Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:053/20.5BCLSB
Data do Acordão:03/11/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
REGULAMENTO DISCIPLINAR
COMPETIÇÃO DESPORTIVA OFICIAL
AMPLIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
BAIXA DO PROCESSO
TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P27351
Nº do Documento:SA120210311053/20
Data de Entrada:02/05/2021
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:SPORT LISBOA E BENFICA - FUTEBOL, SAD
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO

1. RELATÓRIO

SPORT LISBOA E BENFICA – FUTEBOL, SAD, devidamente identificada nos autos, recorreu para o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), do Acórdão do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), que a condenou numa sanção de multa no valor de 40.800,00€, pela prática de uma infracção disciplinar p.p pelo artº 112º, nºs 1, 3 e 4 do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP).
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Por acórdão do TAD, proferido em 27 de Março de 2020, com um voto de vencido, foi decidido julgar procedente a acção, anular a decisão recorrida e absolver a demandante.
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A FPF apelou para o TCA Sul e este, com um voto de vencido, por acórdão proferido a 15 de Outubro de 2020, negou provimento ao recurso, confirmando o julgado do TAD.
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A FPF, inconformada, veio interpor o presente recurso de revista, tendo na respectiva alegação, formulado as seguintes conclusões:
«1. A Recorrente vem interpor recurso de revista para o STA do Acórdão proferido pelo TCA Sul em 15 de outubro de 2020, que confirmou o acórdão arbitral proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto e negou provimento ao recurso apresentado pela Federação Portuguesa de Futebol. Esta instância, por seu turno, havia decidido revogar a decisão de aplicação à ora Recorrida da sanção de multa no valor de €40.800,00 pela prática da infração disciplinar prevista e punida pelo artigo 112.º, nºs 1, 3 e 4 do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (doravante, RD da LPFP).
2. A questão em apreço diz respeito à responsabilização dos clubes pelas declarações consideradas ofensivas da honra e reputação de agentes desportivos e de órgãos da estrutura desportiva e que podem com isso afetar a própria competição, o que, para além de levantar questões jurídicas complexas, tem assinalável importância social uma vez que, infelizmente, tais declarações têm eco nos episódios de violência em recintos desportivos que têm sido uma constante nos últimos anos em Portugal e o sentimento de impunidade dos clubes dado por decisões como aquela de que agora se recorre nada ajudam para combater este fenómeno.
3. A Recorrente não pretende fazer deste recurso de revista e do STA uma terceira (ou quarta, se tivermos em consideração a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Requerida) instância de apreciação deste caso, o que, como se sabe, não é possível.
4. Contudo, a questão essencial trazida ao crivo deste STA – responsabilização dos clubes pelas declarações que difundem ou fazem difundir nas suas redes sociais e nos meios de comunicação social - revela uma especial relevância jurídica e social e sem dúvida que a decisão a proferir é necessária para uma melhor aplicação do direito.
5. Recorde-se que estão em causa nos presentes autos publicações em rede social da Sociedade Desportiva ora Recorrida, consideradas ofensivas da honra e da reputação dos órgãos da estrutura desportiva e dos seus membros, as quais foram divulgadas na comunicação social.
6. Por um lado, se é certo que o futebol é a modalidade desportiva com mais relevo na sociedade portuguesa, tal não torna os litígios com ele relacionados automaticamente relevantes do ponto de vista social, pese embora possam ter o seu espaço cativo diário nos órgãos de comunicação social.
7. Porém, o que assume especial relevância social é a forma como a comunidade olha para o crescente fenómeno de violência generalizada no futebol – seja a violência física, seja a violência verbal, seja perpetrada por adeptos, seja perpetrada pelos próprios clubes e/ou dirigentes dos clubes, através dos seus meios de comunicação oficiais ou outros.
8. De igual forma, também este Supremo Tribunal Administrativo, quando aceitou conhecer este tipo de declarações, numa situação muito idêntica à dos presentes autos, entendeu, de forma clara, que imputações destas «atingem não só os árbitros envolvidos, como assumem potencialidade para gerar um crescente desrespeito pela arbitragem e, em geral, pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem e disciplinam o futebol em Portugal, sendo o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros necessário para a prevenção da violência no desporto, já que tais imputações potenciam comportamentos violentos, pondo em causa a ética desportiva que é o bem jurídico protegido pelas normas em causa».
9. É também verdade que o STA não pode ser chamado a pronunciar-se sobre todas as questões que lhe são colocadas, mas apenas quando a sua intervenção seja necessária para uma melhor aplicação do direito.
10. O bem jurídico a proteger no âmbito disciplinar é distinto daquele que se visa proteger no âmbito penal, ainda que existam normas punitivas semelhantes, por vezes coincidentes, que possam induzir o aplicador em erro. Deste modo, a análise subjacente num e noutro caso tem, também, de ser muito distinto.
11. A afirmação de que a responsabilidade disciplinar é independente e autónoma da responsabilidade penal está, desde logo, presente na Lei e nos Regulamentos Federativos.
12. Assim, quando analisado o artigo 112º do RD da LPFP é possível vislumbrar, em abstrato, indícios do ilícito penal correspondente à injúria ou difamação.
13. Por outro lado, não se pode olvidar que a Recorrida tem deveres concretos que tem de respeitar e que resultam de normas que não pode ignorar.
14. A Recorrida tem, nomeadamente, o dever de “manter uma conduta conforme aos princípios desportivos de lealdade, probidade, verdade e retidão em tudo o que diga respeito às relações de natureza desportiva” (artigo 19º, nº 1, do RDLPFP19); e de “manter comportamento de urbanidade e correção entre si, bem como para com os representantes da Liga Portugal e da FPF, os árbitros e árbitros assistentes.” (artigo 51º, nº 1 do Regulamento de Competições da LPFP).
15. Naturalmente que as sociedades desportivas, clubes e agentes desportivos não estão impedidos de exprimir pública e abertamente o que pensam e sentem. Contudo, os mesmos estão adstritos a deveres de respeito e correção que os próprios aceitaram determinar e acatar mediante aprovação do RD e RC da LPFP.
16. Quando uma entidade, qualquer que seja, aceita aderir a determinada associação ou grupo organizado, aceita também as suas regras, nomeadamente, as deontológicas, disciplinares e sancionatórias.
17. Com efeito, para que a Recorrida, ou qualquer outra sociedade desportiva, seja condenada pela prática do ilícito disciplinar previsto no artigo 112º é essencial indagar se as declarações respetivas violam, pelo menos, um dos bens jurídicos visados pela norma disciplinar: a honra e bom nome dos visados ou a verdade e a integridade da competição, particularmente evidenciados pela imparcialidade e isenção dos desempenhos dos elementos das equipas de arbitragem.
18. Ao contrário daquilo que entende o TCA, não estamos, obviamente, perante a prática de um ilícito disciplinar que pretende, exclusivamente, proteger a honra e o bom nome dos árbitros visados, nem muito menos perante uma questão que deva ser analisada da perspetiva do direito penal.
19. Ademais, a questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto este tipo de casos, são cada vez mais frequentes, o que é facto público e notório.
20. O valor protegido pelo ilícito disciplinar em causa, à semelhança do que é previsto nos artigos. 180º e 181º, do Código Penal, é o direito “ao bom nome e reputação”, cuja tutela é assegurada, desde logo, pelo artigo 26º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, mas que visa em primeira linha, e ao mesmo tempo, a proteção das competições desportivas, da ética e do fair play.
21. A nível disciplinar, como é o caso, os valores protegidos com esta norma (112º do RD da LPFP), são, em primeira linha, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva, da lealdade e da probidade e, de forma mediata, o direito ao bom nome e reputação dos visados, mas sempre na perspetiva da defesa da competição desportiva em que se inserem.
22. Atenta a particular perigosidade do tipo de condutas em apreço, designadamente pela sua potencialidade de gerar um total desrespeito pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem, disciplinam e gerem o futebol em Portugal, o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros encontra fundamento na tarefa de prevenção da violência no desporto, enquanto fator de realização do valor da ética desportiva.
23. A Recorrida sabia ser o conteúdo dos textos publicados adequado a prejudicar a honra e reputação devida aos demais agentes desportivos, na medida em que tais declarações indiciam uma atuação do árbitro a que não presidiram critérios de isenção, objetividade e imparcialidade, antes colocando assim e intencionalmente em causa o seu bom nome e reputação.
24. As expressões sub judice não se limitam a propalar críticas objetivas à atuação dos elementos das equipas de arbitragem, antes incutem a ideia de que estes atuaram ao arrepio de critérios de objetividade e isenção, imbuídos da intenção de favorecimento de interesses que não os de um funcionamento imparcial, lançando sobre os mesmos a suspeição de que estariam a proteger (beneficiando) outra sociedade desportiva que disputa competições profissionais.
25. Lançar suspeitas de que a atuação dos agentes de arbitragem não é pautada ao abrigo dos valores da imparcialidade e da isenção, não podem deixar de ser atentatórias da honra e bom nome do árbitro da partida e, por inferência, da sua equipa de arbitragem consubstanciando um comportamento que não pode ser tolerado e que não está justificado pelo exercício lícito da sua liberdade de expressão.
26. E não se diga que basta um árbitro ter uma má prestação das suas funções enquanto tal cometendo, nomeadamente, erros de apreciação de lances durante o desenrolar de um jogo, que acabem por favorecer uma das equipas, que se pode utilizar as expressões que a Recorrida utilizou.
27. A apreciação errónea de um lance ou acontecimento é resultado da falibilidade do ser humano enquanto tal, que, ajuizando determinados lances julgando estar a fazer a apreciação correta dos mesmos, erra.
28. Por outro lado, muito diferente, é imputar ao árbitro um comportamento doloso de favorecimento da equipa adversária, a partir do erro propositado na apreciação de lances que, a final, resultaram na concessão de uma vantagem desportiva àquela, em violação dos valores e princípios que devem reger a competição e o desporto.
29. Resulta, portanto, claro, que através das publicações sub judice a Recorrida pretendeu, de forma expressa, lançar suspeitas quanto à atuação dos agentes de arbitragem, caracterizando tal atuação como violadora das suas competências, dos deveres funcionais a que se encontram adstritos, lançando ainda suspeitas de as suas atuações terem a intenção de favorecer determinados interesses que não os da verdade desportiva, sem qualquer fundamento factual.
30. A verdade de uma opinião, por definição, não é suscetível de prova. No entanto, pode, particularmente na ausência de uma qualquer base factual, ser excessiva.
31. E é de uma opinião, sem qualquer base factual, que aqui está em causa, uma vez que a Recorrida, ao dizer escrever e publicar os textos que publicou pretende claramente prejudicar a honra e reputação da equipa de arbitragem encarregue da direção do jogo e pôr em causa a própria integridade da competição, insinuando a existência de uma conduta concertada, pelos referidos agentes desportivos, em benefício de uma específica equipa, «em prol do “status quo” vigente», sem base factual que o sustentasse.
32. A Recorrida, não demonstrou estarem as opiniões, por si difundidas, assentes em um qualquer facto, por mais insignificante que fosse. Simplesmente, não havia base factual de que a mesma se pudesse valer para publicar as declarações que publicou. Motivo pela qual, a Recorrida, ultrapassou os limites da liberdade de expressão, o que se traduz numa clara e incontestável ofensa à honra e ao bom nome dos visados, colocando, igualmente, em causa a verdade e a integridade da competição, em consequência das suas insinuações no que respeita à imparcialidade e isenção dos desempenhos das equipas de arbitragem.
33. Criticar um árbitro afirmando que este é um mau árbitro, pelos erros grosseiros que comete, assenta numa base factual inquestionável e conexa com a crítica, estando, a priori, protegida pela liberdade de expressão. Muito diferente é utilizar aquela mesma base factual – os erros no desempenho da sua função de árbitro – para daí insinuar, sem dispor de quaisquer factos que o indiciem, que à sua atuação não presidiram critérios de isenção, objetividade e imparcialidade, uma vez que aqueles erros nunca poderiam servir de base factual àquela critica face à inexistência de um qualquer nexo de causalidade entre ambos, colocando assim e intencionalmente em causa o seu bom nome e reputação.
34. Assim, não podemos deixar de considerar que se é legítimo o direito de crítica da Recorrida à atuação dos árbitros, já a imputação desonrosa não o é, e aquelas publicações usaram esse tipo de imputação sem que se revele a respetiva necessidade e proporcionalidade para o fim visado.
35. Não se nega que expressões como a usada pela Recorrida são corriqueiramente usadas no meio desporto em geral e do futebol em particular. Porém, já não se pode concordar que por serem corriqueiramente usadas não são suscetíveis de afetar a honra e dignidade de quem quer que seja ou de afetar negativamente a competição, ademais quando nos referimos a uma suspeita de falta de isenção por parte de agentes de arbitragem, uma vez que tais afirmações têm intrinsecamente a acusação ou pelo menos a insinuação de que eventuais erros dos árbitros são intencionais. Deste modo, vão muito para além da crítica ao desempenho profissional do agente.
36. O direito à cultura física e ao desporto é o “direito de todas as pessoas, enquanto corolário ou incindível do direito ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26º, nº 1), do direito à proteção da saúde [artigo 64º, nº 2, al. b)] e do direito aos lazeres [artigo 59º, nº 1 alínea d) e 70º, nº 1 alínea e)]. E trata-se de um único direito, com manifestações diversas e não de dois direitos.
37. A sua efetivação requer tanto medidas específicas como medidas adequadas à efetivação de outros direitos e ao cumprimento de outras incumbências pelo Estado, tais como: a inserção da educação física nos currículos escolares (nº 2 do artigo 74º), o combate à violência (nº 2, in fine) e a quaisquer violações de ética desportiva como parte da educação ao serviço da compreensão mútua e da responsabilidade (artigo 73º, nº 2); a proteção especial da juventude [artigo 70º, nº 1 alínea d)]; a reabilitação e a integração dos cidadãos portadores de deficiências [artigo 78º, nº 2 alínea c)]; a inserção dos equipamentos desportivos numa rede adequada de equipamentos desportivos sociais [artigo 65º, nº 2, alínea a)].
38. Resulta, portanto, que não está somente em conflito com a liberdade de expressão da Recorrida o direito ao bom nome e reputação dos árbitros, mas, igualmente, o direito à cultura física e ao desporto, na sua vertente de prevenção da violência no desporto.
39. É imperativo para a prevenção da violência no desporto, fenómeno cada vez mais presente no desporto contemporâneo, o sancionamento do tipo de condutas como foram as da Recorrida, que apenas contribuem para a permanência de um clima de violência associado à prática desportiva.
40. Só assim é possível assegurar o respeito por estes direitos constitucionalmente consagrados que, analisados e ponderados no caso concreto, devem prevalecer sobre a liberdade de expressão.
41. Existem quatro Acórdãos recentes do Supremo Tribunal Administrativo referentes aos processos 107/18.8BCLSB, 154/19.2BCLSB, 139/19.9BCLSB, e 156/19.9BCLSB que partilham do mesmo entendimento.
42. O futebol não está numa redoma de vidro, dentro da qual tudo pode ser dito sem que haja qualquer consequência disciplinar, ao abrigo do famigerado direito à liberdade de expressão, muito menos se pode admitir que o facto de tal linguarejo ser comum torne impunes quem o utilize e que retire relevância disciplinar a tal conduta.
43. Ao decidir da forma que fez, o Tribunal a quo violou o artigo 112º do Regulamento Disciplinar da LPFP, pelo que deve ser a revista admitida e o Acórdão recorrido revogado, tendo em vista uma melhor aplicação do direito.»
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A recorrida contra-alegou, concluindo do seguinte modo:
«1. O Recurso ora improcedente é, conforme se demonstrou em sede de Alegações, legalmente inadmissível, porquanto o Acórdão Recorrido efectua uma correcta interpretação dos preceitos legais e regulamentares aplicáveis.
2. O Tribunal Arbitral do Desporto e os Tribunais Administrativos são competentes para sindicar o conteúdo das Decisões do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, entendendo-se que posição diversa seria, conforme é intento da Recorrente, criar um espaço de insindicabilidade das ditas Decisões, permitindo à Recorrente proferir Decisões não sujeitas a Recurso e crivo de Tribunais Superiores, em suma, decidiria como quer e quando quer.
3. Conforme melhor se detalhou em sede de Alegações, a Recorrente agiu ao abrigo e dentro das margens do exercício da liberdade de expressão, tal como definidas pela Jurisprudência Nacional e pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
4. A interpretação normativa que a Recorrente pretende ver consagrada nos Autos encontra-se datada no tempo e completamente ultrapassada nomeadamente em face da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tendo motivado mais de duzentas e cinquenta condenações do Estado Português.
5. A Recorrente pretende criar um estado de polícia, em que controla tudo e todos e apenas se admitem opiniões concordantes, nomeadamente, sobre as suas próprias condutas.
6. Os Árbitros e a própria Recorrente não são imunes ao erro, sendo legítimo aos agentes desportivos opinar sobre esses erros, criticando-os e evidenciando-os para que não se repitam,
7. Nomeadamente, criticando-os e evidenciando-os para que não se repitam, ao invés de os branquear e ocultar atrás de sanções disciplinares.
8. De acordo com o entendimento jurisprudencial dominante, desde o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, ao Supremo Tribunal de Justiça (no caso Português), pelo facto de os visados serem figuras públicas e exercerem funções públicas, devem possuir uma maior margem de tolerância face à crítica dessas mesmas funções públicas.
9. Sendo, inclusive, admitida a crítica contundente, violenta, irónica, etc.
10. As opiniões vertidas nas publicações em causa encontram respaldo na opinião pública, tendo sido objecto de discussão pública, nomeadamente em sede de Órgãos de Comunicação Social.
11. A prevalecer a tese jurídica vertida no Recurso Interposto, todos salvo os agentes desportivos poderão comentar matérias de arbitragem.
12. Não se peticiona os Tribunais que conheçam da bondade das Decisões de arbitragem, mas apenas que reconheçam a sua existência factual e, bem assim, a discussão pública que as mesmas motivaram, enquanto motivadoras das declarações proferidas pelo Sport Lisboa e Benfica – com referência textual nas mesmas.
13. Conforme decorre da matéria invocada em sede de Alegações, a Recorrida agiu dentro dos limites da liberdade de expressão, nos termos em que tal direito é configurado pela Jurisprudência Nacional e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
14. Por seu turno, conforme melhor se detalhou em sede de Alegações, a interpretação efectuada pela Recorrente dos nºs 1 e 4 do artigo 112º do RDLPFP viola os artigos 8º, 37º e 38º da Constituição da República Portuguesa, por se afigurar como uma compressão inadmissível da liberdade de expressão e de imprensa e, bem assim, por violação do artigo 10º da CEDH, que faz parte integrante do ordenamento jurídico português por via do artigo 8º da CRP.
15. Devendo tal inconstitucionalidade ser declarada.
16. Não assiste, pois, qualquer razão ao Recurso interposto pela Recorrente
17. Não obstante, entendendo-se pela procedência do Recurso interposto, sempre se dirá que tal não implica a condenação da Recorrida, conforme pretende a Recorrente, mas sim a baixa do processo ao Tribunal Central Administrativo Sul para efeitos de conhecimento da ampliação do objecto do Recurso peticionada pela aqui Recorrida.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve o Recurso interposto pela Recorrente ser considerado improcedente e consequentemente mantida a Decisão Recorrida,
E, concomitantemente, declarada inconstitucional a interpretação normativa efectuada pela Recorrente dos nºs 1 e 4 do artigo 112º do RDLPFP por violação dos artigos 8º, 37º e 38º da Constituição da República Portuguesa, por se afigurar como uma compressão inadmissível da liberdade de expressão e de imprensa e, bem assim, por violação do artigo 10º da CEDH, que faz parte integrante do ordenamento jurídico português por via do artigo 8º da CRP.»
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O “recurso de revista” foi admitido por acórdão deste STA [formação a que alude o nº 5 do artº 150º do CPTA], proferido em 14 de Janeiro de 2021.
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O Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artºs 146º, nº 1 e 147º do CPTA, não se pronunciou.
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Sem vistos, por não serem devidos [artº 8º, nº 2 da Lei nº 74/2013 de 06.09 e artº 36º, nº 2 do CPTA].

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. MATÉRIA DE FACTO
A matéria de facto assente nos autos, é a seguinte:
«1. No dia 23.09.2019, a arguida produziu e publicou, no sítio da internet com o endereço www.slbenfica.pt, concretamente na Edição nº 171 da - “News Benfica”, acessíveis através do separador “Agora”, daquele sítio, e disponíveis no link https://slbenfica.pt/pt-pt/agora/news-benfica/2019/09/23, nomeadamente, as seguintes declarações:
P.S.: Pela terceira jornada consecutiva, terceiro erro de árbitros e VAR incompreensíveis em benefício do FC Porto. Depois da expulsão do jogador do Vitória de Guimarães, do penálti fantasma marcado contra o Portimonense, ontem um penálti indiscutível com respetiva expulsão de um jogador do FCP ficou por marcar, prejudicando claramente o Santa Clara. O ano passado foram 10 pontos a mais, este ano, sucedem-se os erros, sempre em benefício da mesma equipa e por equipas de arbitragem que já estiveram ligadas na época anterior a muitos desses erros que deram pontos.
Ontem, a imagem do jogador do Santa Clara a sangrar e o árbitro a dar indicação para o jogo continuar, como se nada se tivesse passado, diz tudo e faz pensar e questionar - não acham que já é de mais?"
2. No dia 30.09.2019, a arguida produziu e publicou, no sítio da internet com endereço www.slbenfica.pt, concretamente na Edição nº 176 da "News Benfica", acessíveis através do separador "Agora", daquele sítio, e disponíveis no link https://www.slbenfica.pt/pt-pt/agora/news-benfica/2019/09/30, nomeadamente, as seguintes declarações:
"SINAIS PREOCUPANTES
No momento em que se pode fazer o balanço das sete primeiras jornadas do campeonato da Primeira Liga, para além da melhoria da qualidade e competitividade da maioria das equipas, um outro dado voltou infelizmente a estar em destaque: a existência de diversos erros incompreensíveis, sempre a favorecer a mesma equipa. Decisões, nos jogos com Vitória de Guimarães, Portimonense e Santa Clara, tão evidentes e tão claras, que mais escandalosas se tornam quando se verifica que o próprio VAR conseguiu não ver o que toda a gente viu. Erros que valem pontos e erros que, a exemplo do ano passado, vêm das mesmas equipas de arbitragem que permitiram que o FC Porto fosse beneficiado em pelo menos dez pontos.
Mas os sinais preocupantes aumentaram muito este fim de semana com aquilo a que se assistiu na Luz: uma dualidade de critérios chocante com factos que importa questionar.
Qual o motivo por que ………… foi admoestado com um cartão amarelo num primeiro lance de suposta demora na reposição da bola em jogo e o guarda-redes do Vitória de Setúbal, em pelo menos seis reposições demoradas, não o foi?
Qual o motivo para a expulsão de ………… e o mesmo não ter acontecido num lance muito mais indiscutível como foi o da entrada faltosa sobre …………?
Qual o motivo para o prolongamento do tempo adicional?
E qual a justificação para a grande penalidade sobre ………… não ser assinalada, bastando ver o que se passou no V. Guimarães - Paços de Ferreira, onde o juízo ao lance que dá a marcação da grande penalidade foi corretamente outro?
Mas o pior ainda estava por vir...
Fomos ontem confrontados com a informação de que o árbitro do encontro terá escrito no seu relatório ter sido atingido por uma moeda que lhe terá provocado um hematoma.
Ora esse facto é de enorme gravidade. Porque, tal como as imagens podem comprovar, essa informação é falsa, até porque, pelo que se vê, nem sequer o árbitro foi atingido, nem em momento algum houve qualquer tipo de reação compatível com essa denúncia existente no relatório.
Inventar supostas agressões com uma moeda de cinco cêntimos, causadoras de hematomas, envergonha uma classe em que existem excelentes profissionais que todos os fins de semana, em vários campos do País, têm de enfrentar, aí sim, por vezes momentos de enorme tensão.
Importa que, de uma vez por todas, o Conselho de Arbitragem assuma as suas responsabilidades. A invasão do centro de treinos da Maia e as constantes ameaças e coação sobre árbitros e seus familiares levaram a que, no deve e haver, no final da época e em tempos de balanço, uma equipa seja sempre a beneficiada.
Esta época, pensem bem, com quem aconteceram erros que, por unanimidade, se reconheceu serem difíceis de entender? E quem foi sempre beneficiado nessas situações?
A paragem do Campeonato que seja aproveitada para uma profunda análise e reflexão. O pior que poderia acontecer seria, para além de uma equipa ser beneficiada, agora, no nosso caso, termos arbitragens que qualquer observador independente reconhece ter critérios difíceis de entender. E - só faltava - com relatórios com informação ficcionada e a existência de segundas moedas inventadas.
3. Nas declarações transcritas a arguida fez referência a jogos concretos, disputados na Liga NOS na época desportiva em curso (2019/2020), o que permitiu identificar os elementos das equipas de arbitragem elencados nos pontos seguintes:
4. ……… (árbitro), ……… (assistente 1), ……… (assistente 2), ……… (4.° árbitro), ……… (VAR), ……… (AVAR) e ……… (observador), que arbitraram o jogo entre a Futebol Clube do Porto, Futebol, SAD, e a Vitória Sport Clube - Futebol, SAD, disputado no dia 01.09.2019, a contar para a 4.ª jornada da Liga NOS.
5. ……… (árbitro), ……… (assistente 1), ……… (assistente 2), ……… (4.° árbitro), ……… (VAR), ……… (AVAR) e ……… (observador), que arbitraram o jogo entre a Portimonense Futebol, SAD, e a Futebol Clube do Porto, Futebol, SAD, disputado no dia 15.09.2019, a contar para a 5°jornada da Liga NOS.
……… (árbitro), ……… (assistente 1), ……… (assistente 2), ……… (4° árbitro), ……..(VAR), ……… (AVAR) e ……… (observador), que arbitraram o jogo entre a Futebol Clube do Porto, Futebol, SAD, e a Santa Clara Açores - Futebol, SAD, disputado no dia 22.09.2019, a contar para a 6ª jornada da Liga NOS.
……… (árbitro), ……… (assistente 1), ……… (assistente 2), ……… (4.° árbitro), ……… (VAR), ……… (AVAR) e ……… (observador), que arbitraram o jogo disputado entre a Sport Lisboa e Benfica - Futebol S.A.D. e a Vitória Futebol Clube, S.A.D., realizado no dia 28.09.2019, a contar para a 7ª jornada da Liga NOS.
8º A Arguida, sabendo-se responsável pela publicação na imprensa privada ou sítios na internet por si explorados, não só não impediu a sobredita publicação, como não manifestou, em momento posterior, qualquer repúdio ou discordância com o seu conteúdo.
A Arguida Sport Lisboa e Benfica - Futebol, SAD, à data dos factos, tinha antecedentes disciplinares, tendo sido sancionada, mediante decisões disciplinares já definitivas na ordem jurídica desportiva, pelo ilícito disciplinar p. e p. no artigo 112.º do RDLPFP, em épocas anteriores, sendo por isso, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º nº 1, e 112º, nº 3, ambos do RDLPFP, reincidente”.
Não foram provados quaisquer outros factos com relevância para a decisão do litígio, tendo a restante matéria alegada e não constante do enunciado supra sido desconsiderada pelo Tribunal nesta parte, por consubstanciar matéria de direito, conclusiva ou irrelevante para a decisão da causa, pelo que, assim se decide a segunda questão supra referenciada.”
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2.2. O DIREITO.
Como supra se referiu a Federação Portuguesa de Futebol interpôs o presente recurso de revista do Acórdão proferido pelo TCA Sul em 15.10.2020 que negou provimento ao recurso que a mesma havia deduzido da decisão arbitral do TAD [proferida no processo nº 66/2019, datada de 27.03.2020], que julgou procedente o pedido de anulação das multas aplicadas ao abrigo dos artºs 112º, nºs 1, 3 e 4 do Regulamento Disciplinar da LPFP, no processo disciplinar nº 23-I/20, movido contra a ora recorrida SPORT LISBOA E BENFICA – FUTEBOL, SAD.
Em causa estão questões respeitantes à responsabilização dos clubes pelas declarações consideradas ofensivas da honra e reputação de agentes desportivos e de órgãos da estrutura desportiva e que podem afectar a competição, declarações estas, difundidas nas suas redes sociais e no meios de comunicação social.
Argumenta a recorrente nas alegações apresentadas na presente revista e em síntese, que:
(i) O Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) errou ao julgar que as afirmações vertidas na factualidade provada se compreendiam nos limites da liberdade de expressão.
(ii) Analisando a questão que lhe era colocada sob a perspectiva do direito penal e não da perspectiva do direito disciplinar, olvidou, segundo entende, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva, da lealdade e da probidade, da protecção das competições desportivas, do fair play, valorando apenas o direito ao bom nome e reputação.
(iii) Para que a recorrida seja condenada pela prática do ilícito disciplinar previsto no artº 112º é essencial indagar se as declarações respectivas violam, pelo menos, um dos bens jurídicos visados pela norma disciplinar: a honra e bom nome dos visados ou a verdade e a integridade da competição, particularmente evidenciados pela imparcialidade e isenção dos desempenhos dos elementos das equipas de arbitragem.
(iv) Mais entende que o TAD emitiu pronúncia relativamente a matéria reservada da Administração.
(v) Considera, portanto, que se procedeu a uma errada interpretação e aplicação do artº 112º, nº 1 do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional [dado que os valores aqui protegidos são em primeira linha, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva, da lealdade e da probidade e, de forma mediata, o bom nome e reputação dos visados, mas sempre na perspectiva da defesa da competição desportiva em que se inserem].
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Dispõe o artº 112º do Regulamento, que tem como epígrafe” Lesão da honra e da reputação dos órgãos da estrutura desportiva e dos seus membros:
1. O clube que use de expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros para com órgãos da Liga ou da FPF e respetivos membros, árbitros, dirigentes, clubes e demais agentes desportivos, nomeadamente em virtude do exercício das suas funções desportivas, assim como incite à prática de atos violentos, conflituosos ou de indisciplina, é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 75 UC e o máximo de 350 UC.
2. Se dos factos previstos na segunda parte do número anterior resultarem graves perturbações da ordem pública ou se provocarem manifestações de desrespeito pelos órgãos da hierarquia desportiva, seus dirigentes ou outros agentes desportivos, os limites mínimo e máximo das sanções previstas no número anterior são elevados para o dobro.
3. Em caso de reincidência, os limites mínimo e máximo das multas previstas nos números anteriores serão elevados para o dobro.
4. O clube é considerado responsável pelos comportamentos que venham a ser divulgados pela sua imprensa privada e pelos sítios na Internet que sejam explorados pelo clube, pela sociedade desportiva ou pelo clube fundador da sociedade desportiva, diretamente ou por interposta pessoa»
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O acórdão recorrido, não ignorando a jurisprudência que este STA tem vindo a produzir sobre esta matéria, entendeu seguir jurisprudência em sentido contrário, socorrendo-se da seguida no tribunal recorrido (TCAS) e apoiando-se ainda em jurisprudência emitida pelo TEDH que entendeu ser de aplicar aos presentes autos e, assim, decidir o seguinte:
«Em resumo e de acordo com a matéria de facto dada como provada, a Recorrida Sport Lisboa e Benfica SAD tinha sido responsável pela publicação num sítio da internet por si explorado de textos em que se declarava que a classificação da sua equipa de futebol tinha sido prejudicada por erros de árbitros, cometidos para beneficiar a classificação de outra equipa concorrente – o Futebol Clube do Porto.
Para o efeito, afirmou-se, nomeadamente, que “pela terceira jornada consecutiva, terceiro erro de árbitros e VAR incompreensíveis em benefício do FCP”, sucedendo-se “os erros, sempre em benefício da mesma equipa e por equipas de arbitragem que já estiveram ligadas na época anteriores a muitos desses erros que deram pontos” ao FCP, “que permitiram que o FCP fosse beneficiado em pelo menos dez pontos”, fruto de “uma dualidade de critérios chocante com factos que importa questionar” e que a “arbitragem” produzia “relatórios com informação ficcionada.”
Ora, tendo em conta os conceitos acima referidos, entendemos que no caso concreto em apreço, considerando a situação objetiva em que os factos ocorreram, não pode ser sancionado o comportamento da Recorrida.
Os árbitros desportivos, tendo em conta o meio onde desenvolvem a sua atividade, não podem deixar de serem considerados, nesse exercício, como personalidades públicas e, consequentemente, expostos à crítica da opinião pública – incluindo a crítica dos demais agentes desportivos – veiculada pelas diversas formas de expressão ao seu dispor.
Os termos em que essa crítica é feita necessariamente são influenciados por aquele meio, sendo do conhecimento geral que para a generalidade das pessoas que estão nele inseridas ou que se interessam por ele, a contundência das críticas é a regra, utilizando-se termos que no aceso contexto desportivo, pela sua generalização, não têm a carga valorativa que têm noutras atividades.
Sublinhe-se que não compete aos tribunais valorar ou modificar esta realidade, apenas lhes compete utilizá-la como um facto a ter em conta em busca das soluções que considera mais justas para os casos concretos que lhe são submetidos a apreciação.
Dentro deste contexto, entendemos que as expressões/afirmações contidas nos textos em análise não podem ser consideradas lesivas da honra e reputação dos árbitros, apesar de se reconhecer que são contundentes.
Mas mesmo que se conceba que as expressões em causa podem ser tidas como ofensivas da honra e reputação dos árbitros, o seu sancionamento disciplinar conflitua com o interesse manifestamente superior de denúncia de uma alegada injustiça, sendo que não está aqui em causa o núcleo irredutível da intimidade dos árbitros – e de qualquer pessoa - como seria o caso da invocação de factos da sua vida privada não decorrentes da sua atividade desportiva, o que não ocorreu no caso concreto em apreço.
O interesse da livre discussão da atuação dos árbitros nas competições desportivas, desde que não envolva a discussão daquele núcleo irredutível, prevalece em relação à sua honra e reputação enquanto agentes desportivos.
Note-se ainda que as afirmações em causa são contextualizadas. O seu autor insurge-se contra o que entende constituírem erros fazendo alusão às concretas “faltas” indevidamente sinalizadas e às que ficaram por sinalizar, discordando, de forma frontal e acutilante das decisões tomadas pelos árbitros. Apesar de emitir um juízo sobre os erros e sobre quem dos mesmos beneficiou, as afirmações proferidas são justificadas (no sentido de explicadas), não podem considerar-se gratuitas ou puramente ofensivas.
A indignação, a ênfase, a veemência, a deselegância e a crítica exacerbada que, manifestamente, ressaltam do texto são características usuais na discussão futebolística em termos que, não se aplaudindo, não podem ser desconsiderados. Isto porque, concordando na íntegra, com o que a este propósito se decidiu, no citado acórdão proferido no processo n.º 63/20.2, temos por certo que “a generalidade das pessoas que se integram no meio sócio-económico-cultural em questão - ou o homem médio, colocado na posição de um destinatário normal e razoável – também não considerará que tais críticas e comentários mais agressivos, ferozes ou desmerecidos, são um ataque à honra, consideração e bom nome dos visados, mas entenderá essas afirmações como apenas fazendo parte do debate aguerrido, exagerado e histriónico que prolifera neste âmbito e que se tende a auto-alimentar.”
Note-se ainda que, apesar da generalidade da jurisprudência citada no acórdão recorrido refletir sobre o conflito entre a liberdade de expressão e a honra ou o bom nome do árbitro, no plano criminal, tal decisão não se abstraiu do concreto fenómeno desportivo na sua vertente disciplinar, reduzindo a ponderação em causa à ofensa pessoal da honra. Antes resulta, com clareza bastante, do acórdão recorrido, que se teve em consideração o contexto de luta e disputa desportiva e a publicidade dos árbitros para se concluir aquilo que, neste concreto contexto, deve ser julgado tolerável. Atenta a natureza das funções em causa, é indiscutível que a honra e o bom nome dos árbitros estão indissociavelmente ligados à reputação e à credibilidade e integridade da competição desportiva em causa. Mas tal bem jurídico individualmente considerado (e não por referência a um bem jurídico pessoal in casu a honra, como sucedeu no acórdão recorrido) não tem a potencialidade de comprimir a liberdade de expressão.
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Entende ainda a Recorrente que o TAD apenas poderia alterar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira – limites gerais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF” tendo, portanto, emitido pronúncia relativamente a matéria reservada da Administração, julgando da conveniência ou oportunidade da sua decisão.
Não tem razão.
Nos termos do art.º 1º, n.º 1 da Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 33/2014, de 16 de junho “o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) é uma entidade jurisdicional independente, nomeadamente dos órgãos da administração pública do desporto e dos organismos que integram o sistema desportivo, dispondo de autonomia administrativa e financeira” tendo “competência específica para administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto” (n.º 2). “No julgamento dos recursos e impugnações previstas nos artigos anteriores, o TAD goza de jurisdição plena, em matéria de facto e de direito”, segundo dispõe o art.º 3º do mesmo diploma legal. Tem-se presente que, nos termos do art.º 3º, n.º 1 do CPTA, “ no respeito pelo princípio da separação e interdependência dos poderes, os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua atuação.” Mas, como se evidencia em acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 08.02.2018 (processo 01120/17, publicado em www.dgsi.pt), “o TAD não é um tribunal administrativo, não integrando a jurisdição administrativa, não obstante as regras do CPTA possam ser de aplicação subsidiária.
E o processo disciplinar é de natureza sancionatória sabendo nós que em matéria penal os tribunais penais aplicam uma concreta pena e dessa forma têm jurisdição plena no caso.
Não se vê porque o legislador não tenha podido e querido dar ao TAD especificidades relativamente às tradicionais competências dos tribunais administrativos não obstante as normas do CPTA sejam de aplicação subsidiária, no que seja compatível.
Pelo que, não existe qualquer absurdo em que o TAD beneficie de um regime, em sede de sindicância da atividade administrativa que, em sede de recurso da sua decisão, não é tido como o tradicionalmente conferido aos tribunais administrativos, limitados na sua ação pela chamada “reserva do poder administrativo”.
Concluímos, portanto, que o Tribunal a quo não errou na interpretação e aplicação do art.º 112º, n.º 1 do RD da LPFP pelo que o recurso não merece provimento.
Não merecendo, o recurso, provimento, não se apreciará o objeto do recurso ampliado, cuja apreciação foi requerida, pela Recorrida, a título subsidiário (art.º 636º do CPC).
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Não cremos que o assim decidido se possa manter, sendo que, sobre as questões trazidas aos autos, este Supremo Tribunal se tem vindo a pronunciar em sentido diametralmente oposto.
Atendendo à factualidade dada como provada, inexistem dúvidas que foram proferidas e noticiadas declarações que preenchem o tipo de infracção disciplinar previsto no artº 112º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP), como aliás tem vindo a ser repetido por acórdão proferidos neste STA – cfr. Acórdãos de 26.02.2019, in proc. nº 066/18.7BCLSB, de 04.06.2020, in proc. nº 0154/19.2BCLSB, de 21.05.2020, in proc. nº 0139/19.9BCLSB, de 10.09.2020, in proc. nº 038/19.4BCLSB, de 02.07.2020, in proc. nº 0139/19.9BCLSB e, de 29.02.2019, in proc. nº 66/18.7BCLSB.
Com efeito, consignou-se, a este propósito, num caso similar ao dos presentes autos, no Acórdão proferido em 10.09.2020, in proc. 038/19.4BCLSB de que fomos relatora, o seguinte:
«(…) estamos no âmbito de uma responsabilidade disciplinar, que não depende do preenchimento dos tipos legais de crime de difamação ou de injúrias, mas apenas da violação dos deveres gerais e especiais a que estão adstritos os clubes, e respectivos membros, dirigentes e demais agentes desportivos em relação a órgãos da Liga ou da FPF, respectivos membros, e elementos da equipa de arbitragem, entre outos, no âmbito dos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável à realização das competições desportivas.
Estes deveres resultam exclusivamente, da conjugação dos artºs 19º e 112º do citado RDLPFP, não sendo necessário o recurso ao Código Penal para preencher o respectivo tipo disciplinar.
No nº 1 do artº 19º do RD em questão, estabelece-se que todos os clubes e agentes desportivos que, a qualquer título ou por qualquer motivo, exerçam funções ou desempenhem a sua actividade no âmbito das competições organizadas pela Liga Portugal «devem manter conduta conforme aos princípios desportivos de lealdade, probidade, verdade e rectidão em tudo o que diga respeito às relações de natureza desportiva, económica ou social».
E no nº 2 da citada norma, prevê-se de forma explícita a inibição daqueles mesmos sujeitos de «exprimir publicamente juízos ou afirmações lesivos da reputação de pessoas singulares ou colectivas ou dos órgãos intervenientes e seus agentes, nas competições organizadas pela Liga».
Ora, as declarações proferidas pelos arguidos visando os árbitros intervenientes, as decisões do Conselho de Arbitragem, designadamente do seu Presidente, não podem, nem devem considerar-se dentro da liberdade de expressão, nem constituir somente um excesso de linguagem “permitida” no mundo do futebol; ao invés, violam o bom nome e a reputação dos visados – árbitros e Presidente do Conselho de Arbitragem – quer perante a comunidade desportiva, quer perante toda a demais comunidade que ouviu e/ou leu as expressões proferidas, tentando ainda fazer uma pressão inadmissível sobre a arbitragem e seus agentes.
Com efeito, a denominada “linguagem desportiva” não permite que se profiram insultos e se façam difamações dirigidas aos árbitros e muito menos a quem os nomeia.
Mal seria que as expressões utilizadas pelos arguidos, se enquadrassem numa crítica meramente opinativa no seio do fervor desportivo, dado que não se limitam a enunciar factos objectivos ou a exprimir opiniões acerca da sua qualificação à luz das regras do jogo; pelo contrário, são de molde, a colocar em crise, quer objectiva, quer subjectivamente, a arbitragem em Portugal, a honra e reputação dos árbitros em questão e, em particular, a do Presidente do Conselho de Arbitragem, configurando insultos, injúrias e difamações em relação aos visados, que extravasam o direito de liberdade de expressão [artº 37º da CRP].
Veja-se a propósito da integração deste género de imputações, o que se deixou consignado no Ac. de 26.02.2019, in proc. nº 066/18.7BCLSB, onde se refere:
«Imputações estas, que atingem não só os árbitros envolvidos, como assumem potencialidade para gerar um crescente desrespeito pela arbitragem e, em geral, pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem e disciplinam o futebol em Portugal, sendo o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros necessário para a prevenção da violência no desporto, já que tais imputações potenciam comportamentos violentos, pondo em causa a ética desportiva que é o bem jurídico protegido pelas normas em causa».
E ainda o que se deixou consignado, a propósito da liberdade de expressão e informação, no Acórdão proferido em 04.06.2020, in proc. nº 0154/19.2BCLSB:
«(…)
Naturalmente, a liberdade de expressão e de informação não protege tais imputações, quando as mesmas não consubstanciem factos provados em juízo, ou objetivamente verificáveis, pois aquelas liberdades não são absolutas e tem de sofrer as restrições necessárias à salvaguarda de outros direitos fundamentais, como são os direitos de personalidade inerentes à honra e reputação das pessoas, garantidos pelo nº 1 do art.º 26.º da Constituição.
O disposto nos artigos 19.º e 112.º do RDLPFP não é, por isso, inconstitucional, nem os mesmos podem ser interpretados no sentido de que a liberdade de expressão e de informação se sobrepõe à honra e reputação de todos aqueles que intervém nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, nomeadamente a dos respetivos árbitros, tanto mais que não está em causa a liberdade de expressão e de informação de órgãos de comunicação social independentes, mas da imprensa privada do próprio clube – cfr. art.º 112.º/4 do RDLPFP.
Acresce ainda, na linha do que se decidiu no Acórdão desta Secção, de 26 de fevereiro de 2019, atrás citado, que o respeito estrito pelos deveres de lealdade, probidade, verdade e retidão inerentes ao regime disciplinar estabelecido pelas normas em apreciação é indispensável à prevenção da violência no desporto, que é também um valor constitucional legitimador da compressão da liberdade de expressão e de informação dos clubes desportivos, nos termos do n.º 2 do art.º 79.º da CRP. O que nos permite responder afirmativamente à questão colocada no Acórdão Preliminar proferido nestes autos, sobre «(…) até que ponto se pode disciplinarmente reagir – com base em normas disciplinares, aliás similares às do estrangeiro – contra declarações dos clubes que, para além de excitarem anormalmente os ânimos dos seus adeptos e assim induzirem comportamentos rudes, contribuam para o descrédito das competições desportivas e do negócio que as envolve». Não só se pode, como se deve reagir sempre que os clubes extravasem o âmbito estrito da mera informação ou opinião, e ofendam a honra e a reputação dos árbitros e de todos aqueles que intervém nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional».
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Sufragando esta jurisprudência, e tendo por base a factualidade de facto dada como provada, [em que são usadas expressões como “sucedem-se erros de arbitragem sempre em benefício da mesma equipa e por equipas de arbitragem que estiveram ligadas na época anterior a muitos desses erros que deram pontos…”, é evidente que a recorrida não pode deixar de ser responsável pelos juízos de valor tecidos acerca dos erros de arbitragem que identifica, uma vez que, deste modo, põe em causa a credibilidade e, imparcialidade das pessoas em questão.
E do teor da restante matéria de facto provada, é evidente o lançamento de suspeitas sobre o trabalho dos árbitros ali identificados e Var, tendo por base acontecimentos futebolísticos, bem como, a intencionalidade de extrair conclusões de benefício de uma equipa em detrimento de outra.
Ora, estes considerandos, publicados na newsletter oficial do clube não se enquadram na liberdade de expressão ou de opinião, uma vez que se apresentam como lesivos da reputação dos árbitros e VAR em questão, enquanto profissionais imparciais, objectivos e isentos, criando inclusive um clima de suspeição sobre um dos agentes desportivos, a equipa de arbitragem e desta forma pondo em causa, de forma repetida, o ambiente sadio que deve existir nas competições desportivas, tudo em detrimento dos deveres constantes das citadas normas do RDFPFP e do disposto no artº 35º, nº 1, al. h), do referido diploma.
Acresce que nada foi feito para impedir esta publicação, nem mais tarde existiu qualquer tomada de posição em sinal de repúdio ou arrependimento.
Por outro lado, inexistem as constitucionalidades assacadas em sede de contra alegações uma vez que, os artºs invocados não podem ser interpretados no sentido de que a liberdade de expressão e de informação se sobrepõe à honra e reputação de todos quantos intervêm nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, designadamente a classe dos árbitros, tanto mais que nem sequer está em causa a liberdade de expressão e de informação de órgãos de comunicação social independentes, mas ao invés, da imprensa privada clubística.
Andou, por isso, mal o acórdão recorrido ao considerar que os factos provados não desrespeitam o disposto no artº 112º do RDLPFP.
Face ao exposto, impõe-se a revogação do acórdão recorrido.
Contudo, tal não significa que a consequência seja a revogação do acórdão do TAD que anulou a sanção aplicada à recorrida, uma vez que esta, em sede de ampliação do recurso, impugna a matéria dada como provada nos autos, peticionando que a mesma seja revista, quer no sentido de considerar incorrectamente provados factos que se consideraram assentes [pontos 3, 4 a 7], quer no sentido de serem aditados novos factos que identifica [conclusão 17ª], tudo em conformidade com o disposto no artº 636º do CPC.
Ora, este Supremo Tribunal não conhece de matéria de facto, nos termos peticionados pela recorrida, pelo que, se impõe a baixa dos autos, ao TCAS para que aí, em sede própria conheça da ampliação do objecto do recurso requerida pela recorrida.
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3. DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o Acórdão recorrido e nesta sequência, determinar a baixa dos autos ao TCAS para que seja conhecido a ampliação do objecto do recurso requerida em sede de contra alegações pela recorrida.

Custas pela recorrida, sem prejuízo do que vier a ser decidido em sede de ampliação do recurso.
Lisboa, 11 de Março de 2021

[A relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 3º do DL nº 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, Conselheiro Cláudio Ramos Monteiro e Conselheiro José Veloso].

Maria do Céu Dias Rosa das Neves