Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0649/18
Data do Acordão:07/12/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P23540
Nº do Documento:SA1201807120649
Data de Entrada:06/27/2018
Recorrente:A...
Recorrido 1:MNE
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA FORMAÇÃO DE APRECIAÇÃO PRELIMINAR DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

I. RELATÓRIO

A………. intentou, no TAF de Sintra, contra o Ministério dos Negócios Estrangeiros, a presente providência cautelar pedindo a suspensão de eficácia do despacho do Ministro dos Negócios Estrangeiros, de 06/01/2017, que lhe aplicou a sanção disciplinar de despedimento.

Aquele Tribunal, por sentença de 20/10/2017, deferiu a requerida providência.

Decisão que o Tribunal Central Administrativo Sul revogou.

É desse acórdão que o Autor vem recorrer (artigo 150.º/1 do CPTA).

II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO

1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos se, in casu, tais requisitos se verificam.

2. O TAF de Sintra suspendeu a eficácia do despacho do MNE, de 6/01/2017, que aplicou ao Autor a sanção de despedimento com a seguinte fundamentação:
“….
Os factos apurados no processo disciplinar que determinaram a aplicação da sanção de despedimento disciplinar ao requerente dizem respeito a duas situações distintas; a saber: o pedido de inscrição de B………… na ADSE apresentado pelo requerente e a falsificação de documentos emitidos pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Relativamente ao pedido de inscrição de B………… na ADSE, a instrutora do processo disciplinar concluiu, em suma, que o requerente omitiu, no pedido que apresentou, que B……….. estava inscrita, desde 2011, e beneficiava do regime de segurança social búlgaro e que prestou falsas declarações a entidade pública, uma vez que o atestado de residência que juntou com o referido pedido, emitido pela Junta de Freguesia de Faro, não correspondia à verdade factual, uma vez que, em 28/09/2011, o requerente trabalhava em Lisboa e B……….. trabalhava em Sófia, na Bulgária … .
Já quanto à falsificação de documentos emitidos pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, a instrutora do processo disciplinar concluiu que o requerente falsificou a Nota de Abonos e Descontos relativa ao mês de Junho de 2015 e a Declaração n.° 75/2015, de 22/06/2015, referente à respectiva situação de emprego público, que apresentou à sua senhoria, sendo que o Ministério dos Negócios Estrangeiros teve conhecimento da existência destes documentos através de carta do advogado da senhoria do requerente a solicitar esclarecimentos sobre a sua autenticidade.

O requerente não foi sancionado disciplinarmente por não se encontrarem preenchidos os pressupostos para B……….. ser beneficiária da ADSE, mas por, para obter a inscrição de B……….., ter apresentado documentos - v.g. atestados de residência emitidos por juntas de freguesia - elaborados com base na prestação de falsas declarações.
Acresce que a sentença proferida no Processo n.°777/16.1T8OER, que declarou que o requerente e B………….. vivem em união de facto desde 08/06/2012, é susceptível de infirmar o juízo efectuado pela instrutora do processo disciplinar quanto ao facto de o requerente ter prestado falsas declarações para obter os demais atestados de residência que juntou com o pedido de inscrição de B………… na ADSE.
É certo que, como consta do Relatório Final, B……….. declarou, em 07/05/2014, não viver em comunhão com o requerente, mas tal declaração não só é infirmada pela já referida sentença, como não foi emitida pelo requerente, pelo que, podendo não corresponder à verdade, a sua falsidade não é imputável àquele.
Nesta medida, é de admitir que o requerente, ao contrário do que se entendeu no processo disciplinar, não prestou falsas declarações perante entidade pública quanto ao facto de viver em união de facto com B…………, pelo que é de admitir que o despacho suspendendo padece de erro sobre os pressupostos de facto nesta parte.
É certo que, independentemente do eventual erro sobre a prestação de falsas declarações, por parte do requerente, sobre a situação de união de facto com B…………., permanece a questão de o mesmo ter omitido que aquela beneficia do regime de segurança social búlgaro. No entanto, estando em causa apenas esta omissão, a valoração da conduta do requerente é necessariamente diferente, pelo que caso se conclua na acção principal, sede própria para o efeito, que a decisão disciplinar padece do referido erro, sempre se terá de proceder à sua anulação, por estar vedado ao Tribunal, atento o princípio da separação de poderes, proceder à referida valoração e substituir ou, até, manter, mas com outros fundamentos, a decisão impugnada.
….
Quanto à preterição do direito de defesa e do contraditório, por não ter sido assegurada a possibilidade de intervenção de advogado nomeado, importa ter presente o disposto no artigo 202.°, n° 1, da LGTFP, a saber: “O trabalhador pode constituir advogado em qualquer fase do processo, nos termos gerais de direito”.

Com efeito, não dispondo o arguido de condições financeiras para suportar o pagamento dos honorários de um advogado, mas pretendendo exercer o direito a constituir advogado consagrado no artigo 202.°, n.°1, da LGTFP, terá de solicitar, aos serviços da segurança social, a nomeação e pagamento da compensação de patrono, pelo que o processo disciplinar deverá aguardar a decisão deste pedido, pois só deste modo é garantido ao arguido o exercício do referido direito.
….
Assim, é de admitir que o despacho suspendendo padeça de violação de lei, por ter sido violado o direito de defesa do requerente, uma vez que foi proferida decisão no processo disciplinar antes de ter sido decidido o pedido de nomeação e pagamento da compensação de patrono apresentado pelo requerente, não lhe sendo, assim, dada a oportunidade de se fazer representar por advogado.
Pelo exposto, e numa apreciação sumária, concluímos que é provável a procedência da pretensão formulada na acção principal, uma vez que se afigura possível que o despacho suspendendo padeça de erro sobre os pressupostos de facto, na parte em que considerou que o requerente prestou falsas declarações perante entidade pública, e viole o direito de defesa, pelo que se encontra preenchido o requisito do fumus boni juris.
…..
Considerando que se encontra preenchido o requisito do fumus boni juris, cabe aferir do preenchimento do requisito do periculum in mora, … .
….
Da factualidade provada resulta que o requerente não tem outra fonte de rendimento além do seu vencimento como trabalhador do Ministério dos Negócios Estrangeiros e que não se encontra a receber subsídio de desemprego, sendo que as suas despesas mensais ascendem a cerca de € 1.000,00, a que acresce a mensalidade do infantário da filha de 5 anos, no valor de € 69.00 …. .
Assim sendo, não podemos deixar de concluir pela probabilidade séria de o requerente vir a sofrer, caso não seja decretada a providência cautelar requerida, prejuízos de difícil reparação, uma vez que a privação do seu vencimento decorrente da aplicação da sanção de despedimento compromete a possibilidade do mesmo prover à satisfação das suas necessidades básicas, uma vez que não dispõe de qualquer outro rendimento.
Nesta medida, considerando que se encontra preenchido o requisito do periculum in mora, cumpre verificar se se encontra preenchido o pressuposto negativo de que depende o decretamento da providência constante do artigo 120.°, n° 2, do CPTA.
….
Ora, quanto à ponderação dos interesses em presença, a entidade requerida remete para um Parecer da Secretária-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros onde se conclui pela inviabilização da manutenção do vínculo de emprego público do requerente, nada se dizendo quanto aos danos que podem resultar da manutenção do requerente em funções até que seja decidida a acção principal.
Assim sendo, não tendo a entidade requerida alegado quaisquer factos concretos que permitam concluir que os danos que resultariam da concessão da providência são superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, concluímos que se encontra preenchido o pressuposto negativo de que depende o decretamento da providência.
Pelo exposto, julgando preenchidos os pressupostos de que depende a concessão da providência cautelar requerida, cumpre proceder ao seu decretamento.

O TCA revogou essa decisão pela seguinte ordem de razões:
“….
Sendo este o enquadramento jurídico que compete, vejamos a questão trazida a recurso no tocante ao pressuposto cautelar do fumus boni iuris, que o Tribunal a quo assenta no (i) afastamento da imputação ao Recorrido de prestação de falsas declarações perante entidade pública quanto à invocada vivência em união de facto com B……….. e (ii) violação do direito de defesa em sede de procedimento disciplinar por parte da entidade patronal pública, ora Recorrente, para concluir que o despacho sancionatório se mostra inquinado de vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e, consequentemente, decretar a suspensão de eficácia do mesmo, questão trazida a recurso nos itens C a GG das conclusões.

4. Falsas declarações - união de facto;
A questão, trazida a recurso nos itens C a R das conclusões da prestação por parte do Recorrido de falsas declarações perante entidade pública, traduz-se na desconformidade com a realidade representada pela declaração de ciência constante de documentos escritos genuínos (genuidade - veracidade da sua subscrição pela pessoa a quem é atribuído) a saber, os atestados de residência emitidos pelas Junta de Freguesia da Sé/Faro (27.12.2011), Junta de Freguesia de Campo de Ourique/Lisboa (25.02.2014) e Junta de Freguesia da Estrela/Lisboa (03.02.2015).
A declaração de ciência desconforme com a realidade representada nos atestados de residência emitidos pelas Juntas de Freguesia citadas, teve por fonte o ora Recorrido A…………, na parte em que este declarou que vivia em união de facto com B……….., …..
Os atestados de residência emitidos pelas Juntas de Freguesia citadas seguiram em anexo ao requerimento assinado em 12.06.2015 pelo ora Recorrido A……….., solicitando a inscrição de B……….. na ADSE como seu familiar (cônjuge).
…..
O que significa que, à data de emissão dos atestados de residência, não se verifica o requisito temporal declarado pelo Recorrido de dois anos de coabitação more uxorio (em condições análogas às dos cônjuges).
E mais.
Tendo em conta o probatório, verificam-se, ainda, dois impedimentos:
1. o casamento do Recorrido A………… foi dissolvido em Abril de 2012, o que significa que à data das declarações para o atestado da Junta da Sé/Faro o Recorrido tinha o estatuto civil de casado, impedimento estatutário da união de facto;
2. em 07.05.2014 a outra parte da alegada união de facto com o Recorrido, B……….., apresentou na Embaixada de Portugal em Sófia (seu local de trabalho) um pedido de concessão de licença sem vencimento por 12 meses, com efeitos a partir de 23.05.2014, declarando “(...) Não sou casada com o progenitor da criança nem estou a viver em comunhão com ele (...)”, o que, à data das declarações para o atestado da Junta da Estrela/Lisboa constitui impedimento por declaração em contrário por parte de uma das duas pessoas constitutivas do universo da união análoga ao casamento
Concluindo: à data em que foram emitidos os atestados de residência o Recorrido A…………. prestou falsas declarações para instruir o requerimento de inscrição de B………… na ADSE assumindo para ambos a situação jurídica de união de facto, que não tinham por falta de preenchimento das condições legais.

5. direito de defesa -processo disciplinar no âmbito do empregador;
….
A constituição de advogado em qualquer fase do processo disciplinar é configurada na lei a título de faculdade que assiste ao trabalhador - vd. art° 202° n° 1 Lei 35/2014, 20.06 (LTPF) - “O trabalhador pode constituir advogado em qualquer fase do processo, nos termos gerais de direito.”.
….
Estamos, pois, no domínio do direito do trabalhador a obter informação e consulta jurídicas no âmbito do processo disciplinar contra si instaurado, na vertente de direito de defesa assistida e não de patrocínio judiciário obrigatório, restrito aos casos expressamente previstos na lei processual, v.g. art.° 40° CPC.
…..
Nos termos do art.° 17° nºs 1, 2 e 3, Lei 34/2004 …. a lei não prevê o patrocínio oficioso para os processos disciplinares instaurados e tramitados no âmbito de competência da entidade patronal, seja pública seja privada.
O que não significa que os trabalhadores estejam desacompanhados de assistência jurídica, na exacta medida em que, querendo, podem recorrer ao departamento jurídico do respectivo sindicato em ordem a organizar a respectiva defesa no procedimento disciplinar.
….
Não se deve, porém, confundir a possibilidade de o arguido ou o mandatário estarem presentes nas diligências de produção de prova com qualquer obrigatoriedade de o instrutor ter de comunicar ao arguido a possibilidade de constituir mandatário ou de só se poderem realizar essas mesmas diligências na presença de advogado. …
… o instrutor apenas é obrigado a comunicar o início do procedimento disciplinar (v. n° 3 do art.° 205°) e a notificá-lo da inquirição das testemunhas por ele arroladas (v. n° 5 do art.° 218°), cabendo ao arguido decidir se constitui ou não mandatário para o representar no processo. Enquanto tal não suceder, o instrutor apenas tem ainda de notificar o arguido para estar, querendo, presente nos demais actos de produção de prova que se realizem na fase da defesa. (…)”.
Voltando ao caso em recurso, resulta dos autos que formulada a acusação em 30.05.2016, o Recorrido apresentou defesa escrita em 09.06.2016, conforme itens d) e e) do probatório, pelo que se mostra observado o disposto no art.° 214° n° 1 LTFP.

Tudo visto não pode subsistir o julgado no tocante à consideração de o despacho sancionatório se mostrar inquinado de vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto na parte em que considerou que o Recorrido A…………. prestou falsas declarações perante entidade pública e, ainda, por violação do direito de defesa em sede disciplinar, consequentemente dando por verificado o requisito cautelar do fumus boni iuris.
Na medida em que o decretamento da providência depende da verificação cumulativa dos três requisitos legais enunciados no art° 120° CPTA, o decaimento em matéria de aparência do bom direito alegado (fumus boni iuris) tem como consequência a improcedência da causa e a prejudicialidade de conhecimento das questões em matéria de periculum in mora e ponderação do interesse público suscitadas pelo Recorrente.”

3. Como se acaba de ver o TAF considerou, por um lado, que o Recorrente não tinha prestado falsas declarações e, por isso, que o despacho suspendendo incorrera em erro nos seus pressupostos de facto e, por outro, que o procedimento estava ferido de ilegalidade por ter sido instruído sem aguardar que aquele pudesse constituir mandatário. Decisão que o TCA não sufragou.
O que levou o Tribunal de 1.ª instância a considerar verificado o fumus boni iuris, decisão que o TCA revogou.
Divergência que, na questão das falsas declarações, se fundou na diferente relevância que aqueles Tribunais deram à sentença judicial que se pronunciou sobre o estado civil do Recorrente e às consequências que daí advinham. E que, no caso da violação do direito de defesa, se deveu a diferentes interpretações das normas atinentes.
Deste modo, e atendendo que o TAF também considerou verificados os restantes pressupostos de que dependia o deferimento da requerida providência considerando, designadamente, que a privação do vencimento do Recorrente “decorrente da aplicação da sanção de despedimento compromete a possibilidade do mesmo prover à satisfação das suas necessidades básicas, uma vez que não dispõe de qualquer outro rendimento” aconselha a que se admita o recurso.
Nesta conformidade, e muito embora seja certo estarmos no âmbito de um procedimento cautelar, em que o juízo a proferir se traduz numa regulação provisória e que esta, seja qual for o seu sentido, não compromete a apreciação da decisão a proferir no processo principal, também o é que atenta a divergência das instâncias e a gravidade das consequências de um indeferimento para o Requerente se justifica a admissão do recurso.

Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.
Sem Custas.
Lisboa, 12 de Julho de 2018. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.