Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:046322
Data do Acordão:11/20/2002
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:CÂNDIDO DE PINHO
Descritores:LOTARIA.
REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA.
JOGOS DE FORTUNA OU AZAR
Sumário:I - O acto administrativo fundado directa ou indirectamente em norma inconstitucional é contrário ao chamado bloco de legalidade que a Administração deve respeitar e, por isso, porque contrário à lei e ao direito, é ilegal.
II - Sendo ilegal, e não estando prevista nenhum especial sanção de invalidade, esta reconduzir-se-á à mera anulação, ficando por conseguinte sujeita aos prazos de impugnação estabelecidos no art. 28º da LPTA.
III - A lotaria instantânea é uma modalidade de lotaria integrada na categoria dos jogos de fortuna e azar.
IV - A regulamentação da sua exploração só ao governo central incumbe, não tendo sido transferida pelo DL nº 420/80, de 29/9 para as Regiões Autónomas a competência nessa matéria.
Nº Convencional:JSTA00058374
Nº do Documento:SA120021120046322
Data de Entrada:01/04/2001
Recorrente:ASSOC DE MUNICÍPIOS DA REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA
Recorrido 1:CM - SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE LISBOA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC CONT.
Objecto:DL 314/94 DE 1994/12/23.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM GER.
Legislação Nacional:LPTA85 ART28.
DL 420/80 DE 1980/09/29.
Aditamento:
Texto Integral: I- A Associação de Municípios da Região Autónoma da Madeira, recorre contenciosamente do acto administrativo contido no nº1, do art. 1º do DL nº 314/94, de 23/12, da autoria do Conselho de Ministros, que concedeu à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa o direito de organizar e explorar um jogo denominado “lotaria Instantânea” para todo o território nacional.
Os fundamentos utilizados são os seguintes:
a) Em seu entender, teria havido uma inconstitucionalidade do DL nº 318/84 por falta de audição da Região Autónoma como o impunha o art., 231º da CRP à data do acto recorrido, hoje art. 229º, nº2, da CRP(art. 11º da pi);
b) Na parte em que o DL nº 314/94 tem conteúdo normativo, por nada dizer quanto ao regime substantivo do jogo, tudo remetendo para uma portaria, viola o disposto no art. 115º da CRP à data do acto, correspondente ao nº6 do art. 112º da versão actual(art. 13º da pi);
c) Se se pretender que o DL nº 314/94 contém implicitamente uma norma que confere atribuições na matéria ao Conselho de Ministros, então ele está ferido de inconstitucionalidade por falta de audição da Região Autónoma(art. 15º da pi);
d)O Governo exerceu atribuições que são próprias da Região Autónoma, pelo que o acto é nulo, nos termos do art. 133º, nº2, al.b), do CPA(art. 16º da pi);
e) Se o Governo ignorava que na Madeira já existia esse jogo, então o acto recorrido sofre do erro sobre os pressupostos(art. 21º da pi);
f) O acto impugnado revogou a autorização que havia sido concedida pelo Despacho do Presidente do Governo Regional da Madeira de 22/08/85, sem estar devidamente fundamentado, como o impõe o art. 124º, nº1, als. a) e e), do CPA(arts. 22º a 26º da pi);
g) A entender-se que a fundamentação existe, então verifica-se violação do art. 268º, nº3, da CRP(art. 27º da p.i.).
*
Na sua resposta, o Primeiro Ministro arguiu as excepções do caso julgado(julgamento efectuado sobre a mesma matéria no Rec. do STA nº 37 127) e da extemporaneidade do recurso.
Relativamente ao mérito do recurso, pugnou pelo seu improvimento em termos que aqui se dão por reproduzidos.
*
A recorrente defendeu a improcedência da matéria exceptiva(fls. 53).
*
A Santa Casa da Misericórdia apresentou contestação, defendendo a extemporaneidade do recurso e batendo-se pelo improvimento do recurso(fls. 64).
*
O digno Magistrado do MP opinou no sentido da procedência parcial da matéria exceptiva. Concretamente, entende que não se teria formado caso julgado relativamente às inconstitucionalidades constantes das alíneas a) e b) atrás mencionadas.

*
Relegado o conhecimento das excepções para final, o processo avançou para alegações, tendo-as a recorrente concluído do seguinte modo:
«I - O Despacho de 22/8/1985, do Presidente do Governo Regional da Madeira, que autorizou a recorrente a explorar os "jogos instantâneos", foi proferido ao abrigo das atribuições e competências transferidas pelo Decreto-Lei n° 420/80, a 29 de Setembro.
II - Se entender que o Decreto-Lei n° 318/84, de 1 de Outubro, ao excepcionar as lotarias, quis referir-se, também, ao jogo atribuído pelo Despacho de 22/8/85, supra referido, então esse Decreto-Lei n° 318/84 é inconstitucional, por ter retirado ao Governo Regional da Madeira uma competência que este detinha, sem que, previamente a Região Autónoma da Madeira tenha sido ouvida.
III - Na verdade, era patente o interesse da Região Autónoma da Madeira, pois com o produto do jogo vinham sendo levadas a cabo as acções referidas no art. 24° da petição; essa falta de audição violou o n° 2 do art. 231° da Constituição, na versão vigente à data do acto recorrido.
IV - O Tribunal não pode, pois, aplicar os preceitos contidos naquele Decreto-Lei n° 318/84, na parte em que (se assim se entender) excepcionou, da transferência de atribuição, jogos como o concedido pelo Despacho de 22/8/85; a essa aplicação obsta o disposto no art. 204° da Constituição .
V - Se entender que o Decreto-Lei n° 314/94, de 23 de Dezembro, tem uma parte com conteúdo normativo, é, nessa parte, inconstitucional, por remeter a parte fundamental do regime jurídico ( cf. o seu art. 3°) para mera regulamentação, com o que terá violado o n° 5 do art. 115° da Constituição, na versão vigente à data do acto recorrido.
VI - Se se entender que o Decreto-Lei n° 314/94 conferiu, mesmo implicitamente, atribuições para conceder o Jogo em causa ao Conselho de Ministros, então, nessa parte, esse Decreto-Lei é inconstitucional, por razões idênticas às referidas nas conclusões II e llI, pois não foi ouvida a Região Autónoma da Madeira.
VII - Continuando as atribuições para conceder o jogo em causa, aos órgãos da Região Autónoma da Madeira, o exercício dessas atribuições pelo Conselho de Ministros, órgão de outra pessoa colectiva (o Estado) fere o acto recorrido de nulidade, nos termos da alínea b) do n° 2 do art. 133° do Código do Procedimento Administrativo.
Pelo exposto, deve ser dado provimento ao recurso e declarada a nulidade do acto recorrido».
*
A Santa Casa da Misericórdia, por seu turno, concluiu as alegações da seguinte maneira:
«I - O acto administrativo da autoria do Conselho de Ministros, contido no n° 1 do Decreto-Lei n° 314/94, publicado no Diário da República I- Série A, n° 295, de 23 de Dezembro de 1994, que concedeu à S.C.M.L. o direito de organizar e explorar o jogo denominado "lotaria instantânea" para todo o território nacional, na parte do conteúdo do acto que se repercute sobre a Região Autónoma da Madeira, ora recorrido, não é nulo, mas antes, um acto plenamente válido.
II - O que foi confirmado pelos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 22/04/99, proferido pela 1ª Secção desse douto Tribunal, no Processo n° 37 127, interposto pela Associação de Municípios da Região Autónoma da Madeira, e de Junho de 1997, relativamente ao recurso interposto pela Associação de Municípios da Região Autónoma dos Açores.
III - Já existe caso julgado relativo à matéria objecto do presente recurso.
IV-O Recurso ora apresentado é intempestivo, tendo precludido, de acordo com o disposto no n° 1 do artigo 28° da LPTA, há mais de cinco anos, o prazo para a sua interposição, pelo que, em consequência, deve ser o mesmo indeferido.
V - O direito de explorar jogos de fortuna ou azar cabe ao Estado, que o pode transferir, sempre através de diploma legal, para outras entidades, como é o caso dos jogos sociais, explorados pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
VI - Os diplomas legais são de publicação obrigatória no Diário da República, não carecendo de qualquer outra publicação.
VII - A conclusão 5ª do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República de 20/06/84, proferido no processo n° 29/84, homologado por Sua Excelência o Ministro da Justiça, e publicado no D.R. II Série, de 15/10/85, n° 237, pag. 9580 e segs. refere o seguinte: "Deliberado pelos órgãos estaduais que a existência de uma única lotaria nacional seria o sistema que interessa, em termos nacionais, já os órgãos regionais estariam impedidos de, ponderando apenas o interesse específico da Região, criar ou recriar uma lotaria regional ".
VIII - Através do acto administrativo consubstanciado no Decreto- Lei n° 314/94, aprovado pelo Conselho de Ministros em 06/10/94 e publicado em 23/12/94, o Conselho de Ministros concedeu à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa o direito de organizar e explorar um jogo denominado "Lotaria Instantânea" em regime de exclusivo para todo o território nacional, abrangendo, por isso mesmo, o território da Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.
IX - A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa tem, pois, a obrigação legal de colocar todos os seus jogos em todo o país, e tem necessariamente de o fazer, sob pena de poder ser responsabilizada pelo Estado.
X - A exploração de uma Lotaria Instantânea nas Regiões Autónomas faz com que reverta em favor apenas dessa Região o lucro por ela gerado, quando o lucro da Lotaria Instantânea é distribuído também pelas Regiões Autónomas, o que se revela, antes de mais, injusto.
XI - As competências em matéria de lotarias não passaram para as Regiões Autónomas, pelo que, estas por si só não as podem autorizar .
XII - No que diz respeito à Lotaria Instantânea, a SCML entrega anualmente ao Estado Português 75% dos resultados líquidos, sendo que 30% se destinam às crianças carenciadas, 20% ao apoio aos estudantes do ensino secundário e 25% a projectos especiais de ocupação dos jovens portugueses.
XIII - O interesse público nacional constituiu o fundamento para que fosse concedido à Recorrida o direito de explorar a lotaria instantânea, para tal basta verificar o elenco de beneficiários do resultado líquido obtido com a venda da lotaria instantânea constante do artigo 2° do Decreto-Lei n° 314/94, de 23 de Dezembro.
XIV - O Decreto-Lei n° 43 399 de 15 de Dezembro de 1960, com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n° 120/75, de 10 de Março, estabelece, no seu artigo 11º, que:"(...) compete à Misericórdia de Lisboa a exploração sob regime de monopólio para todo o território (...) da lotaria nacional portuguesa (...)", acrescentando de imediato, no parágrafo 2° que " À Misericórdia de Lisboa poderá ser confiada. nos termos que forem estabelecidos em lei. a exploracão de outras formas de lotaria ou aposta mútua".
XV - A Lotaria Instantânea é expressamente tratada pelo legislador como uma modalidade de lotaria. De acordo com o preâmbulo do Decreto-Lei n° 314/94: "Nos termos dos seus Estatutos (...), é atribuída à Santa Casa da Misericórdia (...) o direito de exploração de lotarias, em regime de exclusivo, para todo o território nacional (...) Pretende-se agora com a introdução no mercado de uma nova modalidade de lotaria, denominada "Lotaria Instantânea" (...).
XVI - Só por ser assim se compreende que o legislador tenha mandado aplicar à Lotaria Instantânea, em tudo o que não se encontrar especialmente regulado no Decreto-Lei n° 314/94, "as normas que disciplinam a Lotaria Nacional."
XVII - O mesmo decorre do n° 1 do artigo 1º do Regulamento Geral do Concurso da Lotaria Instantânea, aprovado pela Portaria n° 940-B/95, de 27 de Julho, onde a lotaria instantânea surge expressamente qualificada como "uma modalidade de lotaria vendida através de bilhetes (...)".
XVIII - A lotaria nacional não foi nunca entendida como a única lotaria cuja exploração poderia vir a ser concedida à S.C.M.L. Ao invés, e como se viu, desde sempre o Estado entendeu que existem outros tipos de lotaria cuja exploração poderia vir a ser concedida à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
XIX - É à Lotaria Nacional que o artigo 2°, alínea h), primeira parte, dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia, aprovados pelo Decreto-Lei n° 322/91, de 28 de Agosto, directamente se refere. Nem, aliás, poderia ser de outro modo, pela obvia razão de que à data da publicação dos referidos Estatutos ainda não havia sido criada a Lotaria Instantânea, estando e mantendo-se, porém, plenamente em vigor o artigo 11° do Decreto-Lei 43399, de 15 de Dezembro de 1960.
XX - Nos termos do disposto na alínea h) do n° 3 do artigo 2° do Decreto-Lei n° 322/91, de 26 de Agosto, a SCML assegura "a exploração de lotarias e de totobola e totoloto, em regime de exclusivo para todo o território nacional, podendo, de igual modo, explorar quaisquer jogos autorizados ou concedidos nos termos da lei".
XXI - O que, precisamente, permitiu que o Estado, em Dezembro de 1994, atribuísse à S.C.M.L. o direito de explorar a Lotaria Instantânea, a qual veio, assim, acrescer ao elenco originário das lotarias cuja exploração a S.C.M.L. assegura, no regime de exclusivo para todo o território nacional. XXII - Uma vez que a chamada Lotaria Instantânea é uma modalidade de lotaria verdadeira e própria, pertencente, pois, à categoria dos jogos de fortuna ou azar, logo, o acto que se pretende impugnar é plenamente válido do ponto de vista do direito aplicável.
XXIII - Não tem, assim, razão a Recorrente quando invoca a inconstitucionalidade do Decreto-Lei n° 318/84, de 1 de Outubro, ao defender que o direito de explorar jogos de fortuna ou azar está na titularidade das Regiões Autónomas.
XXIV - A partir do momento em que seja criada uma Lotaria de âmbito nacional pelo Governo Geral da República, sendo a respectiva exploração cometida em regime de exclusivo para todo o território a uma única entidade, está vedado às Regiões Autónomas criar e/ou continuar a exploração de jogos de fortuna ou azar similares, como foi definido no Parecer do Conselho Consultivo da PGR de 20/06/84, Proc. 29/84.
XXV - O regime substantivo da Lotaria Instantânea está consagrado no Decreto-Lei n° 314/94, que a Recorrente visa impugnar, remetendo, como deve, a organização e o respectivo funcionamento para diploma regulamentar, não havendo, pois, aqui, qualquer violação do n° 5 do artigo 115° da Constituição vigente à data da prática do acto recorrido, uma vez que a Portaria n° 940-B/95, de 27 de Julho não interpreta, integra, modifica, suspende ou revoga qualquer dos preceitos do referido Decreto-Lei.
XXVI - O Decreto-Lei n° 314/94 não é omisso quanto a quem detém atribuições para conceder à SCML o direito de organizar e explorar o jogo Lotaria Instantânea, uma vez que essa competência pertence ao Estado e, não sendo matéria reservada à Assembleia da República, pertence, obviamente, ao Governo, nos termos do disposto na alínea a) do n° 1 do artigo 201º da C.R.P. vigente ao tempo.
XXVII - O Decreto-Lei nº 314/94, de 23 de Dezembro não se encontra, também nesta matéria, ferido nem de inconstitucionalidade, nem de nulidade.
XXVIII - Não tem razão a AMRAM quando invoca a inconstitucionalidade das alíneas a) e e) do artigo 124° e do n° 2 do artigo 125°, todos do C.P.A, por no presente caso, e com o sentido que esta lhe quer dar, não afectarem, direitos e interesses legalmente protegidos, porque a exploração do jogo instantâneo na Região Autónoma da Madeira é ilegal desde o seu início, tendo a ora Recorrida S.C.M.L. manifestado desde logo a sua discordância com tal actuação, através da acção que intentou contra a Recorrente no Tribunal da Comarca do Funchal.
XXIX - O facto de o Processo ter sido arquivado, em consequência de o Tribunal do Funchal se considerar incompetente, não deu ganho de causa à Recorrente, uma vez que o Tribunal não apreciou os aspectos materiais da causa, limitando-se a indeferi-la por meras questões formais.
XXX - Além do grave prejuízo para o interesse público que resultaria da anulação do acto como pretende a Recorrente, há ainda a considerar o prejuízo directo para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que desencadeou toda uma série de actos e procedimentos, nomeadamente com os agentes, fornecedores e instituições bancárias, tendo assumido compromissos que assim, seriam postos em causa.
XXXI - A S.C.M.L., além dos prejuízos financeiros que teria de suportar com a anulação do acto, veria afectada a sua reputada e sólida imagem de instituição secularmente ligada a fins de solidariedade social e á prossecução de fins de interesse público através, nomeadamente, da exploração dos jogos sociais.
XXXII - Só a SCML pode, directamente ou através de mediadores por si nomeados, comercializar lotarias e apostas mútuas em todo o território nacional de que as Regiões Autónomas da Madeira e Açores são parte integrante.
XXXIII - Não se verificando nenhuma das ilegalidades assacadas ao acto recorrido, o mesmo deverá manter-se na ordem jurídica
Nestes termos, deve o presente Recurso ser indeferido por intempestivo, caso tal não seja entendido, deverá o mesmo ser julgado improcedente por já existir caso julgado relativo à matéria objecto do mesmo, e caso Vossas Excelências assim o não entendam, não deve o acto administrativo da autoria do Conselho de Ministros contido no n° 1 do artigo 1 o do Decreto-Lei n° 314/94, publicado no Diário da República de 23 de Dezembro de 1994, ser declarado nulo ou anulado como pretende a Recorrente, por o mesmo não se encontrar ferido de qualquer ilegalidade, devendo manter-se plenamente válido e eficaz na ordem jurídica».
*
A entidade recorrida concluiu assim as suas alegações:
«1. O recurso deve ser rejeitado por se verificar uma excepção de caso julgado, nos termos do artigo 57°, § 4 do RSTA e do artigo 494°, alínea i) do CPC, uma vez que existe identidade de partes, pedido e causa de pedir com o recurso interposto pela AMRAM, que correu termos sob o Processo n° 37. 127, na 2ª subsecção da 1ª secção do STA e que já foi objecto de decisão transitada em julgado, através do Acórdão de 11 de Março de 1997, que foi confirmado pelo Acórdão do Pleno de 27 de Abril de 1999.
2. O STA já se pronunciou, assim, sobre todas as questões invocadas no presente recurso.
3. O recurso é intempestivo, visto que, não se verificando nenhum vício gerador de nulidade, o prazo de dois meses para impugnar o acto começou a contar a partir da data da sua publicação, ou seja, 23 de Dezembro de 1994, pelo que aquele prazo já terminou há muito tempo.
4. O Decreto-Lei n° 318/84, de 1 de Dezembro, não é inconstitucional por violação do artigo 229°, nº2, da CRP, visto que a Região Autónoma da Madeira não tinha de ser ouvida no âmbito do processo legislativo que conduziu à elaboração daquele diploma.
5. De facto, sendo a lotaria instantânea uma verdadeira e própria lotaria - como o STA já afirmou nos Acórdãos de 11 de Março de 1997 e de 27 de Abril de 1999 - a sua exploração nunca foi objecto de transferência para a Região Autónoma da Madeira, designadamente através do Decreto-Lei n° 420/80, de 29 de Setembro, uma vez que este diploma apenas transferiu para aquela Região as competências relativamente a modalidades afins do jogo de fortuna e azar (que não incluem as lotarias, que são .jogos de fortuna e azar).
6. Assim sendo, o Decreto-Lei n° 318/84 não veio retirar à Região Autónoma qualquer competência nesta matéria, não havendo, por isso, qualquer razão para esta ser ouvida, nos termos do artigo 229°, nº 2, da CRP .
7. Da mesma forma, não padece do vício de inconstitucionalidade o Decreto-Lei nº 314/94, na medida em que, não tendo havido nenhuma transferência de competências para a Região Autónoma da Madeira em matéria de exploração de jogos de fortuna e azar - que incluem as lotarias - essa competência permanece, obviamente, no Estado, podendo o Governo da República criar qualquer forma de lotaria e conceder a sua exploração à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
8. Assim sendo, o Decreto-Lei n° 314/94 não amputa, nem altera as competências da Região Autónoma da Madeira, pelo que esta não tem de ser ouvida, de acordo com o artigo 229°, n° 2, da CRP.
9. Pela mesma razão, o Decreto-Lei n° 314/94 não está viciado, tão pouco, do vício de incompetência absoluta, nos termos do artigo 133°, n° 2, alínea b) do CPA, visto que a competência para atribuir a exploração de lotarias cabe exclusivamente ao Estado e, por essa via, ao Governo da República, de acordo com o disposto no artigo 199º da CRP.
10. O Decreto-Lei n° 314/94 não viola o artigo 112°, n° 6, da CRP, uma vez que contém regras sobre a definição de lotaria instantânea, bem como o destino a dar às receitas e a sua divisão, limitando-se a remeter para portaria aspectos de pormenor que não têm dignidade legislativa.
11. Assim, o Decreto- Lei n° 314/94 não confere a actos de natureza não legislativa o poder de interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar os preceitos nele contidos, pelo que não viola o disposto no artigo 112°, n° 6, da CRP.
12. Finalmente, o Decreto-Lei n° 314/94 não padece do vício de falta de fundamentação, desde logo porque o preâmbulo do diploma é fundamentação bastante, mas também porque o acto ínsito no diploma não extingue um direito ou interesse legalmente protegido da Região Autónoma da Madeira, porquanto esta nunca possuiu competência para explorar lotarias. Assim, não se aplica o disposto no artigo 124°, nº1 , alíneas a) e e) do CPA.
Termos em que o recurso deve ser rejeitado, nos termos do artigo 57 § 4 do RSTA e do artigo 494º,alínea i) do CPC, por se verificar uma excepção de caso julgado e também por manifesta intempestividade da sua interposição; ou, se assim não se entender, deve ser negado provimento ao recurso, uma vez que nem o Decreto-Lei n° 318/84, nem o Decreto-Lei nº 134/94 são inconstitucionais, não padecendo tão pouco o acto administrativo ínsito no artigo 1º, nº 1 , deste último diploma dos vícios de incompetência absoluta ou falta de fundamentação, não sendo, por isso, nem nulo, nem anulável».
*
Por fim, o digno Magistrado do MP, relativamente à parte não abrangida pelo caso julgado, considerou que as apontadas inconstitucionalidades(violações dos arts. 229º, nº2 e 112º, nº6 da CRP) não se verificam.
E assim, entendendo não haver nulidade que afecte o acto impugnado, mostra-se favorável à rejeição do recurso por extemporaneidade.
*
Cumpre decidir.
***
II- Os Factos
Considera-se assente a seguinte factualidade:
1- Por Despacho nº 65/83, de 19/12 do Presidente do Governo Regional da Madeira foi admitida a concessão da exploração, por associação a constituir pelos municípios da Região Autónoma da Madeira, do jogo denominado de «lotaria instantânea»(doc. fls. 9/11).
2- Este despacho foi publicado no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, II série, nº 38(doc. fls.12/13).
3- Por despacho de 22/08/1985, também do Presidente do Governo Regional da Madeira, foi a recorrente autorizada a explorar uma forma de jogo designada como “jogos instantâneos”, cujas características eram definidas no requerimento que esse despacho deferiu(doc. fls. 14 a 17).
4- A partir daí a recorrente começou a explorar, como ainda hoje explora, os “jogos instantâneos” ou “lotaria instantânea” na Região Autónoma da Madeira.
5- Pelo art. 1º do DL nº 314/94, de 23/12 foi concedido à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa(SCML) o direito de organizar e explorar um jogo denominado «Lotaria Instantânea» em regime de exclusivo, para todo o território nacional.
6- A recorrente interpôs recurso contencioso contra o Conselho de ministros do acto administrativo consistente em decisão tomada sob a forma de deliberação e que se contém nos 1 e 2 do art. 1º do DL nº 314/94 e a SCML recurso contencioso neste STA a que foi dado o número 37 127.
7- Os vícios então invocados eram os de violação de lei(arts. 1º, nº2, do DL nº 420/80, de 29/09, “ex vi” arts 43º a 45º do DL 48 912, de 18/03/69; DL nº 318/84, de 1/10; art. 161º do DL 422/89, de 2/12; art. 120º do CPA; arts. 201º, 202º e 268º, nº4, da CRP), incompetência e usurpação de poder.
8- A decisão tomada nesse processo, que foi a de negar provimento ao recurso(v. Ap. ao DR, II, de 25/11/1999), foi confirmada no Ac. do Pleno do STA de 27/04/99(v. Ap. ao DR, II, de 8/05/2001).
***
III- O Direito
1- Da matéria exceptiva
1.1- Do caso julgado
Foi pela entidade recorrida suscitada a excepção do caso julgado, com o argumento de que a questão aqui tratada seria idêntica do ponto de vista dos sujeitos, pedido e causa de pedir à que foi decidida no Acórdão do Pleno de 27/04/1999 neste STA no âmbito do recurso nº 37 127.
A excepção de caso julgado pressupõe, como se sabe, a repetição de uma causa idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, depois de a 1ª ter sido decidida por sentença transitada em julgado(art. 497º, nº1, e 498º, nº1, do CPC).
Ora, se é certo que no caso se verifica identidade de sujeitos e de pedido em ambas as causas, não é já verdade que todos os fundamentos invocados para a obtenção dos efeitos anulatórios pretendidos sejam rigorosamente idênticos(art. 498º, nº4, “In fine”, do CPC).
Vejamo-los.
*
Os dois primeiros fundamentos trazidos nos arts. 11º(violação do art. 231º, nº2, da CRP) e 13º da p.i.(violação do art. 115º, nº5, da CRP, na redacção de então)- os mesmos que estão citados nas alíneas a) e b) do art. 53º do articulado de fls. 53 e nas conclusões II, III e V das suas alegações- não foram efectivamente objecto de apreciação no Recurso nº 37 127.
Significa isto que, por se tratar de matéria nova, nessa parte não se pode ter por verificada a repetição da causa.
*
O terceiro fundamento assenta no seguinte raciocínio:
«Se se pretender(...) que o Decreto-lei nº 314/94 contém, implicitamente, uma norma que confira, na matéria, atribuições ao Conselho de Ministros, então este diploma está ferido de inconstitucionalidade, por razões idênticas às referidas no art. 11º supra»(cfr. art. 15º da p.i.). Inconstitucionalidade, portanto, que derivaria do facto de se ter retirado ao Governo Regional da Madeira uma competência que este detinha, sem que previamente a Região Autónoma tivesse sido ouvida(cfr. conclusão VI das alegações).
Ou seja, a recorrente tem por assente que a competência para a lotaria instantânea estava cometida à Região Autónoma pelo DL nº 420/80.
A ser assim, não há dúvida que o conhecimento deste vício implica trazer à colação o problema da competência que a recorrente reclama.
No entanto, ainda que reconheçamos que o tema da competência tenha sido já tratado no mencionado Acórdão 37 127, não poderemos deixar de concluir que nele nenhuma conclusão foi alcançada a propósito do vício agora suscitado. Isto é, ainda o tribunal não disse se o art. 231º, nº2, da CRP se mostrava ofendido. Assim, neste segmento não há repetição de causas.
*
O quarto fundamento consiste na imputação de nulidade ao acto nos termos do art. 133º, nº2, al.b), do CPA.
No entender da recorrente, só a Região Autónoma teria atribuições para conceder o que foi concedido(art. 16º da p.i. e conclusão VII das suas conclusões).
Também aqui está subjacente a questão de que as atribuições para a concessão do jogo em causa pertenceriam ao Governo da Região Autónoma da Madeira e não ao Conselho de Ministros.
Tal questão foi, é certo, equacionada no dito aresto. Contudo, dela se não extraiu a conclusão que ora a recorrente pretende ver retirada. Assim sendo, não consideraremos verificada a excepção.
*
Os quinto, sexto e sétimo vícios invocados na petição inicial(erro sobre os pressupostos e vício de forma por falta de fundamentação, com violação dos arts. 124º, 125º e 268º, nº3, da CRP) também não haviam sido objecto de apreciação na decisão anterior.
Contudo, a recorrente não os levou às alegações finais, nem os mencionou nas respectivas conclusões (cfr. fls. 90 a 94).
Por tal motivo, considerando-se que a recorrente tacitamente os abandonou, não poderão ser alvo de apreciação, visto ser nas conclusões das alegações que fica delimitado o âmbito do recurso contencioso(Acs. do STA de 17/6/99, Rec. nº 37 667; de 24/01/2001, Rec. nº 27 385; 19/03/2002, Rec. nº 47 902; de 17/11/2002, Rec. nº 42 073).
*
Pelos fundamentos expostos, julga-se improcedente a excepção do caso julgado.
***
1.2- Da extemporaneidade do recurso
1.2.1- Para as recorridas, presente o prazo consignado no art. 29º da LPTA, o recurso contencioso seria extemporâneo, na medida em que o acto impugnado não padece de nulidade.
Colocada assim a questão, importa previamente averiguar da existência da algum vício que, se procedente, fulmine com tal sanção a invalidade do acto, sabido que é que para os actos nulos não há prazo para a sua impugnabilidade(cfr. arts. 134º, nº2, do CPA; 286º do Código Civil).
Como se disse, apenas temos para apreciar os vícios respeitantes às alíneas a) a d) da peça de resposta de fls. 53, equivalentes às conclusões II, III,V, VI e VII.
Os três primeiros, reportando-se à violação de princípios e normas constitucionais, são enquadráveis no chamado bloco de legalidade que a Administração deve respeitar.
Ora, o acto administrativo que se funde, directa ou indirectamente em norma inconstitucional, é ele mesmo contrário à Constituição e por isso ilegal, porque contrário à lei e ao direito(art. 3º do CPA).
E sendo ilegal, e não estando prevista para ele nenhuma especial sanção de invalidade, esta reconduzir-se-á à sua mera anulação(neste sentido, os Acs. do STA/Pleno, de 28/05/1992, Rec. nº 26 478; de 17/12/1992, Rec. nº 26 479; de 15/11/1994, Rec. nº 31 865; do Pleno de 12/03/1998, Rec. nº 32 333, entre outros).
Estando, por conseguinte, em causa uma simples anulabilidade, os prazos de recurso são os que vêm estabelecidos no art. 28º da LPTA.
Neste caso, tratando-se de um acto administrativo externado por via formal de Decreto-lei, a sua publicação tornar-se-ia inevitável sob pena de ineficácia jurídica(cfr. art. 119º, nº2, da CRP; tb. Lei nº 74/98, de 11/11; sobre a comunicação dos actos normativos, v. J.J. Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pag.771/773).
Assim sendo, relativamente a estes vícios a extemporaneidade é manifesta, pois que o presente recurso apenas deu entrada em Junho de 2000, embora o diploma em apreço(DL nº 314/94) seja de 23 de Dezembro e tenha iniciado na Madeira a sua vigência 15 dias após a sua publicação(cfr. art. 2º, nº3, da Lei nº 74/98).
Consequentemente, dá-se por procedente nesta parte a matéria exceptiva invocada.
*
1.2.2- Falta apurar da tempestividade do recurso relativamente ao último vício invocado no art. 16º da p.i. e conclusão VII das alegações.
A recorrente defende que o acto em causa foi praticado pelo Governo da República em matéria cujas atribuições pertencem à Região Autónoma da Madeira. Logo, nulo, face ao disposto no art. 133º, nº2, al.b), do CPA.
Quanto a este vício, dúvida não há de que a sua base substantiva se inclui no âmbito de previsão do preceito invocado.
Nesta parte, portanto, o recurso só pode ser considerado tempestivo, sem prejuízo de eventual improcedência na apreciação do mérito que dele é forçoso fazer-se.
***
2- Do mérito do recurso
Como deixamos dito, apenas resta apurar da eventual nulidade imputada ao acto(conclusão VII das alegações).
Teria o Governo da República invadido as atribuições da pessoa colectiva que é a Região Autónoma da Madeira?
Para a recorrente sim, fundamentalmente porque as competências em matéria de jogo haviam sido transferidas pelo DL nº 420/80, de 29/09 e pelo DL nº 318/84, de 1/10, para os Governos das Regiões Autónomas.
Independentemente da aparente contradição na utilização do “nomen júris” posto a um dos pólos do binómio(utilizando as próprias palavras da recorrente, o Governo da RAM apenas teria “competência” e não de “atribuições” nesta matéria), nem por isso deixaremos de retomar a questão de fundo que, essa sim, foi já apreciada por este STA no aresto acima citado.
Do que se trata é de saber se a RAM teria visto depositar no seu leque de competências o poder de regular a actividade em apreço de exploração das lotarias instantâneas.
Quanto à exploração das modalidades “afins” dos jogos de fortuna e azar, incluindo a aposta mútua a que se referiam os arts. 43º a 45º do DL nº 48 912, de 18/3/69(preceitos que viriam a ser revogados pelo DL nº 10/95, de 19/01, posterior ao acto aqui em causa), não parece haver dúvida que sim. Foram transferidas as competências para a autorização da exploração desses jogos por intermédio do DL nº 420/80, de 29/09.
Acontece que nessa transferência, dadas as referências às diversas disposições legais respectivas, não foi incluída a competência para a intervenção dos jogos de lotaria.
Só com o DL nº 318/84, de 1/10, na senda da mesma descentralização iniciada pelos DLs nºs 131/79, de 15/05 e 420/80, é que foram transferidas para as Regiões Autónomas as competências do «governo central» para a «adjudicação da concessão da exploração dos jogos de fortuna e azar», com expressa excepção das referentes a lotarias e concursos de prognósticos ou apostas mútuas.
Ora, já pelo art. 1º do DL nº 48 912, de 18/3/69, já pelo art. 1º do DL nº 422/89, de 2/12 (que revogou aquele), os jogos de fortuna e azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte.
Neste sentido, mesmo não sendo um jogo de casino, local onde mais habitualmente se praticam jogos de fortuna e azar, a lotaria é um jogo de fortuna e azar por depender exclusivamente da sorte.
Relativamente às lotarias, portanto, manteve-se o monopólio da Santa Casa de Lisboa que vinha já do DL nº 40 397, de 24/11/55, na redacção do DL nº 43 399, de 15/12/1960 e se manteve com o art. 2º dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovados pelo DL nº 322/91, de 26 de Agosto, onde se lê que a SCML «assegura...a exploração de lotarias e de totobola e totoloto em regime de exclusividade para todo o território nacional...».
A «lotaria instantânea» é uma modalidade de lotaria e, portanto, está coberta pela excepção contida no DL nº 318/84 e simultaneamente abrangida pela exclusividade concedida à SCML, o que viria, de resto, a ser reconhecido uma vez mais pelo DL nº 314/94, de 23/12(cfr. art. 1º, nº1).
Temos assim que nunca à Região Autónoma da Madeira foi cometida competência para concessão deste ou outro tipo de lotaria e, por tal motivo, não se pode dizer que o Governo Central tenha legislado em invasão de poderes ou com retrocesso de autonomia anteriormente concedida.
Tal competência assiste ao Governo enquanto órgão a quem cabe fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República e de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam(art. 201º, nº1, als. a) e c), da CRP; actualmente, art. 198º, nº1, als. a) e c)), estando vedado às Regiões Autónomas a criação de legislação com carácter geral para além das matérias com «interesse específico» para região(art. 229º, nº1, al.a), da CRP; actualmente art. 227º, nº1, al.a)).
Neste sentido: Acs do STA de 11/03/97, Rec. nº 37 127, in Ap ao DR, de 25/11/99, pag. 1872; STA/Pleno, de 27/04/99, in cit. proc., DR, II, de 8/05/2001, pag. 674; STA de 22/05/1997, in Rec. nº 37 220, Ap. ao DR, de 23/03/2001, pag. 3891; do Pleno no cit. proc. de 23/06/1998, in Ap ao DR, de 12/04/2001, pag. 919.
Não se deve ignorar por outro lado que, no quadro da autonomia das Regiões autónomas, não é permitido ir além do que a tanto o permita a soberania nacional. Se uma lei geral da República se funda em interesses nacionais gerais, pouca ou nenhuma margem resta à parcela de intervenção autonómica, porque nesse particularismo o que releva é a expressão da unidade e do todo nacional.
Daí que só nas matérias que se apresentem com um cunho próprio, com especificidades que se não confundam com o campo envolvente geral e mais vasto, com características peculiares que demandem soluções particulares, enfim só nos casos em que predomine um «interesse específico» podem as regiões autónomas ultrapassar as leis da República, criando as suas.
Ora, a SCML tem nas suas atribuições a prossecução de fins humanitários, e benemerentemente de fins de acção social.
Neste aspecto bem se podia dizer que a RAM igualmente prossegue interesses ligados à saúde e à segurança e assistência social. Mas não são específicos da Região. São interesses gerais do Estado, para cuja prossecução o Estado lhe depositou os poderes respectivos pela via do mecanismo da autonomia. Não são diferentes, nem mais amplos, nem menos importantes. São os mesmos que o Estado no seu todo prossegue. Apenas a proximidade das populações, a eficácia e a rapidez das soluções aconselham a sua institucionalização regional por um processo de delegação(A. Queiró, Lições de Direito Administrativo, 1976, pag. 107).
Assim, enquanto os fins de saúde e assistência social que a RAM visa realizar não são específicos “tout court”, nunca se poderia dizer específico o interesse que ela pudesse ter na implementação de uma lotaria instantânea para os levar a cabo, nem esse alguma vez foi, de resto, o fundamento da sua criação(cfr. fls.9 a 13 dos autos).
Diferentemente, os propósitos da Santa Casa são tão generosos e alargados(mesmo territorialmente), que as razões ditadas para o monopólio da lotaria conferido pelo DL nº 43 399 viriam a sair reforçadas pela fundamentação preambular do DL nº 322/91, de 26/08.
Dela aí se diz que «importa articular, em termos actuais, os seus valores seculares, inspirados na “fidelidade inalterável à tradição cristã do seu espírito original”, a a projecção histórica da sua própria vida e de todo das instituições congéneres com a realidade do combate às chagas sociais de cada dia».
Os Estatutos assim criados teriam em vista reconduzir a SCML à sua «pureza original», com a criação de «condições para maior eficácia na prossecução dos objectivos sociais» e com «os meios de gestão...e de recursos do modo mais adequado a suportar a sua insubstituível acção de solidariedade social».
Uma tal missão, porém, não tem a RAM vocação para prosseguir. De modo que nunca por aí veríamos razão de simultaneidade e concorrência de fins que ela fosse capaz de satisfazer em termos específicos e próprios.
Assim, cremos que o diploma em causa (DL nº 314/94), pelos fins subjacentes de «ampliar as áreas de intervenção social, designadamente para apoio a crianças e jovens carenciadas», sem delimitação de zonas geográficas, se destina sem reserva a todo o espaço nacional, e é por isso lei geral da República.
E como outro qualquer interesse específico se não vê que permita sustentar a tese da superação da subordinação da Região ao Governo Central nesta matéria de competência legislativa, resta-nos concluir pelo inêxito da conclusão VII das alegações.
***
IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam em:
a)- Julgar improcedente a excepção do caso julgado suscitada pela entidade recorrida;
b)- Julgar procedente a excepção da extemporaneidade do recurso deduzida pelos recorridos relativamente aos vícios contidos nas conclusões II e III, V e VI das alegações e, consequentemente, nessa parte rejeitando o recurso, nos termos do art. 57º, § 4º do RSTA;
c)- Negar provimento ao recurso contencioso, na parte restante (conclusão VII das alegações).
Sem custas.
Lisboa, STA, 2002/11/20
Cândido Pinho – Relator - António Samagaio - Pais Borges