Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0272/14.3BEVIS
Data do Acordão:03/10/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:PRINCÍPIO DA PLENITUDE DA ASSISTÊNCIA DOS JUIZES
APLICAÇÃO DA LEI FISCAL NO TEMPO
NULIDADE PROCESSUAL
CPPT
Sumário:I - Consumando-se a alegada infracção processual com a própria prolação da decisão judicial, o meio próprio para se reagir contra essa ilegalidade não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação dessa decisão, mediante a interposição de recurso.
II - No processo tributário, a obrigação legal de que o juiz que presidiu às diligências de prova seja o juiz que elabora a sentença só se impõe em relação aos processos entrados em juízo após 17 de Novembro de 2019, data em que entrou em vigor a Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro (cf. art. 14.º), como resulta do disposto no art. 114.º do CPPT e da alínea a) do n.º 1 do art. 13.º da referida Lei.
Nº Convencional:JSTA000P27304
Nº do Documento:SA2202103100272/14
Data de Entrada:02/17/2021
Recorrente:A.................., LDA
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 272/14.3BEVIS
Recorrente: “A……….., Lda.”
Recorrida: Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)

1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade acima identificada (adiante Recorrente) recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença proferida pelo Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, que julgou improcedente a impugnação judicial por ela deduzida contra a liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado e respectivos juros compensatórios.

1.2 Com o requerimento de interposição do recurso, a Recorrente apresentou as alegações, que sintetizou em conclusões do seguinte teor:

«1. Com o presente recurso, pretende a Recorrente a reapreciação da matéria de direito, nos termos das conclusões que ora se expõem, extraídas da motivação apresentada.

2. A Recorrente apresentou impugnação judicial das liquidações adicionais de IVA e respectivos juros compensatórios, relativas ao ano de 2019, cuja petição inicial que deu origem aos presentes autos foi apresentada em 16 de Abril de 2014.

3. A primeira sessão de julgamento ocorreu no dia 12 de Novembro de 2019, onde foram inquiridas duas testemunhas indicadas pela Recorrente e proferidos diversos despachos, entre os quais o que determinou a notificação da Recorrente para juntar aos autos mapas mensais de quebras referentes aos meses de Maio a Dezembro de 2009.

4. A segunda sessão de julgamento ocorreu no dia 18 de Dezembro de 2019, onde foi inquirida a terceira testemunha indicada pela Recorrente e a testemunha indicada pela Recorrida, tendo ainda sido proferidos despachos, entre os quais foi determinada a notificação do Serviço de Finanças de Resende, para vir juntar aos autos cópia integral do processo individual da Recorrente.

5. As referidas sessões de julgamento foram presididas pelo Exmo. Senhor Juiz de Direito Dr. B……………….

6. A 03 de Novembro de 2020, foi proferida sentença, pelo Exmo. Senhor Juiz de Direito Dr. C…………….

7. No âmbito do antigo Código de Processo Civil (cfr. arts. 653.º e 654.º) estabelecia-se, em sede de audiência final, uma dicotomia entre a fase de produção de prova e julgamento da matéria de facto e de discussão da matéria de direito (alegações) e a fase de julgamento/subsunção dos factos ao direito; essa dicotomia desapareceu, à semelhança do que já sucedia no processo tributário.

8. A eliminação do n.º 1 do artigo 654.º do Código de Processo Civil de 1961, que não foi transposto para o artigo 605.º do novo Código de Processo Civil, deveu-se ao facto de ao nível do processo civil, ter sido abolida a referida estrutura dicotómica segundo a qual o julgamento das matérias de facto e de direito ocorria em momentos distintos, sendo que tais decisões passaram a ser tomadas em conjunto, aquando da elaboração da sentença por força do disposto no art. 607.º n.º 3 do novo Código de Processo Civil.

9. À data da instauração da presente impugnação judicial, já estava em vigor o novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 41/2013, de 26 de Junho, que entrara em vigor a 01/09/2013, pelo que, lhe era plenamente aplicável o disposto no seu art. 605.º.

10. Se antigamente a prolação da sentença por juiz diferente daquele que decidiu a matéria de facto não infringia aquele princípio, agora o julgamento da matéria de facto passou a conter-se na audiência final e por força dessa concentração, o princípio da plenitude da assistência dos juízes passou a valer, lógica e necessariamente, também para a fase da sentença.

11. Em sede de direito tributário, sempre inexistiu a finda estrutura dicotómica de julgamento, contudo, por o Código de Processo Civil ser de aplicação supletiva, e pelas razões gerais que levaram o legislador a instituir tal princípio, também em sede de direito tributário se impõe o respeito pelo mesmo.

12. Em regra, o Juiz do tribunal tributário que procedeu à inquirição de testemunhas deverá ser o mesmo que procederá à elaboração da sentença respeitando-se assim o princípio ínsito no referido art. 605.º do novo Código de Processo Civil.

13. Se a recolha da prova aconteceu antes de 01/09/2013 (data da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil), deve ser mantida a jurisprudência que sufragando pela inexistência da dicotomia entre o julgamento da matéria de facto e da matéria de direito no processo tributário, não considerava violado o princípio da plenitude da assistência dos juízes, quando o juiz que assistisse aos autos de produção de prova, fosse distinto do juiz que proferisse a sentença.

14. Se a recolha da prova ocorreu depois de 01/09/2013 (data da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil), o juiz do tribunal tributário que procedeu à inquirição de testemunhas deverá ser o mesmo que procederá à elaboração da sentença respeitando-se assim o princípio ínsito no referido art. 605.º do novo Código de Processo Civil.

15. Considerando que o presente processo de impugnação deu entrada após 01/09/2013 (em concreto em 16/04/2014) e a inquirição das testemunhas ocorreu em 12/11/2019 e 18/12/2019, respectivamente, sob pena de nulidade, atenta a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil ao processo de impugnação tributária, o Juiz que procedeu à inquirição de testemunhas deverá ser o mesmo que procederá à prolação da sentença.

16. No caso dos autos, a sentença não podia, ainda que excepcionalmente, ser proferida por juiz distinto do que recolheu a prova testemunhal.

17. O novo CPPT, veio consagrar, de forma expressa, no processo tributário o referido princípio da plenitude da assistência dos juízes, que até então, apenas tinha aplicação por via subsidiária do Código de Processo Civil, quando estatui no artigo 114.º que “não conhecendo logo do pedido, o juiz ordena as diligências de produção de prova necessárias, as quais são produzidas no respectivo tribunal, aplicando-se o princípio da plenitude da assistência do juiz”, pelo que, se dúvidas existissem quanto à aplicação deste princípio ao processo tributário, as mesmas foram resolvidas pelo próprio legislador, o que tudo indicia que, tal princípio tem plena aplicação no processo de impugnação tributário, nomeadamente ao presente processo de impugnação.

18. Assim, em obediência ao princípio da plenitude da assistência dos juízes, considerando a data da interposição do processo de impugnação e a data da inquirição das testemunhas, a sentença sob censura deveria ter sido proferida pelo Mmo. Juiz [do Tribunal] a quo que presidiu às diligências de prova, ou seja, pelo Exmo. Senhor Juiz de Direito Dr. B…………...

19. Do exposto, resulta que foi cometida nulidade que pode influir no exame da causa (cfr. art. 195.º n.º 1 do novo Código de Processo Civil ex vi do art. 2.º al. e) do CPPT), por violação do princípio da plenitude da assistência dos juízes, consagrado no artigo 605.º do Código de Processo Cível, aqui aplicável subsidiariamente, motivo pelo qual, deve o recurso ser julgado procedente com as legais consequências.

20. Ocorreu incorrecta interpretação e aplicação, entre outros, dos comandos legais dos arts. 605.º do Cód. de Proc. Civ. e 123.º do CPPT.

Termos em que deve merecer provimento o presente recurso e por via do mesmo ser revogada a sentença recorrida por ter ocorrido nulidade derivada da violação do princípio da plenitude da assistência dos juízes e ser ordenada a prolação de nova decisão pelo Mmo. Juiz que presidiu às diligências de prova.

Mas como sempre v. Exas. farão a esperada e acostumada Justiça!».

1.3 A Recorrida não contra-alegou.

1.4 O Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, quando da remessa dos autos ao Supremo Tribunal, pronunciou-se sobre a invocada nulidade (O Juiz do Tribunal a quo não referiu ao abrigo de que disposição legal emitia essa pronúncia. Afigura-se-nos que o poderá ter feito ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 617.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi do art. 281.º do CPPT, pois, apesar de não estarmos perante a arguição de uma nulidade da sentença, mas antes perante a arguição de uma nulidade processual, esta ocorreu com a prolação da sentença. Ora, tem-se entendido que as nulidades do processo que forem conhecidas apenas com a notificação da sentença têm o mesmo regime das nulidades desta. Neste sentido, por todos, o acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 6 de Julho de 2011, proferido no processo com o n.º 786/10, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/0b8b358609a1bea7802578cc00392356.
Sobre a distinção entre nulidades da sentença e nulidades processuais, vide, por todos, JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, II volume, anotação 2 ao art. 98.º, págs. 79/80 e anotação 2 ao art. 125.º, págs. 353/354.), sustentando a não verificação da mesma, com fundamento no já decidido pelo Supremo Tribunal Administrativo sobre a questão, como resulta do acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário de 4 de Março de 2020, proferido no processo com o n.º 259/10.5BELRS (Disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/33a8069df0604a77802585520057f812.).

1.5 Remetidos os autos a este Supremo Tribunal Administrativo e dada vista ao Ministério Público, o Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja recusado provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação: «[…]

A questão que se coloca consiste em saber se se verifica a invocada nulidade da sentença, decorrente da violação do princípio da plenitude da assistência do juiz.

A questão já foi abordada por este tribunal no âmbito dos citados acórdãos do Pleno de 12/12/2012 e de 03/07/2019, proferidos nos processos n.ºs 01152/12 e 499/04.6BECTB, respectivamente.
O primeiro, proferido na sequência de reenvio prejudicial formulado pelo então senhor juiz conselheiro presidente do TAF de Braga, realçando a especificidade do processo tributário, considerou que «Do quadro legal exposto retiramos a interpretação (…) que no contencioso tributário – processo de impugnação – de que inexiste no mesmo contencioso norma que determine o julgamento da matéria de facto pelo mesmo juiz que presidiu à produção de prova. O princípio da plenitude da assistência do juiz pressupõe a existência de actos de instrução e discussão praticados na audiência final, que em bom rigor não existe no contencioso tributário pois, diversamente do que acontece em processo civil, não há dicotomia entre fase de audiência de julgamento onde são produzidas as provas e a subsunção dos factos ao direito na sentença ou decisão final».
Concluindo-se que «Não existia, pois, uma valoração do princípio da imediação e plenitude do Juiz nos exactos termos em que o Código de Processo Civil o prevê. O que se entende e aceita atenta a especialidade própria do processo tributário/impugnação judicial, no qual não existe a fase do saneador nem a da audiência de discussão e julgamento da matéria de facto». E de que «Embora o princípio da plenitude da assistência dos juízes seja um corolário dos princípios da oralidade e da imediação, na apreciação da prova, sendo preferível que ocorra contacto directo, imediato, entre o juiz e a testemunha, tal princípio não é absoluto».
No segundo acórdão, proferido já após a entrada em vigor do novo CPC, reiterou-se aquela jurisprudência, embora com uma “nuance”: «… por o CPC ser de aplicação supletiva, e pelas razões gerais que levaram o legislador a instituir tal princípio, também em sede de direito tributário se impõe o respeito pelo mesmo. Assim sendo, de regra, o Juiz do tribunal tributário que procedeu à inquirição de testemunhas deverá ser o mesmo que procederá à elaboração da sentença respeitando-se os ditames do referido art. 605.º do novo CPC, designadamente o seu número 3».
Mas admitiu-se excepções a essa aplicação supletiva, designadamente «… se a recolha da prova em sede tributária, foi efectuada no domínio do anterior CPC é admissível, ponderadas as circunstâncias do caso concreto, que o juiz que procedeu à inquirição não seja o mesmo que elaborou a sentença».
Mais recentemente, no acórdão do Pleno de 04/06/2020, proferido no processo n.º 0259/10.5BELRS, na sequência de reenvio prejudicial formulado pelo senhor juiz conselheiro presidente do TT de Lisboa, o qual não foi admitido, teceram-se as seguintes considerações como fundamento dessa recusa:
«Porém, e face, como se disse, à singularidade do processo tributário, a questão colocada já se encontrava resolvida pela doutrina deste Supremo Tribunal e veio mesmo a ser confirmada pelo legislador, na recente alteração ao CPPT, que passou a prever expressamente, no artigo 114.º, que também no processo tributário passava a vigorar o princípio da plenitude da assistência do juiz, mas apenas para todos processos que dessem entrada em juízo após a entrada em vigor da Lei n.º 118/2019, de 17.09, cfr. artigo 13.º, n.º 1 e alínea a). Ou seja, não só a doutrina deste Supremo Tribunal sempre foi no sentido de que, no processo judicial tributário, o juiz competente para a elaboração da sentença era aquele a quem o processo se encontrava atribuído, como o próprio legislador apenas pretendeu que se fizesse de modo diferente nos processos entrados em juízo após a entrada em vigor da referida Lei n.º 118/2019».
Ou seja, embora no acórdão do Pleno de 03/07/2019 se tenha admitido a aplicação subsidiária da norma do CPC relativa ao princípio da plenitude da assistência do juiz nos processos tributários em que as diligências instrutórias ocorressem posteriormente à entrada em vigor do novo CPC, em face do disposto no artigo 13.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro 1 [1 Artigo 13.º // Aplicação no tempo // 1- As alterações efectuadas pela presente lei ao Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, na sua redacção actual, são imediatamente aplicáveis, com as seguintes excepções: a) As alterações às normas reguladoras do processo de impugnação, com a excepção das alterações introduzidas no artigo 105.º, só se aplicam aos processos de impugnação que se iniciem após a data de entrada em vigor da presente lei;], o STA veio agora deixar claro que a aplicação daquele princípio apenas ocorre nos processos que dêem entrada em juízo após a entrada em vigor daquela Lei (o que ocorreu em 17/11/2019).
Atento que os presentes autos foram instaurados em data anterior à entrada em vigor das alterações ao CPPT introduzidas pela Lei n.º 118/2019 e designadamente no artigo 114.º do CPPT, não há lugar à aplicação daquele princípio, motivo pelo qual não se verifica a invocada nulidade da sentença, por o juiz que proferiu a sentença não ser o juiz que presidiu à instrução dos autos».

1.6 Cumpre apreciar e decidir se a sentença recorrida está inquinada pela nulidade decorrente da violação do princípio da plenitude da assistência do juiz.


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2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO

Com interesse para a decisão a proferir, há que ter presente as seguintes circunstâncias processuais:

a) na petição inicial que deu origem à presente impugnação judicial foi aposto carimbo de entrada no Serviço de Finanças de Resende com data de 16 de Abril de 2014 (cf. documento a fls. 1 do processo electrónico);

b) a inquirição das testemunhas arroladas no processo ocorreu em 12 de Novembro de 2019 e em 18 de Dezembro de 2019 (cf. actas a fls. 136 e a fls. 153 do processo electrónico);

c) presidiu a essas inquirições o Juiz de Direito B…………….. (cf. as referidas actas);

d) em 3 de Novembro de 2020, foi proferida nos presentes autos sentença, que julgou improcedente a impugnação judicial (cf. a sentença a fls. 234 do processo electrónico);

e) essa sentença foi proferida pelo Juiz de Direito C…………… (cf. a sentença a fls. 234 do processo electrónico);

f) a primeira intervenção do Juiz de Direito C……………. no processo foi a prolação da sentença (cf. o processo electrónico na sua tramitação anterior a fls. 234).


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2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

A ora Recorrente, notificada do teor da sentença que julgou improcedente a impugnação judicial por ela deduzida, veio apresentar recurso dessa sentença para este Supremo Tribunal, invocando a violação do princípio da plenitude da assistência, tal como previsto no art. 605.º do Código de Processo Civil (CPC) e 114.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) (Apesar de a Recorrente invocar o art. 123.º do CPPT, pensamos que se queria referir ao art. 114.º do mesmo Código, que é onde expressamente se refere o princípio da plenitude da assistência do juiz.).
Isto porque, como resulta da consulta dos autos, o juiz que proferiu a sentença não foi o juiz que presidiu à inquirição das testemunhas e demais diligências probatórias, sendo que o deveria ser, «atenta a data da propositura da acção, a data da produção dos meios de prova e as diversas alterações legislativas entretanto operadas».
Ou seja, na tese da Recorrente, ocorreu uma nulidade processual, ou seja «a prática de um acto que a lei não admita […] quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa» (cf. art. 195.º, n.º 1, do CPC), decorrente da prolação da sentença por juiz diferente do que presidiu à fase instrutória.
Note-se que a arguição das nulidades processuais só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer decisão judicial e devem ser invocadas em sede de recurso quando, como alegadamente acontece no caso sub judice, estão a coberto de uma decisão judicial ( Vide, neste sentido, entre outros,
- ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, vol. II, pág. 507;
- ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª edição, págs. 378/379.); ou seja, se há uma decisão judicial a ordenar ou a autorizar a prática ou a omissão do acto ou da formalidade ou se a infracção processual se consuma com a própria prolação da decisão judicial, o meio próprio para se reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação dessa decisão, mediante a interposição do recurso pertinente (Cf. JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., volume II, nota 3 ao art. 125.º, págs. 354/356.).
Assim, a questão que ora cumpre apreciar e decidir é a de saber se ocorre a invocada nulidade, por a sentença ter sido proferida por outro juiz que não aquele que presidiu à fase instrutória do presente processo de impugnação judicial.

2.2.2 DO PRINCÍPIO DA PLENITUDE DA ASSISTÊNCIA – SUA APLICAÇÃO NO PROCESSO TRIBUTÁRIO E NO TEMPO

Sustenta a Recorrente que o princípio da plenitude da assistência foi violado por a sentença não ter sido proferida pelo juiz que presidiu às diligências instrutórias.
Em síntese, entende a Recorrente que, tendo as diligências de prova tido lugar após 1 de Setembro de 2013 (data da entrada em vigor do novo CPC), o juiz do tribunal tributário que procedeu à inquirição de testemunhas deverá ser o mesmo que procederá à elaboração da sentença, de modo a que seja respeitado o princípio ínsito no referido art. 605.º do novo CPC.
Como bem salientou o Procurador-Geral-Adjunto no parecer acima transcrito (em 1.5), sobre a questão já se pronunciou este Supremo Tribunal, deixando claro, através do acórdão de 4 de Março de 2020, proferido no processo com o n.º 259/10.5BELRS (Disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/33a8069df0604a77802585520057f812.) – se alguma dúvida sobre a questão poderia ter deixado o acórdão de 3 de Julho de 2019, proferido no processo n.º 499/04.6BECTB (Disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/129902df8515da2480258433004a668f.) –, o procedimento a adoptar nesta matéria. Assim, em resposta à questão que lhe foi endereçada pelo Presidente do Tribunal Tributário de Lisboa, em sede de consulta prejudicial (Consulta prevista no art. 93.º, n.ºs 1, alínea b) e 3, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável ao contencioso tributário por força do disposto no art. 2.º, alínea c), do CPPT, e no n.º 2, do art. 27.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.) – de saber se «a elaboração de sentença em processo em que tenha havido inquirição de testemunhas após a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, compete ao juiz que no momento for titular do processo ou compete ao juiz que presidiu à inquirição de testemunhas e outras diligências de prova» –, a formação a quem incumbe pronunciar-se sobre a admissibilidade do pedido de consulta prejudicial (Nos termos do disposto no n.º 3 do art. 93.º do CPTA.), entendeu que esta não era de admitir, porque «a doutrina deste Supremo Tribunal sempre foi no sentido de que, no processo judicial tributário, o juiz competente para a elaboração da sentença era aquele a quem o processo se encontrava atribuído, como o próprio legislador apenas pretendeu que se fizesse de modo diferente nos processos entrados em juízo após a entrada em vigor da referida Lei n.º 118/2019».
Recuperando o que ficou dito nesse acórdão: «Sobre a questão da prevalência do princípio da plenitude da assistência do juiz, no âmbito do contencioso tributário, já este Supremo Tribunal se pronunciou nos seus acórdãos datados de 12.12.2012, recurso n.º 01152/11 e mais recentemente no acórdão datado de 03.07.2019, recurso n.º 01522/15.
Em ambos se concluiu que no processo tributário o juiz a quem compete elaborar a sentença é aquele a quem o processo está distribuído e não necessariamente aquele que presidiu às diligências de prova, face à singularidade do próprio processo tributário em confronto com o regime existente no Código Processo Civil.
É certo que a aproximação do regime estabelecido no novo Código de Processo Civil ao regime que desde sempre vigorou no processo tributário, no tocante ao regime da prova e elaboração das sentenças, veio suscitar dúvidas, infundadas, de resto, sobre se também no processo tributário haveria que passar a fazer-se de modo diferente.
Porém, e face, como se disse, à singularidade do processo tributário, a questão colocada já se encontrava resolvida pela doutrina deste Supremo Tribunal e veio mesmo a ser confirmada pelo legislador, na recente alteração ao CPPT, que passou a prever expressamente, no artigo 114.º, que também no processo tributário passava a vigorar o princípio da plenitude da assistência do juiz, mas apenas para todos processos que dessem entrada em juízo após a entrada em vigor da Lei n.º 118/2019, de 17.09, cfr. artigo 13.º, n.º 1 e alínea a)».
Tal como se entendeu no referido acórdão, também aqui entendemos, acompanhando o parecer do Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal, que, no processo tributário, a obrigação legal de que o juiz que presidiu às diligências de prova seja o juiz que elabora a sentença só se impõe em relação aos processos entrados em juízo após 17 de Novembro de 2019, data em que entrou em vigor a Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro (cf. art. 14.º), como resulta do disposto no art. 114.º do CPPT e da alínea a) do n.º 1 do art. 13.º da referida Lei, norma que regula a aplicação no tempo das alterações efectuadas ao CPPT.
Pelo que deixámos dito, e porque a presente impugnação judicial deu entrada em juízo no ano de 2014, entendemos que a sentença não enferma da nulidade que lhe vem assacada, motivo por que o recurso não será provido.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - Consumando-se a alegada infracção processual com a própria prolação da decisão judicial, o meio próprio para se reagir contra essa ilegalidade não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação dessa decisão, mediante a interposição de recurso.

II - No processo tributário, a obrigação legal de que o juiz que presidiu às diligências de prova seja o juiz que elabora a sentença só se impõe em relação aos processos entrados em juízo após 17 de Novembro de 2019, data em que entrou em vigor a Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro (cf. art. 14.º), como resulta do disposto no art. 114.º do CPPT e da alínea a) do n.º 1 do art. 13.º da referida Lei.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente [cfr. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi da alínea e) do art. 2.º do CPPT].


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Lisboa, 10 de Março de 2021. – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) – Joaquim Manuel Charneca Condesso – Paulo José Rodrigues Antunes.