúdo do Caderno de Encargos, pelo que deve considerar como não escrito qualquer conteúdo desta Proposta relativamente a quaisquer aspetos não submetidos à concorrência pelo Caderno de Encargos e que, inserido por lapso, possa ser interpretado como contraditório com este. // Todas as condições de fornecimento, requisitos, pressupostos ou equivalentes que possam constar da presente Proposta são atributos da mesma, não constituindo, nem visando constituir quaisquer condicionantes ao Caderno de Encargos e aos fornecimentos ou prestação dos serviços objeto nele previstos, mas antes, aforamentos do dever de colaboração mútua entre as partes, cujo corolário se encontra vertido no artigo 289° do Código dos Contratos Públicos” e que “O D…….. emitirá os relatórios de faturação a que se refere o Caderno de Encargos do procedimento em causa, no âmbito de contratos celebrados para que as entidades agregadoras possam monitorizar o detalhe da faturação ao longo da execução do contrato. // Os relatórios de faturação são enviados até ao dia 20 do mês subsequente ao final de um trimestre do ano civil a que digam respeito, em formato eletrónico a definir. // O não envio dos relatórios ou a existência de erros nos mesmos que não permitam a monitorização da faturação, tem um efeito suspensivo no pagamento das faturas em dívida até à regularização da situação em causa. O cocontratante deve ser previamente notificado para, num prazo não superior a 5 dias, emitir o relatório em falta ou corrigir a informação em falta no relatório enviado”, propugnando um preço de EUR 195.923,48, juntando a declaração a que se refere a alínea a) do n.° 1 do artigo 57° do CCP, bem como o DEUCP (cf. cópia da proposta e respetivos anexos junta entre fls. 248 e 290 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

6) Em 23.06.2017, o júri do procedimento concursal referido no ponto 1. supra elaborou um relatório preliminar do concurso, propondo a ordenação das propostas apresentadas pela CI e pela A. em 1.° e 2.° lugares, respetivamente (cf. cópia do relatório preliminar junta entre fls. 153 e 159 do processo administrativo apenso, documento que se dá por integralmente reproduzido).

7) Em 30.06.2017, a A. apresentou um requerimento junto do júri do procedimento concursal referido no ponto 1. supra, aí requerendo a exclusão da proposta apresentada pela CI (cf. cópia do requerimento junta entre fls. 160 e 166 do processo administrativo apenso, documento que se dá por integralmente reproduzido).

8) Em 18.07.2017, o júri do procedimento concursal referido no ponto 1. supra elaborou o respetivo relatório final, aí expendendo, a certo ponto, que “Foi entendimento do júri, que a declaração apresentada pela D………, a páginas 4 da sua proposta (...) vem colmatar a eventual contradição com o caderno de encargos, considerando-se essas menções como não escritas e a salvaguardar em fase de execução do contrato” e propondo a adjudicação do concurso à CI (cf. cópia do relatório final junta entre fls. 167 e 177 do processo administrativo apenso, documento que se dá por integralmente reproduzido).

9) Em 22.08.2017, o Conselho de Administração da R. CP Comboios de Portugal, E.P.E., aprovou a adjudicação do concurso público à CI (cf. cópia da informação de abertura do concurso junta entre fls. 1 e 7 do processo administrativo apenso).”


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O DIREITO

A questão que aqui importa decidir tem a ver com a declaração de aceitação do conteúdo do caderno de encargos por parte da D…….., entidade adjudicatária, o qual contém termos/condições divergentes com a proposta por si apresentada.

Quer o júri do concurso quer as instâncias estão de acordo que a proposta vencedora viola o artigo 27° do Caderno de Encargos já que, e como refere a decisão de 1ª instância, transcrita, nesta parte, no acórdão recorrido: «Conclui-se, assim, inequivocamente que, ao aventar, no ponto 8 da proposta apresentada, a emissão e envio dos relatórios de faturação, em formato eletrónico a definir, até ao dia 20 do mês subsequente ao final de um trimestre do ano civil, sob pena de suspensão do pagamento das faturas - ao invés de permitir o seu download via web, em formato standard, com uma antiguidade igual ou inferior a 24 horas, sob pena das cominações previstas no CE - a CI formulou um termo e condição que diverge de um aspeto da execução do contrato não submetido à concorrência».

A CI defendeu nos presentes autos que não existia qualquer contradição com os termos do Caderno de Encargos, mas essa parte não está a ser discutida neste momento.

O que aqui está a ser discutido é como lidar com a existência da contradição entre o ponto 8 do caderno de encargos e a proposta da D…….., entidade a quem foi adjudicada a empreitada, tendo em conta a declaração de aceitação do caderno de encargos e ainda a declaração da mesma de que: A D…….., concorrente ao presente procedimento, aceita, sem reservas, todo o conteúdo do Caderno de Encargos, pelo que deve considerar como não escrito qualquer conteúdo desta Proposta relativamente a quaisquer aspetos não submetidos à concorrência pelo Caderno de Encargos e que, inserido por lapso, possa ser interpretado como contraditório com este ...”.

A decisão de 1ª instância entendeu que esta declaração da D……. prevaleceria sobre o ponto 8, respeitante aos relatórios de faturação, pelo que entendeu que devia considerar-se a proposta harmonizada aos termos do caderno de encargos, concluindo que não era de anular o ato adjudicatório com esse fundamento.

Por sua vez a decisão recorrida entende que:

Segundo o critério interpretativo do artigo 238° CC, nos negócios formais a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto; isto é, para que possa valer, o sentido atribuído pelo “declaratário normal” deverá estar expresso, ainda que de forma imperfeita, no próprio texto do documento (cfr. n.° 1). Sendo certo que o sentido sem correspondência mínima no texto poderá ainda valer se traduzir a vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem e essa validade (cfr. n.° 2).

Tendo presente o teor da proposta é patente o sentido e alcance da mesma: a D…….. aceita, sem qualquer reserva, o conteúdo do Caderno de Encargos de tal modo que, tudo o que dela conste no que concerne a aspetos não submetidos à concorrência em violação do mesmo e que tenha sido inserido por lapso, deve ser considerado não escrito.

Deste modo, na proposta que apresentou a D…….. não se limitou a aceitar o Caderno de Encargos; foi um pouco mais longe retirando daí certas consequências no que concerne à validade dos termos e condições que dela constem em violação daquele. Concretamente, os mesmos são considerados não escritos; ponto é que tenham sido inseridos na proposta por lapso.

Por outras palavras, apenas são tidos por não escritos os concretos pontos da proposta que nela tenham sido apostos por lapso, ficando a valer o que consta do Caderno de Encargos.

É perfeitamente aceitável e compreensível esta declaração da D……..; aceitando ela sem reservas o conteúdo do Caderno de Encargos, então se, por lapso, por engano involuntário, fez constar da proposta um termo ou condição que o viola é o mesmo tido como não escrito, como se não tivesse sido formulado.

Só que não foi isso que sucedeu. Como a própria D…….. admite — quer em sede de contestação, quer agora em sede de contra-alegações — o ponto 8 da sua proposta não foi inserido na mesma por lapso, mas antes intencionalmente.

Com efeito, sustenta a mesma que a proposta que apresentou e concretamente o vertido no ponto 8) cumpre integralmente o disposto no artigo 27° do Caderno de Encargos, reiterando que os relatórios de faturação que se propõe enviar constituem uma informação adicional e complementar à que é exigida no Caderno de Encargos e que se propõe prestar.

Não lhe assiste, porém, razão, sendo patente que a proposta que apresentou (especificamente o ponto 8) da mesma) viola o estipulado no artigo 27° do Caderno de Encargos. (...)

A proposta da D……… não cumpre tais exigências. Com efeito, o que mesma se propõe fazer é emitir relatórios de faturação, os quais são enviados até ao dia 20 do mês subsequente ao final de um trimestre do ano civil a que digam respeito, em formato eletrónico a definir.

É patente a desconformidade do ponto 8) da proposta da D…….. com o disposto no artigo 27° do Caderno de Encargos, sendo certo que, ao contrário do que a mesma pretende, não resulta daquela que os relatórios de faturação que se propõe emitir constituam uma informação complementar. O Caderno de Encargos exige que os dados de faturação e de consumo sejam disponibilizados via web, em formato standard e a D……… propõe-se emiti-los e enviá-los em formato eletrónico. O Caderno de Encargos exige que os dados de faturação e consumo não apresentem uma antiguidade superior a 24h no momento em que são disponibilizados e a D…….. propõe-se enviá-los até ao dia 20 do mês subsequente ao final de um trimestre do ano civil a que digam respeito.

Em suma, a D…….. formulou no ponto 8) da sua proposta um termo ou condição que diverge de um aspeto da execução do contrato não submetido à concorrência, assim violando o Caderno de Encargos. Essa circunstância determina a sua exclusão nos termos do disposto no artigo 70° n.° 2, al. b) CCP, a tal não obstando a declaração supra referida que ela fez constar da proposta, uma vez que o aludido ponto 8) não foi inserido por lapso.

Isto posto e considerando que a proposta apresentada pela ora recorrente foi admitida, tendo sido graduada em 2° lugar — sendo, por isso, e face à exclusão da proposta da contrainteressada, a titular da melhor proposta à luz do critério de adjudicação estabelecido — sobre ela deve recair a decisão de adjudicação.”

Entendem as recorrentes que este entendimento não é o correto.

Então vejamos.

Estamos perante uma situação em que o proponente declara que aceita o Caderno de Encargos e para além disso declara que considera como não escritos os concretos pontos da proposta que nela tenham sido apostos por lapso, e que possam ser considerados como contraditórios, ficando a valer o que consta do Caderno de Encargos.

Desde logo as propostas apresentadas no âmbito de um concurso público constituem verdadeiras declarações negociais como decorre desde logo do art. 56° n°1 do CCP, nada impedindo, pois, o uso dos critérios previstos nos artigos 236° e seguintes do CC.

E, segundo as regras de interpretação das declarações negociais não podemos deixar de reconhecer que a declaração aqui em causa para além de aceitar o Caderno de Encargos como já havia feito com a declaração formal, dá como não escritos eventuais termos e condições que possam ser considerados como violadores do mesmo.

Ora, desde logo, se um concorrente declara num único documento da sua proposta que em caso de algum dos pontos da proposta poder ser considerado como contraditório com o caderno de encargos o mesmo se deve considerar não escrito, não há como não entender que assim deve considerado, face ao disposto nos artigos 236° e 238° do CC.

E não se diga, como a decisão recorrida que tal significa que “… apenas são tidos por não escritos os concretos pontos da proposta que nela tenham sido apostos por lapso, ficando a valer o que consta do Caderno de Encargos.”

Na verdade, a interpretação a fazer da referida declaração é que a introdução de cláusulas que no entender do proponente estão de acordo com o caderno de encargos, mas face a uma análise mais apurada podem ser consideradas como violadoras do caderno de encargos, não deixa de constituir um lapso do proponente, lapso na interpretação das cláusulas.

Aliás a declaração diz qualquer conteúdo, inserido por lapso, que possa ser interpretado como contraditório com o caderno de encargos.

Assim, o que o proponente manifestamente expressou quer com a aceitação do caderno de encargos quer com a declaração de reiteração de que se vinculava ao mesmo foi que era o caderno de encargos que tinha primazia perante qualquer divergência.

Que é o que também resulta do art. 96° do CCP, não obstante relativamente ao momento da celebração do contrato, mas relativamente a divergência que já vem do procedimento e não foi detetada até esse momento:

“1-(...) 2 - Fazem sempre parte integrante do contrato, independentemente da sua redução a escrito:

a) Os suprimentos dos erros e das omissões do caderno de encargos identificados pelos concorrentes, desde que esses erros e omissões tenham sido expressamente aceites pelo órgão competente para a decisão de contratar;

b) Os esclarecimentos e as retificações relativos ao caderno de encargos;

c) O caderno de encargos;

d) A proposta adjudicada;

e) Os esclarecimentos sobre a proposta adjudicada prestados pelo adjudicatário.

3 - Sempre que a entidade adjudicante considere conveniente, o clausulado do contrato pode também incluir uma reprodução do caderno de encargos completada por todos os elementos resultantes dos documentos referidos nas alíneas a), b), d) e e) do número anterior.

4 - A entidade adjudicante pode excluir expressamente do contrato os termos ou condições constantes da proposta adjudicada que se reportem a aspetos da execução do contrato não regulados pelo caderno de encargos e que não sejam considerados estritamente necessários a essa execução ou sejam considerados desproporcionados.

5 - Em caso de divergência entre os documentos referidos no n.° 2, a prevalência é determinada pela ordem pela qual são indicados nesse número.

6 –(...)”

Da interpretação deste preceito resulta claramente uma prevalência entre o caderno de encargos e a proposta adjudicada no caso de divergência entre ambos.

Prevalência essa que já estava prevista e regulamentada da mesma forma na versão original do Código dos Contratos Públicos, DL n.° 18/2008, de 29 de janeiro, a qual é a aqui aplicável.

E que se deve transpor para a interpretação a fazer na situação sub judice.

Não podemos, pois, concluir que houve por parte da D…….. qualquer violação do art. 70º n° 2 b) do CCP que implique exclusão da proposta.

Pelo que, procedem os recursos com a inerente revogação da decisão recorrida e improcedência da ação.


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Em face de todo o exposto acordam os juízes deste STA em:

a) Conceder provimento aos recursos,

b) Revogar a decisão recorrida; e, fazer subsistir, pelas razões supra invocadas, a decisão proferida em 1ª instância.

c) Julgar improcedente a ação de contencioso pré-contratual aqui em causa.

Custas pela A., aqui recorrida neste Supremo e nas instâncias.

Lisboa, 21 de Março de 2019. – Ana Paula Soares Leite Martins Portela (relatora) – Jorge Artur Madeira dos Santos - Carlos Luís Medeiros de Carvalho.