Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0160/17
Data do Acordão:10/11/2017
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:OMISSÃO DE PRONÚNCIA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
INDEMNIZAÇÃO POR GARANTIA INDEVIDA
Sumário:I - Não ocorre omissão ou excesso de pronúncia se o juiz decide a questão colocada pelas partes por apelo a princípios ou regras diferentes daquelas que as partes indicaram como sendo as mais adequadas;
II - Existe a obrigação de indemnizar por parte da AT, decorrente da prestação indevida da garantia, se a ilegalidade da liquidação do imposto resulta de uma interpretação errada que a AT fez das normas legais aplicáveis ao caso concreto ou da errada subsunção jurídica da situação de facto concreta às normas e princípios fiscais aplicáveis.
Nº Convencional:JSTA00070363
Nº do Documento:SA2201710110160
Data de Entrada:02/13/2017
Recorrente:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............ E OUTRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF SINTRA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT.
DIR FISC - IRS
Legislação Nacional:CONST05 ART2 ART18 N1 ART103 ART203 ART266 N2.
LGT98 ART12 N1 ART53 ART54 ART55 ART56.
CPPTRIB99 ART108 N1 ART125 N1.
CPC13 ART5 N1 ART607 N3.
Jurisprudência Nacional:AC STAPLENO PROC01504/14 DE 2015/09/16.; AC STA PROC0299/16 DE 2016/09/14.; AC STA PROC0300/15 DE 2017/04/05.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

A FAZENDA PÚBLICA, inconformada, interpôs recurso da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (TAF de Sintra) datada de 13 de Outubro de 2016, que, julgou procedente a Impugnação deduzida por A………… e B…………, contra a liquidação adicional de IRS do exercício de 2010, e juros no montante global de € 406.671,85.

Alegou, tendo apresentado conclusões, como se segue:
a) Visa o presente recurso reagir contra a decisão proferida nos presentes autos que julga procedente a impugnação deduzida por A………… (e Outros), com o NIF ………, contra a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) referente ao ano de 2010, no valor de €406.671,85.
b) É entendimento da Fazenda Pública encontrar-se a douta sentença enfermada de vícios de nulidade patentes no excesso e omissão de pronúncia do Tribunal a quo, e de vício decorrente de errado julgamento de direito com violação das normas constantes dos n.ºs 1 e 2 do artigo 53.º da LGT e n.º 2 do artigo 608.º do CPC e n.º 1 do artigo 125.º do CPPT.
c) Resulta da douta sentença que o impugnante pede a anulação da liquidação de IRS impugnada na parte respeitante às mais mais-valias indicadas, baseando o seu pedido em fundamentos exclusivamente reconduzíveis à violação do princípio constitucional da não retroactividade da lei fiscal.
d) Sendo que, em momento algum da sua petição inicial se refere o impugnante à ilegalidade da liquidação por vício de violação de lei, suscitando tão só à questão da inconstitucionalidade do regime instituído pela Lei 25/2010, como resulta claro do artigo 39.º e dos artigos 40.º a 112.º da petição inicial, dedicados ao tema.
e) Afirma o impugnante nos artigos 112.º e 136.º da p.i., respectivamente, "Por tudo isto, a aplicação retroactiva em causa é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 103.º da CRP." (sublinhado nosso) e "E atento tudo o que foi invocado, facilmente se conclui pela inconstitucionalidade da norma aqui em apreço" (sublinhado original e realce nosso), mais convocando acórdão do STA (acórdão STA 281/11, de 07-08-2011, como fundamento de tal inconstitucionalidade.)
f) Ora, é na petição inicial que se define a causa de pedir e o pedido do autor, sendo certo não ter ocorrido em qualquer momento do processo, qualquer ampliação dos mesmos, pelo que, concluímos que em momento algum alegou o impugnante factos subsumíveis na ilegalidade da liquidação com fundamento na violação de lei, pois que alega factos e assenta a impugnação numa única e exclusiva causa de pedir, a violação de normas constitucionais, não assacando à actuação da Administração Tributária qualquer censurabilidade traduzida na possibilidade de actuação diversa.
g) Verifica-se, nestes termos, da omissão de pronúncia do Tribunal a quo, uma vez que não se pronuncia, como seria seu dever, sobre a questão que lhe foi levada à apreciação e consubstanciada na inconstitucionalidade ou não constitucionalidade das normas em questão.
h) Vejamos, por outro lado, que decide o Tribunal a quo a impugnação com base na ilegalidade da liquidação decorrente da violação de lei e da subsequente aplicação ao caso concreto do disposto no n.º 1 do artigo 12.º da LGT, causa de pedir essa que o impugnante não elegeu como sua, e questão completamente distinta e autónoma da questão que o impugnante levou ao conhecimento do Tribunal a quo.
i) Repare-se que a defesa convocada para a questão da violação de lei assume contornos que não são os da defesa exigida para a questão da inconstitucionalidade da norma, e foi no âmbito da primeira questão que os autos se definiram, a causa de pedir e pedido se consolidaram e que a defesa da Administração Tributária ganhou expressão.
j) Por isso, mostrava-se vedado ao Tribunal a quo decidir o pleito com base em questão não convocada pelo impugnante e na qual não assenta a sua causa de pedir, e daí decorre incorrer o Tribunal a quo em excesso de pronúncia quando julga a impugnação procedente com base em vício de ilegalidade da liquidação não invocado pelo impugnante.
k) Mais julga o Tribunal a quo procedente o pedido de indemnização pela prestação de garantia indevida com base na existência de erro imputável aos serviços fundamentado em violação de lei, do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 12.º da LGT, e não na alegada constitucionalidade.
l) Vejamos que o impugnante funda o direito a compensação na alegada inconstitucionalidade, não alegando ademais factos capazes de se conformarem na categoria jurídica de "erro imputável aos serviços", e seria, portanto, à luz do alegado pelo impugnante que o Tribunal a quo deveria, entende a Fazenda Pública, e salvo o devido respeito, ter apreciado e enquadrado do ponto de vista jurídico os factos atinentes à indemnização pelos custos incorridos com a prestação de garantia bancária.
m) Com efeito, não pode ser atribuída ao impugnante qualquer indemnização ao abrigo dos n.ºs 1 e 2 do artigo 53° da LGT com base numa violação de lei que o mesmo não invocou.
n) Do exposto decorre que não se pronuncia o Tribunal sobre questões que lhe foram submetidas à apreciação, bem como se pronuncia o Tribunal a quo sobre questões não colocadas à sua apreciação pelas partes, o que se lhe mostra vedado atento o disposto no n.º 2 do artigo 608.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi alínea e) do artigo 2.º do CPPT.
o) E não estamos perante a apreciação de questão de conhecimento oficioso, por isso, o excesso de pronúncia é notório e determinante da nulidade da sentença, e o mesmo sucesso se atribuindo à omissão de pronúncia, nos termos do prescrito na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC e do nº 1, in fine do artigo 125° do CPPT.
p) Estamos aqui efectivamente perante duas questões: a ilegalidade da liquidação por inconstitucionalidade - questão suscitada pela parte e não apreciada pelo Tribunal a quo - e a ilegalidade da liquidação por violação de lei - questão não suscitada pela parte e apreciada, não obstante se lhe encontrar vedada tal apreciação à luz dos comandos legais vigentes e acima enunciados, pelo Tribunal a quo.
q) No referente à indemnização atribuída pela douta sentença ao impugnante pelos custos incorridos com a prestação de garantia bancária, entendemos incorrer a douta sentença, desde logo, em erro de julgamento de direito por violação do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 53.º da LGT.
r) Julga o Tribunal a quo procedente o pedido de indemnização pela prestação de garantia indevida com base na existência de erro imputável aos serviços, com fundamento em violação de lei - do disposto no n.º 1 do artigo 12º da LGT -, e não na alegada constitucionalidade, contudo, o impugnante funda o direito a compensação na alegada inconstitucionalidade, não alegando, ademais, factos capazes de se subsumirem no conceito de "erro imputável aos serviços", e seria, portanto, à luz do alegado pelo impugnante que o Tribunal a quo deveria, salvo o devido respeito, ter apreciado a questão, não podendo pois ser atribuída ao impugnante qualquer indemnização ao abrigo dos nºs 1 e 2 do artigo 53° da LGT com fundamento numa mera ilegalidade que o mesmo não invocou.
s) Assim, contrariamente ao defendido pelo Tribunal a quo, o pressuposto vertido no n.º 2 do artigo 53.º da LGT, para efeito de atribuição da indemnização independentemente do período superior a três anos referido no nº 1 da norma, não se mostra preenchido por não existir erro imputável aos serviços, porque o mesmo não é configurável com fundamento no alegado pelo impugnante, isto é, na alegada inconstitucionalidade do regime aplicável às mais-valias em apreço nos presentes autos, pois que, surgindo dúvidas acerca da inconstitucionalidade da norma, à AT não resta qualquer outra alternativa que não seja aplicá-la, ainda que reputada de inconstitucional, atento o facto de não se lhe permitir à luz do princípio da separação de poderes, pronunciar-se acerca da constitucionalidade das normas vigentes no ordenamento jurídico ou deixar de se conformar com as mesmas com base em juízos de suposta não constitucionalidade.
t) Considerando o exposto, a ausência de erro imputável aos serviços, determinada pelo correcto enquadramento jurídico da questão suscitada pelo impugnante e pela pronúncia que seria devida à luz do artigo 608.º do CPC, ditada inelutavelmente o julgamento improcedente da pretensão indemnizatória do impugnante se ancorada em eventual juízo de inconstitucionalidade da norma, pelo que, incorreu o Tribunal a quo em notório erro de julgamento de direito, por violação do disposto na norma dos n.ºs 2 e 1 do artigo 53° da LGT.
u) E sempre o julgamento do Tribunal a quo incorrerá em errado julgamento de direito porquanto é consequência directa da apreciação de questão que não lhe foi submetida pelo impugnante e em violação do prescrito no n.º 2 do artigo 608.º do CPC, com violação subsequente e necessária, por erróneo enquadramento jurídico da questão, do disposto no nºs 1 e 2 do artigo 53.º da LGT.
v) Atento o exposto, mostra-se a douta sentença inquinada por vícios de omissão e de excesso de pronúncia determinantes da sua nulidade nos termos da leitura conjugada do n.º 2 do artigo 608.º e alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC e do n.º 1 do artigo 125.º do CPPT.
w) Mais incorrendo em errado julgamento de direito por julgar procedente a questão da indemnização com base em ilegalidade da liquidação com fundamento em mera ilegalidade, convocando erroneamente a figura do erro imputável aos serviços, com violação do disposto no n.º 2 do artigo 608.º do CPC e do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 53º da LGT.

Contra-alegaram os recorridos tendo concluído como se segue:
A. Nos presentes autos discute-se a legalidade da liquidação de IRS n.º 20115005124962, referente ao ano de 2010, no montante de €406.671,85, liquidação essa que foi emitida na sequência da declaração de rendimentos apresentada pelos recorridos.
B. Consideram os recorridos que parte do montante liquidado - relativo a mais-valias decorrentes da venda de participações sociais - corresponde a imposto liquidado ilegalmente, porquanto as mais-valias relativas à venda de participações sociais detidas há mais de 12 meses no acto da venda, no montante de €1.835.942,31, não podem estar sujeitas a tributação, pelo que a importância liquidada, resultante dessa sujeição (e que se cifra em €367.188,46 de imposto e € 6.317,64 de juros) carece de fundamento legal, devendo, consequentemente, ser anulada.
C. O tribunal a quo entendeu - e bem - que a "liquidação em crise não respeitou as regras de aplicação da lei tributária no tempo consignadas no artigo 12.º da LGT", concluindo que "ocorreu a aplicação de lei nova a factos tributários de natureza instantânea já completamente formados em momento anterior à data da sua entrada em vigor, o que envolve uma retroactividade autêntica porquanto o que para esse tempo releva não é o momento da liquidação ou do apuramento do imposto, mas o momento em que ocorre o facto tributário que determina uma eventual liquidação e pagamento de imposto, pois é nessa altura que se exige que se encontre em vigor a lei que prevê a criação ou o agravamento do tributo (em obediência ao princípio da legalidade na vertente fundamentada pelo princípio da protecção da confiança), de modo a que o cidadão possa equacionar as consequências fiscais do seu comportamento".
D. A RFP, não se conformando com o sentido da decisão, dela recorreu, sustentando que existiu uma omissão de pronúncia por parte do tribunal a quo, na medida em que este "não se pronuncia, como seria seu dever, sobre a questão que lhe foi levada à apreciação e consubstanciada na inconstitucionalidade ou não constitucionalidade das normas em questão", excesso de pronúncia na medida em que "decide o tribunal a quo a impugnação com base na ilegalidade da liquidação decorrente da violação de lei e da subsequente aplicação ao caso concreto do disposto no n.º 1 do artigo 12.º da LGT, causa de pedir essa que o impugnante não elegeu como sua, e questão completamente distinta e autónoma da questão que o impugnante levou ao conhecimento do Tribunal a quo" e ainda que não pode ser a AT condenada no pagamento de indemnização pela garantia, dado que inexistiu erro imputável aos serviços.
E. Ora, salvo o devido respeito, inexiste qualquer dos vícios apontados pela RFP à decisão proferida.
F. É inquestionável que a causa de pedir se reconduz à inconstitucionalidade e ilegalidade da norma sob juízo (a Lei n° 15/2010), em lado algum prevendo a lei processual que a referência à causa de pedir tenha que constar formal e expressamente do pedido (este dirige-se à anulação do acto), mas tão-somente que ela se infira clara e taxativamente do petitório.
G. Por outro lado, a inconstitucionalidade é, lato sensu um vício de ilegalidade, de violação de uma lei - a Lei Fundamental -, só que mais grave do que a violação de uma lei ordinária e, por isso, com consequências potencialmente mais gravosas ao nível da sua sanção, pois que se suscita a questão de saber se, em tal caso, o acto é nulo ou anulável (com evidentes repercussões ao nível do prazo de reacção).
H. Como ensina o Exmo. Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa: "Porém, no artigo 24º nº 1 aI. a) do CPPT, em que se prevêem os casos de ilegalidade abstrata da liquidação (inexistência do tributo nas leis em vigor à data dos factos a que respeita a obrigação, ou não estar autorizada a sua cobrança à data em que tiver ocorrido a respectiva liquidação), entre os quais se incluem os de inconstitucionalidade (...). Com efeito, desta norma conclui-se que o vício de inconstitucionalidade por ser invocado como fundamento de oposição, por ser gerador de ilegalidade do acto impugnado (...).
I. Segundo a melhor doutrina, o artigo 12° da LGT deve ser "aplicado de acordo com esta norma constitucional (o artigo 103° da CRP)" o que vale por dizer que o artigo 12° é o desenvolvimento da base fundamental da irretroactividade fiscal que é o artigo 103° da LGT e não pode ser dele dissociado, sendo indiferente que nos reportemos a inconstitucionalidade ou a inconstitucionalidade e ilegalidade quando falamos de retroactividade fiscal.
J. Quanto à questão de fundo, a mesma é já totalmente pacífica, o que vem atestado STA em diversas acções, sendo a sua conclusão absolutamente unânime: a aplicação da Lei nº 15/2010, de 26 de Julho a mais-valias geradas antes da sua entrada em vigor é absolutamente ilegal, por violação do princípio constitucional da proibição da retroactividade fiscal.
K. Veja-se, por todos, o recentíssimo acórdão do STA, proferido em 20 de Maio de 2015 no âmbito do processo n° 013/2015 (disponível em www.dgsi.pt) que conclui que:
"I - As alterações introduzidas ao regime tributário das mais-valias mobiliárias pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho aplicam-se apenas aos factos tributários ocorridos em data posterior à da sua entrada em vigor (27 de Julho de 2010 art. 5.º da Lei nº 15/2010).
II - Nas mais-valias resultantes da alienação onerosa de valores mobiliários sujeitas a IRS como incrementos patrimoniais o facto tributário ocorre no momento da alienação (artigo 10.º nº 3 do Código do IRS), sendo esse o momento relevante para efeitos de aplicação no tempo da lei nova, na ausência de disposição expressa do legislador em sentido diverso (artigos 12.º da LGT e do CC).
III - A aplicação da Lei 15/2010, de 26 de Julho a mais-valias resultantes da alienação de acções detidas pelo seu titular durante mais de doze meses ocorrida em Maio de 2010 configura erro sobre os pressupostos de direito da liquidação, gerador do dever de pagamento de juros indemnizatórios, ex vi do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, porquanto por erro imputável aos serviços a liquidação judicialmente anulada determinou o pagamento de imposto superior ao devido"
L. Por último, e quanto à questão da ilegitimidade da indemnização por prestação de garantia indevida em virtude de pretensa ausência de erro imputável aos serviços, na senda do Acórdão do STA de 20 de Maio de 2015, a aplicação da Lei 15/2010, de 26 de Julho, a mais-valias resultantes da alienação de acções detidas pelo seu titular durante mais de doze meses ocorrida em Maio de 2010 configura erro sobre os pressupostos de direito da liquidação, gerador do dever de pagamento de juros indemnizatórios, ex vi do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, porquanto por erro imputável aos serviços a liquidação judicialmente anulada determinou o pagamento de imposto superior ao devido.
M. Termos em que se conclui pela absoluta improcedência do recurso apresentado pela RFP devendo, por conseguinte, manter-se na ordem jurídica a decisão proferida.

O Ministério Público notificado, pronunciou-se pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
A) Em 2011.11.07, os Impugnantes preencheram e entregaram a declaração Modelo 3 de IRS do ano de 2010, acompanhada dos anexos A e H, G e J, constante de fls. 79 a 81 do processo em papel e que aqui se dá por integralmente reproduzida; do anexo G transcreve-se:
a. (...);
b. Quadro 8 - Alienação de onerosa de partes sociais e outros valores imobiliários;
c. (...)
d. Linha 801: Realização - Ano: 2010; mês 02; valor: 10 613 139,31;
Aquisição - Ano: 2009; mês 11; valor: € 8 573 337,25; Despesas e encargos: € 34 575,63;
e. (...);
B) Em 2011.11.14, foi emitida a liquidação de IRS do ano de 2011, nº 20115005124362, com data de compensação de 2011.11.18, valor a pagar de € 406 671,85 e data limite de pagamento de 2011.12.28, constante de fls. 72 do processo em papel e que aqui se dá por integralmente reproduzida; da nota demonstrativa de liquidação do imposto transcreve- se:
a. (...);
b. 16 - Imposto relativo a tributações autónomas: € 401 045,29;
c. (...);
C) Com data de compensação de 2011.11.18, foi emitida a demonstração de liquidação de juros, à taxa de 4% sobre o valor base de € 399 793,23, com período de cálculo de 2011.06.04 a 2011.11.07, no montante de € 6 878,62;
D) No caso das participações detidas há menos de 12 meses a mais-valia foi de € 169 284,12 resultado da diferença entre o valor de realização, no montante de € 6 672 813,96, deduzido do valor da aquisição, no montante de € 6 494 002,49, e respetivos encargos, de € 9 527,35;
E) No caso das participações detidas há mais de 12 meses, a mais valia ascendeu a € 1 835 942,31, correspondente à diferença entre o valor de realização, no montante de € 3 940 325,35, deduzido do valor da aquisição, no montante de € 2 079 334,76, e dos encargos, de € 25 044,28;
F) Em 2011.12.30, na Tesouraria da Fazenda Pública, os Impugnantes satisfizeram € 33 165,75;
G) Em 2012.01.20, no Serviço de Finanças de Sintra-4, foi instaurado contra os Impugnantes o processo de execução fiscal n° 3166201201016458, para cobrança de dívida de € 373 506,10;
H) Em 2012.02.28, o Banco Comercial Português, SA, Sociedade Aberta, em nome e a pedido dos Impugnantes, emitiu a garantia bancária NR 00213-02- 0007629, a favor de Autoridade Tributária e Aduaneira - Serviço de Finanças de Sintra-4, no montante de € 468 764,80, destinada a garantir o bom pagamento do processo de execução fiscal n° 3166201201016458;
I) Por ofício de 2013.12.20, do Serviço de Finanças de Sintra-4, foi comunicado ao Banco Comercial Português, SA, ter deixado de ser necessária a garantia bancária 00213-02-0007629, no montante de €468 764,80, prestada no PEF nº 3166201201016458;
J) Pela emissão, manutenção e cancelamento da garantia bancária no montante de € 468 764,80, identificada nas alíneas F) e G), os Impugnantes despenderam o montante global de € 12 205,92;
K) Em 2013.12.06, na Tesouraria da Fazenda Pública os Impugnantes satisfizeram € 366 627,48;
L) Em 2012.03.26, a presente impugnação foi enviada a este Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.
Nada mais se deu como provado.

Há agora que apreciar o recurso que nos vem dirigido.
A recorrente Fazenda Pública coloca à nossa apreciação as seguintes questões que afectam a decisão recorrida:
-omissão de pronúncia, porque o tribunal não se pronunciou sobre a invocada violação do princípio constitucional -artigo 103° da CRP- da não retroactividade da lei fiscal - artigo 125°, n.º 1, primeiro segmento da parte final, do CPPT;
-excesso de pronúncia, porque o tribunal determinou a anulação do acto tributário impugnado com fundamento na violação do disposto no artigo 12º, n.º 1 da LGT que proíbe a retroactividade das leis fiscais - artigo 125º, n.º 1, segundo segmento da parte final, do CPPT;
-erro de julgamento, uma vez que a indemnização fixada pela prestação indevida de garantia se baseia em erro imputável aos serviços, quando na verdade se tivesse sido julgada a questão da constitucionalidade invocada não haveria lugar a tal indemnização, incorre, assim, na violação do disposto no artigo 53°, n.ºs. 1 e 2 da LGT.

Vejamos então.
Como resulta da leitura atenta da sentença recorrida, bem como das presentes alegações de recurso e respectivas contra-alegações, a questão que foi tratada na sentença recorrida, e que vinha colocada pelos recorridos na sua petição inicial, foi ab initio definida (pelos mesmos recorridos) nos seguintes termos:
"O problema sob apreciação: a aplicação retroactiva da Lei n.º 15/2010 e o princípio da não retroactividade da lei fiscal.".
Foi esta a única questão, principal, colocada pelos recorridos e que visava a anulação do acto tributário de liquidação do imposto sobre o rendimento que vinha impugnado.
E foi esta a única questão tratada pela sentença recorrida que determinou a anulação da liquidação impugnada com o seguinte fundamento, e em síntese:
“E por todo o exposto julgamos ser claro que, no caso, ocorreu a aplicação de lei nova a factos tributários de natureza instantânea já completamente formados em momento anterior à data da sua entrada em vigor, o que envolve uma retroatividade autêntica, porquanto o que para esse efeito releva não é o momento da liquidação ou do apuramento do imposto, mas o momento em que ocorre o facto tributário que determina uma eventual liquidação e pagamento de imposto, pois é nessa altura que se exige que se encontre em vigor a lei que prevê a criação ou o agravamento do tributo (em obediência ao princípio da legalidade, na vertente fundamentada pelo princípio da proteção da confiança), de modo a que o cidadão possa equacionar as consequências fiscais do seu comportamento.".

É certo, como dá a entender a recorrente, que os recorridos teriam fundado aquela violação do princípio da não retroactividade das normas, única e exclusivamente na violação directa do disposto no artigo 103°, n.º 3 da CRP e não no artigo 12º, n.º 1 da LGT, pelo que, a questão colocada pelos recorridos apenas poderia ser apreciada à luz da violação do comando constitucional e já não do disposto na Lei Ordinária, assim incorrendo o juiz a quo, simultaneamente, em omissão e excesso de pronúncia.

Não é assim por duas razões.

A primeira, porque a quem cabe dizer o direito é ao juiz, à parte cabe dizer os factos e quais as razões de direito que no seu entender servem de fundamento ao pedido, cfr. artigo 5°, n.º 1 do CPC e 108°, n.º 1 do CPPT, porém, o juiz não está sujeito a tais alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, cfr. n.º 2 daquele artigo 5º e 607º, n.º 3 do mesmo CPC.

Ou seja, tendo-se delimitado e identificado a questão a tratar como a da ilegal aplicação retroactiva do disposto na Lei 15/2010, incumbia ao juiz, perante os factos trazidos aos autos pelas partes, enquadrar juridicamente a questão, escolhendo as normas legais adequadas à análise do pedido formulado, e apresentar uma solução -decisão- para a acção; essa sua actividade não está condicionada pelas partes, não tem que respeitar as alegações das partes, trata-se de uma actividade livre e apenas delimitada pela própria Lei, cfr. artigo 203º da CRP.
A segunda, porque mesmo que o juiz estivesse condicionado pelas alegações de direito apresentadas pelas partes, resulta dos fundamentos esgrimidos pelos recorridos na petição inicial a referência expressa ao dito artigo 12°, n.º 1 da LGT, nos artigos 54°, 55° e 56°, o que sempre imporia ao juiz que emitisse pronúncia sobre a questão.
Na verdade, o princípio da proibição da retroactividade das leis fiscais, apesar de ter consagração expressa na própria CRP, cfr. artigo 103º, n.º 3, e na Lei Ordinária, cfr. artigo 12°, n.º 1 da LGT, mais não é do que uma decorrência do princípio da segurança jurídica consagrado no artigo 2° da CRP, pelo que, em última instância, para decidir a questão colocada pelos recorridos sempre cumpriria ao juiz saber em que medida o princípio da segurança jurídica se mostrava afectado pela aplicação retroactiva da referida Lei, e para tanto, poderia socorrer-se das normas e regras ínsitas nos diversos artigos da CRP e da Lei Ordinária, e por isso é que no acórdão n.º 01504/14, datado de 16.09.2015, se considerou expressamente que esta questão passava, necessariamente, pela interpretação e aplicação aos factos do disposto no artigo 12°, n.ºs. 1 e 2 da LGT.
Concluindo-se, assim, que o Sr. Juiz a quo, se limitou a decidir a questão que lhe vinha colocada, concluindo pela ilegalidade da liquidação impugnada por se fundar em normas aplicadas retroactivamente em desrespeito do princípio da não retroactividade da leis fiscais, não se pode afirmar que a sua decisão incorra nas nulidades de omissão e/ ou excesso de pronúncia.
Improcede, assim, nesta parte o recurso que nos vinha dirigido.

Quanto ao erro de julgamento na fixação de indemnização por prestação indevida de garantia.
É certo, tal como a recorrente afirma, que este Supremo Tribunal tem reafirmado ao longo do tempo que não cabe à Administração Tributária a desaplicação de normas tributárias com fundamento na sua desconformidade directa com princípios ou parâmetros constitucionais [A AT, porque está sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT), não pode deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o Tribunal Constitucional já tenha declarada a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cfr. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante o desrespeito por normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP - acórdão datado de 05.04.2017, recurso n.º 0300/15], pelo que, também não pode a mesma ser responsabilizada pelas indemnizações a que haja lugar em função da aplicação de tais normas [Para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte ao abrigo do art. 43.º da LGT, não pode ser assacado aos serviços da AT qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, se não estava na sua disponibilidade decidir de modo diferente daquele que decidiu. - acórdão datado de 05.04.2017, recurso n.º 0300/15], cfr. entre todos o acórdão datado de 14.09.2016, recurso n.º 0299/16.

Mas já pode a mesma Administração Tributária ser responsabilizada pela aplicação de normas, quando interpretadas por si em desconformidade com princípios ou parâmetros constitucionais, o que é o caso dos autos.
A principal divergência que afasta as partes nos presentes autos, bem como em processos idênticos, passa por saber " ... qual a lei aplicável aos ganhos obtidos com a alienação de acções ocorrida em ... (data anterior a 26.07.2010) e detidas pelo seu titular por mais de 12 meses, tendo em conta que nesse momento estava em vigor o artigo 10º, nº 2, al. a), do CIRS, segundo o qual "excluem-se do disposto no número anterior as mais-valias provenientes da alienação de: acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses», mas que essa norma foi revogada pelo artigo 2° da Lei nº 15/2010, de 26 de julho.
Esta Lei nº 15/2010 é omissa no que toca ao estabelecimento de regras específicas quanto à sua aplicação no tempo, pois não contém qualquer norma que deponha sobre a sua aplicação temporal, limitando-se a prescrever que "A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação". O que não pode deixar de representar uma opção silente do legislador no que toca a essa matéria, até porque essa problemática, da aplicação no tempo das alterações legislativas que o diploma veio introduzir na tributação das mais-valias, foi colocada e discutida no quadro do debate parlamentar que precedeu a aprovação desta Lei.
Ora, tendo o legislador optado por não disciplinar essa matéria, limitando-se a determinar a data da entrada em vigor do diploma no dia seguinte ao da sua publicação, sem estabelecer qualquer norma que permitisse a sua aplicação a um período tributário anterior, impõe-se, necessariamente, aplicar a regra geral que rege a aplicação da lei fiscal substantiva no tempo, plasmada no artigo 12° da LGT, sendo insustentável afastar tal regra ou princípio geral com o argumento de que existirão elementos históricos e genéticos que permitem inferir que o legislador terá pretendido que a lei nova se aplicasse a todas as transmissões realizadas no ano de 2010. É que ainda que fosse essa a vontade inicial do legislador, o certo é que acabou por não a expressar e conformar no texto legislativo, e tal conduz, necessariamente, à aplicação do princípio geral sobre a aplicação da lei tributária no tempo, segundo o qual as normas tributárias se aplicam apenas aos factos posteriores à sua entrada em vigor.
Razão por que consideramos que a lei aplicável é a vigente na data da ocorrência do facto tributário instantâneo gerador. E não há, no caso, qualquer dificuldade em situar esse facto no tempo, dado que a alienação é datada (de data anterior a 26.07.2010), nem há qualquer questão que se coloque quanto ao princípio da progressividade do imposto, já que a consequência da aplicação do artigo 12° nº 1 da LGT é a não consideração das mais-valias em questão para efeitos de liquidação do imposto.
Assim sendo, também no que diz respeito a esta questão, de saber se a liquidação em análise respeitou as regras de aplicação da lei tributária no tempo consignadas no artigo 12º da LGT, se subscreve a argumentação jurídica tecida no acórdão fundamento.
E por todo o exposto julgamos ser claro que, no caso, ocorreu a aplicação de lei nova a factos tributários de natureza instantânea já completamente formados em momento anterior à data da sua entrada em vigor, o que envolve uma retroactividade autêntica, porquanto o que para esse efeito releva não é o momento da liquidação ou do apuramento do imposto, mas o momento em que ocorre o facto tributário que determina uma eventual liquidação e pagamento de imposto, pois é nessa altura que se exige que se encontre em vigor a lei que prevê a criação ou o agravamento do tributo (em obediência ao princípio da legalidade, na vertente fundamentada pelo princípio da proteção da confiança), de modo a que o cidadão possa equacionar as consequências fiscais do seu comportamento.", cfr. o já referido acórdão proferido no recurso 01504/14.
Como deste excerto resulta, a Lei n.º 15/2010 que veio a ser aplicada retroactivamente não continha norma expressa que dispusesse sobre a sua aplicação no tempo, tal tarefa ficou a cargo de quem tinha a obrigação de a aplicar, ou seja, a Administração Tributária e os Tribunais.
E como bem se percebe a Administração Tributária aplicou-a a factos tributários instantâneos que ocorreram em data anterior à da entrada em vigor da Lei n.º 15/2010, porque considerou que tais factos tributários se tratavam de factos tributários complexos de formação sucessiva ao longo do tempo.
Ou seja, a norma em causa em si mesma não belisca o princípio da não retroactividade da lei fiscal, a interpretação que a administração fiscal fez de tal norma, ou antes, da sua aplicação no tempo, é que conduziu a que se incorresse na violação de tal princípio e, nesta medida, é ela (AT) responsável pela indemnização dos prejuízos (gastos) decorrentes da prestação de garantia, nos termos em que se julgou tal questão no tribunal a quo.
Improcede, assim, também nesta parte o recurso que nos vinha dirigido.

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em negar provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente.
D.n.
Lisboa, 11 de Outubro de 2017. - Aragão Seia (relator) - Casimiro Gonçalves - Francisco Rothes.