Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0212/14.0BALSB 0212/14
Data do Acordão:01/25/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CRISTINA SANTOS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P31837
Nº do Documento:SA1202401250212/14
Recorrente:AA E OUTRO
Recorrido 1:CÂMARA MUNICIPAL DE AMARANTE E OUTRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: AA e BB, casados entre si e com os sinais nos autos, inconformados com a sentença proferida em 08.05.2013 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou improcedente a acção de responsabilidade civil extracontratual interposta contra a Câmara Municipal de Amarante e a Junta de Freguesia de Aboadela, dela vêm interpor recurso ao abrigo dos artºs. 102º a 108º LPTA, concluindo como segue:
1. Do elenco dos factos provados não resultou provado qual a data da realização das primeiras obras, tendo ficado apenas provado que da sua execução resultou um novo piso o qual ficou com 25cm acima do nível das soleiras das portas do rés-do-chão.

2. Não ficou provado, igualmente, que tais obras tivessem decorrido ainda antes dos Apelantes serem proprietários do referido imóvel, tendo ficado apenas provado que em 1978 era proprietário do prédio, um tio da Autora. (Ponto Y dos factos provados)

3. Não se sabendo se as obras foram realizadas nesse ano, ou seja, no ano em que a titularidade do prédio pertencia a terceiros e não aos Apelantes, esse facto é inócuo para o fim pretendido.

4. Mesmo que por hipótese académica se considerasse que à data da realização das obras o prédio ainda não pertencia aos Apelantes, nem por isso, estes estavam impedidos de fazer valer os seus direitos (enquanto actuais proprietários plenos) perante terceiros por danos nele provocados, pois ao adquirirem o imóvel não ficaram limitados na sua utilização, nem tão pouco sobre o mesmo foi imposta qualquer restrição, a qual só poderia ocorrer por lei ordinária e quando a constituição o permita (cf. art.º 18º nº 2 da CRP)

5. O artigo 1305º do Código Civil fixa o conteúdo do direito de propriedade, dizendo que “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com a observância das restrições por elas impostas". O direito de propriedade confere assim ao proprietário, dentro dos limites da lei e de modo pleno e exclusivo, o chamado «jus utendi, fruendi e abutendi». Esses poderes não se limitam senão através de restrições que a lei concreta e taxativamente impõe (artº 1306º do Código Civil)

6. Independentemente de se ter transmitido a propriedade do imóvel o certo é que o acto lesivo da mesma propriedade se mantém, a propriedade está afectada e o titular daquele direito (qualquer que ele seja - anterior ou actual) igualmente está impedido de usufruir em toda a sua plenitude aquele direito fundamental, daí poder exigir, como nos presentes autos, indemnização pelo acto lesivo.

7. Só podem ser tema da prova e da decisão da matéria de facto os factos jurídicos invocados pelas partes nas suas peças processuais, sob pena de violação do princípio do dispositivo e do contraditório (arts 264º e 265º do C.P.Civil), os quais, pela sua importância, têm protecção constitucional (artº 202º nºs 1 e 4, da C.R.P.).

8. Na motivação da decisão, o Mmo Juiz a quo, invocou outros factos que não os que, especificamente, constam do elenco dos “Factos Provados", ou sequer “assentes”, nomeadamente, quando se refere à realização das primeiras obras em 1978 ou 1986 e que nessa altura os Apelantes não eram donos do prédio, ou quando se refere à realização das obras de 2002 a 2005, se o que se discute nos autos são as obras de 2001.

9. Tais factos não foram nem provados, nem alegados por nenhuma das partes processuais, como lhes incumbia, pelo que o Julgador a quo violou o princípio do dispositivo, dado que cabe às partes a iniciativa da “delimitação dos termos do litígio, mediante a enunciação dos fundamentos e da formulação das respectivas pretensões e a eleição dos meios de defesa", não se verificando em concreto qualquer evidência que possibilitasse ao Julgador deixar de fundar a sua decisão nos factos alegados pelas partes.

10. Não se pode concluir, como acabou por concluiu o Julgador a quo, que as obras que deram azo a que a entrada de uma das lojas do prédio ficasse desnivelada em relação à rua, decorreram no período de 1978 ou de 1986, numa altura em que os Apelantes ainda não eram proprietários do prédio, e que as obras de 2005, nenhum prejuízo lhes causaram, quando essas obras nem sequer foram objecto da acção judicial.

11. A sentença é, igualmente, nula por excesso de pronúncia (art.º 668 n.º 1 alínea d), do CPC, ex vi 1.º CPTA), uma vez que o Mmo, Juiz do Tribunal a quo pronunciou-se acerca de factos de que não estava habilitado a conhecer, porque não lhe tinham sido apresentados pelas partes para a sua competente apreciação, encontrando-se aquele obrigado a ocupar-se apenas e tão só das questões suscitadas, salvo quando a lei lhe permita ou imponha o conhecimento oficioso de outras.

12. Não tendo sido invocada a prescrição em relação às obras primeiramente realizadas pelas RR., e porque o seu conhecimento não é oficioso, vedado estava ao Mmo. Juiz do Tribunal a quo para sobre ela se pronunciar, como efectivamente se pronunciou.

13. Reportando-nos aos factos provados, verificamos que nada consta relativamente à data da realização das primeiras obras, pelo que, mais uma vez o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo extravasou o seu poder, conhecendo o que não podia, e fundamentando a sentença no que processualmente não existe.

14. Os Apelantes consideram incorrectamente julgados vários pontos da matéria de facto, designadamente os artºs 4º, 5º, 8º, 9º, 12º, 14º a 18º e 22º, 37º e 45º da base instrutória e que se mostram relevantes para a decisão da causa.

15. O Meritíssimo Juiz da 1ª instância considerou conclusiva a matéria vertida no artigo 4º e deu como não provada a factualidade vertida no artigo 5º, contudo o termo prejudicar (referido no artigo 4.º), salvo o devido respeito, encerra em si mesmo (e para o homem médio/comum) uma generalizada significação de linguagem corrente, isto é, esse termo expressa um significado médio em consequência da experiência comum sobre os conteúdos referidos com a sua utilização.

16. Acaso o Mmo Juiz do Tribunal a quo considerasse o termo “prejudicar” conclusivo podia e devia convidar os AA., ora apelantes, nos termos do preceituado no artº 508 do CPC, a concretizar em que medida se consideravam prejudicados, tornando assim mais clara a exposição factual que considerasse ambígua, inexacta ou genérica feita no articulado inicialmente produzido.

17. Uma atenta, cuidada e ponderada análise aos depoimentos prestados em sede de julgamento, impõe que tais factos (artigos 4.º e 5.º) sejam dados como provados, ao invés do decidido, como se passa a demonstrar:

18. O Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo considerou como não provado a dificuldade de acesso directo às divisões do rés-do-chão, bem como, a entrada - por diversas vezes - das águas pluviais nos referidos compartimentos, o que provocou danos os quais haviam sido reclamados pelos AA., tendo para tal e no essencial, fundamentado essa resposta de não provado no facto de “não ter sido prestado nenhum depoimento que em concreto tivesse presenciado e relatado a entrada de água no período após a colocação de paralelepípedo até ao actual pavimento, assim como não existe qualquer depoimento ou documento em que os Autores reclamem sobre este assunto."

19. Diversamente do decidido veja-se a propósito a reclamação constante de fls. 20 dos autos onde claramente se informa que: “... em 27.08.2001 ocorreu uma trovoada, cujas águas inundaram totalmente o rés-do-chão do prédio em causa.”

• “Esta situação causou danos na adega e demais vasilhame, bem como também na estrutura do prédio

• “Aproximando-se a época das chuvas, é provável que esta situação se venha a repetir com os consequentes danos, cujos custos serão imputados a essa autarquia

20. O que é corroborado pelas fotografias de fls. 545 e 546 e pelas testemunhas dos autores, a irmã da autora CC (depoimento gravado no programa, Cícero Plus, entre as "00h35,20" e as 01h15,33 do CD) e o filho DD (depoimento gravado no programa Cícero Plus, entre as 01h16,14 e as 02h12,06 do CD) - audiência realizada a 28.05.2012-.

21. Dos depoimentos prestados em audiência, resulta que estas testemunhas, mormente a testemunha DD, não só presenciou a inundação, os seus efeitos, e que ajudou na tarefa de limpeza, pelo que foram absolutamente inequívocas e peremptórias a confirmar os factos alegados pelos AA e constantes dos quesitos 4.º e 5.º

22. Constata-se assim que os concretos meios probatórios, a carta de fls. 20, as fotografias de fls. 545 e 546 e os depoimentos referidos constante da gravação realizada no processo, impunham decisão diversa daquela que foi dada aos quesitos 4.º e 5.º da Base Instrutória, pelo que, em consequência e de acordo com o disposto nos artigos 679º-A e 712º nº 1 alínea a) do C.P.C. devem ser alteradas as respostas dadas aos quesitos 4.º e 5.º da Base Instrutória para a seguinte: PROVADOS.

23. No que se refere à matéria dos quesitos 8º e 9º o Meritíssimo Juiz da 1.ª Instância deu a seguinte resposta a tais quesitos: Não provados "... Em face da prova produzida, não é possível concluir qual o valor métrico em concreto, por ausência de elementos de facto para o efeito..."

24. Para prova destes factos os A A. requereram, por diversas vezes, veja-se a título de exemplo os requerimentos datados de 17.06.2008, os de fls. 556, 557, 607 e 608 para que a R. CMA juntasse aos autos o levantamento topográfico inicial (que possuía com as metragens anteriores a qualquer uma das intervenções que efectuou), a qual sempre se escusou, o que praticamente inviabilizou, ou pelo menos tirou grande efeito prático à perícia realizada

25. Tal recusa pode e deve determinar a inversão do ónus da prova, porquanto tal recusa impossibilitou a prova cabal do facto a provar, a cargo dos AA., por não ser possível consegui-la com outros meios de prova, uma vez que no entendimento do Mmº Juiz do Tribunal a quo os demais elementos não bastaram para tanto.

26. Sem prejuízo da apreciação dessa recusa por parte deste Tribunal sempre se dirá que a soma de todos os meios probatórios produzidos poderá e deverá conduzir a uma outra resposta aos quesitos apresentados, nomeadamente pela análise do levantamento de pormenor de fls. 27 (junto com a p.i.) que infelizmente não pode ser corroborado pela testemunha EE dado o seu falecimento.

27. Analisando o referido documento verifica-se que na parte referida como perfil 5 do doc. n.º 2, a cota anterior era de 94,16 cm, sendo a actual de 94,61cms e que se somar a primeira renovação (ficou assente 25 cm) com a segunda, o piso sofreu um levantamento de, pelo menos, 40 cm, o que é corroborado pelas fotografias de fls. 543 e 544, sendo a soleira inicial da porta o degrau que por todos é falado, o que é desde logo comprovado, pela grade de feno visível a fls. 543 e 544 que protegia a referida porta.

28. Ficou provado que a JFA substituiu, com conhecimento da Ré CMA, a antiga calçada romana por paralelos, tendo este novo piso ficado com 25 cms acima do nível das soleiras das portas, (Alínea C dos factos assentes); que em Julho de 2001, a ré JFA, com o apoio da ré CMA, voltaram a renovar o mesmo pavimento da Rua e, desta vez, o piso subiu mais. (Alínea D dos factos assentes); e que a cota do pavimento referido em B) situava-se abaixo do nível das soleiras das portas do rés-do-chão. (Ponto N dos factos provados)

29. Dito de outro modo: Inegável é que o piso subiu pelo menos mais de 25 cm, pois se da primeira intervenção subiu 25cm e da segunda subiu mais (sem se apurar o quantum), teremos de concluir que subiu mais de 25 cm, e se considerarmos que a soleira da porta (como constante de fls. 544 e 545) era o actual degrau essa subida de cota se cifra em mais 15 cm, o que tudo somado traduziu-se num aumento não inferior a 40 cm.

30. Isto é esmagador e resulta igualmente do depoimento das testemunhas CC (depoimento gravado no programa Cícero Plus, entre as “00h35,20” e as 01h15,33 do CDJ e DD (depoimento gravado no programa Cícero Plus, entre as 01h16,14 e as 02h12,06 do CD) e arquitecto FF (depoimento gravado no programa Cícero Plus, entre as 02h10,20 e as 02h23,54 do CD)

31. Dos depoimentos prestados em audiência, resulta que estas testemunhas, foram absolutamente convincentes e inequívocas ao afirmarem que "... anteriormente a soleira da porta era o actual degrau; que antes não existia qualquer degrau para entrar para o rés-do-chão; que isso é facilmente constatável com a colocação das dobradiças das portas; que hoje a primeira porta não mais é do que uma janela; que entravam para a loja a direito; que quando começaram as obras o piso começou a subir substancialmente; que com as obras subiram mais; que nível do rés-do-chão está transformado numa cave; que o degrau foi criado pelas sucessivas intervenções; que agora a porta está enterrada…”

32. Impunham aqueles concretos meios probatórios, os depoimentos referidos, bem como os documentos juntos aos autos e a perícia efectuada, decisão diversa daquela que foi dada aos quesitos 8.º e 9.º da Base Instrutória, a qual deve ser alterada para provado no que diz respeito ao quesito 8.º e provado parcialmente o 9.º, dando-se como provado apenas que o piso sofreu um levantamento não inferior a 40 cm.

33. No que se refere aos quesitos 12.º, 14.º a 18.º, do depoimento da testemunha DD (depoimento gravado no programa Cícero Plus, entre as 01h16,14 e as 02h12,06 do CD) resulta claramente que as sucessivas intervenções lesaram o património dos Autores, uma vez que passaram de um rés-do-chão para uma cave, deixando assim de terem acesso directo, como outrora faziam, Mais relatou aquela testemunha que juntamente com os seus pais se dirigiu aos representantes da obra os quais prometeram suspender os trabalhos e que maugrado o compromisso tomado verificaram que tal não foi cumprido, na altura com a explicação de que era para a procissão poder passar, mas que depois iria ser corrigido.

34. A esta mesma matéria respondeu a testemunha GG, arquitecto, funcionário da CMA e com perfeito conhecimento da situação, uma vez que se deslocou a Aboadela tendo assistido ao desenrolar de alguns acontecimentos, que, com coerência relatou ao Tribunal (depoimento foi gravado e encontra-se registado em CD em formato digital entre as 01h04,08 e as 02h08,20 e que claramente disse que “...O que se estava a verificar é que já se previa que iria haver problemas de compatibilização entre as cotas do arruamento e das cotas das soleiras da casa dos AA. "...Estava a ficar inclinado, estava a ficar a rua mais alta do que os interiores das casas.." "... Isso viu-se até através dos fios que os calceteiros usavam, e estava-se a ver o que iria acontecer... isto andaria 10 a 15 cm mais alto " “...Ia aparecer ali um problema de acessibilidade para o interior e até de drenagem.."

35. Pelo que deverá merecer o quesito 12.º uma resposta restritiva “Provado apenas que em consequência dessas elevações do pavimento da Rua, ficou uma requeira, a qual dificulta o acesso directo aos compartimentos do rés-do-chão” e os quesitos 14.º a 18.º deverão ser dados como provados.

36. No que se refere ao quesito 22º deverá aquele quesito merecer uma resposta restritiva no sentido de que com a realização das obras e do referido nos quesitos 4.º e 12º o prédio dos autores sofreu uma desvalorização, relegando-se para execução de sentença o apuramento dessa desvalorização e dos demais danos provados em sede de audiência, discussão e julgamento,

37. Do depoimento das testemunhas dos autores, a irmã da autora CC (depoimento gravado no programa Cícero Plus, entre as “00h35,20” e as 01h15,33 do CDJ e o filho DD (depoimento gravado no programa Cícero Plus, entre as 01h16,14 e as 02h12,06 do CD) resulta apenas e tão só que o prédio dos Apelantes com as intervenções das RR. sofreu uma desvalorização, não sabendo aqueles precisar o quantum, daí merecer uma resposta restritiva.

38. Deveriam os quesitos 3º e 45º merecer uma resposta negativa, o que resulta igualmente dos depoimentos supra referidos e que por mera comodidade processual se coíbe de repetir os quais são unânimes em afirmar que não havia (antes das intervenções) qualquer degrau.

39. O piso do rés-do-chão sempre se situou ao nível do rés-do-chão, como o Mm.º Juiz do Tribunal a quo poderia ter a oportunidade de constatar acaso se tivesse deslocado ao local, como inicialmente prometido.

40. A matéria do quesito 45.º deve considerar-se como não escrita, pois encerra em si matéria conclusiva, encerra em si juízos subjectivos, emanados da relatividade valorativa da parte que os alega. Pergunta-se: qual era a inclinação da rua? Resposta - não se sabe; E a inclinação a montante desde a vertente da Serra do Marão qual era? Resposta - não se sabe. Mesmo assim conclui-se que essa inclinação (que não se sabe qual era) tornou impossível (de que maneira e forma?) controlar a tempestade. Quais os factos que dão suporte a tal conclusão?

41. Aquele quesito não contém um único facto circunstanciado, mas apenas e tão só juízos valorativos que, como tal, devem ser expurgados da matéria dada como provada, considerando-se como não escritos

42. A alteração da matéria de facto preconizada pelos apelantes e evidenciada pelas antecedentes conclusões mostra-se assim essencial para a prolação de decisão condenatória das RR.

43. Os apelantes não lograram provar o valor exacto desses danos, mas tal não impede que se possa remeter tal questão para a liquidação em execução de sentença, uma vez que lograram demonstrar a existência de danos não tendo contudo o Tribunal conseguido apurar “concretamente” os valores de tais danos, pelo que se encontram reunidos os requisitos de aplicação do estatuído no artigo 661º nº 2 do CPC.

44. O Tribunal deve (e estamos perante um poder dever do Juiz e não perante um poder discricionário) condenar no que se liquidar em execução de sentença sempre que se encontrem reunidas duas condições: a primeira de que as RR. tenham efectivamente causado um prejuízo aos AA. (o que é manifesto veja-se pontos G e R dos factos provados) e a segunda que o montante desses danos não terem sido concretamente apurados, pelo que deveria o Tribunal a quo ter remetido as partes para a liquidação em execução de sentença e não ter julgado a acção

45. A decisão recorrida fez errada interpretação, entre outras, dos artºs 264º, 265º, 508º, 661º, n.º 2, 668º, n.º 1, alínea d) do C.P.C., 2o, 202, n.ºs 1 e 4 da CRP, 483º, 487º n.º 2, 563º, 564º, 1305º e 1306º todos do C.C. e 9º do Decreto-Lei 48051 de 21 de Novembro de 1967, na subsunção dos factos a estes normativos, normas essas que entre outras violou, o que importa a revogação do decidido com todas as suas legais consequências.

Termos em que revogando a decisão proferida farão Vas Exas, digna e sã Justiça.


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Em contra-alegações, a Câmara Municipal da Amarante e a Junta de Freguesia de Aboadela concluem no sentido de se negar provimento ao recurso.

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Colhidos os vistos legais e entregues as competentes cópias aos Exmos. Juízes Conselheiros, vem para decisão em conferência.

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Em 1ª Instância foi julgada provada a seguinte factualidade:

A)

Os AA são proprietários de um prédio urbano sito no lugar ..., Freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial sob o artigo nº ...6 e constituído por rés do chão, com três divisões, e 1º andar, com seis divisões, confrontando pelo lado Norte com a via pública (a seguir, designada simplesmente "Rua").

B)

O pavimento inicial da Rua era formado por uma calçada romana.

C)

A Ré, JFA substituiu, com conhecimento da Ré CMA, a antiga calçada romana por paralelos, tendo este novo piso ficado com 25 cms acima do nível das soleiras das portas.

D)

Em Julho de 2001, a Ré JFA, com o apoio da Ré CMA, voltaram a renovar o mesmo pavimento da Rua e, desta vez, o piso subiu mais.

E)

O A. marido enviou ao Sr. Presidente da CMA a carta cuja cópia faz fls. 20 dos autos, a qual mereceu a resposta cuja cópia faz fls. 25 dos autos.

F)

No dia 13.08.2001, o Sr. Vereador HH e o Sr. Arquitecto II, chefe do departamento de urbanismo, ambos era representação da CMA, examinaram in loco os trabalhos de repavimentação que estavam a ser executados.

G)

Em 27.08.2001 ocorreu uma violenta tempestade, cujas águas inundaram totalmente, e por alguns dias, todo o rés do chão do prédio dos AA.

H)

O mandatário dos AA dirigiu ao Sr. Presidente da ré CMA a carta que faz fls. 22 a 24 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, a qual foi recebida e nunca obteve resposta.

I)

Os AA, acompanhados do seu mandatário, foram recebidos pelo Sr. Presidente da CMA, a quem foi exposta a situação.

J)

As obras já concluídas são as seguintes:

Substituição do piso da faixa de rodagem por cubos de granito de 15x15. Colocação de guias laterais, em granito, a ladear a faixa de rodagem e à cota desta. Renovação e colocação no subsolo do piso da rede de águas pluviais, instalação subterrânea da infra-estrutura de abastecimento de gás e da rede de iluminação pública.

Substituição do piso da Ponte Romana por piso novo.


L)

Desde sempre que a Rua se desenvolveu inclinadamente.

M)

O único acesso às divisões do rés-do-chão sempre foi feito pela Rua, não tendo outra alternativa.

N)

A cota do pavimento referido em B) situava-se abaixo do nível das soleiras das portas do rés-do-chão.

O)

As três divisões do rés-do-chão são todas totalmente independentes, separadas por muros de granito e não há comunicação interna entre elas.

P)

Em consequência dessas elevações do pavimento a Rua ficou com uma regueira, que acompanha lateralmente os prédios e que serve de escoamento das águas pluviais.

Q)

Antes das obras de pavimentação, o acesso directo ao prédio e o estacionamento de viaturas era possível.

R)

Na sequência do referido em G), os AA sofreram perda de vinho que se encontrava acondicionado em garrafões.

S)

A Rua é ladeada, dos seus dois lados, por edifícios, quase todos de habitação e está incluída na zona histórica da Freguesia ....

T)

Face à inclinação da Rua [L)], a cota do seu novo piso não é uniforme em relação aos prédios marginais.

U)

Das três portas do rés-do-chão do prédio dos AA, só a primeira (atento o sentido descendente) é que tem a soleira inferior ao piso da Rua e da guia.

E só em cerca de 11 cms.


V)

A obra vai ser completada com peças de granito lajeado, colocadas entre as guias e os edifícios marginais.

W)

Desde a construção do prédio que duas portas do rés-do-chão estão protegidas das águas das chuvas por chapas de zinco, colocadas nas suas partes inferiores.

X)

Para atingir o piso do rés-do-chão, através das duas últimas portas, é indispensável o seguinte:

Vencidas as respectivas soleiras de acesso, tem de se descer para um degrau colocado interiormente.

E só depois de ultrapassado este é que se atinge o rés-do-chão.

Cujo piso se situa em plano inferior à cota da Rua.


Y)

Em 1978 era proprietário do prédio um tio da Autora.

Z)

Para colocar a guia de granito (quesito 33º), foi indispensável abrir uma vala que, depois dessa colocação, foi fechada.

AA)

Restando apenas uma depressão de terreno para assentar as peças de granito lajeado.

AB)

A inclinação da Rua e a inclinação a montante desde a vertente da Serra do Marão, tornou impossível controlar a tempestade aludida em G).

Em via de apelação e ao abrigo do disposto no artº 662º nº 1 CPC/2013 (anterior 712º nº 1 a), 1ª parte) ex vi artº 1º LPTA (vd. acs. STA nºs 44424 de 08.07.99. 43455 de 23.09.99. 44430 de 13.10.99 e 604/13.1BALSB de 01.06.2023) amplia-se a matéria de facto com fundamento nos seguintes documentos:

- certidão de teor integral e autenticada com selo branco, da escritura de doação de imóveis, junta a fls. 79-vº a 81 do Livro nº ...4... do Cartório Notarial da Amarante junta a fls. 211-220, vol. I dos autos;

- certidão autenticada com selo branco da Conservatória do Registo Predial, junta a fls. 574-576, vol. II dos autos;

- assento nº 367 de 20.10.1998 da Conservatória do Registo Civil de Amarante autenticado com selo branco, do óbito ocorrido em 20.10.1998 de JJ no estado de casado com KK, junto a fls. 221, vol. I dos autos.


AC)

Por escritura pública de 23.02.1989 lavrada no Cartório Notarial da Amarante, JJ e mulher KK doaram a título de propriedade com reserva de usufruto à A. AA, sua sobrinha, o prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...16 de 19.04.1923, ficha ...93/..., inscrito na matriz urbana no artigo ...6 e na matriz rústica no artigo ...7 - vd. fls. 211-220, vol. I e fls. 574-576, vol. II dos autos.

AD)

Em 20.10.1998 faleceu JJ, tio da Autora referido em AC) - vd. fls. 221, vol. I dos autos.


DO DIREITO

Em via de conclusões de apelação vem a sentença do TAF do Porto assacada de incorrer em violação primária de direito adjectivo e substantivo por erro de julgamento, conforme segue:

1. nulidade por excesso de pronúncia (615º nº 1 d), 2ª parte CPC)
itens 1 a 13;
2. impugnação da matéria de facto
itens 14 a 42;

Nos itens 43 e 44 das conclusões pedem os Recorrentes a condenação das Recorridas no que vier a liquidar-se em execução de sentença quanto ao valor exacto dos danos.


a) excesso de pronúncia (615º nº 1 d) 2ª parte CPC);

No corpo alegatório sob a epígrafe “III - Posição da Recorrente” sustenta-se “... a nulidade da sentença em crise ante a oposição dos fundamentos e da própria decisão e do excesso de pronúncia que a mesma encerra ...”.

Sucede que ao longo do texto alegatório não são especificados os concretos fundamento invocados na sentença do TAF do Porto e que conduziriam logicamente a uma conclusão diferente daquela que expressamente consta da decisão ao julgar a acção improcedente e que faria incorrer a sentença no vício estatuído no artº 615º nº 1 c) CPC/2013, sendo que tanto nas alegações como nas conclusões de recurso os Recorrentes unicamente explanam e invocam como causa de nulidade o vício de excesso de pronúncia, regime à data estatuído no artº 668º nº 1 d) CPC e actualmente constante do artº 615º nº 1 d) CPC/2013.

Neste sentido em via de apelação apenas cabe conhecer do vício assacado à sentença por excesso de pronúncia.

A decisão incorre em excesso de pronúncia quando o tribunal utiliza como fundamento matéria não alegada ou condena ou absolve num pedido não formulado fora dos quadros do conhecimento oficioso, bem ainda, quando conhece de matéria alegada ou pedido formulado em condições em que está impedido de o fazer; dito de outro modo, quando se socorre de fundamento que excede a causa de pedir vazada na petição, extravasa do elenco legal do conhecimento ex officio ou conhece de pedido quantitativa ou qualitativamente distinto do formulado pela parte, isto é, em quantidade superior ou objecto diverso do pedido.

Os Recorrentes sustentam que o Tribunal de 1ª Instância fundamentou-se em factos não alegados pelas partes nem susceptíveis de conhecimento oficioso, a saber, as primeiras obras de 1978 ou 1986 na pavimentação da Rua ... e a prescrição do direito de indemnização por danos patrimoniais daí decorrentes.

Não lhes assiste razão na medida em que o conceito de excesso de pronúncia vem aplicado de forma juridicamente indevida.

Os AA ora Recorrentes alegaram no artigo 5º da petição que as primeiras obras de substituição da calçada romana por paralelos (alínea C) do probatório) na rua onde se situa o prédio urbano sua propriedade, na freguesia ... (...), foram feitas há 17 anos, o que, atenta a entrada da acção no Tribunal Administrativo de Círculo do Porto em 12.05.2003 conforme carimbo aposto na petição, reporta as obras a 1986.

Por sua vez as entidades públicas Demandadas alegam no artigo 64º da contestação que essas primeiras obras de substituição da calçada romana reportam a 25 anos atrás, ou seja, a 1978.

De modo que a datação das primeiras obras na calçada romana na Rua ... onde está localizado o prédio urbano dos Recorrentes assenta em factos de alegação expressa das partes nos respectivos articulados.

Impõe-se dizer que toda esta factualidade assente no processo vem expressa no despacho de resposta à Base Instrutória na motivação ao Quesito 3º, a fls. 645-657, vol. III dos autos.


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Quanto à referência expressa a um dos dois prazos prescricionais em matéria indemnizatória, resulta perfeitamente claro do contexto fundamentador da sentença que a referência ao prazo de 3 anos de prescrição do artº 498º nº 1 CC integra o contexto discursivo da delimitação no tempo dos danos patrimoniais peticionados sobrevindos às obras no domínio público, que os Recorrentes definem como facto constitutivo de responsabilidade civil extracontratual dos Demandados, bem como no quadro da titularidade do direito de propriedade invocado pelos AA ora Recorrentes para efeitos indemnizatórios do direito juridicamente protegido e lesado pela actividade de gestão pública de pavimentação da Rua, obras reportadas segundo os Recorrentes a 1986 e segundo os Demandados a 1978.

Ora, a atribuição pelo Tribunal recorrido de um enquadramento jurídico distinto daquele que é fornecida pela parte Recorrente quanto à extensão no tempo dos danos patrimoniais indemnizáveis contados do facto constitutivo alegado, bem ainda quanto à titularidade do direito indemnizatório com fundamento na lesão do direito de propriedade sobre o prédio urbano sito na Rua ..., não constitui qualquer excesso de pronúncia.

Efectivamente, o erro na qualificação reporta ao regime jurídico aplicável aos factos adquiridos no processo, cabendo à parte recorrente alegar que o tribunal recorrido optou pela aplicação de um bloco normativo errado para enquadrar os factos do caso concreto assentes no processo, matéria que do ponto de vista adjectivo faz parte do regime dos vícios próprios da sentença por erro de direito.

Pelo exposto improcede a questão trazida a recurso nos itens 1 a 13 das conclusões.


b) responsabilidade da Administração por factos lícitos;

No domínio da responsabilidade por factos lícitos regulada no artº 9º do Decreto-Lei 48051 de 21.Nov.1967, o sacrifício de direitos subjectivos patrimoniais de particulares em beneficio da colectividade, decorrente do exercício da actividade administrativa e com consequências danosas não intencionais, implica que “(..) esse sacrifício [em prol do interesse público] não fique iniquamente suportado por uma pessoa só [o titular do direito sacrificado ao interesse público], mas que seja repartido pela colectividade. Como se faz tal repartição? Convertendo o direito sacrificado no seu equivalente pecuniário (justa indemnização) pago pelo erário público para o qual contribui a generalidade dos cidadãos, mediante a satisfação dos impostos. Assim, a responsabilidade pelos prejuízos causados na esfera jurídica dos particulares em consequência do sacrifício especial de direitos determinados por factos lícitos da Administração pública funda-se no princípio da igualdade dos cidadãos na repartição dos encargos públicos. (..)” (Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol II, Almedina, págs. 1238-1239.)

No que importa ao âmbito de aplicação do artº 9º DL 48051 a referência a consequências danosas não intencionais pretende evidenciar que a actividade administrativa produtora do sacrifício de direitos subjectivos não se funda em acto jurídico-público cujo objecto imediato (os efeitos jurídicos que o acto visa produzir) seja a imposição de uma lesão na esfera jurídica do particular, de que são exemplo o acto de expropriação por utilidade pública ou a imposição de servidões administrativas.

Dito de outro modo, na responsabilidade por facto lícito definida pelo artº 9º nº 1 DL 48051, os danos não intencionais são provocados na esfera jurídica do particular em razão do exercício duma concreta actividade administrativa, mas não são voluntariamente queridos no sentido de corresponderem a efeitos assentes numa estatuição de autoridade.

Como já mencionado, rege na matéria o DL 48051 de 21.Nov.1967, diploma vigente à data da ocorrência dos factos relevantes trazidos ao processo e levados ao probatório, a saber, as obras de Julho de 2001 de renovação do pavimento do arruamento contíguo ao prédio urbano propriedade dos Recorrentes desde 23.02.1989 e realizadas pela Junta da Freguesia de Aboadela com o apoio da Câmara Municipal de Amarante - vd. alíneas D) e AC) do probatório.

Nos termos do citado artº 9º nº 1 DL 48051 o Estado e as demais pessoas colectivas de direito público “... indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais.”

No tocante ao sacrifício especial e anormal, requisito desta forma de responsabilidade, o primeiro pressupõe que se trate de “(..) um sacrifício não imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em razão de uma posição só dela ... (..)”; quanto ao segundo “(..)... que não possa considerar-se um risco normalmente suportado por todos em virtude da vida em colectividade. Subentende-se que o sacrifício há-de ser certo, actual (não eventual) e duradouro.(..)

O objecto do sacrifício tem de ser um direito subjectivo, pessoal ou real, ou uma coisa, mas em qualquer dos casos susceptível de avaliação pecuniária.

A lei não nos esclarece sobre o modo de calcular a indemnização devida, em caso de responsabilidade por facto lícito. Mas sempre se tem entendido, entre nós e no estrangeiro, que devem aplicar-se aqui as regras da expropriação por utilidade pública, pelo que a indemnização corresponderá ao valor actual e efectivo dos bens sacrificados, como contrapartida desse sacrifício. (..)”. (Marcello Caetano, Manual..., vol II, pág. 1241.)


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Sendo este o enquadramento jurídico devido ao caso trazido a recurso, cabe conhecer dos fundamentos da impugnação da matéria de facto suscitada pelos Recorrentes.

c) impugnação da matéria de facto em via de recurso - fundamentação da prova - razão de ciência - força probatória do depoimento;

Nos itens 14 a 42 das conclusões os Recorrentes impugnam a resposta dada pelo Tribunal a quo aos quesitos 4º, 5º, 8º, 9º, 12º, 14º a 18º e 22º, 37º e 45º da base instrutória (despacho a fls. 645-653 vol. III dos autos), tendo oferecido como meio de prova as seis testemunhas que identifica, indicado o registo específico da gravação dos depoimentos em audiência e transcrito em parte alguns dos depoimentos no tocante à matéria de facto nos citados quesitos (corpo alegatório a fls.753-760vº dos autos); consta das actas das duas sessões de julgamento a razão de ciência aduzida a título de suporte das declarações prestadas (fls. 536/537 e 552-558 dos autos).

Mostra-se, pois, observado o ónus estabelecido no artº 640 nºs. 1 e 2 CPC/2013 (anterior 685º-B nº 1), regime adjectivo cível de natureza supletiva ex vi artº 1º LPTA, aplicável de imediato aos actos processuais a realizar em acções pendentes, isto é, aos actos que, a partir do momento em que a lei nova entre em vigor, hajam de praticar-se em causas instauradas anteriormente por extensão ao domínio processual civil da doutrina estabelecida no artº 12º C, Civil. (Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de processo civil, Coimbra Editora/1985, págs.47-49.)

É patente pelo próprio texto que o Tribunal a quo não ignorou a prova testemunhal produzida e deu cumprimento ao disposto no artº 607º nº 4 CPC/2013 (anterior 653º nº 2) mediante especificação dos fundamentos dos meios de prova produzidos, nos termos do despacho de resposta aos quesitos e respectiva motivação a fls. 645-657 dos autos.

No tocante ao conteúdo da motivação prescrita no artº 607º nº 4 CPC diz-nos a doutrina que “(..) o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. (..) A apreciação de cada meio de prova pressupõe conhecer o seu conteúdo (por exemplo, o depoimento da testemunha), determinar a sua relevância (que não é nenhuma quando, por exemplo, a testemunha afirmou desconhecer o facto) e proceder à sua valoração (por exemplo, através da credibilidade da testemunha ou do relatório pericial) (..)” (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, Lex, 1997, 2a edição, pág. 348.)

No que respeita à valoração da prova testemunhal fundada na credibilidade da testemunha, é de todo o interesse ter presente a doutrina exposta por Alberto dos Reis, pelo que transcrevemos a parte julgada pertinente à circunstância do caso sob recurso.

Em comentário ao artº 641º do CPC/1939, actual artº 516º nº 1 CPC/2013 (anterior 638º nº 1), diz-nos o Mestre que a testemunha “(..) deporá com precisão indicando a razão de ciência e quaisquer circunstâncias que possam justificar o conhecimento dos factos. (..)

Razão de ciência quer dizer fonte de conhecimento dos factos. Tem a maior importância esta exigência da lei, porque a razão da ciência é um elemento de grande valor para a apreciação da força probatória do depoimento. (..)

Tanto apreço ligou a lei ao factor - razão de ciência - que no § 2º do artº 641º [actual 516º nº 1] manda a lei que seja, tanto quanto possível, especificada. E a seguir esclarece o sentido dessa disposição. Se a testemunha disser que sabe por ver, há-de explicar em que tempo e lugar viu o facto, se estavam aí outras pessoas que também vissem e quais eram; se disser que sabe por ouvir, há-de indicar a quem ouviu, e que tempo e lugar, e se estavam aí outras pessoas que também ouvissem e quais eram. (..)

Desceu a lei a estas minúcias, porque, uma vez destruída ou abalada a razão de ciência, o depoimento perde o valor ou fica notavelmente enfraquecido; e para a parte contrária poder atacar a razão de ciência e o tribunal poder avaliar até que ponto é exacta a razão invocada, muito interessa saber as condições e circunstâncias especiais de que a testemunha se socorre para justificar o seu conhecimento. (..)” (Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. IV, Coimbra, 1962, págs. 441/443.)

Tendo presente o enquadramento jurídico exposto, cabe analisar a impugnação da matéria de facto relativamente aos quesitos 4º, 5º, 8º, 9º, 12º, 14º a 18º e 22º, 37º e 45º da base instrutória, exarada no despacho saneador a fls. 82vº-86vº, vol. I dos autos, considerando o despacho de resposta aos quesitos e respectiva motivação a fls. 645-653 vol. III.

c. 1) quesitos 4º e 5º;

Com referência à alínea C) do probatório [“A Ré JFA substituiu, com conhecimento da Ré CMA, a antiga calçada romana por paralelos, tendo este novo piso ficado com 25 cms acima do nível das soleiras das portas”] ao quesito 4º - “E prejudicou o acesso directo às divisões do rés-do-chão?” respondeu-se como segue - “Não se responde por ser conclusivo

Também com referência à alínea C) do probatório acima transcrita, ao quesito 5º - “E veio permitir a entrada das águas pluviais nos compartimentos do rés-do-chão? O que aconteceu por várias vezes? E provocou danos aos AA? Os AA reclamaram junto das RR sem resultado?” respondeu-se como segue - “Não provado”.

Sustentam os Recorrentes que a resposta aos quesitos 4º e 5º deve ser alterada para - “Provado”.

Por imperativo legal nos termos dos artºs.508º-A nº 1 e) e 511º nº 1 CPC anterior (regime revogado pelo artº 596º nº 1 CPC/2013 que introduziu o despacho sobre o objecto do litígio e delimitação dos temas da prova) a base instrutória (antigo questionário) há-de organizar-se “(..) sobre factos simples, e não sobre factos complexos, sobre factos puramente materiais, e não sobre factos jurídicos, sobre meras ocorrências concretas, e não sobre juízos de valor, induções ou conclusões a extrair dessas ocorrências (..)” na exacta medida em que em sede de audiência as testemunhas hão-de ser perguntadas exactamente da mesma maneira, sobre factos simples, materiais e ocorrências concretas de que tem conhecimento por ver ou ouvir dizer, sendo esta, como já acima referido, a sua razão de ciência. Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, págs. 208 a 215.

No caso do quesito 4º, perguntar à testemunha se nas primeiras obras, reportadas segundo os Recorrentes a 1986 e segundo as Demandadas a 1978, o novo piso de substituição da antiga calçada romana por paralelos e que ficou com 25 cm acima da soleira das portas (alínea C) da matéria assente) “prejudicou o acesso directo”, não sofre dúvidas que é o mesmo que pedir um juízo de valor à testemunha, vulgo “o que é que acha”, na medida em que a apreciação negativa sobre a acessibilidade directa da rua “às divisões do rés-do-chão” faz parte da conformação literal do texto do quesito 4º.

Acresce que, nos termos do disposto no artº 388º C. Civil quanto ao meio de prova pericial, é aos peritos que compete formular juízos valorativos sobre os factos quesitados e na medida da lex artis convocada na circunstância sempre que para a percepção e apreciação dos factos ou determinação do valor de bens ou direitos sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, sendo livremente apreciada pelo Tribunal a força probatória das razões invocadas pelos peritos para justificarem o seu laudo, conforme artº 389º C. Civil. (Anselmo de Castro, Direito processual civil declaratório, vol. III, Almedina/1982, págs.332-337.)

No caso do quesito 5º o que se pergunta é se o novo piso da calçada em paralelos que ficou com 25 cm acima da soleira das portas (alínea C) da matéria assente) “veio permitir a entrada das águas pluviais nos compartimentos do rés-do-chão”.

Ora sobre estas obras de substituição da antiga calçada romana por calçada em paralelos, os Recorrentes alegaram no artigo 5º da petição que foram feitas há 17 anos e as Recorridas alegam no artigo 64º da contestação que reportam a 25 anos atrás, contados da entrada da acção em juízo no TAC do Porto em 12.05.2003.

Todavia, nenhuma das referidas testemunhas ouvidas à matéria dos quesitos 4º e 5º, LL e DD, se pronunciou sobre estas obras de substituição da calçada romana por paralelos, sendo que as Recorridas “em Julho de 2001 ... voltaram a renovar o mesmo pavimento da Rua e, desta vez, o piso subiu mais” (alínea D) da matéria assente) e “Em 27.08.2001 ocorreu uma violenta tempestade, cujas águas inundaram totalmente e por alguns dias todo o rés-do-chão do prédio dos AA.”.

Exactamente em razão dos precisos depoimentos à matéria de facto perguntada às citadas testemunhas nos quesitos 4º e 5º - as obras de substituição da calçada romana por calçada em paralelos, executadas segundo os Recorrentes há 17 anos e segundo as Recorridas há 25 - tem toda a razão de ser a motivação do TAC do Porto no sentido de “.. não ter sido prestado nenhum depoimento que em concreto tivesse presenciado e relatado a entrada de águas no período após a colocação de paralelepípedo até ao actual pavimento, assim como não existe qualquer depoimento ou documento em que os Autores reclamem sobre o assunto.” - fls. 649 dos autos.

Pelo exposto nada há a censurar à resposta dada aos quesitos 4º e 5º e respectivas motivações (fls. 648 e 649, vol. III).


c. 2) quesitos 8º e 9º - inversão do ónus de prova - artº 344º/2 Código Civil;

Ao quesito 8º - “Na parte referida como “perfil 5” do doc. nº 2, a cota anterior era de 94,16 cms, sendo a actual de 94,61 cms? Sendo que essa subida somada à referida em C) perfaz um total de 70 cms?” respondeu-se como segue - “Não provado”.

Ao quesito 9º “Somando a primeira e a segunda renovações [C) e D)], o piso sofreu um levantamento de 70 cms?” respondeu-se como segue - “Não provado”.

Sustentam os Recorrentes que a resposta aos quesitos 8º e 9º deve ser alterada para - “Provado”


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Cabe referir, em primeiro lugar, que nenhuma das referidas testemunhas ouvidas à matéria dos quesitos 8º e 9º, LL e DD, sessão de 28.Maio.2012, fls. 553-554, vol. II dos autos, bem como a testemunha MM ouvida à matéria do quesito 9º, sessão de 14.Maio.2012, fls. 536, vol II dos autos, se pronunciaram sobre os valores métricos constantes dos quesitos.

Em segundo lugar, no relatório pericial a fls. 344-348 datado de 29.05.2008, acrescido dos esclarecimentos prestados e constantes de fls. 374 e 392-393 do vol. II, o perito designado pelos Recorrentes concluiu no sentido das valorações métricas constantes do quesito 8º, pronunciando-se os peritos designados do Tribunal e pelos Recorridos sobre os quesitos 8º e 9º como segue:

“Do “perfil 5” — doc. 2 referido na peça desenhada constante da pág. 27 dos autos não é possível extrair que a cota anterior era de 94,16 cms e de igual modo que a actual é de 64,61 cms porque desconhecemos qual a cota anterior e qual a cota actual. A diferença exacta para a cota actual do arruamento terá de ser efectuada a partir de levantamento topográfico rigoroso em face da precisão do solicitado, referida que seja a cota anterior do arruamento ou respectiva secção.” - vd. fls 345.

Quanto ao quesito 9º os peritos pronunciaram-se por unanimidade no seguinte sentido:

“Conforme anteriormente referido só com um levantamento topográfico rigoroso será possível confirmar o questionário, desde que conhecida a cota inicial antes da primeira beneficiação.

Analisando a diversidade das respostas ao quesito 8º considera-se convincente a pronúncia conjunta dos dois peritos na medida em que, de acordo com os dados carreados para o processo, é desconhecida a valoração métrica da cota da antiga calçada romana antes da execução das primeiras obras da sua substituição por paralelepípedos reportadas a 1986 segundo os Recorrentes e a 1978 segundo as Demandadas - vd. alínea C) do probatório.

Efectivamente, como referido na resposta pericial ao quesito 9º, só a partir da cota da antiga calçada romana, como é evidente, é possível aferir o valor métrico da cota actual do arruamento em função dos dois levantamentos do piso decorrentes das primeiras obras referidas na alínea C) (de 1986 ou 1978) e das segundas na alínea D) (de 2001) do probatório.

O que é corroborado pelos esclarecimentos unânimes dos senhores peritos prestados e juntos aos autos a fls. 374 na sequência do requerido pelos Recorrentes a fls. 355-356 e juntos a fls. 392-393 na sequência do despacho judicial de fls. 386, dactilografado a fls. 388vº para efeitos de compreensão do texto manuscrito.


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Por último, nesta fase recursória vêm os Recorrentes requerer a aplicabilidade do regime do artº 344º nº 2 C. Civil, ou seja, a inversão do ónus de prova quanto aos quesitos 8º e 9º - ónus probatório a cargo dos AA ora Recorrentes na medida em que constitui matéria de facto alegada no artigo 11 da petição - com fundamento na recusa por parte da Recorrida Câmara Municipal de Amarante de apresentação e junção aos autos do levantamento topográfico inicial e consequente sujeição à livre apreciação pelo Tribunal da conduta omissiva de apresentação do citado documento.

Não lhes assiste razão.

O regime processual para a não apresentação de documento em poder da parte contrária consta dos artºs. 417º nº 2 e 429º a 431º CPC/2013 (anteriores 519 nº 2 e 528º a 530º) sendo certo que do processo não consta qualquer incidente em que os ora Recorrentes tenham suscitado a recusa por parte da Câmara Municipal de Amarante de juntar ao processo o citado levantamento topográfico inicial, seguido da notificação desta entidade pública para efeitos de junção do documento aos autos sem prejuízo da aplicação do regime da inversão do ónus de prova previsto no artº 344º nº 2 C. Civil.

Na medida em que os peritos declararam que “desconhecem a existência de um levantamento topográfico inicial” - vd. fls. 393 - seria caso de accionar o disposto no artº 431º CPC/2013 (anterior 530º), ou seja, na hipótese de a entidade notificada, isto é, a Câmara Municipal de Amarante declarar que não possui o citado levantamento topográfico inicial, abrir a possibilidade, se fosse o caso, de os Recorrentes provarem por qualquer meio que a declaração não corresponde à verdade.

Todo este regime constitui uma manifestação do princípio da cooperação material no campo da instrução do processo, tendo por lugar próprio, à data, a tramitação do processo em primeira instância na sequência do despacho da base instrutória.

Donde se conclui que o requerido não tem fundamento legal.

Pelo exposto nada há a censurar à resposta dada aos quesitos 8º e 9º e respectivas motivações (fls. 649) com referência à motivação da resposta ao quesito 2º (fls. 647-648, vol. III).


c. 3) quesitos 12º e 14º a 18º;

Com referência ao quesito 10º levado ao probatório na alínea P) [“Em consequência dessas elevações do pavimento, a Rua ficou com uma regueira, que acompanha lateralmente os prédios e que serve de escoamento das águas pluviais"], ao quesito 12º - “O que torna impossível o acesso directo ao rés-do-chão? E impede que os tractores possam encostar ao prédio para as cargas e descargas de produtos agrícolas? Impedindo igualmente o estacionamento de outras viaturas?” respondeu-se como segue - “Não provado”.

Ao quesito 14º - “Aquando do referido em F) os senhores aí referidos concluíram que havia erro na execução da repavimentação, que se situava muito acima do soleiramento, que iria impedir as entradas e saídas do rés-do-chão e facilitar a entrada de águas pluviais?” respondeu-se como segue — “Não provado”.

Ao quesito 15º - “Perante isso (quesito anterior), o executivo camarário mandou de imediato suspender os trabalhos de pavimentação? Dando ordens nesse sentido ao Sr. Presidente da Junta, ao encarregado das obras e demais trabalhadores?” respondeu-se como segue — “Não provado”.

Ao quesito 16º - “O executivo camarário determinou que o pavimento devia ser totalmente rebaixado na parte confinante com o prédio dos AA?” respondeu-se como segue — “Não provado”.

Ao quesito 17º - “Esta decisão (quesitos 15º e 16º) foi tomada na presença dos AA, do seu mandatário, dos Srs. Presidente e tesoureiro da Junta de Freguesia, do encarregado das obras, demais trabalhadores e vizinhos dos AA?” respondeu-se como segue - “Não provado”.

Ao quesito 18º - “Não obstante, os trabalhos de repavimentação continuaram a ser executados alguns dias depois, com o erro detectado anteriormente?” respondeu-se como segue - “Não provado”.


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Quanto aos quesitos 14º a 18º, sustentam os Recorrentes que a resposta deve ser alterada para - “Provado”.

Quanto ao quesito 12º, que a resposta deve ser alterada para - “Provado apenas que em consequência dessas elevações do pavimento da Rua, ficou uma regueira, a qual dificulta o acesso directo aos compartimentos do rés-do-chão.”


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Os quesitos 10º e 12º foram objecto de prova pericial, mostrando-se junto aos autos o relatório datado de 29.05.2008 e, como referido, a matéria do quesito 10º dado origem à alínea P) do probatório e a do quesito 12º dada como não provada.

No que toca ao quesito 10º sobre a regueira resultante dos dois levantamentos do pavimento da rua pelas primeiras obra da substituição da calçada romana (alínea C) do probatório) e das obras de Julho de 2001 (alínea D) do probatório), os senhores peritos responderam por unanimidade como segue: - “A zona lateral do arruamento contíguo ao prédio em referência está pavimentada com lajeado de granito e com 2 grelhas sumidouras aí inseridas, conforme melhor se infere nas fotos abaixo inseridas, com função de encaminhar as águas pluviais para um colector: a primeira junto à porta sul e a segunda em posição intermédia entra as duas portas mais a norte. Actualmente não existe qualquer regueira.” – fls. 345, vol. II dos autos.

No que toca ao quesito 12º os senhores peritos responderam por unanimidade como segue: - “O acesso directo faz-se actualmente sem qualquer problema bem como assim o encosto de tractores e o estacionamento de viaturas, visto não existir qualquer regueira.” - fls. 345-346, vol II dos autos.

Dada a prova pericial de inexistência de regueira à data do relatório de 29.05.2008, o que é corroborado pelas fotografias constantes do relatório pericial que mostram o passeio contíguo ao prédio em lajedo largo, perde qualquer sustentação o depoimento gravado e em parte transcrito da testemunha DD (fls. 758 e 758vº, vol. III) ouvida ao quesito 12, na sessão de audiência realizada a 28.Maio.2012 quanto a impossibilidade ou dificuldades de acesso ao rés-do-chão.


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No que toca à matéria dos quesitos 14º e 18º foi ouvida a testemunha referida, II foi ouvida na 1ª sessão de 14.Maio.2012 (fls. 536, vol. II).

Do depoimento gravado e em parte transcrito no corpo alegatório (fls. 758vº-759, vol. II) não se retira que em 13.08.2001, data referida na alínea F) do probatório, este depoente e o Vereador HH tenham concluído pela verificação de “erro na execução da repavimentação” (quesito 14º) relativamente às segundas obras de 2001 na Rua contígua ao prédio dos Recorrentes e que a repavimentação continuou a ser executada “com o erro detectado anteriormente” (quesito 18º).

Conforme transcrito no corpo alegatório, o depoente declarou que “já se previa que iria haver problemas de compatibilização entre as cotas do arruamento e as cotas das soleiras da casa dos AA” porque “estava a ficar a rua mais alta do que os interiores da casa dos AA”.

Efectivamente, nas primeiras obras de levantamento do piso da calçada romana substituída por paralelos (executadas em 1978 ou 1986) o “novo piso ficou com 25 cms acima do nível das soleiras das portas” conforme foi especificado na alínea C) do probatório, tendo as obras de renovação da rua em 2001 acentuado o desnivelamento dos 25 cms acima da cota das soleiras das portas, conforme levado à alínea D) do probatório - “Em Julho de 2001 a ré JFA (Junta de Freguesia de Aboadela) com o apoio da ré CMA (Câmara Municipal de Amarante) voltaram a renovar o mesmo pavimento da Rua e, desta vez, o piso subiu mais.”

Ou seja, da prova produzida resulta inquestionável que o desnivelamento do pavimento da rua em 25 cms acima da cota das soleiras das portas do prédio dos Recorrentes é uma consequência das primeiras obras executadas em 1978 ou 1986 aquando da substituição da calçada romana, data em que os Recorrentes ainda não eram titulares do direito de propriedade do prédio em causa - vd. alínea AC) do probatório.

Por isso, a circunstância de que na execução das obras de 2001 “estava a ficar a rua mais alta do que os interiores da casa dos AA” não permite sustentar a existência de um “erro na execução da repavimentação” na exacta medida em que nem os Recorrentes alegaram no articulado inicial nem por nenhuma das testemunhas ouvidas foi declarado que o projecto de obra de repavimentação da rua em 2001 deveria ter sido diverso daquele que foi desenhado e levado à execução.

A testemunha referida, DD, foi ouvida, além do mais, à matéria dos quesitos 14º a 18º na 2ª sessão de 28.Maio.2012 (fls. 554, vol. II).

O depoimento gravado e em parte transcrito no corpo alegatório (fls.758 e 758vº, vol. III) entra em contradição com o depoimento da testemunha NN na 1ª sessão de 14.Maio.2012 (fls. 536, vol. II) que no dia 13.08.2001 esteve presente nos trabalhos de repavimentação da Rua contígua ao prédio urbano das Recorrentes, matéria levada à alínea F) do probatório e que naquela data era Vereador do Urbanismo da Câmara Municipal da Amarante e expressamente depôs no sentido de que “não mandaram parar a obra ... porque não tinham competência para isso” declaração constante motivação da resposta aos quesitos 14 a 18 (fls. 650-651, vol. II).

Na medida em que as obras de 2001 eram da competência da Junta de Freguesia de Aboadela (alínea D) do probatório) não tem credibilidade o depoimento da testemunha DD gravado e transcrito a fls.758vº, vol. III, de que “os dirigentes da Câmara ... mandaram suspender a obra”, sendo que, em razão da assinalada incompetência, perde sentido o conteúdo dos quesitos 15, 16º e 17º.

Pelo exposto nada há a censurar à resposta dada aos quesitos 12º e 14º a 18º e respectivas motivações (fls. 650 e 651, vol III).


c. 4) quesitos 22º, 37º e 45º;

Ao quesito 22º - “Em consequência das obras e do referido nos quesitos 4" e 12º o prédio das AA sofreu uma desvalorização de 30%?” respondeu-se como segue - “Não provado”.

Ao quesito 37º - “Para atingir o piso do rés-do-chão através das duas últimas portas é indispensável o seguinte: Vencidas as respectivas soleiras de acesso, tem de se descer para um degrau colocado interiormente? E só depois de ultrapassado este é que se atinge o rés-do-chão? Cujo piso se situa em plano inferior à cota da Rua?” respondeu-se como segue - “Provado”.

Ao quesito 45” - “A inclinação da Rua e a inclinação a montante desde a vertente da Serra do Marão tornou impossível controlar a tempestade aludida em G)?” respondeu-se como segue - “Provado”.


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Quanto aos quesitos 37º e 45º sustentam os Recorrentes que a resposta deve ser alterada para - “Não provado”.

Quanto ao quesito 22º, que a resposta deve ser alterada para - “Com a realização das obras e do referido nos quesitos 4º e 12º o prédio das AA sofreu uma desvalorização.”


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Em sede de audiência os Recorrentes requereram e foi admitida a junção aos autos de um relatório de avaliação do prédio urbano em causa, sua propriedade - vd. fls. 547-551, vol. II dos autos.

Todavia, conforme fundamentado em sede de sentença, a motivação da resposta de “Não provado” dada ao quesito 22º constante do despacho a fls. 652, vol. III dos autos, é no sentido de que “(..) os Autores não logram provar desvalorização alguma no imóvel ... segundo já fundamentado na resposta à matéria de facto, porquanto o relatório pericial apresentado não é credível (..)” - vd. fls. 685, vol. III dos autos.

Efectivamente o despacho de motivação declara expressamente, como se transcreve, que o relatório de avaliação “(..) não tem credibilidade porquanto se baseia em pressupostos de facto errados, incompletos e efabulatórios.

Assim a avaliação data de 6 de Abril de 2005, ocasião em que a dita regueira já não existia, uma vez que a 2ª fase da obra foi concluída em Fevereiro de 2005 (vide projecto de obra apenso aos autos e depoimentos que referem a 2ª fase da obra estar concluída em inícios de 2005).

O mesmo relatório avaliativo apresenta uma paginação que vai de 1/55 a 5/55, o que significa que lhe faltam cinquenta páginas, pelo que não está completo e não pode ser atendido, precisamente por se tratar de um documento único e não poder ser valorado pelo Tribunal apenas com a apresentação de cinco, das cinquenta e cinco páginas.

Para além disso, refere que o prédio tem 60 anos, quando tem pelo menos 100 anos.

Refere, ainda, que a «zona sofreu obras, com substituição da antiga calçada, por cubo de granito», desconhecendo-se onde o avaliador se baseou para escrever tal coisa; sendo que, estando-se a tratar das obras de 2001, não foi substituída qualquer calçada romana (porque essa foi substituída no pós-25 de Abril), mas antes um piso em paralelepípedo.

Refere, igualmente, que considera a desvalorização imposta por um aumento da cota do arruamento, não explicando de onde retira tal conclusão, nem referindo quais as cotas anteriores; aliás, desconhecendo-se a que cotas se está a referir (se à da calçada romana, se à correspondente ao piso em paralelepípedo).

Refere, também, que as duas portas de acesso ao R/C ficaram inutilizadas, o que é manifestamente efabulatório, uma vez que no decurso do julgamento ninguém referiu que as portas ficassem inutilizadas ou que seja impossível não poder passar uma pessoa por qualquer das portas.

Diz a avaliação que o prédio fica prejudicado no seu valor, tanto mais que é procurado por um estrato social exigente, inviabilizando a sua venda.

Ora, o relatório não valora qualquer eventual melhoria de acesso com a colocação do novo piso e respectivas infra-estruturas urbanísticas (se, como refere a avaliação, foi substituída uma calçada, pelo piso actual, com certeza que uma calçada é deveras irregular e de muito mais difícil acesso de viaturas), sendo que um piso regular e infra-estruturas modernas são desejadas pelo tal estrato social exigente. Ou não será assim?

Por sua vez, a mencionada avaliação também refere que aplica o método comparativo ou de mercado, sem que refira um único elemento de comparação ou algum valor de mercado na localidade ou sequer, nas proximidades. Em face do exposto, o relatório de fls. 547 a 551 dos autos, não apresenta qualquer credibilidade e, como tal, não pode ser atendido pelo Tribunal. (..)”- vd. fls. 547-551, vol. II dos autos.


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Feita a transcrição que compete, vejamos da bondade da falta de credibilidade imputada pelo Tribunal a quo ao citado relatório, posta em crise pelos Recorrentes.

O Código Civil acolhe a regulamentação dos meios de prova e do respectivo valor probatório, dispondo no artº 388º C. Civil que a prova pericial tem lugar sempre que a percepção e apreciação (avaliação) de factos ou determinação do valor de bens ou direitos sejam de ordem a exigir conhecimentos especiais que os julgadores não possuam; nestas circunstâncias é aos peritos e na medida da lex artis convocada que compete formular juízos valorativos sobre os factos a provar, no caso presente sobre os factos levados à base instrutória, sendo livremente apreciada pelo Tribunal a força probatória das razões invocadas pelos peritos para justificarem o seu laudo, conforme artº 389º C. Civil.

O que significa que o meio de prova testemunhal não é materialmente idóneo no domínio da apreciação (avaliação) de factos para os quais se exijam conhecimentos especiais fora do universo do direito, porque essa apreciação sobre a matéria de facto que constitui objecto de prova não só extravasa o âmbito de competência cometido ao Tribunal, como o juiz da causa não pode invocar conhecimento próprio, ainda que, por mera casualidade, seja um expert na matéria, exactamente porque a competência do julgador, atribuída ex lege, artº 202º nº 1 CRP, se contém no âmbito de dizer o direito do caso concreto.

Por outro lado, no que respeita à alegada desvalorização em 30% do imóvel dos Recorrentes, atenta a prova testemunhal oferecido à matéria do quesito 22º, além de não constituir meio de prova idóneo pelas razões já expostas, a verdade é que nenhuma das testemunhas referidas e ouvidas na 2ª sessão de 28.Maio.2012 (fls. 553-554 vol. II), a saber, DD e LL, contextualizou no decurso do respectivo depoimento quaisquer referências concretizadoras da situação do prédio da freguesia ... no mercado imobiliário da zona, em ordem a sustentar o mencionado percentual de 30% de desvalorização alegado no quesito.

Consequentemente, na medida em que as testemunhas demonstraram desconhecer os termos em que se processa a avaliação de imóveis, os respectivos depoimentos à matéria do quesito 22º apenas constituem meras considerações vagas e imprecisas e mostram-se desprovidos de razão de ciência para substanciar as declarações por si avançadas no sentido da desvalorização do prédio dos Recorrentes em razão das obras de renovação do pavimento da Rua em 2001, referidas na alínea D) do probatório.

Razão de ciência quer dizer fonte de conhecimento dos factos de que a testemunha se socorre para justificar o seu conhecimento, pelo que, no caso presente, desprovidos de razão de ciência os depoimentos das testemunhas oferecidas à matéria do quesito 22º perdem totalmente o valor probatório.

À matéria dos quesitos 37º e 45º foram ouvidas as testemunhas referidas, DD e LL na 2ª sessão de 28.Maio.2012 (fls. 553-554 vol. II).

No que toca ao quesito 37º os senhores peritos responderam por unanimidade como segue: - “Sim para todo o questionado” - vd. relatório pericial, fls. 347, vol. II dos autos.

Conjugado o depoimento gravado das referidas testemunhas com as fotografias da fachada com as três portas das três divisões do rés-do-chão do prédio, portas de acesso directo à Rua (via pública) - fotos juntas com a petição inicial, vd. fls. 18 e 19, vol I dos autos - mais a fotografia em que é visível o soleiramento exterior confinante com o arruamento - foto junta a fls. 542, vol II dos autos - resulta provada a configuração do acesso ao interior do rés-do-chão vindo da via pública, atravessando a soleira exterior das portas e descendo o degrau interior para chegar ao piso das divisões térreas.


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No que toca ao quesito 45º invocam os Recorrentes que o mesmo encerra matéria conclusiva quanto à inclinação da Rua e a inclinação a montante desde a vertente da Serra do Marão, porque não se sabe quais os factos que dão suporte à conclusão de que essa inclinação “tornou impossível controlar a tempestade aludida em G”.

Trata-se da trovoada verificada na zona da Aboadela no dia 27.Agosto.2001, violenta tempestade “cujas águas inundaram totalmente e por alguns dias todo o rés-do-chão do prédio dos AA", conforme levado ao probatório na alínea G).

Efectivamente na formulação do quesito 45º que originou a alínea AB) do probatório, não é dito qual o grau de inclinação da rua em causa nas duas circunstâncias referidas, ou seja, a inclinação da Rua e a inclinação a montante desde a vertente da Serra do Marão, sendo que a única referência firme é que a Rua ... onde se situa o prédio dos Recorrentes é inclinada — vd. alínea T) do probatório.

Todavia, atendendo à lei da gravidade, o homem médio colocado na posição de destinatário da pergunta do quesito 45º entende que a expressão “controlar a tempestade” constante do quesito não significa que se esteja a perguntar se era “impossível controlar” o fenómeno atmosférico da sucessão de cargas e descargas eléctricas entre as nuvens (que toda a gente conhece pelos relâmpagos e raios seguidos dos trovões) e o consequente desabar da chuvada naquela trovoada violenta de 27.08.2001.

É do conhecimento geral, logo, do homem médio, que as pessoas não controlam trovoadas pelos seus próprios meios.

Tendo em conta a lei da gravidade e o consequente facto notório de que as águas da chuvada corriam no sentido descendente da Rua, isto é, corriam do ponto mais alto de inclinação em direcção ao ponto de inclinação mais baixo, o que se pergunta no quesito 45º é se era “impossível controlar” a torrente de águas da chuva a correr pela rua abaixo.

Dito de outro modo, pergunta-se se era “impossível controlar” a enxurrada das águas da chuva em movimento pela rua abaixo, dada a violência daquela trovoada de 27.08.2001.

Ora, em função do raciocínio associativo, as testemunhas ouvidas perceberam perfeitamente o objecto da pergunta formulada no quesito, tanto assim que essa compreensão se toma evidente pela motivação da resposta, como segue: - “resulta do depoimento de OO, que referiu a enxurrada a passar pelo rêgo e pela estrada abaixo e que também teve inundação na sua casa, que fica 1 km mais abaixo. Assim como da testemunha, PP, que referiu haver ali enxurradas sempre e que depois da construção do IP 4º até ficou melhor. Bem assim como da testemunha QQ, que referiu “vinha água pelo rêgo, outra pela rua abaixo” - vd. fls. 657, vol. III dos autos.

Ou seja, no tocante ao quesito 45º, os depoimentos gravados e as partes transcritas na motivação permitem entender que a trovoada de 27.08.2001, pela sua violência, originou uma chuvada intensa cujas águas, em modo de enxurrada, cobriram a rua de lado a lado e galgando as soleiras, entrou pelos rés-do-chão adentro, concluindo-se com segurança que foi o sucedido na casa dos Recorrentes e na da testemunha OO.

Em face do exposto nada há a censurar à resposta dada aos quesitos 22º, 37º e 45º e respectivas motivações (fls. 652-653 e 656-657, vol III).


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Por quanto vem de ser dito improcedem as questões trazidas a recurso nos itens 14 a 42 das conclusões.

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Confirmado o probatório nos exactos termos da resposta aos quesitos firmada em 1ª Instância, dele resulta que os Recorrentes adquiriram a nua propriedade do prédio contíguo à Rua ... por doação com reserva de usufruto mediante escritura de 23.02.1989 pelo que as obras públicas de renovação do pavimento da Rua que importam ao caso são as realizadas pelas Recorridas em 2001 (vd. alínea D) do probatório) para efeitos de análise do ressarcimento pedido por prejuízos causados no imóvel, que os Recorrentes concretizam para liquidação do quantum em execução de sentença, em três grupos, a saber,

(i) na dificuldade de acesso aos compartimentos do rés-do-chão, impedimento de estacionamento de tractores e veículos automóveis,

(ii) na facilitação de entrada das águas pluviais no rés-do-chão com a consequente perda do vinho engarrafado guardado num dos compartimentos aquando da violenta trovoada de 27.08.2001 que inundou todo o piso (vd. alíneas G) e R) do probatório),

(iii) na desvalorização de 30% do prédio dos Recorrentes em razão das obras de renovação do pavimento da Rua executadas pelas Recorridas,

Como já referido, nos casos de responsabilidade por factos lícitos, são pressupostos da obrigação de indemnizar por parte da Administração que haja dano na esfera jurídica de pessoa diversa daquela a quem é imputável a actividade causadora do prejuízo, a especialidade e anormalidade do dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano na medida em que a norma se refere expressamente a prejuízos causados pelo acto administrativo legal, assim remetendo para a teoria da causalidade adequada nos termos gerais de direito, vd. artºs. 2º, 3º e 9º DL 48051, 21.11.

Da fundamentação supra relativa à impugnação da resposta dada em 1ª Instância a cada um dos quesitos, resulta não provado todo o elenco de questões trazidas a recurso nas conclusões, concretamente, que as obras de repavimentação da Rua levadas a cabo pelas Recorridas em 2001 tivessem dificultado o acesso às divisões do rés-do-chão e o estacionamento junto ao mencionado prédio de tractores e demais veículos, nem que tais obras tivessem facilitado a entrada das águas pluviais no rés-do-chão e causado uma desvalorização em 30% no prédio dos Recorrentes.

Em face da solução dada às questões antecedentes mostra-se prejudicado o conhecimento do pedido de condenação das Recorridas no valor indemnizatório em liquidação de sentença, questão trazida a recurso nos itens 43 e 44 das conclusões.


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Termos em que acordam, em conferência, os Juízes Conselheiros da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo em julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença proferida pelo TAC do Porto.

Custas a cargo dos Recorrentes.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2024. - Cristina Maria Gallego dos Santos (relatora) – José Augusto Araújo Veloso - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva.