Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:053/22.0BALSB
Data do Acordão:06/09/2022
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CARLOS CARVALHO
Descritores:PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ÂMBITO DA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
ACTO LEGISLATIVO
ACTO ADMINISTRATIVO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA HIERARQUIA
Sumário:I - Estando excluída do âmbito da jurisdição administrativa a impugnação de atos praticados no exercício da função política e legislativa [cfr. art. 04.º, n.º 3, al. a), do ETAF], também está fora da jurisdição o conhecimento de algum meio cautelar que a prepare.
II - Constituem atos praticados no exercício da função legislativa os atos postos em crise nos autos sub specie e que se mostram contidos no DL n.º 21/2019, mormente os insertos nos arts. 67.º, n.º 2, e 76.º, n.º 2, daquele diploma.
III - O STA nos processos relativos às entidades integrantes do elenco da al. a) do n.º 1 do art. 24.º do ETAF apenas goza ou vê estendida a sua competência se estivermos ante ou em presença de pretensões/pedidos cumulados para os quais, a título principal e cautelar, o mesmo seja o tribunal materialmente competente.
IV - Inexistindo cumulação e dirigindo-se o pedido cautelar subsistente à suspensão de eficácia de despacho da Secretária de Estado da Educação, ente que não figura do elenco dos órgãos que se mostram incluídos na al. a) do n.º 1 do art. 24.º do ETAF, carece o STA de competência em razão da hierarquia para o conhecimento de tal pedido.
Nº Convencional:JSTA00071480
Nº do Documento:SA120220609053/22
Data de Entrada:03/30/2022
Recorrente:MUNICÍPIO DE ARGANIL
Recorrido 1:CONSELHO DE MINISTROS E OUTROS
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Legislação Nacional:Arts. 04.º, n.ºs 1 e 3, al. a), 24.º, n.º 1, als. a) e c), 37.º e 44.º do ETAF
Arts. 04.º e 21.º, n.º 1, do CPTA
Arts. 67.º, n.º 2, e 76.º, n.º 3, do DL n.º 21/2019, de 30/01
Art. 04.º, n.º 1 da Lei n.º 50/2018
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

RELATÓRIO
1. Município de arganil, devidamente identificado nos autos [doravante Requerente], instaurou neste Supremo Tribunal, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts 24.º, n.º 1, al. a), subal. iii), e al. c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais [ETAF], 112.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos [CPTA], a presente providência cautelar contra o Conselho de Ministros [doravante CM], o Ministério das Finanças [doravante MF] e o Ministério da Educação [doravante ME], peticionando, pela motivação inserta no requerimento inicial [cfr. fls. 05/28 - paginação «SITAF» tal como as ulteriores referências a paginação], que seja:
«1) … decretada a suspensão de eficácia do Despacho n.º 3601/2022, de 25 de março, da Secretária de Estado da Educação que procede à aprovação e publicação da lista nominativa, homologada, de trabalhadores com vínculo de emprego público da carreira subsistente de chefe de serviços de administração escolar e das carreiras gerais de assistente técnico e de assistente operacional a transitar para o mapa de pessoal do Município de Arganil;
2) … decretada a suspensão de eficácia das medidas administrativas concretizadoras do quadro de transferência de competências para os órgãos municipais e para as entidades intermunicipais no domínio da educação, tal como definidas pelo Decreto-Lei n.º 21/2019, de 30 de janeiro, mais concretamente, as previstas nos seus artigos 67.º, n.º 2, e 76.º, n.º 3;
3) com a consequente, determinação da manutenção de tais competências no domínio da administração central até à integral e necessária concretização de todas as medidas administrativas necessárias à concretização daquela transferência, em respeito pelos princípios constitucionais que lhe estão necessariamente subjacentes;
4) e, nos termos do disposto no artigo 131.º do CPTA, ser provisória e urgentemente decretadas as providências cautelares requeridas, devendo ser as entidades requeridas intimadas a abster-se de proceder à concretização da transferência de competências para o Município de Arganil, em causa nos presentes autos».

2. Foi proferido despacho liminar [cfr. fls. 108/109] no qual foi indeferido o pedido de decretamento provisório da providência cautelar por se considerar não estarem demonstrados os pressupostos estabelecidos pelo art. 131.º, n.º 1, do CPTA.

3. Ordenada e realizada devidamente a citação dos requeridos CM, MF e ME vieram per se apresentar oposição [cfr., respetivamente, fls. 254/278, fls. 235/249 e fls. 116/141], no âmbito das quais se defenderam por exceção [em concreto, o CM - as exceções da incompetência absoluta da jurisdição administrativa, da incompetência do Supremo Tribunal Administrativo (STA) para o conhecimento, em primeira instância, do pedido cautelar e da ilegitimidade passiva; o MF - as exceções da incompetência absoluta do tribunal, da ilegitimidade passiva e da inimpugnabilidade do pedido de suspensão de eficácia do Despacho n.º 3601/2022; o ME - as exceções da incompetência absoluta do tribunal, por considerar que estava em causa um ato praticado no exercício da função política e legislativa e da inimpugnabilidade do pedido de suspensão de eficácia do Despacho n.º 3061/2022] e por impugnação, concluindo pela procedência das exceções arguidas ou, então, pela total improcedência da pretensão cautelar.

4. O Requerente na sequência do determinado no despacho de fls. 283 veio produzir resposta quanto às matérias de exceção suscitadas nas oposições [cfr. fls. 289/301], pugnando pela sua total improcedência.

5. Por despacho da Exm.ª Conselheira titular de fls. 304/305 foi suscitada a questão de o pedido de suspensão de eficácia das medidas administrativas concretizadoras do quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio da educação poder ainda ter como fundamento a desaplicação das normas do DL n.º 21/2019, de 30.01 [diploma que procedeu à concretização do quadro de transferência de competências para os órgãos municipais e para as entidades intermunicipais no domínio da educação operada pela Lei n.º 50/2018, de 16.08] com fundamento em inconstitucionalidade, designadamente, por violação dos princípios da autonomia do poder local, da descentralização administrativa de corrente e da indeterminabilidade legislativa por insuficiência de regulação financeira dos efeitos da referida transferência legal e unilateral de competências na área da educação, sendo que sobre tal questão pronunciaram-se por requerimento todas as partes com exceção do requerido MF [cfr. fls. 306/332].

6. Sem vistos, dado o disposto no art. 36.º, n.ºs 1, al. f), e 2, do CPTA, o processo foi submetido à Conferência, cumprindo apreciar e decidir.

DO SANEAMENTO - ENQUADRAMENTO E APRECIAÇÃO

7. Dado se mostrarem findos os articulados e assegurada a observância do contraditório quanto às matérias de exceção invocadas [cfr. arts. 03.º, 06.º, 7.º-A, 112.º e segs., todos do CPTA e 03.º do Código de Processo Civil (CPC/2013)] importa proceder ao saneamento dos autos apreciando da bondade das invocadas exceções, o que se passa a efetuar de seguida, cientes de que neste âmbito e para a pronúncia a desenvolver nesta sede mostra-se como despicienda a realização de qualquer instrução ou produção de prova [cfr. arts. 118.º do CPTA, 367.º e 410.º e segs. do CPC/2013].

I) DA INCOMPETÊNCIA DA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA

8. Mostra-se consensual o entendimento de que a competência do tribunal se afere de harmonia com a relação jurídica controvertida tal como a configura o requerente/demandante, sendo que a mesma se fixa no momento em que a ação é proposta, dado se mostrarem irrelevantes, salvo nos casos especialmente previstos na lei, as modificações de facto que ocorram posteriormente, bem como as modificações de direito operadas, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa [cfr. arts. 38.º da Lei n.º 62/2013, de 26.08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário - LOSJ) e 05.º, n.º 1, do ETAF], na certeza de que na apreciação da mesma não releva um qualquer juízo de procedência [total ou parcial] quanto ao de mérito da pretensão/ação ou quanto à existência de quaisquer outras questões prévias/exceções dilatórias.

9. Decorre do n.º 1 do art. 01.º do ETAF que «[o]s tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto», prevendo-se, no que aqui ora releva, no n.º 1 do art. 04.º do ETAF que «[c]ompete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: … a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais; … b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal; … c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública; … d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos» e na al. a) do n.º 3 do citado art. 04.º que «[e]stá nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de: a) Atos praticados no exercício da função política e legislativa».

10. Preceitua-se, por sua vez, no n.º 1 do art. 51.º do CPTA que «[a]inda que não ponham termo a um procedimento, são impugnáveis todas as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta, incluindo as proferidas por autoridades não integradas na Administração Pública e por entidades privadas que atuem no exercício de poderes jurídico-administrativos» e no art. 52.º do mesmo Código que «[a] impugnabilidade dos atos administrativos não depende da respetiva forma», estipulando-se, ainda, no seu art. 72.º que «[a] impugnação de normas no contencioso administrativo tem por objeto a declaração da ilegalidade de normas emanadas ao abrigo de disposições de direito administrativo, por vícios próprios ou derivados da invalidade de atos praticados no âmbito do respetivo procedimento de aprovação» [n.º 1], sendo que «[f]ica excluída do regime regulado na presente secção a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral com qualquer dos fundamentos previstos no n.º 1 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa» [n.º 2].

11. Resulta, por outro lado, do art. 135.º do Código de Procedimento Administrativo [CPA/21015] que «[p]ara efeitos do disposto no presente Código, consideram-se regulamentos administrativos as normas jurídicas gerais e abstratas que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos» e do art. 148.º do mesmo Código que «[p]ara efeitos do disposto no presente Código, consideram-se atos administrativos as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta».

12. Presente o quadro normativo antecedente e avançando na análise e juízo quanto à exceção em epígrafe importa, ante a pretensão cautelar sub specie, concluir, desde já, pela sua procedência no que tange ao pedido deduzido sob o «n.º 2», relativo à «suspensão de eficácia das medidas administrativas concretizadoras do quadro de transferência de competências para os órgãos municipais e para as entidades intermunicipais no domínio da educação, tal como definidas pelo Decreto-Lei n.º 21/2019 … mais concretamente, as previstas nos seus artigos 67.º, n.º 2, e 76.º, n.º 3», na certeza de que quanto ao pedido deduzido sob o «n.º 1», respeitante à «suspensão de eficácia do Despacho n.º 3601/2022 … da Secretária de Estado da Educação que procede à aprovação e publicação da lista nominativa, homologada, de trabalhadores com vínculo de emprego público da carreira subsistente de chefe de serviços de administração escolar e das carreiras gerais de assistente técnico e de assistente operacional a transitar para o mapa de pessoal do Município de Arganil», a conclusão não poderá se idêntica.

13. Efetivamente, quanto a este último pedido temos que o mesmo, mostrando-se reconduzido a pretensão cautelar tendente à obtenção da suspensão da eficácia de ato administrativo proferido pela Secretária de Estado da Educação [despacho que procedeu à aprovação/homologação e publicação da lista nominativa de trabalhadores com vínculo de emprego público em aplicação do disposto no n.º 7 do art. 43.º do DL n.º 21/2019 e se mostra descrito na alínea d) do art. 05.º do requerimento inicial] a ser objeto de impugnação a título principal em ação administrativa a instaurar, insere-se clara e inequivocamente no âmbito da jurisdição administrativa atento o disposto, nomeadamente nos arts. 04.º, n.º 1, do ETAF, 02.º, n.ºs 1 e 2, al. q), 03.º, n.ºs 1 e 3, 51.º e 112.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do CPTA, soçobrando entendimento inverso que o pretende ver também como subtraído à apreciação e decisão pelos tribunais administrativos.

14. Já quanto ao pedido cautelar deduzido sob o «n.º 2» temos que o mesmo mostra-se dirigido a atos integrados na previsão da al. a) do n.º 3 do art. 04.º do ETAF, encontrando-se o seu controlo fora do âmbito da jurisdição administrativa.

15. Com efeito, nos termos do art. 04.º, n.º 3, al. a), do ETAF e no que releva para a discussão não é possível proceder à impugnação direta nos tribunais administrativos de atos praticados no exercício da função legislativa, salvo se esses atos emanados sob a forma de atos legislativos contenham, todavia, decisões materialmente administrativas e que, por isso, sob o ponto de vista material não constituam atos emitidos no quadro daquela função [cfr. arts. 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e 52.º, n.º 1, do CPTA], pelo que enquanto atos emanados no exercício da função administrativa serão passíveis de impugnação contenciosa nos tribunais administrativos [cfr. arts. 01.º, 04.º, n.ºs 1, e 3, al. a), do ETAF, 02.º e 03.º do CPTA], considerando-se esta função como o «conjunto dos atos de execução de atos legislativos traduzida na produção de bens e na prestação de serviços destinados a satisfazer necessidades coletivas que, por virtude de prévia opção legislativa, se tenha entendido que incumbem ao poder político do Estado - Coletividade» [cfr., entre outros e com plena valia para o atual quadro legal, Acs. do STA/Pleno-Contencioso Administrativo (CA) de 07.06.2006 - Proc. n.º 01257/05, de 19.03.2015 - Proc. n.º 0949/14, de 22.09.2016 - Proc. n.º 0729/14, de 20.10.2016 - Proc. n.º 0922/15; Acs. do STA/Secção CA de 16.03.2004 - Proc. 01343/03, de 26.10.2006 - Proc. n.º 0255/06, de 21.01.2009 - Proc. n.º 0811/08, de 21.10.2010 - Proc. n.º 0713/10, de 04.04.2013 - Proc. n.º 0399/13, de 10.09.2014 - Proc. n.º 0623/14, de 22.04.2015 - Proc. n.º 0729/14, de 05.04.2017 - Proc. n.º 077/16, de 15.11.2018 - Proc. n.º 01309/15.4BALSB, de 18.11.2021 - Proc. n.º 0117/21.8BALSB todos consultáveis in: «www.dgsi.pt/jsta» - sítio a que se reportarão todas as demais citações de acórdãos deste Tribunal sem expressa referência em contrário].

16. E tal como vem sendo considerado estaremos em presença de um ato materialmente legislativo quando este introduz na ordem jurídica disciplina normativa reveladora de uma opção primária e inovadora, que tem como parâmetro de validade a Constituição ou outras leis que, por força daquela, sejam pressuposto normativo necessário ou que por outras devam ser respeitadas [cfr. n.º 3 do art. 112.º da CRP], e isso «independentemente de saber se essa materialidade se exprime com caráter geral e abstrato, visando destinatários determináveis ou indetermináveis ou através de uma determinação individual e concreta» [cfr. Ac. do STA/Pleno CA de 05.06.2014 - Proc. n.º 01031/13], na certeza de que «um ato, para ser administrativo, não lhe basta ser individual e concreto» já que «para assim ser qualificado tem ainda de proceder do exercício da função administrativa» [cfr. Acs. do STA/Pleno CA de 04.07.2013 - Proc. n.º 0469/13 e de 03.07.2014 - Proc. n.º 0801/13], posicionamento este que se mostra reiterado, nomeadamente nos citados acórdãos de 19.03.2015 [Proc. n.º 0949/14] e de 22.09.2016 [Proc. n.º 0729/14].

17. Aliás, como afirma M. Aroso de Almeida, «a materialidade do ato legislativo não se confunde com o caráter geral e abstrato das determinações nele contidas», sendo que, se pese embora e por regra, a «intencionalidade própria da função legislativa se tenda a exprimir na emissão de regras de conduta, de caráter geral e abstrato» também «verdade é que é frequente o fenómeno da aprovação de atos legislativos que, embora exprimam uma opção política primária, inovadora, introduzem uma ou mais determinações de conteúdo concreto, correspondendo, assim, ao que, na doutrina, tem sido qualificado como leis-medida», pelo que «o exercício da função legislativa só tendencialmente se concretiza na emanação de normas gerais e abstratas» já que «decisiva é a intencionalidade do ato, o facto de introduzir opções políticas primárias, por apelo direto à consciência ético-social vigente na comunidade» enquanto expressão duma «intencionalidade específica» e «quando isso suceda, temos um ato materialmente legislativo, ainda que as opções nele contidas tenham conteúdo concreto», tanto mais de que quando praticado o ato sob forma de diploma legislativo só estaremos em presença de ato administrativo quando o comando em causa exprima o exercício de competências administrativas por «envolver a eventual realização de opções circunscritas a aspetos secundários, menores instrumentais em relação às opções já contidas nessa lei», situação essa que terá, então, enquadramento nos arts. 268.º, n.º 4, da CRP e 52.º, n.º 1, do CPTA [in: “Manual de Processo Administrativo”, 5.ª edição, (2021), págs. 287/288; vide, também, Jorge Miranda, in: “Manual de Direito Constitucional”, vol. V, 3.ª edição, págs. 137-139 e 150], para além de que «o sistema português se reveste, neste contexto, de uma especificidade “sem paralelo em qualquer outra experiência constitucional europeia de matriz democrática”, que resulta da circunstância de a CRP não reservar o exercício da função legislativa ao Parlamento (a Assembleia da República), mas atribuir diretamente ao executivo (ao Governo …) amplas competências legislativas próprias», razão pela qual «o campo de intervenção do poder regulamentar, é … mais limitado do que noutros ordenamentos jurídicos» e de que «nos amplos domínios de intervenção do decreto-lei, é através deste instrumento, e não de regulamentos, e, portanto, no exercício de competências legislativas, e não de competências administrativas, que o Governo exerce o seu poder normativo», para depois concluir, citando/convocando os ensinamentos de Freitas do Amaral, de que «pode, na verdade, dizer-se que, à luz do direito positivo vigente em Portugal, “é lei todo o ato que provenha de um órgão com competência legislativa e que assuma a forma de lei, ainda que … contenha disposições de um órgão com competência regulamentar e que revista a forma de regulamento, ainda que seja independente ou autónomo e, por conseguinte, inovador”» [cfr. M. Aroso de Almeida, in: “Teoria Geral do Direito Administrativo”, 8.ª edição (2021), págs. 238/239 e 243].

18. Sustenta, também, J. C. Vieira de Andrade que «não havendo, entre nós, uma reserva material ou funcional de regulamento, nada impede o legislador de estabelecer regimes jurídicos pormenorizados, tendo de considerar-se como atos legislativos – e portanto, subtraídos à jurisdição administrativa – quaisquer disposições gerais e abstratas editadas sob a forma de diploma legislativo (mesmo de decreto-lei, tendo em conta que o Governo exerce tanto a função administrativa como a função legislativa), ainda que tenham caráter regulamentar e, portanto, pertençam materialmente à função administrativa», sendo que mercê de não estarem «proibidas as leis medida (também concretas e individuais)», o «problema dos limites da jurisdição administrativa passa pela distinção substancial entre funções estaduais - concretamente, pela distinção entre “ato administrativo” e “lei-medida”», pelo que «uma medida concreta, ou mesmo individual, pode qualificar-se como legislativa quando consubstancie uma decisão sobre uma matéria importante, que não esteja regulada em abstrato, de modo que a “lei-medida” contenha implicitamente a norma que aplica ao caso» [in: “A Justiça Administrativa - Lições”, 18.ª edição, (2020), pág. 57 e nota 82].

19. Ainda no quadro da enunciação e definição de critérios de diferenciação entre atos legislativos e atos administrativos consideram Sérvulo Correia e Francisco Paes Marques que «nem a generalidade e abstração podem considerar-se propriedades necessárias dos atos legislativos, nem a individualidade e concretude são insuscetíveis de constituir traços exclusivos dos atos da função administrativa» e que a primariedade da disciplina legislativa «é inegável a sua importância na caraterização da função legislativa», sendo que é «na lei que se positiva juridicamente a definição pelo Estado dos fins últimos da comunidade que seguidamente preside ao desempenho aplicativo das funções jurisdicional e administrativa», presente que «quando se queira concentrar numa fórmula definitória … a essência da função legislativa em face das outras funções do Estado, se impõe manter as vertentes orgânica, formal e hierárquica, sem as quais esta atividade perderia a feição que a Constituição lhe confere, mas circunscrevendo-lhes o âmbito em função da primariedade da disciplina preceituada, ainda que se reconheça a presença desta também nos atos legislativos de desenvolvimento de leis», já que «em face da abertura ou incompletude dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam, os decretos-leis … que os desenvolvem se mantêm ainda na área da definição de uma disciplina primária», tanto mais que «se a intensa especificidade da disciplina primária poderá disciplinar excecionalmente (na “lei-medida”) a generalidade e abstração do ato legislativo, estas constituirão em regra um seu atributo» dado que «a primariedade da disciplina estatuída não constitui hoje exclusivo do ato legislativo, a convocação desta para a caraterização da função legislativa só faz sentido graças à sua conjugação com os critérios formal e hierárquico», definindo a função legislativa como a «atividade estadual exercida pela Assembleia da República, pelo Governo … sob as formas de lei, decreto-lei …, consistindo na estatuição de normas jurídicas providas de superioridade hierárquica quanto a quaisquer outras normas jurídicas internas de valor infraconstitucional, caraterizadas pela primariedade da disciplina estabelecida em um só diploma ou também através de desenvolvimento de leis e princípios e bases gerais, e revestidas de generalidade e abstração a menos que a intensa especificidade de uma disciplina primária as dispense» [in: “Noções de Direito Administrativo”, vol. I, 2.ª edição, (2021), págs. 40, 44, 46 e 47].

20. E no âmbito ainda desta temática defendem Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos que apesar do «inelutável fenómeno da perda de materialidade (no sentido clássico da generalidade, abstração e carácter inovatório) da lei no Estado contemporâneo, aquilo que distingue a função legislativa da função administrativa é o conteúdo político daquela: sempre que, impondo-se uma disciplina imediata da vida social, estiver em causa uma escolha política, no sentido de envolver interesses coletivos essenciais - e independentemente de vir a consubstanciar-se numa decisão pública estruturalmente individual e concreta -, estar-se-á no domínio da função legislativa. É a ela que cabe definir quais são as necessidades coletivas quais são, dentre elas, as que reclamam satisfação administrativa e quais os critérios essenciais dessa satisfação; ao invés, sempre que tratando-se de reger a vida social, se tenha de implementar prévias escolhas políticas, procedendo à satisfação das necessidades coletivas previamente definidas, selecionadas e ordenadas, tal é o campo da função administrativa», sendo que não são do foro desta «a definição de necessidades coletivas, a seleção daquelas que a administração pública deve satisfazer, nem sequer a ordenação de prioridades ou o traçado de grandes princípios materiais, orgânicos e formais a que tal satisfação deve obedecer» [in: “Direito Administrativo Geral”, Tomo I, 3.ª edição, (2008), pág. 42].

21. Assim, tomando como referência a distinção entre, de um lado, a função legislativa, enquanto função primária, e que, como a função política, visa a realização das opções sobre a definição e prossecução dos interesses essenciais da coletividade, e, do outro, a função administrativa, com caráter secundário, subordinada àquelas funções primárias e nas quais deve encontrar fundamento e que não pode interferir na formulação das escolhas essenciais daquela coletividade já que às mesmas deve obediência visto não as poder contrariar, temos que quanto às denominadas «medidas administrativas» alvo do pedido cautelar deduzido sob o «n.º 2» [medidas concretizadoras do quadro de transferência de competências no domínio da educação tal como definidas pelo DL n.º 21/2019 e que se mostram descritas/elencadas no art. 05.º do requerimento inicial, e depois concretamente discriminadas no pedido como «as previstas nos seus artigos 67.º, n.º 2, e 76.º, n.º 3»] estamos ainda ante atos contidos em diploma legal produzidos no quadro da função legislativa, constituindo atos material e formalmente legislativos e, como tal, excluída a sua sindicância e controlo no âmbito da jurisdição administrativa.

22. E sobre problemática muito similar ao segmento de pretensão ora em discussão temos que este Supremo Tribunal no seu recente acórdão de 26.05.2022 [Proc. n.º 049/22.2BALSB] teve oportunidade de tomar posição sobre a mesma, entendimento que, por plenamente válido, operante e transponível para a análise e decisão dos autos sub specie, aqui se secunda e reitera.

23. Extrai-se, assim, da respetiva linha fundamentadora e no que releva, que a «lei-quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais (Lei n.º 50/2018, de 16/8) estabeleceu, no seu art. 4.º, n.º 1, que “a transferência das novas competências, a identificação da respetiva natureza e a forma de afetação dos respetivos recursos são concretizados através de diplomas legais de âmbito setorial relativos às diversas áreas a descentralizar da administração direta e indireta do Estado, os quais estabelecem disposições transitórias adequadas à gestão do procedimento de transferência em causa” (cf. também o n.º 2 do art. 43.º). … À área da educação referem-se os arts. 11.º e 31.º dessa lei, dispondo o n.º 1 daquele preceito que “é da competência dos órgãos municipais participar no planeamento, na gestão e na realização de investimentos relativos aos estabelecimentos públicos de educação e de ensino integrados na rede pública dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e do ensino secundário, incluindo o profissional, nomeadamente na sua construção, equipamento e manutenção”. … No domínio da educação, foi o DL n.º 21/2019, de 30/1, que, ao abrigo do art. 4.º, n.º 1, da Lei n.º 50/2018, procedeu à concretização da transferência de competências para os órgãos municipais, estabelecendo o art. 67.º, n.º 2, que até à entrada em vigor da portaria referida no art. 51.º para o financiamento das competências de conservação e manutenção de escolas dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e do ensino secundário seria transferida anualmente para cada município a verba de 20 mil euros por cada estabelecimento e dispondo o art. 76.º, n.º 2, que, sem prejuízo da transferência gradual, todas as competências previstas se consideravam transferidas para as autarquias locais e entidades intermunicipais até 31/3/2022» e que «[e]ste diploma, onde se incluem as referidas normas que constituem objeto do pedido de suspensão de eficácia, foi publicado ao abrigo do art. 198.º, n.º 1, al. a), da CRP, isto é, no quadro e ao abrigo da competência legislativa do Governo, constituindo um ato integrante dum processo legislativo complexo que envolveu a publicação e alteração conjugada e articulada de vários diplomas legais, iniciado com a referida Lei n.º 50/2018, sem que se possa afirmar que apenas esta haja corporizado a opção política primária com total exclusividade e completude, tanto mais que ela, em vários dos seus preceitos, reconheceu que as opções de política primária careciam ainda de ser desenvolvidas, definidas e concretizadas através da publicação de vários outros “diplomas legais” ou por “decreto-lei” (cfr., nomeadamente, os seus arts. 4.º, n.º 1, 7.º, n.º 4, 16.º, n.º 2, 17.º, n.º 3, 18.º, n.º 4, 19.º, n.º 4, 21.º, n.º 2, 28.º, n.º 2, 44.º, n.º 1) e em todos eles, nos concretos quadros normativos que definiram, constituem a expressão daquela opção, de uma vontade política primária da comunidade, definindo o que esta assume como sendo o interesse geral, mediante a enunciação de articulado e de previsões jurídicas com um conteúdo inovador, no prosseguimento, desenvolvimento e consolidação de um quadro legal que exprime ou materializa aquilo que são as novas opções legislativas em matéria de transferência de competências para as autarquias locais e entidades intermunicipais».

24. E avançando na argumentação sustentou-se ainda que «no caso, os atos contidos no referido decreto-lei revelam e envolvem, repete-se, a materialização da opção política que está na génese de toda a reforma legislativa operada, concretizando-a no regime normativo através da criação de direito novo, cientes de que não estamos em face de atos jurídicos que se limitam a reger ou decidir um caso concreto enquanto meros e puros atos de “aplicação” do direito pré-existente e que, nessa medida, se apresentem com uma eficácia equivalente à de atos administrativos» e que «também não configuram normas de ou com natureza administrativa, porquanto manifestamente não foram produzidas no quadro e ao abrigo da função administrativa, mas antes da função político-legislativa considerando a natureza das opções nele firmadas e das previsões nele contidas, nomeadamente aquelas cujos efeitos se pretende verem suspensos, tanto mais que em Portugal, inexistindo uma reserva constitucional de regulamento, o Governo dispõe de poderes legislativos normais sobre quaisquer matérias que não sejam reservadas pela CRP à Assembleia da República», pelo que «[n]ão se vislumbra que os atos jurídicos de que o requerente pretende obter a suspensão de eficácia e impugnar a título principal, pelo seu teor, pelo seu caráter, natureza e consequências se reconduzam a uma mera expressão ou um mero exercício da função administrativa enquanto simples realização de opções circunscritas a aspetos secundários, menores ou instrumentais quanto a opções já contidas em lei anterior que encerre e tenha assumido todas as opções políticas primárias» dado que «[a]o invés, os mesmos mostram-se como produto ou resultado do exercício da função político-legislativa, constituindo atos/normas legais e não normas administrativas, por não terem sido emitidas no quadro da função administrativa, mas antes e ainda enquanto desenvolvimento e definição das opções políticas e legislativas primárias em termos de descentralização administrativa e do assegurar no quadro do processo legislativo complexo da sua efetiva materialização e implementação no domínio da educação, conclusão essa reforçada e que se extrai inclusive do próprio preâmbulo do diploma, onde se refere que o mesmo surge em decorrência da previsão da “modernização do Estado” “através de transformação de seu modelo de funcionamento” constante do Programa do XXI Governo Constitucional e em que o “novo quadro de competências das autarquias locais e entidades intermunicipais em matéria de educação concretiza um modelo de administração e gestão do sistema educativo”».

25. Para, por fim, fazer notar que o «concreto quadro legal alvo de impugnação estabelece e encerra, até à publicação da portaria prevista no art. 51.º, do DL n.º 21/2019, uma previsão/estatuição geral e abstrata que disciplina o financiamento das competências de conservação e manutenção de escolas dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e do ensino secundário elencadas no n.º 2 do art. 32.º do mesmo DL e respetivo anexo I, sem definição de situações individuais e concretas, tanto mais que o mesmo depois mostra-se carecido da emissão de ulteriores e sucessivos atos administrativos que, anualmente lhe deem aplicação e concretização prática relativa e por referência à situação individual de cada município mediante a respetiva definição do concreto “quantum” da dotação/verba a prever em termos orçamentais do Estado e depois transferir para cada município (cf. Ac. do STA de 24.4.2002 - Proc. n.º 044693, quanto à caracterização como atos administrativos das verbas a transferir para município contidas em mapa anexo à Lei do Orçamento de Estado respeitante aos então denominados Fundo Geral Municipal e Fundo de Coesão Municipal)».

26. Revertendo à situação ora sob apreciação temos que presentes as denominadas «medidas administrativas» concretizadoras do quadro de transferência de competências no domínio da educação, tal como definidas pelo DL n.º 21/2019 e que se mostram discriminadas ou exemplificadas sob as alíneas a), b), c), e) a h) no art. 05.º do requerimento inicial e que constituem objeto de pretensão cautelar de suspensão de eficácia, ressalta estarmos, como aludido, ante atos produzidos e emitidos no quadro/exercício da função legislativa.

27. Através de um diploma legal, no caso do referido DL n.º 21/2019, produzido nos termos do art. 198.º, n.º 1, al. a), da CRP e do art. 04.º, n.º 1, da Lei n.º 50/2018, ou seja, no exercício da função/competência legislativa do Governo tal como se extrai do seu próprio teor através da expressa menção àquele comando constitucional, e das previsões normativas nele insertas, mormente das postas concretamente em crise nos autos [cfr., nomeadamente, os arts. 31.º, 32.º, 35.º, 36.º, 37.º, 42.º, 50.º, 51.º, 54.º, 62.º, 68.º, 67.º, n.º 2, e 76.º, n.º 3 daquele DL], veio proceder-se, no domínio da educação, à concretização e transferência das competências para os órgãos municipais e das entidades intermunicipais que se mostravam definidos nos arts. 11.º e 31.º da referida Lei n.º 50/2018, diploma onde, enquanto lei-quadro, havia sido estabelecido o quadro de transferência de competências e no qual foram definidos/concretizados princípios e garantias a serem «concretizados através de diplomas legais de âmbito setorial relativos às diversas áreas a descentralizar da administração direta e indireta do Estado, os quais estabelecem disposições transitórias adequadas à gestão do procedimento de transferência em causa» [cfr. n.º 1 do art. 04.º da referida Lei].

28. O e no aludido quadro normativo inserto no DL em referência procedeu-se, enquanto ato produzido no quadro da função legislativa do Governo e dada a abertura ou incompletude dos princípios e do quadro ou base geral constantes da lei-quadro [Lei n.º 50/2018], à introdução de quadro normativo e à concretização/desenvolvimento daquela lei, mantendo-se o mesmo, ainda, na área da definição de uma disciplina primária das opções político-legislativas em termos de descentralização administrativa e do assegurar no quadro do processo legislativo complexo a sua efetiva materialização e implementação no domínio da educação.

29. Os atos postos em crise [in casu classificados/denominados como «medidas administrativas» pelo requerente cautelar], contidos em termos formais em diploma legal [cfr. arts. 112.º, n.ºs 1 e 2, e 198.º da CRP], pela sua força jurídica e pelos seus termos/teor não assumem, nem se podem caraterizar como atos materialmente administrativos já que os mesmos não corporizam nem uma decisão produzida no exercício de poderes jurídico-administrativos ou da função administrativa, nem visam produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta.

30. Antes correspondem ou refletem uma estatuição jurídica proveniente do exercício da função legislativa e integrada na disciplina e escolha de uma política primária quanto à realização/operacionalização concreta de interesses coletivos essenciais prosseguidos com a descentralização administrativa no domínio da educação e da sua efetiva implementação mediante a definição de um quadro legal e do respetivo momento para a sua entrada em vigor, envolvendo, assim, uma opção político normativa sobre matéria/domínio relevante que não estava regulado em abstrato e que se mostra carecido da ulterior emissão de uma decisão administrativa de aplicação ao caso concreto.

31. É certo que vem sendo prevalecente o entendimento de que no nosso ordenamento jurídico inexiste uma reserva de administração «que impeça a emanação de atos legislativos dotados de um conteúdo materialmente administrativo», bem como de que a CRP «admite … a existência de atos legislativos contendo normas materialmente regulamentares» e de que a mesma «não prevê qualquer matéria em que exista uma reserva de regulamento», admitindo-se «a existência de domínios específicos de reserva de administração, em que os únicos poderes normativos que podem ser exercidos são poderes regulamentares, pelo que está excluída a possibilidade da intervenção do poder legislativo» [cfr. M. Aroso de Almeida, in: “Teoria Geral …”, págs. 241 e 242].

32. Ocorre que na situação sob dissídio não estamos em face de matéria ou domínio específico de reserva de administração, nomeadamente das autarquias locais, sendo que, para além disso, estamos, frise-se, ante disciplina normativa produzida no quadro da competência legislativa do Governo e não da sua competência administrativa [cfr., respetivamente, arts. 198.º e 199.º da CRP], e que a mesma mostra-se dotada de conteúdo autónomo e inovador fruto da definição e materialização de uma opção política/legislativa primária não só em termos dos conteúdos ali fixados e estipulados, mas também quanto ao próprio tempo de início de vigência e de implementação efetiva do processo, não se reconduzindo tão-só à simples definição e desenvolvimento de meros aspetos secundários ou instrumentais.

33. A mesma constitui «fonte de direito inicial», mostrando-se dotada de natureza abstrata e definidora de deveres/comandos normativos vinculativos e de validade/eficácia permanente e duradoura no e pelo respetivo tempo de vigência e que não se esgotam, nem minimamente se reconduzem, à decisão de uma situação individual/concreta, tanto mais que enquanto vigentes reclamam ou implicam a necessária e posterior intermediação de e através da emissão de atos administrativos.

34. Na verdade, isso ressalta, desde logo e nomeadamente, do disciplinado no invocado n.º 2 do art. 67.º do DL n.º 21/2019, porquanto fruto de uma opção político-legislativa nele se firma uma estatuição/disciplina normativa de vigência e operatividade transitórias dado que, enquanto estatuição definidora para as situações jurídicas que temporalmente venham a estar sujeitas e a caber na sua previsão, o mesmo comando mostra-se operante/vigente até ao momento em que tenha lugar a publicação e início de vigência da portaria no mesmo aludida, e para além disso implica ou reclama a concretização e definição para cada município da verba a anualmente ser transferida e destinada ao financiamento das competências de conservação e manutenção das escolas e das residências escolares ali referidas, pois carece, num ulterior e necessário momento aplicativo, de uma concreta e específica avaliação dos pressupostos relativos a cada município, mormente quanto ao número de escolas e/ou de residências existentes na área de cada município, quanto ao número de estabelecimentos que estão ou não envolvidos já que o montante da verba em questão ali previsto a considerar para efeitos de transferência respeita ou reporta-se a «por cada estabelecimento», e, bem assim, quanto a saber se e quais as escolas que estão ou não abrangidas considerando os edifícios que existindo no território de um município são, todavia, pertença do património da «Parque Escolar, EPE» [cfr., mormente, o previsto/disposto nos arts. 32.º, n.º 3, 51.º, 52.º, e 62.º do referido DL].

35. Assim, neste segmento da pretensão cautelar [objeto pretensivo em que se estriba o pedido deduzido sob o n.º 2) e do decorrente pedido constante do n.º 3)] e do que constituirá a pretensão a deduzir a título principal de que os autos sub specie dependem impõe-se, pois, concluir estarmos em face de litígio que tem por objeto atos jurídicos produzidos no exercício da função legislativa e, desse modo, excluída a sua tutela cautelar, bem como a sua impugnação a título principal, dos tribunais administrativos por subtraída à sua jurisdição [cfr. arts. 01.º, 04.º, n.ºs 1, e 3, al. a), do ETAF, 02.º e 03.º do CPTA], com consequente procedência, nesse âmbito, da exceção e declaração de incompetência.

II) DA INCOMPETÊNCIA DO STA

36. Ante o julgado antecedente cumpre passar, então, à apreciação da exceção de incompetência deste Supremo com relevância apenas restrita ao pedido cautelar deduzido sob o «n.º 1».
Vejamos.

37. Da análise conjugada e articulada do que se mostra disposto nos arts. 24.º, 37.º e 44.º, n.º 1, do ETAF resulta, como regra, competir aos tribunais administrativos de círculo o conhecimento e julgamento, em primeira instância, de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência, em primeiro grau de jurisdição, não esteja reservada aos tribunais superiores, exceções estas insertas no n.º 1 do art. 24.º e no art. 37.º ambos do referido Estatuto.

38. No caso importa aferir e determinar se os presentes autos cautelares quanto ao segmento da pretensão/pedido restante e atrás identificado se mostram ou não abrangidos pela previsão da exceção inserta no n.º 1 do art. 24.º do ETAF, do qual decorre, no que poderá relevar, que «[c]ompete à Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo conhecer: (…) a) Dos processos em matéria administrativa relativos a ações ou omissões das seguintes entidades: (…) iii) Conselho de Ministros; (…) iv) Primeiro-Ministro; (…) c) Dos pedidos de adoção de providências cautelares relativos a processos da sua competência; (…) e) Dos pedidos cumulados nos processos referidos na alínea a) (…)».

39. Este preceito reporta-se aos processos que continuam, residualmente, confiados, em primeira instância, ao STA, em razão da autoria das ações ou omissões dos órgãos ali elencados, exigindo-se que na ação cautelar/principal instaurada estejam em causa ações ou omissões da autoria de algum daqueles órgãos enquanto condição de atribuição a este Tribunal de tal competência residual e afastando o regime regra inserto no n.º 1 do art. 44.º do ETAF.

40. No caso e segmento sob apreciação temos que o autor do ato que se mostra objeto de dissídio não figura no e do elenco constante da al. a) do n.º 1 do art. 24.º do ETAF pelo que falha tal pressuposto, ou tal fator atribuidor de competência a este Supremo Tribunal, falhando em decorrência a atribuição de competência quanto ao processo cautelar por apelo ao fator de conexão extensor da mesma e inserto na al. c) do n.º 1 do art. 24.º do mesmo Estatuto.

41. De referir, ainda, que em face do juízo firmado sob o antecedente ponto I) falha igualmente a competência deste Supremo Tribunal em primeira instância para a apreciação da restante pretensão ao abrigo da al. e) do n.º 1 do art. 24.º do ETAF em conjugação, nomeadamente, com os arts. 04.º e 21.º, n.º 1, do CPTA.

42. É certo que a título de tutela principal no quadro da ação administrativa o contencioso administrativo dispõe de um «amplo» e «generoso» regime em matéria de cumulação de pedidos, tal como decorre da análise do que se preceitua nos arts. 04.º e 05.º todos do CPTA.

43. E que do n.º 1 do art. 21.º do CPTA resulta que «[n]as situações de cumulação em que a competência para a apreciação de qualquer dos pedidos pertença a um tribunal superior, este também é competente para conhecer dos demais pedidos», derivando, ainda, do regime processual civil vigente em matéria de cumulação de pedidos que o autor pode «deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação» [cfr. n.º 1, do art. 555.º do CPC/2013 em articulação com o disposto nos arts. 36.º, n.ºs 1 e 2 e 37.º, n.º 1, do mesmo Código] [sublinhados nossos].

44. Ora ressalta que a pretensão que se apresenta deduzida não configura ou se pode qualificar como respeitando a uma situação de cumulação de pedidos já que, desde logo, não se pode considerar como tratando-se de um mesmo e único ente requerido, os requeridos cautelares CM e ME, e também não se mostram deduzidos contra o mesmo demandado vários pedidos, porquanto cada um dos pedidos que foi deduzido encontra-se dirigido, respetivamente, per se a cada um dos entes demandados enquanto concretos autores dos atos objeto de pretensão cautelar.

45. E é de notar que para ocorrer uma cumulação de pedidos conferidora de competência a este Supremo, no quadro dos arts. 04.º e 21.º, n.º 1, do CPTA e 44.º, n.º 1, do ETAF, impunha-se que os mesmos tivessem sido ou pudessem ser formulados contra um mesmo demandado, o que vimos não existir, nem sequer poder ter lugar, na certeza de que, de harmonia com o referido quadro normativo, este Supremo nos processos relativos às entidades integrantes do elenco da al. a) do n.º 1 do art. 24.º do ETAF apenas goza ou vê estendida a sua competência se estivermos ante ou em presença de pretensões/pedidos cumulados para os quais, a título principal e cautelar, o mesmo seja o tribunal materialmente competente e já não quanto a pretensões/pedidos [cautelares/principais] que sejam ou tenham sido deduzidos em coligação de demandados e entre os entes demandados conste ente/órgão que não figure daquele elenco restrito.

46. Assim, inexistindo cumulação e dirigindo-se o pedido cautelar deduzido sob o «n.º 1» contra ato [in casu suspensão de eficácia do despacho n.º 3601/2022, de 25 de março, da Secretária de Estado da Educação - Ministério da Educação (art. 10.º, n.º 2, do CPTA)] de ente demandado que não figura do elenco dos órgãos que se mostram incluídos na al. a) do n.º 1 do art. 24.º do ETAF carece este Supremo de competência em razão da hierarquia para o conhecimento da subsistente pretensão cautelar deduzida já que relativamente à mesma apenas é competente o tribunal de 1.ª instância [tribunal administrativo de círculo - art. 44.º do ETAF - in casu o TAF de Coimbra] [cfr., nomeadamente, os arts. 01.º, 04.º, 05.º, 07.º, 24.º, n.º 1, e 44.º todos do ETAF, 03.º do DL n.º 325/2003, de 29.12, 13.º, 14.º, 16.º, 20.º, n.º 6, e 21.º do CPTA, 60.º, 67.º, 96.º, al. a), 97.º e 99.º, 554.º e 555.º, todos do CPC/2013], procedendo, nessa medida e com a motivação antecedente, a exceção sob análise.

DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em:
A) declarar a jurisdição administrativa incompetente para conhecer da providência cautelar de suspensão de eficácia quanto aos pedidos deduzidos sob o «n.º 2» e consequente «n.º 3», absolvendo as entidades requeridas da instância;
B) declarar este STA incompetente em razão da hierarquia para conhecer da providência cautelar de suspensão de eficácia quanto ao pedido formulado sob «n.º 1», com todas as legais consequências.
Custas a cargo do requerente cautelar.
D.N..

Lisboa, 9 de junho de 2022. - Carlos Luís Medeiros de Carvalho (relator por vencimento) - Ana Paula Soares Leite Martins Portela - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (vencida, conforme declaração de voto que segue)

Declaração de voto
Vencida nos termos do que, essencialmente, foi o texto projecto apresentado.
«[...]
III. DE DIREITO
1. Da competência da jurisdição administrativa para conhecer dos pedidos cautelares
1.1. As três Entidades Requeridas no processo suscitaram a incompetência absoluta deste STA por considerarem que os pedidos cautelares respeitam a matéria política e legislativa, e não administrativa.
1.1.1. O Requerido Conselho de Ministros sublinha que vem peticionado que este tribunal, em consequência do decretamento da suspensão de eficácia das “medidas administrativas concretizadoras do quadro de transferência de competências para os órgãos municipais”, determine “a manutenção de tais competências no domínio da administração central até integral e necessária concretização de todas as medidas administrativas necessárias à concretização daquela transferência, em respeito pelos princípios constitucionais que lhe estão necessariamente subjacentes”.
Considera esta Entidade que o pedido assim formulado consubstancia um pedido de suspensão dos efeitos do n.º 2 do artigo 76.º do Decreto-Lei n.º 21/2019 e que, enquanto tal, está excluído do âmbito desta jurisdição por respeitar a um litígio referente a actos praticados no exercício da função política e legislativa.
Mas sem razão.
Como resulta claro do pedido cautelar apresentado, a manutenção temporária das competências no domínio da administração central até à concretização do quadro normativo-financeiro em que repousa a transferência de competências para os municípios não é um verdadeiro pedido a se, mas antes uma consequência ou decorrência directa da procedência do pedido de suspensão de eficácia das medidas administrativas operacionalizadoras daquela transferência imediata. A expressão “com a consequente” com que se inicia a formulação deste “pedido consequente”, permite-nos afirmar: i) em primeiro lugar, porque se trata de um pedido consequente do primeiro, e a competência material se fixa pelo pedido principal – suspensão da eficácia do Despacho n.º 3601/2022 e das demais medidas administrativas que operacionalizam a transferência imediata das competências – e não pelo pedido consequente, que o fundamento alegado nunca poderia determinar a incompetência absoluta da jurisdição administrativa para conhecer da questão; ii) em segundo lugar, que o pedido consequente se afigura, face ao que no requerimento cautelar se dispõe a respeito da causa de pedir, como um pedido respeitante ao modo de execução da decisão de suspensão e não a um requerimento de pronúncia a se relativo a uma autónoma pretensão do Requerente.
Trata-se, portanto, de uma pretensão que vem deduzida nesta fase, mas que, em boa verdade, corresponde àquela que deveria ser deduzida após a prolação de uma decisão favorável, pois trata-se de um pedido de proibição de execução das medidas adoptadas para a operacionalização imediata da transferência de competências se as mesmas forem suspensas, o que significa, à luz do princípio da continuidade da acção administrativa, que as mesmas terão de continuar a ser executadas pelo titular original, não obstante serem já, ex vi legis, competências que transitaram para a titularidade do Município. É, no fundo, este o teor do pedido formulado em 3) [ou C)], ou seja quando ali se peticiona a “manutenção de tais competências na Administração Central” está-se a referir a manutenção no Estado do exercício ou até na maioria dos casos do financiamento e não da titularidade das competências na área da educação, como o requerimento cautelar sublinha à saciedade quando diz que não pretende pôr em causa a opção política e a medida legislativa, mas apenas os actos e as medidas de execução da mesma.
Assim, a competência da jurisdição administrativa tem de ser analisada e determinada exclusivamente a partir dos pedidos a se formulados pelo Requerente, os quais constam dos pontos 1) e 2) do petitório [ou A) e B) na formulação das Entidades Requeridas]. E esses pedidos são os de suspensão de eficácia do Despacho n.º 3601/2022 e das medidas administrativas concretizadoras do quadro de transferência de competências; ambos restritos, portanto, a questões reconduzíveis a um litígio emergente de relações intersubjectivas jurídico-administrativas e, como tal, enquadráveis no âmbito da competência material dos tribunais administrativos [artigo 1.º, n.º 1 e artigo 4.º, n.º 1, al. j) do ETAF].

1.1.2. Ainda neste diapasão, o Requerido Ministério da Educação veio defender igualmente a natureza política do litígio e, como tal, a sua subtracção ao âmbito da jurisdição administrativa à luz do disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 4.º do ETAF. Alega o Requerido Ministério da Educação que as medidas cuja suspensão se requer, maxime o Despacho n.º 3061/2022, é inimpugnável por se tratar de um mero acto de execução de uma determinação legal de opção política, e, como tal, a sua natureza estritamente executiva de uma disposição normativa que encerra uma escolha política primária não lhe confere a autonomia dogmática no plano administrativo (a densidade administrativa necessária) para que possa ser objecto de impugnação, nem, consequentemente, de uma medida cautelar de suspensão de eficácia.
Mas também esta argumentação não pode proceder.
Trata-se de uma argumentação assente num pressuposto falacioso: o de que está em causa um acto puramente executivo sem teor decisório, ou seja, que o conteúdo que pode ser objecto de impugnação é o que está a montante dele, e esse conteúdo é imediatamente a opção política de transferência do pessoal não docente para os quadros do município. O erro de raciocínio é evidente e decorre da própria norma do artigo 43.º do DL 21/2019, que tem a epígrafe “procedimento de transição de trabalhadores”.
Com efeito, convergem aqui, como em todas as áreas de acção política, três níveis de decisão: i) a político-legislativa que incorpora a opção primária de “descentralização” ou “transferência de competências para os municípios na área da educação”; ii) a executivo-legislativa que determina que essa transferência incluiu a transição de trabalhadores (pessoal não docente) para os quadros dos municípios; e iii) a executiva-administrativa, que se materializa em actos regulamentares (a maioria por aprovar, como sucede neste caso com as portarias previstas nos artigos 42.º, n.º 3, 54.º, n.º 1 e 68.º, n.º 2, al. a) do DL 21/2019) e actos administrativos nos quais se incluiu a aprovação da lista nominativa dos trabalhadores a transferir, prevista no artigo 43.º, n.º 7 do DL 21/2019 e materializada no Despacho n.º 3601/2022, cuja suspensão vem requerida nos autos. Este último nível, que, como afirma o Requerente, operacionaliza os níveis de decisão política anterior, tem natureza distinta, que é administrativa, e tem natureza autónoma, pois ninguém dúvida que os funcionários incluídos naquela lista podem impugnar o despacho se entenderem que o mesmo incumpre as regras legais, por, por exemplo, incluir um funcionário sem vínculo de emprego público. Trata-se, por conseguinte e indubitavelmente, de um acto de natureza administrativa cuja legalidade pode ser questionada perante a justiça administrativa.
A questão que cria aqui complexidade – e que o Requerente e os Requeridos também destacam – é a circunstância de o objecto do pedido serem estas medidas administrativas de operacionalização da imediata transferência de competências e a causa de pedir se fundamentar numa ilegalidade em sentido amplo dessas medidas que decorre, essencialmente, da violação de um princípio constitucional (o da autonomia do poder local). Mas um tal pedido também cabe no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, pois do que se trata é de pedir a suspensão dessas medidas, quer as que têm natureza de actos administrativo, quer as que apresentam um teor normativo-administrativo (que regulam os termos em que se operacionaliza a imediada transferência de competências até que venham a ser aprovadas as portarias de regulamentação do regime jurídico-legal), por efeito da desaplicação das normas que determinam as regras em que assenta precisamente a imediata transferência de competências, uma vez que foi o legislador quem não respeitou aquilo a que se vinculou para assegurar a conformidade constitucional deste regime jurídico e, o Conselho de Ministros, ao impor medidas concretas e imediatamente operativas para o exercício destas competências de forma imediata segundo um regime transitório está, alegadamente, a violar os direitos financeiros dos municípios, sendo em defesa desses seus direitos financeiros que o Requerente fundamenta o seu pedido cautelar de suspensão da operacionalização daquelas normas.
Ora, importa não esquecer que estamos no domínio das decisões cautelares e a nossa análise é, necessariamente, perfunctória e sumária, pelo que não iremos discorrer de forma mais alongada sobre o recorte e a densidade administrativa das medidas de aplicação de normas legais que encerram escolhas políticas primárias. E não o faremos porque neste caso uma tal análise é, além do mais, desnecessária, atento o facto de o Requerente pôr aqui apenas em causa as medidas adoptadas para a aplicação imediata do regime de transferência de competências até que o nível regulamentar das mesmas esteja aprovado e em vigor.
As Entidades Requeridas, e, em especial, o Ministério da Educação, tentam reconduzir o que vem peticionado pelo Requerente a uma “administrativização de um conflito de natureza política”, alegando que o Requerente está a pôr em causa a opção de transferir para os municípios as competências legalmente definidas para o efeito pelo legislador. Mas, como já dissemos, não é esse o conteúdo do Requerimento Cautelar, no qual se repete exaustivamente que não se pretende ver discutida essa questão, mas tão-só a conformidade jurídica das medidas administrativo-financeiras adoptadas com natureza transitória para operacionalizar a transferência de competências até que o regime possa ser efectivamente aplicado, tal como definido pelo legislador, ou seja, quando estiver aprovada a respectiva regulamentação.
Alega-se que existe um regime legal, assente em certas opções, que não estão definidas nem densificadas nos actos legislativos e regulamentares competentes não obstante o lapso de tempo que já decorreu para esse efeito, e que o Governo decidiu adoptar um conjunto de medidas transitórias – medidas que em si têm natureza jurídica discutível, não obstante a sua adopção sob a forma de normas legislativas –, que depois operacionalizou por via de medidas administrativas de aplicação (a que os Requeridos querem retirar natureza administrativa) para tornar operativo o regime. E o que se questiona é a conformidade jurídica destas medidas com o regime legal adoptado, bem como a conformidade jurídico-constitucional destas medidas, ao aplicarem, na prática, medidas legislativas para este período transitório, que estão elas próprias feridas de inconstitucionalidade, pelo que os actos de aplicação das mesmas devem ser julgados ilegais (ilegalidade derivada) por efeito da desaplicação das normas que os habilitam, na medida em que as mesmas ferem princípios constitucionais.
Portanto, o objecto do pedido de suspensão não é a transferência de competências para o Município da área da educação (ou seja, não vem pedida a suspensão de eficácia do n.º 2 do artigo 76.º, nem do artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 21/2019), mas sim as medidas adoptadas para operacionalizar essa transferência imediata, nas quais se incluiu o Despacho 3601/2022, na medida em que dele decorrem encargos financeiros directos para o Município, como resulta do formulário que esta Entidade Requerida remeteu ao Requerente (ponto 12 da matéria de facto assente). Esta transferência de encargos financeiros imediatos, que é uma decorrência administrativa da aplicação do regime jurídico transitório para a efectivação imediata da transferência de competências, é que consubstancia o objecto do litígio e ela é, evidentemente, uma questão jurídico-administrativa que cai no âmbito desta jurisdição.
Aliás, nem se percebe como poderia ser de outra forma, pois inexiste outra sede na qual o Município Requerente pudesse fazer valer o seu direito à integridade financeira municipal perante actos unilaterais de transferência de pessoal para os seus quadros de pessoal, ou de transferência unilateral de custos com equipamentos e serviços, com transportes, com refeições escolares, com residências escolares, etc, que passam a figurar como débitos desta pessoa jurídica pública por decisão de outra pessoa jurídica pública administrativa.
Por todas estas razões, improcede igualmente este argumento quanto à incompetência material desta jurisdição para conhecer do pedido.

1.1.3. Por último, o Requerido Ministério das Finanças abunda na argumentação de que estamos perante um pedido de suspensão de actos meramente executivos (autonomizando o despacho n.º 3601/2022 e reconduzindo-o até a objecto único do pedido) e, como tal, inimpugnáveis, para daí concluir que o objecto do pedido são as normas que encerram as opções político-legislativas em matéria de transferência de competências para o Município e, portanto, o litígio se inscreve no já mencionado artigo 4.º, n.º 2, al. a) do ETAF, ficando assim excluído do âmbito desta jurisdição.
Para além do que já se adiantou nos parágrafos precedentes e que aqui se dá por reproduzido, cabe ainda destacar que, mesmo a adoptar-se o critério proposto pelo Requerido Ministério das Finanças assente na doutrina aí mencionada para traçar a diferença entre actos ou medidas de conteúdo legislativo e actos ou medidas de conteúdo administrativo, i. e. o de os actos em apreço se reconduzirem ou não a “opções políticas primárias”, o resultado in casu seria aquele a que chegámos antes.
Senão vejamos, utilizando dois exemplos retirados do Requerimento Cautelar.
1.1.3.1. A “opção política primária” é “os trabalhadores com vínculo de emprego público da carreira subsistente de chefe de serviço de administração escolar e das carreiras gerais de assistente técnico e de assistente operacional, que exerçam funções nos agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas da rede escolar pública do Ministério da Educação, transitam para os mapas de pessoal das câmaras municipais da localização geográfica respetiva” (artigo 43.º, n.º 1 do DL 21/2019); o nível executivo desta opção no plano financeiro (nível regulamentar) é determinado pela Portaria prevista nos artigos 42.º, n.º 3, 54.º, n.º 1 e, essencialmente, 68.º, n.º 2 do DL 21/2019; os actos ou medidas de operacionalização daquela opção política resultam, para além da publicação da lista nominativa (Despacho n.º 3601/2022) prevista no artigo 43.º, n.º 7 do DL 21/2019, dos actos que fixam os montantes das verbas a transferir para os municípios nos termos dos n.ºs 2 a 5 do artigo 43.º do DL 21/2019.
O Requerente pede que sejam suspensos os efeitos da publicação da lista nominativa (o Despacho n.º 3601/2022) na medida em que não estão em vigor nem foram transmitidos ao Município as regras em que se baseia o cálculo ou os montantes efectivos que o Governo Administração decidiu transferir para este para efeitos de suprir a inexistência da aprovação até ao momento da Portaria prevista no n.º 1 do artigo 54.º e na alínea a) do n.º 2 do artigo 68.º do DL 21/2019. Trata-se, por conseguinte, de um pedido de suspensão de eficácia de uma medida de natureza administrativa.
1.1.3.2. A “opção política primária” é transferir para os municípios “realização de intervenções de conservação, manutenção e pequena reparação em estabelecimentos da educação pré-escolar e de ensino básico e secundário, incluindo a conservação e manutenção dos espaços exteriores incluídos no perímetro dos estabelecimentos educativos destas tipologias, todos elencados na lista anexa ao DL 21/2019” (artigo 32.º, n.ºs 3 a 5 do DL 21/2019) e ”o funcionamento das residências escolares que integram a rede oficial de residências para estudantes” (artigo 37.º, n.º 1 do DL 21/2019); o nível executivo desta opção no plano financeiro (nível regulamentar) é determinado pela Portaria prevista no artigo 68.º, n.º 2, al. b).º do DL 21/2019; os actos ou medidas de operacionalização imediata daquela opção política face à ausência daquele regime regulamentar consistem na transferência da titularidade dos imóveis e da posição contratual do Estado nos contratos em vigor (artigo 64.º do DL 21/2019) e da verba de 20.000€/ano/estabelecimento ou residência para suportar aquelas despesas.
O Requerente pede que sejam suspensos os efeitos da transferência daqueles encargos para o município na medida em que não estão em vigor nem foram comunicadas ao Município as regras em que se baseia o cálculo ou os montantes efectivos que o Governo Administração terá de transferir para este para efeitos de suprir a inexistência da aprovação até ao momento da Portaria prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 68.º do DL 21/2019 e os 20.000€ constituírem um valor manifestamente insuficiente para o efeito, ou haver o risco sério de que assim seja. Trata-se, por conseguinte, de um pedido de suspensão de eficácia de uma medida de natureza jurídica administrativa.

1.1.3.3. E cabe ainda destacar um derradeiro e último argumento em abono da natureza jurídico-administrativa do pedido que vem formulado. Perpassa pelos três articulados de oposição ao requerimento cautelar a ideia de que a “forma legal” em que foram adoptadas algumas destas medidas inviabilizaria, também à luz da jurisprudência pretérita deste STA, a possibilidade de conhecimento da questão.
Ora, é certo que o modelo português, ao concentrar no Governo a dupla qualidade de titular de poder legislativo próprio e de titular de poder administrativo, torna difícil a identificação de “normas dotadas de conteúdo administrativo e forma legal” quando estas incorporam medidas que revestem um carácter geral e abstracto – ou seja, uma natureza regulamentar – contrariamente ao que sucede quando elas incorporam medidas de carácter individual e concreto – os denominados actos administrativos em forma legal. Mas essa fronteira entre a função legislativa e a função administrativa também existe e é funcionalmente identificável e assim qualificável quando as medidas contempladas em forma de lei sejam imediatamente operativas e se apresentam como medidas self-executing de normas legislativas a que visam dar execução. Nestes casos fica arredada a “presunção” de que a “forma legislativa” corresponde a uma opção do Governo em “chamar a este nível funcional” a regulação da concreta questão em apreço por efeito da aplicação directa das regras do artigo 112.º da CRP. Vejamos. O n.º 5 do artigo 112.º da CRP dispõe que “nenhuma lei pode (…) conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”. Por isso, regras como a do n.º 2 do artigo 67.º do DL 21/2019, que disciplina transitoriamente o financiamento das competências de conservação e manutenção de escolas dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e do ensino secundário, através da ordem de transferência anual de 20.000€ por cada estabelecimento de ensino, e que é revogada automaticamente com a entrada em vigor da Portaria referida no artigo 51.º, como ela própria estipula no início do seu enunciado, só pode ser interpretada, à luz daquele preceito constitucional, como uma regra de natureza administrativa. Ou seja, o legislador do DL 21/2019, ante a falta de regulamentação do regime financeiro das competências de conservação e manutenção de escolas, optou por disciplinar expressamente e directamente essa questão, através de uma norma self-executing, que expressamente degradou em norma administrativa ao prever a sua revogação por efeito da aprovação da norma regulamentar que vier a constar de Portaria. É por essa razão que inexiste aqui, clara e inequivocamente, uma regra legislativa que possa ser qualificada como uma opção política primária. O que se discute neste processo são medidas administrativas, seja as que são adoptadas ad hoc para operacionalizar imediatamente a transferência de competências e que habilitam os actos subsequentes (de transferência de contratos, de transferência de titularidade de custos) cuja suspensão se requer, seja aquelas que se encontram contempladas em “regras com forma legal” que, directamente com efeitos imediatamente operativos e em regime de self-executing, disciplinam o regime financeiro transitório destas medidas de transferência de competências na área da educação. Sendo esta, de resto, a única via para assegurar a tutela jurisdicional efectiva dos direitos dos municípios.
[veja-se, neste sentido, também a declaração de voto que subscrevemos e que acompanhou o acórdão proferido em 26.05.2022, no processo 49/22.2BALSB]

1.1.3.4. Em suma, os pedidos de suspensão de eficácia formulados pelo Requerente revestem natureza jurídico-administrativa e, nessa medida, inscrevem-se na competência desta jurisdição.
Improcedem, pois, as alegadas excepções de incompetência absoluta do STA.


2. Da competência do STA em razão da hierarquia e da ilegitimidade passiva do Conselho de Ministros
O Requerido Conselho de Ministros suscita a questão da competência do STA em razão da hierarquia, na medida em que considera que apenas está em causa o pedido de suspensão de eficácia do Despacho n.º 3601/2022, emitido pela Secretária de Estado da Educação ou da omissão de Portarias cuja aprovação compete a membros do Governo, pelo que estaria excluída a sua legitimidade passiva e, nessa medida, a competência deste STA para conhecer do(s) pedido(s) cautelar(es).
Ora, como bem afirma o Requerente nas respostas às excepções, o objecto desta providência cautelar são as medidas de operacionalização da transferência imediata de competências para o Município, as quais resultam das regras transitórias fixadas pelo Conselho de Ministros no DL 21/2019.
Em especial, merece destaque a medida fixada no n.º 2 do artigo 67.º do DL 21/2019 que, numa análise aqui perfunctória, não se pode excluir que ela própria tenha natureza de acto administrativo geral, ou seja, “um comando de aplicação concreta [a transferência por ano da quantia de 20.000€ por estabelecimento de ensino e residência escolar] dirigido a um universo delimitado de destinatários [os municípios para quem as competências são transferidas ex vi lege]”, o qual é incorporado pelo Conselho de Ministros em norma legislativa.
Acresce que, sendo o pedido o de suspensão de eficácia das medidas que operacionalizam a transferência da competência (as medidas em que assenta a transferência da despesa) até que estejam devidamente regulamentados os aspectos financeiros da medida, para salvaguardar os direitos financeiros do Município Requerente, um pedido que tem como decorrência lógica e imediata a não produção de efeitos do exercício daquela competência pelo município, não se compreende de que forma uma tal providência poderia ser adoptada sem que o Conselho de Ministros fizesse parte da acção. Ele é, evidentemente, parte legítima como Entidade Requerida no processo.
E tal é suficiente para determinar, nesta sede cautelar, a legitimidade passiva do Conselho Ministros, pois o que o Requerente questiona é a conformidade jurídica das medidas – e da concreta medida antes enunciada - adoptadas no âmbito do regime transitório para operacionalizar imediatamente a transferência de competências [in casu, a transferência de 20.000€/ano para cobrir os custos com a conservação e manutenção das escolas] as quais foram emanadas pelo Conselho de Ministros e incorporadas no DL 21/2019.
Ora, reconhecendo-se a legitimidade passiva do Requerido Conselho de Ministros para ser demandado, afasta-se, consequentemente, a incompetência hierárquica deste STA para conhecer do pedido.
Improcedem, pelas razões supramencionadas, as duas excepções.

3. Da ilegitimidade passiva do Ministério das Finanças
O Ministério das Finanças suscita a excepção de ilegitimidade passiva, alegando que não faz parte da relação material controvertida, atendendo a que não participou na emanação do Despacho n.º 3601/2022, cuja autoria é apenas da Secretária de Estado da Educação.
Porém, como já destacámos, não é verdade que o pedido do Requerente possa ser interpretado desta forma. A isso acresce que, como bem destaca o Requerente, os pedidos formulados nos autos reconduzem-se à ilegalidade em sentido amplo, por violação de direitos e garantias de natureza financeira, das medidas adoptadas para operacionalizar a transferência imediata de competências para as autarquias locais. E, a procedência do pedido cautelar terá como efeito a manutenção do exercício dessas competências – leia-se, da cobertura das despesas – no universo da Administração Central, pelo que não pode deixar de entender-se que o Ministério das Finanças, sob cuja competência está a gestão orçamental da Administração Pública, é parte legítima neste processo.
Improcede, pois, a alegada ilegitimidade passiva do Ministério das Finanças.

3. Da inimpugnabilidade e consequente impossibilidade de suspensão da eficácia do Despacho n.º 3601/2022 (remissão)
Os Requeridos Ministério da Educação e Ministério das Finanças suscitaram ambos expressamente a excepção de inimpugnabilidade do Despacho n.º 3601/2022. Porém, e pelas razões já amplamente aduzidas, em especial por não se tratar, como ambos alegam, de um mero acto de execução de uma norma legal desprovido de teor administrativo, também esta excepção tem de ser julgada improcedente.
Com efeito, o despacho é impugnável e é passível de ver a sua eficácia suspensa na medida em que ele desencadeia efeitos financeiros que lesam ou podem lesar financeiramente o município de uma forma que o Requerente alega ser ilegal, por desconforme com a lei e com os princípios jurídicos fundamentais.

Julgadas improcedentes todas as excepções suscitadas pelos Requeridos, cabe agora analisar da procedência ou improcedência do pedido cautelar, face aos requisitos legais do artigo 120.º do CPTA, que são de verificação cumulativa.

4. Do fumus boni iuris
O objecto do pedido cautelar já foi identificado antes – a suspensão da eficácia das medidas administrativas que operacionalizam a imediata transferência de competências do Estado para as autarquias locais ex vi legis.
Este pedido cautelar liga-se à impugnação, no plano da acção principal, dessas medidas de natureza administrativa-executiva daquele regime transitório que o Governo adoptou a título subsidiário e com o propósito de virem a ser substituídas por medidas administrativas definitivas (normas regulamentares que hão-de ditar as regras para a prática dos actos de fixação dos valores a transferir anualmente para cada município), no momento em que o regime legal esteja plenamente regulamentado, ou seja, quando forem aprovadas as portarias de regulamentação financeira do DL 21/2019. Sejam as medidas operacionalizadoras das soluções em que o Município exerce a competência e a Administração Central continua transitoriamente a suportar as despesas, como sucede com o material didáctico e equipamentos (ex. artigo 67.º, n.º 3 do DL 21/2019), seja a de transferir um montante fixo anual idêntico para todos os estabelecimentos de ensino e residências escolares como sucede com as despesas de conservação e manutenção (ex. 67.º, n.º 2 do DL 21/2019).
E o fundamento do pedido cautelar é, nas palavras do Requerente, uma ostensiva violação do princípio constitucional da autonomia das autarquias locais por parte das normas que aprovam este regime transitório (artigo 33.º do Requerimento Cautelar), que o mesmo caracteriza pelo facto de não se ter feito acompanhar a transferência destas novas atribuições e competências municipais da transferência de recursos financeiros adequadamente calculados para garantir a continuidade dos serviços, seja daqueles que são transferidos, seja daqueles que já se encontram na titularidade municipal, a que acresce o risco de desequilíbrio financeiro das autarquias locais, com as consequências legais que daí advêm no plano jurídico [vejam-se as regras legais em matéria de endividamento municipal e de mecanismos de prevenção e recuperação financeira municipal, que tolhem a autodeterminação administrativa dos municípios artigos 48.º a 54.º e 56.º a 64.º, respectivamente, do regime financeiro das autarquias locais e entidades intermunicipais, aprovado pela Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro].
O Requerente faz repousar a aparência de ilegalidade em sentido amplo das medidas cuja suspensão aqui requer e que se propõe impugnar na violação de três parâmetros jurídicos:
- primeiro na violação do princípio constitucional da autonomia das autarquias locais (artigos 6.º, n.º 1 e 235.º da CRP), um princípio que abrange a intangibilidade da autodeterminação financeira municipal (como expressamente invocámos no despacho de 24.04.2022), como o Tribunal Constitucional já deixou expresso entre nós no acórdão 361/91 ao afirmar: «[…] Os municípios, mais importantes autarquias locais presentemente existentes, devem dispor de meios financeiros suficientes para o exercício das competências que cabem nas suas atribuições constitucionais e legais, devendo tais meios ter origem na lei, não podendo, por isso, os municípios receber quaisquer formas de subsídios ou comparticipações atribuídos de forma individualizada pela Administração Central (…) Como se exprime o artigo 9.º, n.º 2, da Carta Europeia de Autonomia Local, «os recursos financeiros das autarquias locais devem ser proporcionais às atribuições previstas pela Constituição ou por lei (…) A gestão desses meios patrimoniais há-de ser determinada autonomamente pelos órgãos livremente eleitos do poder local, não podendo ficar totalmente dependente de actos administrativos ou de instruções do Estado, sem prejuízo de uma actividade tutelar deste (…) No n.º 2 [do artigo 240.º] consagra-se como princípio constitucional o equilíbrio financeiro, primeiro, entre o Estado e as autarquias locais e, depois, das autarquias locais entre si. No primeiro caso, trata-se do equilíbrio financeiro vertical, porque através dele se pretende assegurar uma distribuição, equilibrada («justa repartição») das receitas entre o Estado e as pessoas colectivas territoriais autónomas […]». Estas ideias-rectoras de que a autonomia do poder local constitucional, consagrada e defendida enquanto dimensão garantística do próprio estado de direito democrático, engloba, quer a dimensão da suficiência e adequação de recursos financeiros, determinados no plano legal, face às atribuições e competências que o mesmo legislador lhe atribui, quer a dimensão da autogestão financeira dos recursos com independência face ao Estado-Governo-Administração constituem um acquis do conteúdo deste princípio que a nossa jurisprudência constitucional vem sublinhando e defendendo;
- segundo e de forma mais imediata, na violação da regra-princípio vertida no artigo 115.º da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, que aprova o regime jurídico das autarquias locais, no qual se determina que “a lei deve prever expressamente os recursos humanos, patrimoniais e financeiros necessários e suficientes ao exercício pelos órgãos das autarquias locais e das entidades intermunicipais das competências para eles transferidas” – do qual resulta a concretização no plano legal a nível geral e ordenador (é uma regra-princípio porque tem como destinatário o legislador e, neste caso, no que aqui releva, também o legislador da descentralização administrativa);
- terceiro e de forma imediatíssima, na violação das regras legais a que o próprio legislador da descentralização de competências se auto-vinculou na alínea b) do artigo 2.º da Lei n.º 50/2018 e no artigo 65.º do Decreto-Lei n.º 21/2019 ao fixar que o cálculo dos recursos financeiros a transferir para os municípios no âmbito da implementação dos diversos regimes de transferência de competências seriam estudados e fixados segundo regras regulamentares a aprovar, no caso das competências na área da educação, pela Comissão Técnica prevista no referido artigo 65.º do DL 21/2019.
Com efeito, não obstante a imposição constitucional e legal para ser assegurada aos municípios uma garantia de suficiência de recurso financeiros a atribuir para fazer face às novas competências transferidas do Estado para a esfera municipal, verifica-se que o Governo-Legislador acabou por transferir ex lege essas competências antes e na ausência de regras para assegurar aquela suficiência financeira, optando, assim, por permitir que o Conselho de Ministros ordenasse a adopção e execução pelos Ministérios da Educação e das Finanças de medidas transitórias de execução financeira com conteúdo impreciso e, por isso, potencialmente lesivo da integridade financeira dos municípios. E são – repetem-se – regras que apesar de fixadas em normas legais serão expressamente substituídas por normas regulamentares a aprovar, o que, em si, à luz das regras fundamentais em matéria de fontes de direito (maxime, o artigo 112.º, n.º 5 da CRP) é determinante da sua concreta natureza jurídica administrativa.
Estas medidas transitórias imprecisas assim adoptadas podem (é essa a alegação do Requerente) violar grosseiramente a referida garantia legal e constitucional da autonomia financeira local em duas dimensões.
Primeiro, ao não estar assegurada a neutralização do risco do subfinanciamento das competências transferidas, i. e. ao não haver certeza de que os montantes transferidos [maxime os 20.000€/ano/estabelecimento de ensino ou residência escolar] não põem em causa a prossecução pelos municípios das respectivas atribuições e competências, viola-se o direito da autonomia do poder local na acepção da garantia pelo legislador dos recursos financeiros para fazer face às atribuições e competências legalmente definidas.
Segundo, ao permitir-se e potenciar-se um regime impreciso de responsabilidades financeiras concomitantes (do Estado e dos Municípios) por tarefas complementares (despesas com pessoal, despesas com edifícios ou despesas com equipamentos escolares, para dar alguns exemplos que são referidos pelo Requerido Conselho de Ministros na oposição) na prossecução do serviço público de educação, regista-se uma violação do princípio da autonomia do poder local na acepção da autonomia na gestão dos recursos, criando situações em que, em abstracto, o município pode ficar na dependência de transferências financeiras concretas, não normativamente (no plano legal e regulamentar) determinadas, para garantir a prossecução e o bom funcionamento de um serviço que, à luz da lei, é já de titularidade e exercício municipal. Ora, uma tal promiscuidade financeira para concretas competências de titularidade municipal parece estar constitucionalmente vedada pelo princípio da autonomia do poder local, tendo em conta que ela pode, em si, pôr em causa o salutar funcionamento do princípio do Estado de Direito Democrático, ao permitir, desde logo, em tese, situações de dependência financeira directa do município face ao Estado para a prossecução de atribuições e competências concretas, ou, em alternativa, dar azo a que possa ficar comprometida a “saúde financeira” do município.
Por estas razões pede-se a suspensão das medidas que operacionalizam aquelas normas para, por esta via, assegurar a sua desaplicação e evitar a efectiva lesão dos direitos do município de Arganil por um regime legal violador do princípio da autonomia do poder local.
Acresce que, em sede cautelar, o juízo que se faz, quer quanto à legalidade das medidas adoptadas para tornar efectiva a transferência imediata de competências, quer quanto à sua ilegalidade derivada da inconstitucionalidade das normas legais em que as mesmas se fundamentam, é meramente perfunctória e assenta na probabilidade da procedência da acção principal, a qual, pelas razões antes avançadas, se nos afigura existir.
Assim, e uma vez que as Entidades Requeridas nada aportaram que permitisse neutralizar aquele juízo de probabilidade de procedência da acção principal quanto à violação do princípio da autonomia financeira local na acepção e com os contornos antes enunciados e tendo em conta que o Tribunal Constitucional, na sua jurisprudência mais recente, reconhece que também em sede cautelar se pode e deve promover a desaplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade, contribuindo assim para o “respeito e a relevância constitucional da tutela cautelar” (acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 624/2009 e 549/13), consideramos ser de dar por verificada nesta sede e pelas razões expostas o requisito do fumus boni iuris.

5. Do periculum in mora
O Requerente alega que a suspensão provisória das medidas que implementam a transferência imediata das competências para as autarquias locais é a única forma de acautelar a garantia da integridade financeira do Município e a sua autodeterminação financeira, enquanto dimensões essenciais da autonomia do poder local.
O Requerente alega também que esta é a única medida que assegura que não haverá ruptura financeira que possa pôr em causa o correcto funcionamento do serviço de educação ou de outros serviços municipais em caso de necessidade de realocação de verbas, o que equivale a dizer que esta é a única forma, em último termo, de assegurar os direitos dos utentes dos serviços.
Alegações que são adequadas ao preenchimento do pressuposto do periculum in mora.
O Requerido Conselho de Ministros contrapõe que inexiste aqui qualquer risco de constituição de facto consumado ou de prejuízo de difícil reparação. Porém, tomando como exemplo as situações concretas de financiamento de competências transferidas pelas quais o Requerido discorre nos artigos 94.º a 103.º da oposição, resulta evidente que estas medidas transitórias adoptadas para a aplicação imediata da transferência ex lege das competências para os municípios antes de definidas as regras sobre o financiamento das mesmas, ou assenta em medidas de “tipo” “acto administrativo geral” em que é atribuído um valor concreto (pensamos nos 20.000€/ano/estabelecimento de ensino) sem atender à diversidade dos destinatários da medida (capacidade financeira concreta do município) e às especificidades do financiamento (diferença de recursos/despesas dos estabelecimentos de ensino ou residências escolares em causa), ou se adoptam soluções de “promiscuidade financeira”, em que uma parte das despesas das competências já transferidas para os municípios continua a ser financiada pelo Estado, vulnerando-se uma das dimensões fundamentais e constitucionalmente reconhecida pela jurisprudência da garantia da autonomia do poder local.
A isso soma-se a incerteza do tempo em que uma tal “situação transitória” se irá manter, tendo em vista que os regimes regulamentares já deveriam estar aprovados, até porque a transferência de competências estava “legalmente anunciada” para produzir efeitos no dia 1 de Janeiro de 2021 (artigo 4.º, n.º 3 da Lei n.º 50/2018) e o Requerido Conselho de Ministros veio informar nos autos que a Comissão Técnica apenas efectuou a primeira reunião em 5 de Fevereiro de 2021 (pontos 13 e 14 da matéria de facto assente), ou seja, após a data em que estava inicialmente prevista a entrada em vigor do regime jurídico de transferência de competências para todos os municípios.
Assim, há um patente risco sério de que este “regime transitório” se prolongue no tempo, constituindo este, mais um fundamento, para a verificação in casu do periculum in mora por risco de produção de prejuízos de difícil reparação para o equilíbrio financeiro do Requerente e para a garantia do Estado de Direito democrático.

5. Da ponderação de interesses
Por último, a respeito da ponderação de interesses, cabe sublinhar que os prejuízos decorrentes da suspensão das medidas que operacionalizam a transferência imediata de competências e que, consequentemente, paralisam os seus efeitos, são aparentemente muito inferiores àqueles que decorrem da sua não suspensão. Até porque a suspensão deixará de produzir efeitos a partir do momento em que sejam aprovados e entrem em vigor os instrumentos normativos regulamentadores e operacionalizadores da dimensão financeira desta transferência de competências, o que, no essencial, depende até da actuação do Requerido Conselho de Ministros.

Assim, encontrando-se verificados todos os pressupostos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 120.º do CPTA, cabe concluir pela procedência do pedido cautelar.

IV. Decisão
Nos termos do exposto, decidimos julgar procedente a providência cautelar e em conformidade:
i) suspender a eficácia das medidas de natureza administrativa que operacionalizem a transferência imediata de competências para o Município de Arganil em matéria de educação, incluindo o despacho n.º 3601/2022, na parte em que regula o pessoal a transferir para esta autarquia;
ii) a suspensão da eficácia antes determinada cessa se na pendência do processo principal forem entretanto aprovadas e entrarem em vigor as portarias previstas nos artigos 68.º do DL 21/2019 que irão substituir as medidas administrativas transitórias suspensas por esta decisão;
iii) determinar que durante o período de suspensão de eficácia das medidas todos os encargos financeiros respeitantes à execução das competências transferidas para o município de Arganil continuam a ser directamente suportados pelas entidades que até agora os suportavam.
Custas pelas Entidades Requeridas
[...]».

Suzana Tavares da Silva