Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01/18.2BCLSB
Data do Acordão:06/19/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:DISCIPLINA DESPORTIVA
TRIBUNAL ARBITRAL
RESPONSABILIDADE DISCIPLINAR
Sumário:I - A prova dos factos conducentes à condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática, bastando que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem, ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência.
II - A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional (LPFP) que tenham sido por eles percepcionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP (RD/LPFP), conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 2.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.os 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
Nº Convencional:JSTA000P24671
Nº do Documento:SA12019061901/18
Data de Entrada:04/29/2019
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:FUTEBOL CLUBE DO PORTO - FUTEBOL, SAD
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1. Futebol Clube do Porto-Futebol, SAD (FCP, SAD), instaurou no Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), ao abrigo do disposto nos artigos 1.º e 4.º, n.os 1 e 3, al. a), da Lei n.º 74/2013, de 06.09 (na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 33/2014, de 16.06) contra a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) recurso de impugnação dos acórdãos do Conselho de Disciplina da FPF/Secção Não Profissional, de 07.03.17, de 07.03.17 e de 14.03.17, relativos, respectivamente, aos Procs. n.os 17/2016, 22/2016 e 24/2016.

O TAD, por acórdão de 22.11.17, decidiu, a final, o seguinte:

- “Julgar improcedente a questão da inconstitucionalidade dos arts. 186.º e 187.º, n.º 1, do RD suscitada pela Demandante e da invalidade dos Relatórios de Jogo e de Ocorrências”.

- “Julgar procedente o pedido de anulação das multas aplicadas nos processos disciplinares 17/2016, 22/2016 e 24/2016, ao abrigo dos artigos 127°, 186°, n° 1 e 187.° n.°s 1 alíneas a) e b) do RD, salvaguardando as infracções com as quais a Demandante, relativamente a cada um deles, se conformou, mantendo-se, nesses casos, as sanções aplicadas pelo Conselho de Disciplina”.

- “Negar provimento ao pedido de reconhecimento de isenção de custas formulado pela Demandada, com fundamento no despacho do Senhor Presidente do TAD proferido no Proc. n.º 2/2015”.

- “Custas pela demandada

Inconformada, a FPF interpôs recurso jurisdicional para o Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS). Por acórdão de 24.01.19, foi negado provimento ao recurso e confirmado o acórdão do TAD – decisão tomada por maioria com um voto de vencido quanto à questão substantiva.

2. Novamente inconformada, a FPF, recorreu para este STA, apresentando as respectivas alegações, concluindo do seguinte modo (cfr. fls. ….):

“1. A Recorrente vem interpor recurso de revista para o STA do Acórdão proferido pelo TCA Sul em 24 de janeiro de 2019, que revogou o acórdão arbitral proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto. Esta instância, por seu turno, havia decidido confirmar a decisão de aplicação ao FCP de multas por comportamento incorreto do público, punidas através do artigo 127.º e 187.º do RD da LPFP;

2. A questão em apreço diz respeito à responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos por ocasião de jogos de futebol, o que, para além de levantar questões jurídicas complexas, tem assinalável importância social uma vez que, infelizmente, os episódios de violência em recintos desportivos têm sido uma constante nos últimos anos em Portugal e o sentimento de impunidade dos clubes dado por decisões como aquela de que agora se recorre nada ajudam para combater este fenómeno;

3. A questão essencial trazida ao crivo deste STA – responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos – revela uma especial relevância jurídica e social e sem dúvida que a decisão a proferir é necessária para uma melhor aplicação do direito;

4. Assume especial relevância social a forma como a comunidade olha para o crescente fenómeno de violência generalizada no futebol – seja a violência física, seja a violência verbal, seja perpetrada por adeptos, seja perpetrada pelos próprios dirigentes dos clubes;

5. Em causa nos presentes autos estão, essencialmente, comportamentos dos adeptos relacionados com o rebentamento de engenhos pirotécnicos e arremesso de objetos por ocasião de jogos de futebol;

6. São deveres dos clubes assegurar que tais objetos não entram nos estádios de futebol e que os seus adeptos não tenham comportamentos incorretos, o que decorre dos regulamentos federativos, é certo, mas também da lei e da Constituição;

7. Admitir, como fez o TCA Sul, que os clubes devem ser desresponsabilizados pelos comportamentos dos seus adeptos – ao arrepio do entendimento de toda a comunidade desportiva e das instâncias internacionais do Futebol, onde esta questão, de tão clara e evidente que é, nem sequer oferece discussão – é fomentar este tipo de comportamentos o que se afigura gravíssimo do ponto de vista da repercussão social que este sentimento de impunidade pode originar;

8. Esta questão tem conhecido posições contraditórias por parte do TAD, sendo que em catorze processos arbitrais a questão foi decidida de forma contrária à que fez o Tribunal a quo, contra apenas três em sentido coincidente;

9. A questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto desde o início de 2017 até à presente data deram entrada no Tribunal Arbitral do Desporto mais de 50 processos relativos a sanções aplicadas ao FCP por comportamento incorreto dos seus adeptos;

10. Tais números não só demonstram de forma incontestável que o FCP nada tem feito ao nível da intervenção junto dos seus adeptos para que não tenham comportamentos incorretos nos estádios, como demonstram que o FCP tem traçado um “plano de ataque” que não verá um fim num futuro próximo;

11. Não existe nenhuma crítica a fazer à decisão proferida pelo TAD, ao contrário do que entendeu o TCA Sul;

12. O FCP não colocou em momento algum em causa que estes factos aconteceram, colocou em causa, sim, que tenham sido adeptos do FCP os responsáveis pelos mesmos e que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas;

13. Tal como consta dos Relatórios de Jogo cujo teor se encontra a fls. … do processo arbitral, os Delegados da Liga são absolutamente claros ao afirmar que tais condutas foram perpetradas pelos adeptos do Futebol Clube do Porto, sem deixar qualquer margem para dúvidas;

14. Com base nesta factualidade, o Conselho de Disciplina instaurou os competentes processos sumários ao FCP. Nos termos do artigo 258.º, n.º 1 do RD da LPFP, o processo sumário é instaurado tendo por base o relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais ou dos delegados da Liga, ou ainda com base em auto por infração verificada em flagrante delito;

15. Este é um processo propositadamente célere, em que a sanção, dentro dos limites regulamentares definidos, é aplicada no prazo-regra de apenas 5 dias (cfr. artigo 259.º do RD da LPFP) somente por análise do relatório de jogo (e, possivelmente, outros elementos aí referidos) que, como se sabe, tem presunção de veracidade do seu conteúdo (cfr. Artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP);

16. Os Delegados da LPFP são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos adeptos que possam originar responsabilidade para o respetivo clube;

17. Assim, quando os Delegados da LPFP colocam no seu relatório que foram adeptos de determinada equipa que levaram a cabo determinados comportamentos, tal afirmação é necessariamente feita com base em factos reais, diretamente visionados pelos delegados no local. Até porque, caso os Delegados coloquem os seus relatórios factos que não correspondam à verdade, podem ser alvo de processo disciplinar;

18. Recorde-se, aliás, que esta forma de processo consta do Regulamento Disciplinar da LPFP, aprovado pelas próprias SAD’s que disputam as competições profissionais em Portugal, entre elas o FCP;

19. Entende o TCA que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta do Relatório de Jogo) que o FCP violou deveres de formação e vigilância, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como sabemos, não é possível;

20. Assim, o Relatório de Jogo, atento o seu conteúdo, é perfeitamente suficiente e adequado para sustentar a punição da Recorrente no caso concreto. Ademais, há que ter em conta que no caso concreto existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento;

21. Para abalar essa convicção, cabia ao clube apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil;

22. Por seu turno, o TCA Sul nada analisa nem nada fundamenta;

23. Também o FCP nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede;

24. No que diz respeito ao cumprimento ou incumprimento dos seus deveres, o FCP nada refere;

25. Do conteúdo do Relatório de Jogo elaborado pelos Delegados da Liga, é possível extrair diretamente duas conclusões: (i) que o Futebol Clube do Porto incumpriu com os seus deveres, senão não tinham os seus adeptos perpetrado condutas ilícitas (violação do dever de formação); (ii) que os adeptos que levaram a cabo tais comportamentos eram apoiantes do Futebol Clube do Porto, o que se depreendeu por manifestações externas dos mesmos;

26. Isto significa que para concluir que quem teve um comportamento incorreto foram adeptos do FCP e não adeptos do clube visitante (e muito menos de um clube alheio a estes dois, o que seria altamente inverosímil), o Conselho de Disciplina tem de fazer fé no relatório dos delegados, o qual tem presunção de veracidade. Posteriormente, o FCP pode fazer prova que contrarie estas evidências, porém, no caso concreto, tal não aconteceu;

27. O próprio Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 730/95, diz claramente que “o processo disciplinar que se manda instaurar (…) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infração, sendo que, por essa via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)”;

28. Neste sentido, veja-se o Acórdão deste STA proferido no âmbito do recurso n.º 297/18, interposto da decisão do TCA Sul tirada no processo n.º 144/17.0BCLSB que dando provimento ao recurso de revista diz que é lícito o uso das presunções judiciais e que cabe ao clube apresentar prova que contrarie a presunção de veracidade dos relatórios, o que no caso, não sucedeu;

29. Ainda que se entenda – o que não se concede – que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir o FCP, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido – a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos do FCP e a violação dos respetivos deveres – foi retirado de outros factos conhecidos;

30. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, ao contrário do que refere o FCP e do que parece entender o TCA Sul;

31. A tese sufragada pelo TCA é um passo largo para fomentar situações de violência e insegurança no futebol e em concreto durante os espetáculos desportivos, porquanto diminuir-se-á acentuadamente o número de casos em que serão efetivamente aplicadas sanções, criando-se uma sensação de impunidade em que pretende praticar factos semelhantes aos casos em apreço e ao invés, mais preocupante, afastando dos eventos desportivos, quem não o pretende fazer, em virtude do receio da ocorrência de episódios de violência;

32. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado por erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 13.º, al. f), 127.º, 172.º, 186.º, n.º 1, 187.º, n.º 1, al. a) e b) e 258.º do Regulamento Disciplinar da LPFP.

Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis,

Deverá o presente recurso de revista ser admitido, sendo determinado procedente o recurso apresentado, e, consequentemente, revogado o acórdão proferido pelo TCA Sul, com as necessárias consequências, ASSIM SE FAZENDO O QUE É DE LEI E DE JUSTIÇA”.

3. O recorrido FCP culminou as suas contra-alegações com as seguintes conclusões (cfr. fls. ….):


- I -

i. Inconformada com o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 24-01-2019 pretende a recorrente, em sede de revista, ver esclarecido o critério legal da apreciação da prova em processo disciplinar desportivo.

ii. Fá-lo, pretendendo que este Supremo Tribunal Administrativo funcione como uma terceira instância de apelação, sendo que tanto o Tribunal Arbitral do Desporto como o Tribunal a quo concluíram que a prova não permitia sustentar a condenação disciplinar, considerando, por conseguinte, não provados os factos essenciais da imputação de que a recorrida foi alvo.

iii. O juízo sobre a matéria de facto é, via de regra, insindicável, porquanto o Supremo Tribunal Administrativo só poderá revogá-lo e determinar que o Tribunal Central Administrativo dê como provados factos que julgou como não verificados em face da prova existente se e apenas na medida em que esse juízo tenha violado disposição legal expressa que fixe a força de determinado meio de prova (art. 150.º-4 do CPTA).

iv. Não se vê, nem a recorrente a identifica, que norma legal haja sido violada pelo Tribunal Central Administrativo na apreciação da prova, devendo o recurso interposto pela recorrente ser julgado improcedente.

v. A revogação pelo STA do decidido pelo Tribunal a quo, com o fundamento de que a prova dos autos seria suficiente para sustentar a decisão condenatória tomada pela recorrida, ultrapassando a apreciação da prova realizada pelas instâncias competentes, incorrerá em excesso de pronúncia e violará o regime do recurso de revista instituído pelo art. 150.º do CPTA.

vi. Acresce que, caso o acórdão proferido por este Tribunal ad quem anule a decisão recorrida, contrariando o previsto no art. 150.º do CPTA, com fundamento de que a decisão condenatória proferida pela demandada, aqui recorrente, seria de considerar plausível e sustentável à luz do regime normativo que incide sobre a valoração da prova em sede disciplinar desportiva, então incorrerá em violação do princípio constitucional da repartição de funções de apreciação de recursos de apelação e de revista atribuídas, respectivamente, aos Tribunais Centrais Administrativos e ao Supremo Tribunal Administrativo, violando, destarte, o princípio da segurança jurídica no âmbito do exercício de funções jurisdicionais pelos tribunais administrativos, corolário do princípio do Estado de direito consagrado no art. 2.º da CRP.
- II -

vii. O arguido em processo disciplinar, tal como ocorre em processo penal, não tem de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada, até porque, aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar (cf. jurisprudência uniforme e pacífica, e reiteradamente afirmada nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 19/01/95, rec. n.º 031486, de 14/03/96, rec. n.º 028264, de 16/10/97, rec. n.º 031496 e de 27/11/97, rec. n.º 039040), vigora ainda o princípio da presunção de inocência.

viii. O princípio da presunção de inocência do arguido, também presente no âmbito do processo disciplinar, tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido – in casu a recorrida – o ónus de reunir as provas da sua inocência (neste sentido, a título de exemplo, veja-se o acórdão do TCA Norte de 02.10.2010, processo n.º 01551/05.8BEPRT, e ainda o acórdão do TCA Norte de 05.10.2012, processo n.º 01958/08.7BEPRT, disponíveis em www.dgsi.pt).

ix. Donde, toda a prova susceptível de conduzir à responsabilidade jurídico-penal do arguido deve ser carreada para os autos pelo titular da acção disciplinar, não sendo, por isso, admissível qualquer inversão do ónus da prova em sede disciplinar (cf. Acórdão do STA de 17.02.2008, processo n.º 0327/08, acórdão do STA de 28.04.2005, processo n.º 333/05, bem como o acórdão do STA de 12.01.1998, processo n.º 023940, disponíveis em www.dgsi.pt).

x. Revela-se, aliás, unânime que o arguido em processo disciplinar tem direito a um "processo justo", o que passa, designadamente, pela aplicação de algumas das regras e princípios de defesa constitucionalmente estabelecidos para o processo penal, como é o caso do citado princípio da presunção da inocência, acolhido no art. 32.º-2 da CRP (cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 27/11/97, in Rec. n.º 039040; 16.OUT.97, in Rec. nº 031496, de 14/03/96, in Rec. n.º 028264; de 19.JAN.95, in Rec. n.º 031486; de 10.DEZ.98, in Rec. n.º 037808; de 01.MAR.07, in Rec. n.º 01199/06; de 28.ABR.05, in Rec. n.º 333/05; de 17.MAI.01, in Rec. n.º 40528, disponíveis em www.dgsi.pt).

xi. É precisamente o princípio de inocência que exige ao Tribunal formular um juízo de certeza sobre o cometimento das infracções para condenar a recorrente, não se bastando com meras ilações, ou uma simples referência geográfica, como, porém, aconteceu.

xii. Portanto, sem que esteja demonstrada e devidamente comprovada, através de robustas provas, a materialidade e autoria da infracção disciplinar fica comprometida qualquer condenação do arguido/recorrida, que deve ter a seu favor a presunção de inocência (cf. Ac. TCAS de 02-06-2010, Proc. 5260/01).

xiii. Ainda que os documentos gozem de uma presunção de veracidade e sejam elaborados pelos Delegados presentes ao jogo, não se podem aqui diminuir as exigências de prova e de sua apreciação, bastando-se com simples afirmações vertidas em relatórios.

xiv. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.º, f), do RD, pode contrariar o quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador.

xv. A presunção de veracidade, prevista no art. 13.º f) do RD, dos factos que nele se prevê só abrange os factos constantes das declarações, relatórios e autos lavrados pelos agentes e que hajam sido por eles percepcionados, e não outros.

xvi. Ora, como é evidente, pela própria natureza das coisas, há elementos típicos que, por norma, não são demonstráveis através dos relatórios de jogo da equipa de arbitragem e/ou dos delegados da Liga, nomeadamente, os que se prendem com a infracção pelo clube, com culpa, dos deveres, legais ou regulamentares, a que estava adstrito, e com a conexão que há-de estabelecer-se entre essa infracção e a conduta proibida ocorrida.

xvii. É, de todo o modo, inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (art. 32.º-2 e -10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20.º-4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2.º da CRP), a interpretação do art. 13.º, al. f) do RDLPFP no sentido de que factos não constantes dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga podem ser dados como provados, por presunção, se a sua verificação não for infirmada pelo arguido, que, desde já, se argui para os devidos efeitos legais.

xviii. Para efeitos disciplinares, como in casu, é relevante afirmar que a prova dos factos integradores da infracção é determinada face aos elementos existentes no processo e pela convicção do julgador, estando sujeita ao princípio da livre apreciação da prova (cf. art. 127.º do CPP e art. 94.º-4 do CPTA).

xix. Uma vez que o RDLPFP nada dispõe em contrário, competirá ao julgador – na fixação dos factos e pressupostos da aplicação da pena disciplinar – formular o seu juízo sobre a realidade e sentido dos factos através da apreciação do material probatório, segundo aquela que é a sua livre convicção.

xx. Ainda que as provas coligidas possam, em teoria, ser aptas a determinar a instauração do procedimento disciplinar contra o arguido, por se revelarem suficientes, na óptica da acusação, para o considerar suspeito dos factos em causa, para punir disciplinarmente algum agente sempre será preciso ir mais além, recolhendo e produzindo provas concretas que permitam criar a convicção no julgador de que se mostram preenchidos todos os pressupostos exigidos pelo tipo legal.

xxi. A imputação de todos e cada um dos elementos do tipo “incriminador” deve estribar-se em meios de prova que os sustentem, com a natureza de prova directa ou, pelo menos, de prova indirecta.

xxii. Considerando os pressupostos legais exigidos para a imputação e condenação pela prática das infracções p. e p. pelos arts. 127.º-1; 186.º-1 e 187.º-1, a) e b) do RDLPFP, era necessário que o Conselho de Disciplina da FPF tivesse carreado aos autos prova suficiente de que i) os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante da Futebol Clube do Porto – Futebol SAD, como ainda que ii) tais condutas resultaram de um comportamento culposo da Futebol Clube do Porto – Futebol SAD.

xxiii. Tal produção de prova jamais podia competir ou ser exigido à arguida, não se podendo neste âmbito admitir – como pretende a recorrente – uma inversão do ónus da prova.

xxiv. Face às normas e princípios que conformam o processo sancionatório, admitir a tese da recorrida equivaleria a uma violação das regras do ónus probatório e do princípio da presunção de inocência, o que deverá inevitavelmente conduzir ao repúdio de tal tese.

xxv. Além do mais, não se pode aqui abrir a porta, a uma “prova por presunção” sobre a autoria dos factos e sobre a violação de deveres constitutiva da ilicitude típica.

xxvi. A prova em sede disciplinar, designadamente aquela assente em presunções judiciais, tem de ter robustez suficiente, tem de ir para além do início da prova, para permitir, com um grau sustentado de probabilidade, imputar ao agente a prática de determinada conduta, tendo sempre presente um dos princípios estruturantes do processo sancionatório que é o da presunção da inocência, designadamente: “todo o acusado tenha o direito de exigir prova da sua culpabilidade no seu caso particular” (GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, I, Verbo, 2008, p. 82).

xxvii. Também não se pode aqui admitir a aplicação de acordo com o qual: à recorrente, titular do poder punitivo disciplinar, caberia fazer a prova da primeira aparência da verificação do facto; e à recorrida, uma vez comprovada essa primeira aparência, compete refutá-la, destruindo essa indiciação.

xxviii. Tal critério consubstancia uma clamorosa violação ao princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a recorrida é titular.

xxix. E do mesmo passo implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação.

xxx. Note-se que, tal posição não tem qualquer base legal ou regulamentar: nesta matéria, os regulamentos aplicáveis não estabelecem qualquer presunção da verificação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar, nem se atribuiu ao arguido qualquer ónus de infirmação do que quer que seja.

xxxi. Trata-se, aliás, de critério decisório incompatível com o princípio da presunção de inocência, por duas ordens de razões: por implicar a imposição de um ónus de prova ao arguido; e por baixar o grau de convicção da verificação do facto para um nível insuportável: não a certeza correspondente à convicção para além de toda a dúvida razoável, mas a suspeita baseada somente na primeira aparência.

xxxii. O critério decisório pelo qual pugna a recorrente – o da prova da primeira aparência, com imposição de ónus da prova ao arguido – contraria jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, a qual representa uma expressão consolidada do cânone da dogmática do princípio da presunção de inocência, constante de todos os tratados e comentários de processo penal e afirmado vezes sem conta pelos nossos tribunais superiores (TC, STJ, Relações e TCA’s) (veja-se, a título de exemplo, (Ac. do Pleno da Secção do CA do STA de 18-04-2002, Proc. 033881; Ac. do STA de 20-10-2015, Proc. 01546/14, Ac. do STA de 18-02-1997, Proc. 033791, Ac. do STA de 28-06-2011, Proc. 0900/10, Ac. do STA de 18-04-2002, Proc. 033881, tirado em Pleno, disponíveis em www.dgsi.pt)

xxxiii. Atendendo aos pressupostos exigidos pelos tipos legais previstos nos arts. 127.º-1, 186.º-1, 187.º-1, a) e b) do RD sempre se exigirá para a condenação do clube, in casu a recorrida, que se mostrassem suficientemente provados – através da produção de prova que incumbe ao titular do processo disciplinar e a qual será sujeita a uma livre apreciação – os factos consubstanciadores da prática das infracções disciplinares; não se tendo verificado tal prova nos autos, e considerando o quadro normativo aplicável ao caso, fica necessariamente prejudicada a alegação da recorrente.

xxxiv. A pretensão da recorrente está claramente condenada ao fracasso, pois que, mesmo atentando ao descrito nos relatórios de jogo percebe-se que nenhum facto neles é sequer descrito em favor do preenchimento de pressuposto essencial dos tipos legais: uma actuação culposa da recorrida.

xxxv. De todo o modo, é inconstitucional, por violação do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.º da CRP) e do princípio da presunção de inocência, presunção de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (art. 32.º-2 e -10 da CRP), a interpretação dos arts. 13.º f), 127.º-1, 186.º-1; 187.º-1 a) e b) do RDLPFP no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que desde já se argui.

xxxvi. Porquanto se mostram por preencher todos os elementos das infracções e não tendo o titular da acção disciplinar carreado aos autos algum elemento de prova que depusesse em favor do preenchimento de pressuposto essencial exigido pelos tipos legais – uma actuação culposa por parte do clube – sempre se impunha resolver “em favor do arguido por efeito da aplicação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do “in dubio pro reo”.

xxxvii. Face ao exposto, não padece o acórdão recorrido de qualquer erro de julgamento, tendo subsumido correctamente os factos alegados ao direito aplicável.

xxxviii. Se, por mera hipótese de raciocínio, proceder a tese da recorrente, reputa-se como inconstitucional – por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente no seu direito de defesa (art. 32.º, n.os 2 e 10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20.º-4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2.º da CRP) – a interpretação dos artigos 13.º, f), 127.º-1, 186.º-1, 187.º-1 a) e b), 222.º-2 e 250.º-1 do RDLPFP segundo a qual a comprovação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar está sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido, podendo ser dado como provado se, resultando simplesmente indiciado através de uma prova de primeira aparência, o arguido não demonstrar a sua não verificação.

xxxix. O douto acórdão do Tribunal a quo não merece qualquer reparo ou censura, devendo manter-se “in totum”.
- III -

xl. Acresce que, os custos fixados pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.º-1 e 268.º-4 da CRP).

xli. Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (arts. 20.º e 268.º-4 da CRP) soluções normativas de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD.

xlii. Uma vez que as normas conjugadamente aplicadas pelo Tribunal a quo para fixar o valor das custas finais (art. 2.º- 1 e -5, conjugado com a tabela constante do Anexo I (2.ª linha), da Portaria n.º 301/2015, articulado ainda com o previsto nos arts. 76.º/1/2/3 e 77.º/4/5/6 da Lei do TAD) são inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade (art. 2.º da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º-1 e 268.º-4 da CRP), devem essas normas ser desaplicadas (art. 204.º da CRP).

Termos em que se requer a V. Exas. se dignem julgar improcedente o recurso de revista, confirmando-se integralmente o douto acórdão recorrido.

Sem prescindir, requer-se a V. Exas. se dignem julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação do disposto art. 2.º, n.os 1 e 5 (e respectiva tabela constante do Anexo I, 2.ª linha, da Portaria n.º 301/2015, com o previsto nos artigos 76.º/1/2/3 e 77.º/4/5/6 da Lei do TAD, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º-1 e 268.º-4 da CRP) e da proporcionalidade (art. 2.º da CRP), com as legais consequências”.


4. Por acórdão deste Supremo Tribunal [na sua formação de apreciação preliminar prevista no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA], de 05.04.19, veio a ser admitida a revista, na parte que agora mais interessa, nos seguintes termos:

“(…)

2. Nos dias 3/12/2016 e 29/12/2016 disputaram-se, no Estádio do Dragão, jogos entre o FCP e o Sporting de Braga e o FCP e o Feirense, e, no dia 27/01/2017, jogou-se no Estádio Capital do Móvel um encontro entre o Paços de Ferreira e o FCP. Durante esses jogos, da bancada onde se encontravam os adeptos do FCP, foram lançadas tochas incandescentes para o relvado o que obrigou à sua paragem, deflagrados potes de fumos, um flash light e proferidas frases ofensivas para as equipas que jogavam contra o FCP, daí resultando a instauração de um processo disciplinar e a punição daquele clube nas multas acima referenciadas.

FCP - SAD recorreu para o TAD e este anulou a decisão recorrida.

A FPF recorreu para o TCA Sul mas confirmou a decisão do TAD.

3. Está em causa saber se a ocorrência dos factos que determinaram a punição do Recorrido é, por si só – independentemente do que se vier a provar em sede de culpa – suficiente para o sancionar pela prática das identificadas infracções. Ou, dito de diferente forma, importa saber se o TCA ajuizou correctamente quando considerou que para que se pudesse condenar o Recorrido pela prática das infracções disciplinares em causa tornava-se necessário que a entidade detentora do poder disciplinar lograsse provar factos dos quais se pudesse concluir que o Autor violou, de forma culposa, os deveres que sobre ele impendem. O que evidencia que essa questão tem relevante importância jurídica e social uma vez que é decisivo saber, se nas circunstâncias dos autos, recai sobre a acusação o ónus de provar o que o Acórdão recorrido considerou indispensável sob pena de absolvição do Clube acusado. Se assim for, isto é, se for fundamental fazer a prova exigida por aquele Aresto a conclusão que se retira é que os normativos alegadamente violados terão uma diminuta aplicação visto ser muito difícil fazer essa prova. O que vale por dizer que a aplicação do disposto nos art.º 127.º e 187.º do RD da FPF, que a Recorrente considera importante para assegurar a ordem nos desafios de futebol, será residual.

Nesta conformidade, aquela questão justificava, por si só, admissão da revista para melhor aplicação do direito.

Acresce que, bem recentemente, foi tirado neste Supremo um Acórdão que contraria o entendimento que fundamentou a decisão recorrida. Com efeito, aí se lê:

“67. É, por conseguinte, neste ambiente de proteção, salvaguarda e prevenção da ética desportiva, bem como do combate a manifestações de violência associada ao desporto, que incidem ou recaem sobre vários entes e entidades envolvidos, designadamente sobre os clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, um conjunto de novos deveres in vigilando e in formando e em que a inobservância destes deveres assenta não necessariamente numa valoração social, moral ou cultural da conduta do infrator, mas antes no incumprimento de uma imposição legal, sancionando-se aqueles por via da contribuição omissiva, causal ou co-causal que tenha conduzido a um comportamento ou conduta dos seus adeptos.

70. Frise-se que é na e da inobservância dos deveres de assunção da responsabilidade pela segurança do que se passe no recinto desportivo e do desenvolvimento de efetivas ações de prevenção socioeducativa que radica ou deriva a responsabilidade disciplinar desportiva em questão, dado ter sido essa conduta que permitiu ou facilitou a prática pelos seus adeptos dos atos ou comportamentos proibidos ou incorretos.

71. E que cabe aos clubes de futebol/sociedades desportivas a demonstração da realização por parte dos mesmos junto dos seus adeptos das ações e dos concretos atos destinados à observância daqueles deveres e, assim, prevenirem e eliminarem a violência, e isso sejam esses atos e ações desenvolvidos em momento anterior ao evento, sejam, especialmente, imediatamente antes ou durante a sua realização.” - Acórdão de 21/02/2019 (rec 33/18)”.


5. O Digno Magistrado do Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso de revista, “com a revogação do douto Acórdão recorrido e a subsistência na ordem jurídica das decisões disciplinares impugnadas”.

6. Sem vistos legais (cfr. arts. 36.º, n.os 1 e 2, do CPTA, e 8.º, n.º 2, da Lei do TAD [LTAD]) vêm os autos à conferência para decidir.

II – Fundamentação

1. De facto:

Remete-se para a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.



2. De direito:

2.1. Cumpre apreciar as questões suscitadas pela ora recorrente – delimitado que está o objecto do respectivo recurso pelas conclusões das correspondentes alegações –, relacionada com a verificação de erro de julgamento, “designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 13.º, al. f), 127.º, 172.º, 186.º, n.º 1, 187.º, n.º 1, al. a) e b) e 258.º do Regulamento Disciplinar da LPFP”.

2.2. Entende a recorrente FPF, fundamentalmente, que:

(i) “O FCP não colocou em momento algum em causa que estes factos aconteceram, colocou em causa, sim, que tenham sido adeptos do FCP os responsáveis pelos mesmos e que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas” (conclusão 12. das alegações de recurso).

(ii) “Tal como consta dos Relatórios de Jogo (…) os Delegados da Liga são absolutamente claros ao afirmar que tais condutas foram perpetradas pelos adeptos do Futebol Clube do Porto, sem deixar qualquer margem para dúvidas” (conclusão 13. das alegações de recurso).

(iii) Com base nesta factualidade, o Conselho de Disciplina instaurou os competentes processos sumários ao FCP. Nos termos do artigo 258.º, n.º 1 do RD da LPFP, o processo sumário é instaurado tendo por base o relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais ou dos delegados da Liga, ou ainda com base em auto por infração verificada em flagrante delito” (conclusão 14. das alegações de recurso).

(iv) “Entende o TCA que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta do Relatório de Jogo) que o FCP violou deveres de formação e vigilância, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como sabemos, não é possível” (conclusão 19. das alegações de recurso).
(v) “o Relatório de Jogo, atento o seu conteúdo, é perfeitamente suficiente e adequado para sustentar a punição da Recorrente no caso concreto. Ademais, há que ter em conta que no caso concreto existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento” (conclusão 20. das alegações de recurso).

(vi) “Para abalar essa convicção, cabia ao clube apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil”, e, “o FCP nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede”; “No que diz respeito ao cumprimento ou incumprimento dos seus deveres, o FCP nada refere” (conclusões 21., 23. e 24. das alegações de recurso).

(vii) “Por seu turno, o TCA Sul nada analisa nem nada fundamenta” (conclusão 22. das alegações de recurso).

(viii) “Ainda que se entenda – o que não se concede – que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir o FCP, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido – a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos do FCP e a violação dos respetivos deveres – foi retirado de outros factos conhecidos”; e “Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, ao contrário do que refere o FCP e do que parece entender o TCA Sul” (conclusões 29. e 30. das alegações de recurso).

Já a recorrida FCP, SAD, questiona, antes de mais, a suficiência da prova constante do relatório do jogo para a sancionar, mesmo admitindo-se que o artigo 13.º, al. f), estabelece uma presunção de veracidade do seu teor. Entende, pois, que andou bem o TCAS ao decidir no sentido da insuficiência probatória, reconhecendo-lhe, desta forma, razão na sua pretensão.
Mais ainda, sustenta que se este STA alterar a decisão do TCAS estará a incorrer em excesso de pronúncia e violará o regime do recurso de revista instituído pelo artigo 150.º do CPTA, pois estará a pôr em causa a factualidade provada (pois que, quer o TAD, quer o TCAS acharam que a prova existente era insuficiente), e, ainda, estará a desrespeitar o “princípio constitucional da repartição de funções de apreciação de recursos de apelação e de revista” e “o princípio da segurança jurídica no âmbito do exercício de funções jurisdicionais pelos tribunais administrativos, corolário do princípio do Estado de direito consagrado no art. 2.º da CRP”.

2.3. Comecemos pela última questão mencionada, desde já avançando que não assiste razão à recorrida FCP, SAD. Efectivamente, o STA, ao afastar-se do raciocínio subjacente à decisão do TCAS não está a alterar a matéria de facto provada neste último tribunal (e, antes dele, no TAD), apenas estará a fazer uma valoração distinta dos factos, não estando legalmente impedido disso. Não está, por esta forma, a incorrer em qualquer excesso de pronúncia e nem a desrespeitar os princípios acima assinalados.

Quanto ao questionamento da suficiência da prova que levou ao sancionamento disciplinar da recorrida – à qual se associam outras questões: a prova dos factos ocorridos, que deve ser cabal (apoiada em provas robustas), cabe unicamente à titular do poder disciplinar; neste domínio disciplinar não cabe a inversão do ónus da prova sob pena de violação do princípio da presunção da inocência e das regras do ónus probatório; não devem valer presunções no que respeita à prova –, há, desde logo, que atentar no preceituado no artigo 13.º, al. f). Nele se prescreve uma “presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga e dos autos de flagrante delito lavrados pelos membros da Comissão de Instrutores, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa”. Ora, nem a FCP, SAD, nem o TCAS trouxeram aos autos algo que pudesse contrariar a verdade dos factos apresentada pelo Conselho de Disciplina e materializada, antes de mais, no relatório do jogo – o qual assenta em factos reais e beneficia de uma presunção legal de veracidade. Logo, não se vê como essa única versão dos factos que não foi abalada não deva manter-se. Ainda mais quando associada a presunções naturais que remetem para as circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência (cfr. art. 349.º do CC). Assim sendo, de nada vale invocar o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador para defender que a presunção de veracidade poderia ser afastada se a argumentação apresentada se reconduz à ideia de que a prova não é suficiente.

Mas lembremos o que já foi dito em outros acórdãos recentes deste STA em que se julgavam questões em tudo idênticas a estas (v.g., Acórdãos de 18.10.18, Proc. n.º 144/17.0BCLSB; de 20.12.18, Proc. n.º 8/18; de 21.02.19, Proc. n.º 33/18.0BCLSB; de 21.03.19, Proc. n.º 75/18.6BCLSB e de 04.04.19, Proc. n.º 40/18.3BCLSB). Destacamos aqui o Proc. n.º 33/18.0BCLSB, de onde será extraído o excerto que se passa a transcrever:

22. No processo disciplinar, à semelhança do que sucede no processo penal, o ónus da prova dos factos constitutivos da infração cabe ao titular do poder disciplinar, não sendo o arguido que tem de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada, pelo que perante um non liquet em matéria de prova o mesmo terá de ser resolvido em favor do arguido por efeito da aplicação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do in dubio pro reo.
23. E na fixação dos factos que funcionam como pressupostos de aplicação das penas disciplinares a Administração não detém um poder insindicável em sede contenciosa, porquanto nada obsta a que o julgador administrativo sobreponha o seu juízo de avaliação àquele que foi adotado pela Administração, mormente por reputar existir uma situação de insuficiência probatória [cfr., entre outros, os Acs. deste Supremo de 24.01.2002 - Proc. n.º 048147, de 18.04.2002 (Pleno) Proc. n.º 033881, de 07.10.2004 - Proc. n.º 0148/03, de 07.06.2005 - Proc. n.º 0374/05, de 14.04.2010 - Proc. n.º 0803/09, de 28.06.2011 - Proc. n.º 0900/10, de 13.07.2016 - Proc. n.º 0516/14].
24. Temos, ainda, que a condenação em pena disciplinar deve assentar ou estribar-se em provas que permitam um juízo de certeza, ou seja, uma convicção segura, que esteja para além de toda a dúvida razoável, de que o arguido praticou os factos que lhe são imputados [cfr., entre outros, Acs. deste Supremo de 07.10.2004 - Proc. n.º 0148/03, 28.04.2005 - Proc. n.º 0333/05, de 21.10.2010 - Proc. n.º 0607/10, de 28.06.2011 - Proc. n.º 0900/10, de 15.03.2012 - Proc. n.º 0426/10, de 23.01.2013 (Pleno) - Proc. n.º 0772/10, de 14.01.2016 - Proc. n.º 01546/14, de 28.01.2016 - Proc. n.º 0404/14, de 13.07.2016 - Proc. n.º 0516/14].
25. É que no processo sancionador a prova da prática da infração que é exigida deve ser conclusiva e inequívoca no sentido de que o sancionado é o autor responsável, não podendo impor-se uma sanção disciplinar com base em simples indícios ou conjeturas subjetivas.
26. Na verdade, como afirmado no acórdão deste STA de 07.06.2005 [Proc. n.º 0374/05] a «“prova dos factos integrantes da infração disciplinar cujo ónus impende sobre a entidade administrativa que exerce o poder disciplinar, através do instrutor do processo, tem de atingir um grau de certeza que permita desferir um juízo de censura baseado em provas convincentes para um apreciador arguto e experiente, de modo a ficar garantida a segurança na aplicação do direito sancionatório”», segurança essa que não se encontra garantida se «a prova coligida no processo disciplinar não legitimar uma convicção segura da materialidade dos factos imputados ao arguido».
27. Note-se, todavia, que a condenação do arguido em processo disciplinar não exige que a certeza tenha de ser «absoluta, férrea ou apodítica da sua responsabilidade» [cfr., entre outros, os Acs. deste Supremo de 21.10.2010 - Proc. n.º 0607/10, de 15.03.2012 - Proc. n.º 0426/10, de 07.01.2016 - Proc. n.º 0131/13], dado o preenchimento do grau de certeza exigido se bastar com existência de elementos probatórios coligidos no processo e que o «demonstrem segundo as normais circunstâncias práticas da vida e para além de uma dúvida razoável».
28. Com efeito, a prova dos factos não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado «a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática» [cfr. o citado Ac. deste Supremo de 07.01.2016 - Proc. n.º 0131/13], uma «verdade histórico-prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço, mas processualmente válida» [cfr. J. Figueiredo Dias, in: «Direito Processual Penal», I, 1981, pág. 194], bastando, por isso, que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência.
29. É que «nos juízos de facto a emitir num processo disciplinar, é lícito à Administração, e até obrigatório, usar das presunções naturais que se mostrem adequadas», porquanto «é legítimo, e obrigatório, usar de presunções naturais na realização dos julgamentos de facto. Esse é, aliás, um exercício quotidiano nos tribunais, permitido pelo art. 351º do Código Civil; e de igual metodologia se serve a Administração nos juízos que emita sobre a prova produzida» [cfr. o citado Ac. deste Supremo de 21.10.2010 - Proc. n.º 0607/10].
30. Presentes os considerandos antecedentes e revertendo ao caso sub specie temos que as questões que no mesmo se mostram suscitadas não constituem novidade neste Supremo [cfr. as pronúncias já firmadas nos citados Acs. de 18.10.2018 - Proc. n.º 0144/17.0BCLSB, e de 20.12.2018 - Proc. n.º 08/18.0BCLSB].
31. Tal como afirmado nas pronúncias já emitidas o conhecimento em sede de recurso de revista mostra-se reconduzido a matéria de direito, porquanto o recurso de revista «só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual» e aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o «tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado», cientes de que o «erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova» [cfr. arts. 12.º, n.º 4, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) - na redação que lhe foi introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, redação essa a que se reportarão todas as demais citações de normativos daquele Estatuto sem expressa referência em contrário -, e 150.º, n.ºs 2 a 4, do CPTA].
32. Assente este pressuposto temos que o juízo formulado pelo «TCA/S» quanto à matéria de facto apenas pode ser censurado na medida em que se traduza numa questão de direito, questão essa que, como vimos, efetivamente se mostra colocada face aos termos do recurso de revista sob apreciação dado que, mormente, está em causa uma alegada infração de vários comandos normativos [cfr., nomeadamente, os insertos nos arts. 13.º, al. f), 222.º, n.º 2, e 250.º, do RD/LPFP-2017, 349.º do CC, 02.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP] naquilo que foi, no contexto de processo disciplinar, o apelo ou recurso a presunções judiciais na fixação da factualidade tida por relevante e que foi pressuposto da imputação e responsabilização disciplinar.
33. Em apreciação da matéria objeto de discussão nos autos afirmou este Supremo nos acórdãos citados, em linha, como vimos, com o que constitui entendimento deste Tribunal, que aqui se secunda e reitera, que «no domínio do direito disciplinar, a que se aplicam subsidiariamente os princípios do direito penal, é lícito o uso das presunções judiciais».
34. E que aliada a tal afirmação importa ter, ainda, como «indubitável que, no domínio do direito disciplinar desportivo, vigora o princípio geral da “presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Liga, e por eles percecionado no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posto em causa” [art. 13.º, al. f), do RD]», sendo que «[e]sta presunção de veracidade, que se inscreve nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere, assim, um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado».
35. Ora, ao invés do que se sustenta no acórdão do «TCA/S» aqui objeto de impugnação, a decisão do «TAD» não incorreu em erro de julgamento ao haver mantido incólume o quadro factual que havia sido fixado como provado na decisão disciplinar punitiva.
36. O juízo na mesma firmado nessa sede louvou-se ou socorreu-se não apenas do princípio da presunção de veracidade dos factos nos termos que se mostram previstos na al. f) do art. 13.º do RD/LPFP-2017, mas, também, de presunções naturais radicadas em circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência [cfr. art. 349.º do CC] que enuncia, nomeadamente, sob o ponto «iii) “Do alegado erro na apreciação da prova”», tal como o havia feito, aliás, a decisão disciplinar punitiva impugnada.
37. Esta não viu radicar, pois, o juízo punitivo numa qualquer presunção de culpa da «FC…., SAD», antes se mostrando o mesmo juízo alicerçado, ao invés, naquilo que foi a prova lograda coligir e produzir no processo disciplinar e o uso de presunções, considerando e fazendo apelo, inclusive, daquilo que são decorrências do cumprimento das obrigações que impendem sobre os clubes no decurso e participação nas competições em que estão envolvidos [cfr., nomeadamente, os arts. 34.º a 36.º do RC/LPFP-2017, e arts. 06.º, 07.º 08.º, 09.º, 10.º e 11.º do RPV/RC/LPFP-2017] e em que a designada «bancada topo Sul» do Estádio do …….., indicada expressis verbis no relatório como local onde os ilícitos ocorreram, é consabidamente um local ocupado por adeptos, sócios, apoiantes ou simpatizantes afetos ao clube «FC….»/«FC….., SAD», revelada, nomeadamente, «através da ostentação de camisolas, bandeiras, cachecóis ou da entoação de determinados cânticos».
38. A aqui recorrida, «FC…., SAD», verdadeiramente não nega ou põe efetivamente em causa a ocorrência dos factos registados no «relatório do delegado» da LPFP ao jogo, já que a impugnação, ou a discussão se centra, no fundo, que tenham sido adeptos seus os autores dos factos em causa nos presentes autos.
39. Ocorre, contudo, que pese embora a mesma teça diversas considerações sobre hipotéticas possibilidades no que respeita à autoria das sobreditas «ocorrências», a aqui recorrida, nem no processo disciplinar, nem na impugnação deduzida quanto à decisão disciplinar punitiva, não conseguiu infirmar, com plausibilidade, o que foi redigido no referido relatório, mediante a alegação de factos perfeitamente ao seu alcance e a produção de meios probatórios que, fazendo a contraprova [cfr. art. 346.º do CC], permitissem ilidir a mera presunção de veracidade de que o mesmo relatório goza [cfr. al. f) do art. 13.º do RD/LPFP-2017], presunção esta que não corresponde a uma qualquer presunção legal, ou a uma regra de dispensa, liberação ou de inversão do ónus da prova [cfr. art. 344.º do CC], que seria, aliás, inadmissível no plano constitucional e legal no âmbito de matéria sancionatória.
40. O considerar-se que a aqui recorrida não conseguiu destruir os factos que lhe foram imputados mediante a alegação de factos e a apresentação de provas apenas significa que a prova coligida durante a instrução do processo não foi infirmada na subsequente fase de defesa de que a mesma dispôs, não sendo possível inferir de uma tal afirmação a conclusão de que era àquela que, enquanto arguida, competia fazer a prova a inexistência dos factos e da sua não culpa, não ocorrendo, por conseguinte, uma qualquer infração ao princípio de presunção de inocência do arguido [cfr., entre outros, o Ac. do STA de 10.03.1998 - Proc. n.º 040528], nem sequer a situação, no contexto apurado de efetiva existência de culpa da arguida, permite o operar do princípio do in dubio pro reo.
41. De referir ainda que do facto de nem as autoridades policiais, nem os delegados da «LPFP», ou o árbitro, terem identificado pessoalmente quem, em concreto, fez uso dos engenhos pirotécnicos ou proferiu as expressões/cânticos reportados, tal não invalida ou impossibilita a fixação da factualidade nos termos que se mostram realizados.
42. É que para o que constitui o objeto de incriminação e tendo em conta as circunstâncias em que os factos ocorreram [no decurso de um jogo de futebol e em que os adeptos e simpatizantes estavam numa bancada afeta a adeptos do «FC…..», mostrando-se portadores de sinais inequívocos da sua ligação ao respetivo clube, nomeadamente, as referidas bandeiras, cachecóis e camisolas] a circunstância de, no meio daquela imensa mole humana, não ter sido efetuada a identificação pessoal dum concreto sujeito ou dos concretos sujeitos, tem-se como de todo em todo desnecessária, já que a imputação não é feita aos concretos adeptos, mas ao clube de que os mesmos são apoiantes ou simpatizantes, adeptos esses que, refira-se, não estão sequer sujeitos ou abrangidos pelo âmbito do «RD/LPFP» [cfr., nomeadamente, seus arts. 03.º, 04.º, n.º 1, al. b), e 187.º].
43. Ressuma do exposto que o juízo posto em crise mostra-se, assim, em consonância com o entendimento e jurisprudência convocada, não padecendo, como tal, de qualquer erro de julgamento, nem das apontadas inconstitucionalidades.
44. Como afirmado por este Supremo nos seus acórdãos de 18.10.2018 e de 20.12.2018, supra citados, o estabelecimento e previsão de uma tal presunção de veracidade «não se vê que … seja inconstitucional, quando o Tribunal Constitucional, no Ac. n.º 391/2015, de 12/8 (…), considerou que, mesmo em matéria penal, são admissíveis presunções legais, desde que seja conferida ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que a presunção se sustente e desde que para tal baste a contraprova dos factos presumidos, não se exigindo a prova do contrário» e de que como o mesmo TC entendeu «para a situação idêntica da fé em juízo dos autos de notícia (…) cremos que a presunção de veracidade em causa - que incide sobre um puro facto e que pode ser ilidida mediante a criação, pelo arguido, de uma mera situação de incerteza - não acarreta qualquer presunção de culpabilidade suscetível de violar o princípio da presunção de inocência ou de colidir com as garantias de defesa do arguido constitucionalmente protegidas (art. 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP)», já que «o valor probatório dos relatórios dos jogos, além de só respeitarem, como vimos, aos factos que nele são descritos como percecionados pelos delegados e não aos demais elementos da infração, não prejudicando a valoração jurídico-disciplinar desses factos, não é definitiva, mas só prima facie ou de interim, podendo ser questionado pelo arguido e se, em face dessa contestação, houver uma “incerteza razoável” quanto à verdade dos factos deles constantes, impõe-se, para salvaguarda do princípio in dubio pro reo, a sua absolvição».
45. A decisão disciplinar punitiva não radicou, pois, numa qualquer presunção de culpa da «FC…., SAD», decorrente duma inversão do ónus probatório [cfr. art. 344.º do CC] estribado no art. 13.º, al. f) do RD/LPFP-2017, antes se mostrando alicerçada naquilo que, levando a consideração em matéria desportiva os princípios enformadores do processo disciplinar, foi a prova coligida no mesmo processo e o uso lícito e legítimo das aludidas presunções [cfr. art. 349.º do CC], tudo em observância e sem entorses aos princípios e comandos normativos [constitucionais e legais] convocados [cfr. arts. 02.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP, 13.º al. f), 127.º, 187.º e 258.º do RD/LPFP-2017]”.

Em face de todo o exposto, e não sendo necessárias ulteriores considerações, verifica-se que o acórdão recorrido incorreu no erro de direito que lhe é imputado pela ora recorrente, devendo ser revogado nesta parte.

Mas a ora recorrida FCP, SAD, acrescenta outros argumentos em abono da sua posição, relacionados os mesmos com o não cometimento da infracção que lhe é imputada, em virtude de não ter resultado provada a ocorrência de uma conduta culposa.
Sobre idêntica questão se pronunciou, igualmente, o Acórdão de 21.02.19, pelo que, novamente, remetemos para o que aí foi dito, dado subscrevermos sem reservas o seu teor, o qual consideramos aplicável, mutatis mutandis, ao caso dos autos. Atentemos, então, no excerto que agora se transcreve:

47. Insurge-se, ainda, a recorrente contra o juízo de não preenchimento in casu do ilícito disciplinar previsto e punido nos arts. 127.º, 186.º, n.º 1, e 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RD/LPFP-2017 e 06.º, al. g) e 09.º, n.º 1, al. m), do RPV/RC/LPFP-2017, que veio a ser firmado no acórdão do «TCA/S», juízo esse fundado na inexistência de prova pela recorrente da efetiva culpa da aqui recorrida dada a ausência de demonstração da ocorrência de conduta ou comportamento de incumprimento de um qualquer dever que sobre a mesma impendesse, e que, como tal, mostravam-se violados aquele quadro normativo e, como sustenta a recorrida, os princípios da culpa [art. 02.º da CRP] [dada a inexistência de responsabilidade objetiva por facto de outrem e de não se haver avaliado a concreta conduta da mesma enquanto agente desportivo, tanto mais que não resulta em evidência qualquer ato ou omissão que possa ter contribuído para os acontecimentos] e da presunção da inocência [art. 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP], ocorrendo inconstitucionalidade.
Vejamos, convocando, previamente, o concreto quadro normativo que releva para a análise da questão, na certeza de que soçobra, nesta sede, a invocação do princípio da presunção da inocência dado que não só se mostra desfasada e deslocada neste contexto, mas, também, insubsistente à luz do atrás exposto, cientes de que, em momento algum do procedimento e/ou do processo, resultaram preteridos à aqui recorrida os seus direitos e/ou as garantias de defesa.
48. Constitui uma incumbência do Estado, em colaboração, nomeadamente, com as associações e coletividades desportivas [in casu, os clubes de futebol] a prevenção e combate à violência no desporto [cfr., no quadro internacional a «Convenção Europeia sobre a Violência e os Excessos dos Espectadores por Ocasião das Manifestações Desportivas e nomeadamente de Jogos de Futebol» vulgo «Convenção ETS n.º 120» (aprovada, por ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 11/87, de 10.03, e que cessou a sua vigência em 01.01.2019 - cfr. Aviso n.º 90/2018 publicado DR 26.07.2018) e a «Convenção sobre uma Abordagem Integrada da Segurança, Proteção e Serviços por Ocasião de Jogos de Futebol e Outras Manifestações Desportivas» (ETS n.º 218 - vigente na nossa ordem jurídica desde 01.08.2018 - cfr. Aviso n.º 91/2018 publicado DR 26.07.2018); no quadro normativo interno, nomeadamente, os arts. 79.º, n.º 2, da CRP, 03.º, n.º 2, 05.º da Lei n.º 5/2007, de 16.01 (Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto - doravante LBAFD), 01.º, 05.º, 07.º, 08.º, 09.º, 16.º a 18.º, 23.º a 25.º, da Lei n.º 39/2009, de 30.07 (diploma que veio estabelecer o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança - com as alterações introduzidas pela Lei n.º 52/2013, de 25.07)], pugnando-se para que a atividade desportiva seja «desenvolvida em observância dos princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva e da formação integral de todos os participantes» [cfr. o art. 03.º, n.º 1, da LBAFD].
49. Em decorrência do que neste domínio constituem as obrigações e deveres legais enunciados no referido quadro normativo, que impendem, também, sobre os clubes e as sociedades desportivas, vieram, entretanto, a ser aprovados e publicitados pelas entidades responsáveis e organizadores das competições desportivas diversos regulamentos internos em matéria não apenas da organização daquelas competições, mas, também, de prevenção e punição das manifestações de violência, racismo, xenofobia e intolerância nos espetáculos desportivos, e, bem assim, de disciplina, nomeadamente, dos clubes de futebol e sociedades desportivas e dos agentes desportivos [cfr., no que aqui releva, o RD/LPFP-2017 - seus arts. 04.º, n.º 1, als. a) e b) 19.º, 66.º, 80.º, 94.º a 96.º, 105.º, 113.º, 131.º, 132.º, 145.º, 151.º a 154.º, 157.º a 159.º, 173.º, 178.º a 187.º - e o RC/LPFP-2017 - seus arts. 03.º, als. a) e d), 34.º, 35.º, 36.º e Anexo VI ao mesmo Regulamento].
50. Assim, no contexto do futebol, extrai-se do art. 06.º do RD/LPFP-2017 que o regime disciplinar desportivo é autónomo e independente da «responsabilidade civil ou penal, assim como do regime emergente das relações laborais ou estatuto profissional, os quais serão regidos pelas respetivas normas em vigor» [n.º 1], bem como da «responsabilidade disciplinar de natureza associativa decorrente da qualidade de associado da Liga Portuguesa de Futebol Profissional» [n.º 2], sendo que a «aplicação de sanções criminais, contraordenacionais, administrativas, cíveis ou associativas não constitui impedimento, atento o seu distinto fundamento, à investigação e punição das infrações disciplinares de natureza desportiva» [n.º 3], prevendo-se, no que releva, quanto ao âmbito subjetivo de aplicação das normas disciplinares que os «clubes são responsáveis pelas infrações cometidas nas épocas desportivas em que participarem nas competições organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional e no âmbito dessas competições» [cfr. art. 07.º, n.º 2].
51. O conceito de «infração disciplinar» mostra-se definido no n.º 1 do art. 17.º do referido RD ali se preceituando que se considera «infração disciplinar o facto voluntário, por ação ou omissão, e ainda que meramente culposo, que viole os deveres gerais ou especiais previstos nos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável», elencando-se nos seus arts. 29.º e 30.º o leque de sanções disciplinares [principais e acessórias] e quais aquelas que são aplicáveis aos clubes.
52. Resulta, por sua vez, do capítulo IV do RD/LPFP-2017 o elenco de infrações disciplinares, prevendo-se na sua secção I as «infrações específicas dos clubes», as quais podem ser «muito graves» [cfr. subsecção I, arts. 62.º a 83.º], «graves» [cfr. subsecção II, arts. 84.º a 118.º] e «leves» [cfr. subsecção III, arts. 119.º a 127.º], seguindo-se depois as infrações de dirigentes, de jogadores, de delegados dos clubes e dos treinadores, e na secção VI o regime das «infrações dos espectadores», resultando enunciado no art. 172.º, como princípio geral, o de que os «clubes são responsáveis pelas alterações da ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial» [n.º 1] e de que «[s]em prejuízo do acima estabelecido, no que concerne única e exclusivamente ao autocarro oficial da equipa visitante, o clube visitado será responsabilizado pelos danos causados em consequência dos atos dos seus sócios e simpatizantes praticados nas vias públicas de acesso ao complexo desportivo» [n.º 2] [sublinhado nosso].
53. Também as «infrações dos espectadores» se mostram qualificadas como podendo ser «muito graves» [cfr. subsecção II, arts. 173.º a 178.º], «graves» [cfr. subsecção III, arts. 179.º a 184.º] e «leves» [cfr. subsecção IV, arts. 185.º a 187.º], estipulando-se, no que releva para o litígio, no seu art. 187.º, respeitante a «comportamento incorreto do público», que «[f]ora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos: a) o simples comportamento social ou desportivamente incorreto, com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC; b) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 15 UC e o máximo de 75 UC» [n.º 1].
54. Decorre, por outro lado, do art. 34.º do RC/LPFP-2017, relativo à segurança e utilização dos espaços de acesso público, que os «clubes estão obrigados a elaborar um regulamento de segurança e utilização dos espaços de acesso ao público relativo ao estádio por cada um utilizado na condição de visitado e cuja execução deve ser concertada com as forças de segurança, a ANPC e os serviços de emergência médica e a Liga» [n.º 1], e que tal regulamento deverá conter, designadamente, medidas relativas à «a) separação física dos adeptos, reservando-lhes zonas distintas, nas competições desportivas consideradas de risco elevado; … d) instalação ou montagem de anéis de segurança e adoção obrigatória de sistemas de controlo de acesso, de modo a impedir a introdução de objetos ou substâncias proibidas ou suscetíveis de possibilitar ou gerar atos de violência, nos termos previstos na lei» [n.º 2].
55. Resulta do art. 35.º do mesmo RC que «[e]m matéria de prevenção de violência e promoção do fair-play, são deveres dos clubes: a) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; b) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; c) aplicar medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública, impedindo o acesso aos recintos desportivos nos termos e condições do respetivo regulamento ou promovendo a sua expulsão do recinto; (…) f) garantir que são cumpridas todas as regras e condições de acesso e de permanência de espetadores no recinto desportivo; (…) k) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, com a redação dada pela Lei n.º 52/2013, de 25 de julho; l) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas, xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; (…) o) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) s) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos» [n.º 1], e que «[p]ara efeito do disposto na alínea f) do número anterior, e sem prejuízo do estabelecido no artigo 24.º da Lei n.º 39/2009 (…) e no Regulamento de prevenção da violência constante do Anexo VI, são considerados proibidos todos os objetos, substâncias e materiais suscetíveis de possibilitar atos de violência, designadamente: (…) f) substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; g) latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis» [n.º 2], sendo que «[p]ara além do disposto nos números anteriores, os clubes visitados, ou considerados como tal, devem proceder à colocação, em todas as entradas do estádio, de um mapa-aviso, de dimensões adequadas, com a descrição de todos os objetos ou comportamentos proibidos no recinto ou complexo desportivo, nomeadamente invasões do terreno de jogo, arremesso de objetos, uso de linguagem ou cânticos injuriosos ou que incitem à violência, racismo ou xenofobia, bem como a introdução (…) material produtor de fogo-de-artifício ou objetos similares, e quaisquer outros suscetíveis de possibilitar a prática de atos de violência» [n.º 6] [sublinhados nossos].
56. E quanto aos regulamentos de prevenção da violência [cfr. art. 36.º daquele RC] a matéria surge regulada nos referidos RD/LPFP e no anexo VI ao RC/LPFP [o RPV/RC/LPFP - adotado ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 05.º da Lei n.º 39/2009 (cfr. art. 02.º do mesmo RPV - «norma habilitante»)], extraindo-se do seu art. 04.º que «[c]ompete à Liga e aos seus associados, incentivar o respeito pelos princípios éticos inerentes ao desporto e implementar procedimentos e medidas destinados a prevenir e reprimir fenómenos de violência, racismo, xenofobia e intolerância nas competições e nos jogos que lhes compete organizar», constituindo deveres do «promotor do espetáculo desportivo» [no caso os «clubes» - cfr. art. 05.º, al. h), do referido RPV], no que aqui ora releva, os de «(…) b) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; c) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; (…) l) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009 (…); m) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube, associação ou sociedade desportiva participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; p) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) t) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos; u) instalar e manter em funcionamento um sistema de videovigilância, de acordo com o preceituado nas leis aplicáveis» [cfr. art. 06.º do mesmo Regulamento].
57. Constituem, por último, condições de acesso dos espetadores ao recinto desportivo definidas no art. 09.º do referido Regulamento, nomeadamente, o: «f) não entoar cânticos racistas ou xenófobos ou que incitem à violência; (…) l) consentir na revista pessoal e de bens, de prevenção e segurança, com o objetivo de detetar e/ou impedir a entrada ou existência de objetos ou substâncias proibidos ou suscetíveis de possibilitar atos de violência; m) não transportar ou trazer consigo objetos, materiais ou substâncias suscetíveis de constituir uma ameaça à segurança, perturbar o processo do jogo, impedir ou dificultar a visibilidade dos outros espetadores, causar danos a pessoas ou bens e/ou gerar ou possibilitar atos de violência, nomeadamente: (…) vi. substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; vii. latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis», sendo que o acesso e permanência dos grupos organizados de adeptos [cfr. art. 11.º] se mostra disciplinado pelo estabelecido, nomeadamente, no art. 09.º, sendo sempre obrigatória a revista pessoal aos mesmos e seus bens.
58. Encerrando-se aqui o elencar do quadro normativo tido por pertinente para a análise do litígio temos que a previsão do ilícito desportivo disciplinar em questão, no caso o inserto no art. 187.º do RD/LPFP-2017, mostra-se clara e perfeitamente integrada naquilo que, por um lado, são os deveres legais e regulamentares atrás aludidos e que nesta matéria impendem, nomeadamente, sobre os clubes e sociedades desportivas, e, por outro lado, no que, mais vastamente, constituem os objetivos e os fins da política de combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança e desportivismo, prevenindo a eclosão e reprimindo a existência ou a manifestação de tais fenómenos.
59. Através da previsão do referido ilícito desportivo disciplinar visa-se a prossecução e realização daqueles objetivos e fins, prevenindo e reprimindo os comportamentos e as condutas que nele se mostram tipificados e que são atentatórios e desconformes com aqueles objetivos e fins, fazendo responder clubes e sociedades desportivas por tais condutas e comportamentos incorretos, tidos pelo público aos mesmos afeto ou simpatizante, enquanto reveladores da inobservância por estes, por ação ou por omissão, do que constituem os seus deveres legais e regulamentares gerais e especiais constantes dos comandos normativos atrás convocados.
60. Na formulação do que constitui o tipo de ilícito disciplinar inserto no art. 187.º do RD/LPFP-2017 e do que, em decorrência, se exige para o seu preenchimento em concreto, estão subjacentes, tão-só, as condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube/sociedade desportiva e pelos quais os mesmos respondem, porquanto decorrentes ou fruto do que constitui o incumprimento pelos mesmos, por ação ou omissão, do dever in vigilando que têm sobre as suas claques e adeptos, nomeadamente e no que releva para a discussão objeto dos autos sub specie, de que houve alguma falha no dever de revista dos adeptos, no dever de revista do estádio, no dever de controlar os adeptos dentro do estádio, no dever de demover os adeptos de praticarem ou desenvolverem tal tipo de comportamentos e condutas.
61. Ora no caso vertente inexiste, por não aportado aos autos, um qualquer elemento densificador e revelador do cumprimento por parte da demandante dos deveres a que está subordinada no que respeita aos deveres de formação, controlo e vigilância do comportamento dos seus adeptos e espectadores, bem sabendo que estava obrigada a cuidar dos mesmos e que eram os seus adeptos que ocupavam a denominada «bancada sul», onde se verificaram as ocorrências registadas no Relatório.
62. Sobre os clubes de futebol e as respetivas sociedades desportivas, como é o caso da demandante aqui recorrida, recaem especiais deveres na assunção, tomada e implementação de efetivas medidas não apenas dissuasoras e preventivas, mas, também, repressoras, dos fenómenos de violência associada ao desporto e de falta de desportivismo, de molde a criar as condições indispensáveis para que a ordem e a segurança nos estádios de futebol português sejam uma realidade.
63. Neste contexto, ao invés do sustentado pela demandante na sua impugnação e que veio a ter acolhimento no acórdão recorrido, não estamos em face de uma qualquer situação de responsabilidade disciplinar objetiva violadora dos princípios e comandos constitucionais.
64. Com efeito, mostra-se ser in casu subjetiva a responsabilidade desportiva na vertente disciplinar da demandante aqui recorrida, já que estribada naquilo que foi uma violação dos deveres legais e regulamentares que sobre a mesma impendiam neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.
65. É que se no domínio da prevenção da violência associada ao fenómeno desportivo o quadro normativo impõe deveres a um leque alargado de destinatários, nomeadamente, aos clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e também para os violar, pelo que apurando-se a violação de deveres legalmente estabelecidos os destinatários dos mesmos serão responsáveis por essa violação.
66. Socorrendo-nos e transpondo para o caso vertente a jurisprudência do TC expendida no acórdão n.º 730/95 [consultável in: «www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/» e que foi firmada no quadro da apreciação da conformidade constitucional da sanção de interdição dos estádios por comportamentos dos adeptos dos clubes prevista nos arts. 03.º a 06.º do DL n.º 270/89, de 18.08 (diploma no qual se continham medidas preventivas e punitivas de violência associada ao desporto) e 106.º do Regulamento Disciplinar da FPF], temos que os ilícitos disciplinares ou disciplinares desportivos imputados e pelos quais a demandante aqui recorrida foi sancionada resultam de «condutas ilícitas e culposas das respetivas claques desportivas (assim chamadas e que são os sócios, adeptos ou simpatizantes, como tal reconhecidos) - condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que eles não cumpriram de forma capaz», «[d]everes que consubstanciam verdadeiros e novos deveres in vigilando e informando», presente que cabe a cada clube desportivo o «dever de colaborar com a Administração na manutenção da segurança nos recintos desportivos, de prevenir a violência no desporto, tomando as medidas adequadas», concluindo-se no sentido de que «[n]ão é, pois, (…) uma ideia de responsabilidade objetiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres».
67. É, por conseguinte, neste ambiente de proteção, salvaguarda e prevenção da ética desportiva, bem como do combate a manifestações de violência associada ao desporto, que incidem ou recaem sobre vários entes e entidades envolvidos, designadamente sobre os clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, um conjunto de novos deveres in vigilando e in formando e em que a inobservância destes deveres assenta não necessariamente numa valoração social, moral ou cultural da conduta do infrator, mas antes no incumprimento de uma imposição legal, sancionando-se aqueles por via da contribuição omissiva, causal ou co causal que tenha conduzido a um comportamento ou conduta dos seus adeptos.
68. Na verdade, não estamos in casu, pois, perante uma responsabilidade objetiva já que o regime previsto nos arts. 17.º, 19.º, 20.º, 127.º, 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RD/LPFP-2017 em articulação, nomeadamente, com os arts. 06.º, al. g), e 09.º, n.º 1, al. m), do RPV/RC/LPFP-2017 e com o que resulta do demais quadro normativo atrás convocado, observa o princípio da culpa, tanto mais que em sua decorrência apenas se sancionam os clubes de futebol ou as suas sociedades desportivas pelos comportamentos incorretos do seu público havidos em violação por aqueles dos deveres que sobre os mesmos impendiam.
69. Daí que, no contexto, o princípio constitucional da culpa, enquanto servindo, igualmente, de elemento conformador e basilar ao Estado de direito democrático, e tendo como pressuposto o de que qualquer sanção configura a reação à violação culposa de um dever de conduta, considerado socialmente relevante e que foi prévia e legalmente imposto ao agente, não se mostra minimamente infringido, tanto mais que será no quadro do processo disciplinar a instaurar [cfr. arts. 212.º e segs., 225.º e segs., do RD/LPFP-2017] que se terão de averiguar e apurar todos os elementos da infração disciplinar, permitindo, como se refere no citado acórdão do TC, que «por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)».
70. Frise-se que é na e da inobservância dos deveres de assunção da responsabilidade pela segurança do que se passe no recinto desportivo e do desenvolvimento de efetivas ações de prevenção socioeducativa que radica ou deriva a responsabilidade disciplinar desportiva em questão, dado ter sido essa conduta que permitiu ou facilitou a prática pelos seus adeptos dos atos ou comportamentos proibidos ou incorretos.
71. E que cabe aos clubes de futebol/sociedades desportivas a demonstração da realização por parte dos mesmos junto dos seus adeptos das ações e dos concretos atos destinados à observância daqueles deveres e, assim, prevenirem e eliminarem a violência, e isso sejam esses atos e ações desenvolvidos em momento anterior ao evento, sejam, especialmente, imediatamente antes ou durante a sua realização.
72. Para o efeito, aportando prova demonstradora, designadamente, de um razoável esforço no cumprimento dos deveres de formação dos adeptos ou da montagem de um sistema de segurança que, ainda que não sendo imune a falhas, conduza a que estas ocorrências e condutas sejam tendencialmente banidas dos espetáculos desportivos, assumindo ou constituindo realidades de carácter excecional.
73. A previsão no quadro disciplinar do ilícito desportivo em crise mostra-se, assim, devidamente legitimada já que encontra, ou vê radicar, repousar os seus fundamentos não apenas naquilo que é a necessária prevenção, mas, também, na culpa, sancionando-se o que constitui um negligente cumprimento dos deveres supra enunciados, sem que, de harmonia com o exposto, um tal entendimento atente ou enferme de violação dos princípios da culpa e do Estado de direito, ou constitua um entorse aos direitos de defesa e a um processo equitativo, dado que assegurados e garantidos em consonância e adequação com o entendimento e interpretação fixados.
74. E também não vemos que tal entendimento e interpretação possam envolver uma pretensa violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo, pois, não estamos em face da assunção duma presunção de culpa da arguida ou de regra que dispense, libere ou inverta o ónus probatório que colida com o primeiro princípio, nem, como atrás referido, no caso em presença somos confrontados com uma situação de inexistência de prova relevante de que foi cometido ilícito e de quem é o sujeito responsável à luz da prova produzida para, mercê da existência de legítima dúvida, fazer apelo ao segundo princípio”.

De novo sem necessidade de considerações complementares, e pelos motivos expostos no excerto acabado de transcrever, conclui-se que o acórdão recorrido merece censura também no que se refere à questão acabada de analisar, não podendo manter-se o juízo firmado quanto a ela.

Em consequência, e como este STA não pode, salvo raras excepções, conhecer matéria de facto, devem os autos baixar ao tribunal recorrido, para aí se proceder novamente à valoração da prova, tendo em consideração, de um lado, a presunção de veracidade contida no artigo 13.º, al. f) do RD – o que implicará, pelo menos, o conhecimento do teor exacto e integral dos relatórios dos jogos em causa –, e, do outro lado, o que tenha sido alegado pela ora recorrida para infirmar a sua veracidade.

2.4. A recorrida FCP, SAD, vem ainda arguir uma série de inconstitucionalidades, as quais não imputa à decisão recorrida, mas imputa antecipada e hipoteticamente à decisão que será proferida nesta sede. São elas as seguintes:

(i) “É, de todo o modo, inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (art. 32.º-2 e -10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20.º-4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2.º da CRP), a interpretação do art. 13.º, al. f) do RDLPFP no sentido de que factos não constantes dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga podem ser dados como provados, por presunção, se a sua verificação não for infirmada pelo arguido, que, desde já, se argui para os devidos efeitos legais”. (conclusão xvii. das contra-alegações de recurso).

Ao mencionar “factos não constantes dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga” [negrito nosso] presume-se que a recorrida se esteja a referir às presunções naturais que igualmente serviram para formar a convicção do Conselho de Disciplina, presunções estas que não beneficiam da mesma presunção de veracidade de que gozam os factos descritos no relatório do jogo. Sucede que a utilização de presunções naturais é admissível, conforme exemplarmente explicado no primeiro trecho transcrito, não sendo a sua utilização decorrência de uma qualquer suposta interpretação do artigo 13.º, al. f) do RDLPFP, antes resultando da aplicação do disposto no artigo 349.º do CC. Não cabe, deste modo, apreciar a eventual inconstitucionalidade de uma interpretação normativa que não existiu.

(ii) “De todo o modo, é inconstitucional, por violação do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.º da CRP) e do princípio da presunção de inocência, presunção de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (art. 32.º-2 e -10 da CRP), a interpretação dos arts. 13.º f), 127.º-1, 186.º-1; 187.º-1 a) e b) do RDLPFP no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que desde já se argui

Sobre idêntica questão também se pronunciou o Acórdão de 21.02.19 nos pontos 47. a 74., em especial a partir do ponto 66. Não tendo sentido voltar a transcrever estes pontos, para eles remetemos, aderindo totalmente ao seu teor, e, por esta forma, concluindo que não se verifica a arguida inconstitucionalidade.

(iii.) “Se, por mera hipótese de raciocínio, proceder a tese da recorrente, reputa-se como inconstitucional – por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente no seu direito de defesa (art. 32.º, n.os 2 e 10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20.º-4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2.º da CRP) a interpretação dos arts. 13.º f), 127.º-1, 186.º-1; 187.º-1 a) e b) do RDLPFP no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que desde já se argui

A inconstitucionalidade agora suscitada em pouco difere da anteriormente tratada, apenas se considerando desrespeitados, além do princípio da presunção da inocência, o direito a um processo equitativo e o princípio do Estado de Direito. Mas o Acórdão de 21.02.19, no mesmo trecho, agora em particular nos pontos 73. e 74., também dá resposta a esta pretensa inconstitucionalidade em termos que julgamos serem de aceitar sem reservas.

(iv) “Uma vez que as normas conjugadamente aplicadas pelo Tribunal a quo para fixar o valor das custas finais (art. 2.º- 1 e -5, conjugado com a tabela constante do Anexo I (2.ª linha), da Portaria n.º 301/2015, articulado ainda com o previsto nos arts. 76.º/1/2/3 e 77.º/4/5/6 da Lei do TAD) são inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade (art. 2.º da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º-1 e 268.º-4 da CRP), devem essas normas ser desaplicadas (art. 204.º da CRP)”.

Disse-se no acórdão deste STA de 18.10.18, Proc. n.º 144/17.0BCLSB, relativamente a um pedido de isenção de custas e à inconstitucionalidade da sua não admissão o seguinte:

“(…) sendo que também «é insuscetível de infringir os citados preceitos constitucionais a circunstância de, eventualmente, a legislação que introduziu a arbitragem obrigatória se traduzir num agravamento da responsabilidade tributária da recorrente, quando nem sequer é alegado que o novo regime seja de tal modo gravoso que dificulte de forma considerável o acesso aos tribunais» e que, desta forma, se possam considerar postergados os comandos insertos nos arts. 20.º, n.ºs 1 e 2, e 268.º, n.º 4, da CRP”.

Este juízo vale, mutatis mutandis, para o caso dos autos, sem embargo de no presente recurso de revista apenas se questionar o valor excessivo das custas finais. Com efeito, não se pode aceitar, sem mais (ou seja, sem qualquer demonstração consistente do contrário), que uma sociedade desportiva como a FCP, SAD, esteja em perigo de não poder aceder à justiça e aos tribunais por causa do valor alegadamente excessivo das custas legalmente fixado.

Resumidamente, não devem considerar-se verificadas nenhuma das inconstitucionalidades suscitadas pela recorrida FCP, SAD. Quanto à questão específica da suposta inconstitucionalidade das normas que fixam as custas do processo arbitral, em especial a taxa de arbitragem, deve manter-se o decidido no acórdão recorrido neste segmento.

III – Decisão


Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em:

a) Manter o acórdão recorrido na parte em que julgou que não é exorbitante o montante das custas finais apurado pelo TAD.

b) Conceder provimento ao recurso na parte restante, revogando o acórdão recorrido e ordenando a baixa dos autos ao TCAS para os efeitos acima mencionados.

Sem custas.

Lisboa, 19 de Junho de 2019. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – Jorge Artur Madeira dos Santos – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.