Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0299/13.2BEPNF 0460/17
Data do Acordão:02/16/2022
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PEDRO VERGUEIRO
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
IRS
RETENÇÃO NA FONTE
CLÁUSULA ANTI-ABUSO
PRESSUPOSTOS
PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
DIREITO DE PROPRIEDADE
Sumário:I - A interpretação jurídica que, à luz dos princípios da praticabilidade e da razoabilidade, assegura a efectividade do disposto no nº 2 do artigo 38º da LGT, na sua redacção prévia à alteração legislativa introduzida pela Lei nº 32/2019, é a que sustenta que quando a aplicação da CGAA resulte na desconsideração de uma construção e na sua substituição por uma operação cuja regulação legal imporia a prática de um acto de retenção na fonte a título definitivo (e pese embora o facto de a vantagem fiscal se produzir na esfera do beneficiário), é aquele que se vem a qualificar como substituto (à luz da aplicação da CGAA) quem, em primeira linha, responde por essa obrigação tributária, sempre que a vantagem que o terceiro obtém resulte de uma operação praticada por ele e seja possível concluir, no âmbito do procedimento do artigo 63º do CPPT, que ele tinha a obrigação legal de conhecer a operação jurídica alternativa que se vem a qualificar como legalmente devida por efeito da desconsideração da operação realizada (da construção adoptada).
II - O art. 38º nº 2 da LGT é complementado pelo extenso artigo 63º do CPPT, que contém um conjunto de disposições que concretizam os parâmetros conformadores do procedimento de aplicações das disposições anti-abuso, apontando-se os seguintes elementos: meio, resultado, intelectual, normativo e sancionatório.
III - Tendo presente o que ficou dito sobre a dinâmica e alcance de todo a situação descrita nos autos, só pode entender-se que a AT tenha concluído pela artificialidade da situação, mormente em função do seu significado para a sociedade em contraponto com os interesses individuais dos accionistas, não se retirando desta análise a prossecução de qualquer objectivo económico-societário legítimo, o que nos remete para o campo de actuação da cláusula geral anti-abuso, na medida em que, não havendo motivos económicos válidos a justificar o recurso a configurações jurídicas anómalas, nos encontramos no domínio da elisão e já não da economia de opção, o que impõe a conclusão de que a aplicação da CGAA prevista no art. 38º nº 2 da LGT não padece de qualquer ilegalidade.
IV - A AT, ao corrigir os efeitos fiscais do negócio declarado pela Recorrente e ao conformar o negócio declarado, com a realidade material e jurídica subjacente, fazendo-o coincidir com o negócio corrigido que respeita a realidade material e económica subjacente ao negócio declarado não coloca em crise o princípio constitucional da liberdade económica, pois limita-se a definir o alcance efectivo da realidade substantiva, material e económica subjacente ao negócio, situação que também não belisca o princípio da segurança jurídica, na sua dimensão de protecção da confiança e, ao contrário do que defende a Recorrente, dá plena expressão ao princípio da capacidade contributiva (e da tributação da empresa de acordo com o rendimento real enquanto manifestação desse princípio - art. 104º nº 2 da C.R.P.) e salvaguarda o princípio da igualdade, impondo-se ainda referir, quanto ao primeiro elemento descrito, se é verdade que a CGAA visa neutralizar financeiramente uma vantagem tributária indevida, e, por isso, o seu destinatário é quem dela beneficia (sendo, nestes casos, esses beneficiários os sócios), tal não significa que, o princípio da praticabilidade associado aos princípios da igualdade tributária e da racionalidade não imponham que nestes casos em que está subjacente à aplicação da CGAA uma relação jurídica de substituição fiscal total, com retenção na fonte a título definitivo, não devam também aplicar-se as regras da substituição tributária em geral e, de acordo com estas regras, aquele que esteja legalmente obrigado à liquidação em substituição e não o faça, se tiver conhecimento (ou devesse ter) da construção que se substituiu a esta obrigação de retenção na fonte a título definitivo, será o responsável originário pelas quantias que devia ter retido e não reteve, o que significa que, neste ponto, não pode conceder-se abrigo ao exposto quanto à violação dos princípios da proporcionalidade e do direito à propriedade.
Nº Convencional:JSTA000P28974
Nº do Documento:SA2202202160299/13
Data de Entrada:04/19/2017
Recorrente:A............, SA
Recorrido 1:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Processo n.º 299/13.2BEPNF (Recurso Jurisdicional)

Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. RELATÓRIO

“A…………, S.A.”, devidamente identificada nos autos, inconformada, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, datada de 09-03-2016, que julgou improcedente a pretensão pela mesma deduzida no presente processo de IMPUGNAÇÃO relacionado as liquidações de retenção na fonte de IRS n.º 2012 6410001435 e de juros compensatórios n.º 2012 00002124775, das quais resultou um valor global a pagar de € 8.994.147,94.



Formulou nas respectivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem:

“ (…)

a) Pressupondo a CGAA consagrada no artigo 38.º, n.º 2, da LGT a obtenção de vantagens fiscais ilegítimas, apenas se deverá admitir a sua aplicação às entidades que beneficiaram da vantagem declarada ilegítima;

b) No caso concreto, a CGAA foi aplicada à Recorrente, sociedade alegadamente distribuidora de rendimentos que a ATA qualifica como dividendos e à qual é exigido o pagamento do IRS correspondente, deixando, porém, que a esfera jurídica dos accionistas que os receberam permaneça incólume ao funcionamento da CGAA;

c) A referida exigência produz uma violação intolerável dos princípios da capacidade contributiva (cfr. n.º 2 do artigo 104.º da CRP) e da tributação com respeito pela justiça material (cfr. n.º 2 do artigo 5.º da LGT), bem como dos princípios da igualdade e justiça tributária, que só podem satisfazer-se com a imposição da tributação omitida a quem obteve essas vantagens. Tributar a aqui Recorrente por uma vantagem patrimonial obtida, em exclusivo, pelos respectivos accionistas, representa uma duplicação injustificada da tributação dos lucros por si gerados, na sua esfera, e uma amnistia fiscal inadmissível dos rendimentos àqueles atribuídos;

d) Mormente por razões de segurança e simplicidade administrativas e em desvio à regra segundo a qual é sujeito passivo aquele que experimenta o enriquecimento ou revela capacidade contributiva, a tributação dos lucros distribuídos por sociedades aos respectivos sócios (pessoas singulares) é realizada através de um regime de substituição, em que a entidade pagadora (sociedade) se torna responsável em primeira linha, como sujeito passivo em sentido estrito, pelo imposto relativo aos referidos lucros distribuídos;

e) Todavia, este regime de substituição não se mostra apto a justificar a exigência do imposto em falta ao substituto, desde logo, porquanto nele se estabelece que o imposto em causa é sempre pago pelo substituto à custa dos bens do substituído, mediante a execução da chamada "retenção na fonte". Por outras palavras, a sociedade distribuidora é fiscalmente responsável por um imposto alheio unicamente na estrita medida em que está na sua mão pagá-lo à custa da retenção de parte das quantias a entregar aos seus sócios (e não à custa do próprio património social) - donde vem, necessariamente, que o substituto tributário apenas assume, na lei, a responsabilidade pelas quantias não retidas e não entregues ao Estado nos casos em que lhe fosse exigível o cumprimento da obrigação de retenção na fonte; na medida em que o incumprimento da obrigação de retenção na fonte lhe não seja imputável, nem a título de negligência, a substituição tributária não poderá, também por esta razão, operar;

f) Ocorre que a Recorrente não efectuou a retenção porque não estava obrigada a efectuá-la, nem sequer podia fazê-la, pois, segundo o artigo 63.º do CPPT, a aplicação da CGAA depende, “prévia e obrigatoriamente”, da autorização do “dirigente máximo do serviço ou [do] funcionário em quem ele tiver delegado essa competência” nos termos legais (vide n.º 7 do preceito indicado). Sem a referida autorização nem a própria ATA, nem, a fortiori, nenhuma outra entidade - incluindo a Recorrente -, pode, com base na disposição antiabuso, considerar ineficazes, no âmbito tributário, um qualquer ato ou negócio jurídico e liquidar quaisquer tributos que venham a tornar-se devidos em virtude dessa ineficácia;

g) Assim, e para além de impor ao substituto uma obrigação que naturalmente não lhe compete, entendimento oposto atentaria contra a letra e o espírito da disposição legal que acaba de ser citada e implicaria a constituição de uma obrigação, na esfera do substituto, de formular juízos de adequação ou de idoneidade das operações que ele próprio está (nesse entendimento) obrigado a realizar, em função do comportamento ou dos interesses de terceiros (no caso, os accionistas da A…………);

h) Ao contrário do que os Professores Manuel Pires e Américo Brás Carlos sustentaram nas declarações de voto (de vencido) que apresentaram nos processos arbitrais (do CAAD) n.ºs 200/2014-T e 283/2014-T, mas no exacto sentido consagrado nos Acórdãos relativos a esses mesmos processos e ainda nos Acórdãos tirados nos processos n.ºs 379/2014-T, 395/2014-T, 32/2015-T e 335/2015-T do CAAD, a AT não pode aplicar a CGAA ao substituto tributário.

i) A CGAA apenas consente a requalificação como dividendos das quantias recebidas pelos accionistas da Recorrente, já não permitindo que sobre esta última - pessoa colectiva distinta daqueles, e alheia aos alegados actos abusivos - recaia ex post uma obrigação de retenção na fonte e de pagamento de imposto relativa a dividendos que ela efectivamente não distribuiu;

j) O cerne sancionatório da CGAA é a extracção das vantagens fiscais (e não a imposição de obrigações acessórias). Nada na mecânica da CGAA permite à ATA ir colher essa vantagem ilegítima a quem dela efectivamente não beneficiou. Assumi-lo, como o assume a ATA e consente o Tribunal a quo, consiste numa grave entorse à legalidade, porque consubstancia uma tributação por analogia, que é expressamente vedada entre nós, além de ser materialmente inconstitucional, à face dos princípios da proporcionalidade e do direito à propriedade (vide o n.º 2 do artigo 18.º e o n.º 1 do artigo 62.º, ambos da CRP);

k) Não obsta ao exposto um hipotético direito de regresso da Recorrente contra os seus accionistas baseado no instituto do enriquecimento sem causa, não só por a lei fiscal ter de ser auto-suficiente na salvaguarda dos valores jurídicos a que deve respeito (em particular aos princípios constitucionais), mas também porque esse suposto direito de regresso não oferece qualquer garantia, uma vez que o seu exercício depende de requisitos próprios que poderão estar ou não verificados, dependendo do caso concreto;

l) A Recorrente é, nestes termos e em suma, parte ilegítima no procedimento que conduziu às liquidações impugnadas, quer à luz da letra do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, quer tendo em conta o seu espírito, densificado pela necessária observância dos princípios constitucionais aplicáveis;

m) A não ser assim, as correcções na esfera jurídico-tributária da Recorrente sempre estariam inquinadas (também por esta razão) pelo vício de (absoluta) falta de fundamentação quanto à Recorrente, aspecto a que o Tribunal a quo não chega sequer a atender;

n) Por tudo isto, a decisão recorrida incorre em erro na interpretação do Direito mobilizado e, por conseguinte, deve ser revogada;

o) Subsidiariamente, e caso se admita que a CGAA permite que a ATA imponha a tributação necessária à eliminação de uma vantagem fiscal alegadamente ilegítima a quem dela não beneficiou, então deve o tribunal abster-se de a aplicar no caso dos autos por a mesma padecer de inconstitucionalidade material, violando os princípios constitucionais da liberdade económica, previsto no artigo 61.º da CRP, da segurança jurídica, na sua expressão de princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito democrático consagrada no artigo 2.º da CRP, da legalidade fiscal, em particular na sua dimensão de princípio da tipicidade, previsto no n.º 2 do artigo 103.º, no artigo 104.º e na al. i) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, da capacidade contributiva, o qual, por sua vez, concretiza em matéria de impostos o princípio da igualdade, constante do artigo 13.º da CRP, da proporcionalidade e da propriedade, dispostos no artigo 18.º, n.º 1 e no artigo 62.º da CRP;

p) Sem embargo do que fica dito, a situação em apreço nos autos não é subsumível à disposição antiabuso consagrada no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, por não estarem verificados os pressupostos para tanto necessários;

q) O emprego de “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas” apenas tem lugar quando um ou mais actos ou negócios jurídicos se desviam, na sua utilização concreta, da finalidade típica que lhes subjaz, o que pressupõe a prévia identificação dessa finalidade típica;

r) Analisados os “actos ou negócios jurídicos” que a Sentença identifica como abusivas - como se referiu, a redução do capital por extinção de acções próprias adquiridas para esse fim levada a cabo pela Recorrente ao abrigo do artigo 463.º, n.º 2, al. b), do CSC -, é forçoso concluir que a finalidade dos mesmos é, justamente, a distribuição de bens sociais a favor dos accionistas, ou, dito de outro modo, a libertação de capital próprio a favor dos sócios;
s) Sendo esta a finalidade da redução do capital por extinção de acções próprias, não se pode seriamente sustentar que o instituto jurídico em apreço foi “desfuncionalizado” e que, por conseguinte, houve um “abuso das formas jurídicas” ou que, como se refere na Sentença, o meio entregue para distribuir bens aos accionistas da Recorrente é “artificial” ou consubstancia uma “forma inadequada”: pelo contrário, é antes um meio - não o único - perfeitamente típico, adequado e normal para distribuir bens aos accionistas de uma sociedade;
t) Inexistindo qualquer “abuso de formas jurídicas”, não se verifica o elemento "normativo" da CGAA, pelo que a Sentença erra na interpretação do Direito mobilizado e, por conseguinte, deve ser revogada;
u) Tão pouco se verifica o elemento “intelectual” da CGAA (i.e, o propósito essencial ou principal de “obtenção de vantagens fiscais”), já que o propósito essencial da redução do capital por extinção de acções próprias foi o de distribuir bens aos accionistas da Recorrente, por forma a distribuir capital próprio que os seus accionistas haviam concluído ser manifestamente excessivo;
v) Na verdade, a manutenção de capital próprio excedentário, porque improdutivo, na Recorrente - ou em qualquer outra sociedade que se encontrasse numa situação equiparável à da Recorrente - carecia de racionalidade económica;
w) A “falta de racionalidade económica” que o Tribunal a quo aponta ao instrumento jurídico-societário utilizado limita-se e reconduz-se unicamente ao reconhecimento da vantagem fiscal por ele causada, como se a vantagem fiscal comparativa fosse a primeira e última razão de ser da CGAA - desligada do “abuso de formas jurídicas” (artigo 38.º, n.º 2, da LGT);
x) Não existe nenhuma regra, lei ou princípio da ordem fiscal ou societária ao abrigo dos quais a distribuição de bens por uma sociedade aos respectivos sócios tenha que ocorrer através da distribuição de dividendos, pois a distribuição de dividendos é apenas um dos meios de distribuição de bens por uma sociedade aos respectivos sócios, não sendo o contribuinte, colocado perante duas alternativas igualmente lícitas, forçado a escolher aquela que comporta maior onerosidade fiscal, sob pena de se entender que cometeu um "abuso", como se vigorasse um (inexistente) ''princípio da prevalência da via tributária mais onerosa";
y) Entendimento oposto ao referido na alínea anterior viola o princípio da liberdade da escolha fiscal, dimensão fundamental da liberdade de iniciativa económica e do princípio da autonomia privada, pelo que viola também a lei e a Constituição, que consagra expressamente a liberdade de iniciativa e de organização empresarial (artigos 61.º, 80.º, al. c), e 86.º);
z) Em suma, a operação jurídico-societária levada a efeito não teve como propósito essencial ou principal a “obtenção de vantagens fiscais” (artigo 38.º, n.º 2, da LGT) e, como tal, não se acha preenchido o elemento “intelectual” de que depende a aplicação da CGAA, pelo que, também sob este prisma, a Sentença erra na interpretação do Direito mobilizado, razão pela qual deve ser revogada;
aa) Subsidiariamente, para o caso de este Tribunal concordar que o sentido da CGAA abrange o que lhe é dado pela ATA e pela Sentença recorrida, então deverá decidir pela desaplicação na situação concreta da norma insira no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, por inconstitucionalidade material, violando os princípios constitucionais da liberdade económica, previsto no artigo 61.º da CRP, da segurança jurídica, na sua expressão de princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito democrático consagrada no artigo 2.º da CRP, da legalidade fiscal, em particular na sua dimensão de princípio da tipicidade, previsto no n.º 2 do artigo 103.º, no artigo 104.º e na al. i) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, e da tributação da empresas de acordo o rendimento real (artigo 104.º, n.º 2, da CRP), manifestação do princípio da capacidade contributiva, o qual, por sua vez, concretiza em matéria de impostos o princípio da igualdade, constante do artigo 13.º da CRP.
TERMOS EM QUE DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, POR PROVADO, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, DESIGNADAMENTE A REVOGAÇÃO DA SENTENÇA RECORRIDA.”

A Recorrida Autoridade Tributária e Aduaneira não apresentou contra-alegações.

O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.

Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, vem o processo submetido à Conferência para julgamento.




2. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que a matéria apontada nos autos resume-se, em suma, em indagar da bondade do decidido no sentido de que a interpretação que assegura a efectividade do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT é, assim, aquela que está subjacente à posição da AT, no sentido de que, sempre que a aplicação da CGAA resulte na desconsideração de uma construção que resulte na não aplicação de uma retenção na fonte a título definitivo, e pese embora o facto de a vantagem fiscal se produzir na esfera do beneficiário, é o substituto quem, em primeira linha, responde por essa obrigação tributária, sempre que a vantagem que o terceiro obtém resulte de uma operação praticada por ele, que levou à não retenção na fonte do imposto que agora (por efeito da desconsideração daquela construção) se pretende liquidar e cobrar e bem assim no que concerne ao entendimento de que a aplicação, in casu, da CGAA prevista no art. 38º nº 2 da LGT não padece de qualquer ilegalidade, sem olvidar a matéria da recusa da aplicação da norma apontada, nas duas vertentes assinaladas, por a mesma padecer de inconstitucionalidade material, violando os princípios constitucionais da liberdade económica, previsto no artigo 61.º da CRP, da segurança jurídica, na sua expressão de princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito democrático consagrada no artigo 2.º da CRP, da legalidade fiscal, em particular na sua dimensão de princípio da tipicidade, previsto no n.º 2 do artigo 103.º, no artigo 104.º e na al. i) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, da capacidade contributiva (e da tributação da empresa de acordo com o rendimento real enquanto manifestação desse princípio - art. 104º nº 2 da C.R.P.), o qual, por sua vez, concretiza em matéria de impostos o princípio da igualdade, constante do artigo 13.º da CRP, da proporcionalidade e da propriedade, dispostos no artigo 18.º, n.º 1 e no artigo 62º da CRP.




3. FUNDAMENTOS

3.1. DE FACTO

Neste domínio, consta da decisão recorrida o seguinte:

“…

A) A impugnante é uma Sociedade Gestora de Participações Sociais que, nos anos de 2008 e 2009 estava inserida no regime normal de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, beneficiando do tratamento favorável previsto no art. 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF);

B) Nos anos de 2008 e 2009, eram seus acionistas, nas seguintes proporções (relatório de inspeção tributária (RIT) e documentos anexos):

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C) Nos anos de 2008 e 2009, para além da qualidade de acionistas eram administradores da sociedade, desempenhando as seguintes funções (RIT e f ls. 470 a 477):
– B………… – Presidente;
– C………… – Vogal;
– D………… – Vogal;
– E………… – Vogal.
D) Para além deles fazia ainda parte da administração da sociedade F………… – Vogal (RIT e f ls. 470 a 477).
E) Nos anos de 2008 e 2009, a impugnante detinha as seguintes participações sociais (RIT):

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F) Em 19/09/2008 a impugnante alienou a participação que detinha no capital da G…………, SA, doravante G............, pelo montante de €56.086.00,00 (RIT).
G) Da alienação referida na alínea anterior resultou, para a impugnante, uma mais valia, excluída de tributação nos termos e para os efeitos do art. 32.º do EBF, no valor de €46.819.462,36 (RIT).
H) Em Assembleia Geral de 09/01/2009, foram aprovadas as contas da impugnante referentes ao exercício de 2008, bem como a proposta de aplicação do resultado líquido do exercício no montante de €48.643.287,83 (RIT e documentos anexos).
I) Em 10/01/2009, em Assembleia Geral, foi aprovada a proposta de redução do capital social em €300.000,00, passando aquele de €400.000,00 para um total de €100.000,00, mediante a extinção de 60.000 ações próprias a adquirir previamente aos acionistas na proporcionalidade das suas participações no capital social (RIT e documentos anexos).
J) A referida aquisição de ações próprias foi formalizada através de contratos de compra e venda celebrados em 15/01/2009, sendo atribuído um valor de €650,00 a cada ação, nos seguintes termos (RIT e documentos anexos):

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K) A redução do capital social da impugnante foi aprovada em Assembleia Geral de 16/01/2009 (RIT e documentos anexos).
L) A operação de aquisição pela impugnante junto dos seus acionistas de 60.000 ações pelo montante global de €39.000.000,00, com o pressuposto de reduzir o capital social, permitiu-lhes a realização, em conjunto, de uma mais-valia de €38.700.000,00 [€ 39.000.000,00 - €300.000,00] que foi excluída da tributação ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 10.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) (RIT e documentos anexos).
M) Por despacho de 14/11/2012, o Senhor Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, autorizou a aplicação da cláusula geral anti-abuso pelo despacho de fls. 354 a 373, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
N) A impugnante foi sujeita a um procedimento de inspeção que está documentado no RIT de fls. 248 a 266, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
O) Na sequência da inspeção, a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu, além do mais, o seguinte (RIT e documentos anexos):
«Como já foi referido, foi determinada a desconsideração para efeitos tributários das operações de aquisição de ações próprias seguida da redução do capital social através da extinção das mesmas, e que se procedesse à tributação das importâncias pagas aos acionistas como distribuição de lucros.
A colocação à disposição de lucros de uma entidade sujeita a IRC, constitui, para o seu beneficiário, pessoa singular, um rendimento da categoria E do IRS conforme artigo 5 º, n.º 2 alínea h), do Código do IRS, sujeito a retenção na fonte de IRS à taxa liberatória de 20% conforme dispõe o artigo 71º n º 3 alínea c) do mesmo Código (redação à data), sendo devido imposto no montante de € 7.800.000,00, conforme se discrimina:

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P) Com base nestas e nas demais conclusões do referido RIT, os serviços de inspeção tributária (SIT) procederam às correções técnicas das quais resultaram o apuramento de IRS – retenção na fonte em falta no montante de €7.800.000,00 (RIT e documentos anexos).
Q) Na sequência destas correções, foi elaborada em 28/12/2012 a liquidação de IRS n.º 2012 6410001435, no montante total de €7.800.000,00 de IRS e a liquidação de juros compensatórios n.º 2012 00002124775, no montante de €1.194.147,94, que consta de fls. 246, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
R) Em 27/05/2013, B…………, C…………, D………… e E………… apresentaram o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo, que terminou pelo acórdão junto aos autos de fls. 445 a 469, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
S) Nesse processo a Autoridade Tributária e Aduaneira é representada por juristas designados por si (fls. 495).
T) Em 05/05/2013, a impugnante prestou garantia bancária no valor de €11.420.000,00, para suspensão do PEF n.º 4219201301012452, do Serviço de Finanças da Trofa, instaurado para execução da dívida da liquidação impugnada (fls. 160 a 170 do PA).

U) Em 16/12/2013 a impugnante pagou a liquidação impugnada (fls. 501 e 502).

Com relevância para a decisão da causa, inexiste matéria de facto julgada não provada.

3.1.1 - Motivação.

O Tribunal julgou provada a matéria de facto relevante para a decisão da causa, com base na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos e ao PA que na parte em que não foram impugnados e bem assim na parte dos factos alegados pelas partes que não tendo sido impugnados (art. 74.º da Lei Geral Tributária (LGT)), também são corroborados pelos documentos (arts. 76.º, n.º 1, da LGT e 362.º e seguintes do Código Civ il (CC)) identificados em cada um dos factos.

Pese embora a impugnante tivesse impugnado a decisão que dispensou a realização da audiência contraditória, entendemos que a impugnante não tem razão, sobretudo se atendermos ao seu próprio requerimento de fls. 518, em que ela própria expressamente reconhece que nos presentes autos não subsiste qualquer matéria de facto controvertida, pelo que a prova documental junta aos autos é suficiente para proferir sentença.

A eventual intenção da impugnante e dos seus acionistas, subjacente aos factos invocados, é uma questão subjetiva que o Tribunal tem de extrair dos factos julgados provados que foram aceites pelas partes e que foram provados por documentos.

A restante matéria alegada pelas partes não foi julgada provada ou não provada por constituir conceito de direito, matéria conclusiva ou não relevar para a decisão da causa.”


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3.2. DE DIREITO

Assente a factualidade apurada cumpre, então, entrar na análise da realidade em equação nos autos, sendo que a este Tribunal está cometida a tarefa de indagar da bondade do decidido no sentido de que a interpretação que assegura a efectividade do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT é, assim, aquela que está subjacente à posição da AT, no sentido de que, sempre que a aplicação da CGAA resulte na desconsideração de uma construção que resulte na não aplicação de uma retenção na fonte a título definitivo, e pese embora o facto de a vantagem fiscal se produzir na esfera do beneficiário, é o substituto quem, em primeira linha, responde por essa obrigação tributária, sempre que a vantagem que o terceiro obtém resulte de uma operação praticada por ele, que levou à não retenção na fonte do imposto que agora (por efeito da desconsideração daquela construção) se pretende liquidar e cobrar e bem assim no que concerne ao entendimento de que a aplicação, in casu, da CGAA prevista no art. 38º nº 2 da LGT não padece de qualquer ilegalidade, sem olvidar a matéria da recusa da aplicação da norma apontada, nas duas vertentes assinaladas, por a mesma padecer de inconstitucionalidade material, violando os princípios constitucionais da liberdade económica, previsto no artigo 61.º da CRP, da segurança jurídica, na sua expressão de princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito democrático consagrada no artigo 2.º da CRP, da legalidade fiscal, em particular na sua dimensão de princípio da tipicidade, previsto no n.º 2 do artigo 103.º, no artigo 104.º e na al. i) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, da capacidade contributiva (e da tributação da empresa de acordo com o rendimento real enquanto manifestação desse princípio - art. 104º nº 2 da C.R.P.), o qual, por sua vez, concretiza em matéria de impostos o princípio da igualdade, constante do artigo 13.º da CRP, da proporcionalidade e da propriedade, dispostos no artigo 18.º, n.º 1 e no artigo 62º da CRP.

Nas suas alegações, a Recorrente começa por referir que o cerne sancionatório da CGAA é a extracção das vantagens fiscais (e não a imposição de obrigações acessórias), sendo que nada na mecânica da CGAA permite à AT ir colher essa vantagem ilegítima a quem dela efectivamente não beneficiou e assumi-lo, como o assume a AT e consente o Tribunal a quo, consiste numa grave entorse à legalidade, porque consubstancia uma tributação por analogia, que é expressamente vedada entre nós, além de ser materialmente inconstitucional, à face dos princípios da proporcionalidade e do direito à propriedade (vide o n.º 2 do artigo 18.º e o n.º 1 do artigo 62.º, ambos da CRP) e não obsta ao exposto um hipotético direito de regresso da Recorrente contra os seus accionistas baseado no instituto do enriquecimento sem causa, não só por a lei fiscal ter de ser auto-suficiente na salvaguarda dos valores jurídicos a que deve respeito (em particular aos princípios constitucionais), mas também porque esse suposto direito de regresso não oferece qualquer garantia, uma vez que o seu exercício depende de requisitos próprios que poderão estar ou não verificados, dependendo do caso concreto, de modo que, a Recorrente é, nestes termos e em suma, parte ilegítima no procedimento que conduziu às liquidações impugnadas, quer à luz da letra do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, quer tendo em conta o seu espírito, densificado pela necessária observância dos princípios constitucionais aplicáveis e, a não ser assim, as correcções na esfera jurídico-tributária da Recorrente sempre estariam inquinadas (também por esta razão) pelo vício de (absoluta) falta de fundamentação quanto à Recorrente, aspecto a que o Tribunal a quo não chega sequer a atender.

Pois bem, em termos essenciais, no que concerne à primeira questão colocada nos autos, sobre se a CGAA é aplicável, em casos como o dos autos, ao substituto tributário ou se a mesma apenas é passível de aplicação substituído tributário, este Supremo Tribunal já tomou posição sobre a matéria nos termos do Acórdão de 12-05-2021, Proc. nº 01869/13.4BEBRG 01152/17, www.dgsi.pt, onde se ponderou que:

“…

3.3.3. Quer isto dizer que, a nosso ver, a tese sufragada pela sentença não explica convenientemente a razão pela qual a AT não tem razão ao defender a aplicação de uma relação de solidariedade tributária entre a Recorrida e os sócios no âmbito da aplicação da CGAA, ex vi do disposto no n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, que legitimaria, na sua versão, a exigência do imposto à Recorrida.

3.4. Lembre-se que a questão que subjaz à consulta foi expressamente “resolvida” pelo legislador com o aditamento ao artigo 38.º da LGT dos n.ºs 4 e 5 pela Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio. Aí se dispõe que:

«[…]

4 - Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 2, nos casos em que da construção ou série de construções tenha resultado a não aplicação de retenção na fonte com carácter definitivo, ou uma redução do montante do imposto retido a título definitivo, considera-se que a correspondente vantagem fiscal se produz na esfera do beneficiário do rendimento, tendo em conta os negócios ou actos que correspondam à substância ou realidade económica.

5 - Sem prejuízo do número anterior, quando o substituto tenha ou devesse ter conhecimento daquela construção ou série de construções, devem aplicar-se as regras gerais de responsabilidade em caso de substituição tributária.

[…]».

Assim, desta nova redacção do artigo 38.º da LGT resulta que, em casos como o dos autos, em que da construção utilizada e que depois é desconsiderada por efeito da aplicação da CGAA tenha resultado a não aplicação de retenção na fonte com carácter definitivo, considera-se que a vantagem fiscal se produz na esfera do beneficiário do rendimento, i.e. dos accionistas, mas tal não invalida que, se o substituto (no caso a sociedade que deliberou a amortização com redução do capital) tivesse ou devesse ter conhecimento daquela construção, o mesmo não possa ser chamado a responder pela dívida tributária segundo as regras aplicáveis à responsabilidade em caso de substituição tributária, ou seja, segundo as regras do 28.º da LGT.

Ora, segundo o artigo 28.º da LGT, designadamente o n.º 3 que é o aplicável a este caso, nos casos de retenção na fonte a título definitivo, em que o substituto não retém na fonte as quantias a que por lei estaria obrigado, cabe a ele substituto a responsabilidade originária pelas quantias que deviam ter sido retidas e não foram e aos substituídos a responsabilidade subsidiária pela satisfação dessas quantias.
Quer isto dizer que
à luz da redacção actual do artigo 38.º da LGT a solução adoptada pela AT nos autos é correcta, embora não pelos fundamentos por ela alegados.
É, porém, óbvio, que estas normas não se podem aplicar à resolução do caso dos autos. Mas é também evidente que
importa saber se a solução que nelas se consagra — sobretudo a de que o substituto é o responsável originário pelas dívidas tributárias do beneficiário da construção que levou à aplicação da CGAA quando tivesse conhecimento daquela construção e sobre ele impendesse a obrigação de retenção na fonte com carácter definitivo - tem carácter inovador face às normas que vigoravam no ordenamento jurídico à data em que nos autos a AT decidiu aplicar a CGAA e exigir o imposto em falta à sociedade Recorrida; ou se, pelo contrário, esta já era a solução que resultaria da correcta hermenêutica das regras legais então em vigor, podendo dizer-se que o legislador se limitou a positivar esse sentido em letra de lei.

3.5. Comecemos por analisar se a tese da AT nos autos se baseou na interpretação legal que veio a obter consagração expressa em 2019. A resposta não é totalmente positiva, pois, como vimos, a AT baseou a sua decisão na alegada responsabilidade tributária solidária que, ao abrigo do n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, existiria entre a sociedade e os sócios em relação à obrigação tributária resultante da aplicação da CGAA.

Ora, parece evidente que estamos perante questões jurídicas diferentes. Tanto assim é que a alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio, que aditou os referidos n.ºs 4 e 5 ao artigo 38.º da LGT, não modificou a redacção do n.º 4 do artigo 103.º do CIRS. Tal indicia, à luz do elemento sistemático da interpretação jurídica, que a responsabilidade solidária que se consagra no n.º 4 do artigo 103.º do CIRS não contende com a responsabilidade tributária nos casos de substituição fiscal quando venha a ter lugar uma “requalificação” de uma operação ou facto tributário em razão da aplicação da CGAA. Caso contrário, o legislador teria sentido a necessidade de alterar a redacção do n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, precisamente para excepcionar os casos dos n.ºs 4 e 5 do artigo 38.º da LGT. Em outras palavras, a modificação legislativa introduzida pela Lei n.º 32/2019 não foi no sentido de alterar uma previsão normativa expressa anterior que regulava aqueles factos sob o regime da responsabilidade tributária solidária para os passar a submeter ao regime de responsabilidade fiscal subsidiária.

Também o elemento literal da interpretação jurídica apontaria para a não aplicação desta responsabilidade solidária ao caso dos autos, essencialmente, por duas razões. Primeiro, porque a situação dos autos – a reconfiguração tributária de um facto ou operação por efeito da aplicação da CGAA – dificilmente se pode subsumir, de forma directa, na previsão daquele n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, pois é difícil dizer que o pagamento aos accionistas das quantias respeitantes às amortizações decorrentes da redução de capital consubstanciasse “rendimentos não contabilizados nem comunicados como tal aos respectivos beneficiários”. Isso seria pressupor que aquela operação resultara de uma deliberação da sociedade totalmente alheia à vontade dos sócios e não é isso que sucede no âmbito da aplicação da CGAA, em que se trata apenas de a AT avaliar a substancia económica de uma operação da qual resulta aforro fiscal para saber se ela se deve considerar legítima no plano tributário (por ter uma razão substantiva económica) ou se a sua finalidade exclusiva ou principal se esgotava naquele aforro fiscal, caso em que a mesma é desconsiderada e requalificada para efeitos tributários como a operação sujeita a imposto que foi “indevidamente omitida ou evitada”. Segundo, porque ainda que se pretendesse dizer que para este efeito, à CGAA poderia aplicar-se, por interpretação extensiva, a regra do n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, tal é vedado pelo n.º 4 do artigo 22.º da LGT, que estipula como regra a responsabilidade apenas subsidiária e reserva para a responsabilidade solidária os casos em que tal se encontre expressamente previsto na lei.

Julgamos, por isso, que o n.º 4 do artigo 103.º do CIRS não é aplicável ao caso e, nessa medida, não constitui nem podia constituir, à data, pressuposto legal para a exigibilidade do imposto devido à sociedade Recorrida.

3.6. Não obstante, é porém também certo que a solução que veio a ser consagrada – de responsabilizar de modo originário pela dívida tributária que resulta da aplicação da CGAA a sociedade que sabia da construção que vem a ser desconsiderada no plano tributário e estava obrigada à retenção na fonte, reservando para os accionistas o papel de responsáveis subsidiários pela dívida que resulte dessa obrigação tributária - acaba por ser, na prática, quase idêntica à que resulta do n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, pois em ambas a sociedade responde (ou pode responder) em primeira linha pela obrigação fiscal que resulta da aplicação da CGAA.

Na verdade, a solução a que em 2019 se deu consagração expressa na lei, que reserva nestas hipóteses – em que não o imposto devido por efeito da aplicação da CGAA deveria ser pago por retenção na fonte a título definitivo – para os que obtêm a vantagem fiscal um papel de responder subsidiariamente pela dívida tributária, acaba até por parecer mais “desviada” da regra de que a obrigação fiscal que resulta da aplicação da CGAA só pode ser exigida ao sujeito que obteve a vantagem fiscal e não àquele que a proporcionou, do que a tese defendida pela AT, segundo a qual existiria uma situação de responsabilidade solidária entre os beneficiários e aquele que tinha proporcionado o benefício. Parece que sob o prisma da segurança jurídica e da protecção da confiança, a “solução jurídica” sufragada pela AT nos autos se aproxima mais da finalidade da CGAA quando ela pretende neutralizar a vantagem fiscal do beneficiário da mesma.

3.7. Resta-nos, então, saber se a solução adoptada pela AT, de liquidar e cobrar o imposto à sociedade Recorrida se pode manter apenas com base na aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT e no artigo 63.º do CPPT, na redacção que os artigos tinham à data dos factos.

Para isso é importante atentar no elemento histórico com o intuito de tentar retirar dele o “sentido” desta alteração legislativa.

Na exposição de motivos que acompanhou a proposta de lei parece querer dizer-se que as regras da responsabilidade em caso de substituição tributária prevalecem neste caso sobre a regra de que a obrigação tributária que emerge da aplicação da CGAA só pode opor-se ao beneficiário da vantagem fiscal:

«[…] Prevê-se ainda que, nos casos em que das construções ou séries de construções qualificáveis como abusiva tenham resultado a não aplicação de retenção na fonte com caráter definitivo ou uma redução do montante do imposto retido a título definitivo, deve-se considerar que a correspondente vantagem fiscal se produziu na esfera do beneficiário do rendimento, tendo em conta os negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica em causa, sem prejuízo da aplicação das regras gerais de responsabilidade em caso de substituição tributária, nos casos em que o substituto tenha ou devesse ter conhecimento daquela construção ou série de construções […]». [destacados nossos]

Se compulsarmos o que se disse no debate na generalidade a respeito da Lei n.º 32/2019, parece resultar daí que o legislador, ao introduzir os n.ºs 4 e 5 no artigo 38.º da LGT e alterar a redacção do artigo 63.º do CPPT, mais do que clarificar o sentido do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, veio “introduzir novidades” no ordenamento jurídico e alterar efectivamente o que estava em vigor, por forma a garantir maior segurança jurídica, quer aos contribuintes e sujeitos passivos, quer a AT na aplicação da CGAA. Pode ler-se no debate parlamentar na generalidade o seguinte:

«[…] Mas esta proposta de lei tem uma inovação muito importante, do ponto de vista do ordenamento jurídico interno: promovemos uma alteração à cláusula geral antiabuso, prevista na lei geral tributária. Isto é importante, porque nos permite criar mais certeza tanto para os contribuintes, como para a Autoridade Tributária. Trata-se de direcionar a cláusula antiabuso para aqueles que, efetivamente, são os beneficiários dos rendimentos e prever os casos estritos em que possa haver substituição tributária e, também, o processo inerente ao acionamento dessa cláusula antiabuso […]». [destacados nossos]

A isso acresce o facto de que só com a alteração do artigo 63.º do CPPT é que o procedimento de aplicação da CGAA passou a exigir previamente – para os casos em que se apliquem as regras de responsabilidade em caso de substituição tributária (o n.º 5 do artigo 38.º da LGT) – um procedimento de inspecção dirigido também ao beneficiário do rendimento (artigo 63.º, n.º 4, al. b) do CPPT). E é também a partir deste momento que se clarificam as garantias do substituto e do substituído nestas situações de aplicação da CGAA, com a previsão de reclamação graciosa prévia obrigatória, que pode ser apresentada por ambos, caso em que a decisão de ambos procedimentos é da competência do mesmo órgão periférico regional, podendo aqueles ser apensados.

3.7.1. Ora, os subsídios que podemos retirar do elemento histórico da interpretação jurídica, em vez de proporcionarem uma resposta directa à nossa questão, suscitam antes a necessidade esclarecer uma dúvida: i) a “novidade” que emerge da alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 32/2019 para situações como a dos autos é a de que o substituto passa a responder pela dívida tributária quando o beneficiário da vantagem fiscal seja o substituído e desde que preencha os pressupostos no n.º 5 do artigo 38.º da LGT; ou devemos entender antes que ii) a “novidade” é a de que o beneficiário da vantagem fiscal, quando tenha o papel de substituído numa relação jurídica fiscal em que devesse ter tido lugar a retenção na fonte a título definitivo, passa também a poder responder subsidiariamente pela dívida tributária em relação às quantias que deveriam ter sido retidas pelo substituto e não o foram?

3.8. A resposta deve então buscar-se no elemento teleológico ou racional da interpretação jurídica. No essencial devemos perguntar se à luz da redacção do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, conjugado com o artigo 63.º do CPPT, à data dos factos, a liquidação do imposto resultante da aplicação da CGAA poderia ser dirigida à sociedade, por ter sido ela a deliberar e executar a construção que proporcionou a vantagem fiscal (como resulta do acto praticado pela AT) ou se, ao invés, aquela liquidação teria de ter como destinatários os sócios, por terem sido eles a beneficiar directamente da vantagem fiscal (tese que vem acolhida e proferida na sentença recorrida).

Ora, atentando exclusivamente no teor do artigo 63.º do CPPT na sua redacção à data dos factos concluímos, aí, como hoje, que o procedimento de aplicação da CGAA só podia ter como destinatário a sociedade, por ser ela e não os sócios, quem utiliza/pratica a construção que permite a obtenção da vantagem fiscal e, nessa medida, por ser ela, e não os sócios, quem, em sede procedimental, pode apresentar os argumentos que sustentem a racionalidade económica da construção utilizada e, com isso, afastar a aplicação da CGAA.

A prevalecer a tese vertida na sentença recorrida ter-se-ia de concluir que, na prática, era impossível aplicar a CGAA sempre que fosse utilizada por um sujeito passivo de IRC uma construção que proporcionasse uma vantagem fiscal da qual resultasse a “substituição” de uma operação em que devesse ter tido lugar uma retenção na fonte a título definitivo. É que de acordo com aquela tese, nessas situações, a aplicação da CGAA com desconsideração da referida construção “esbarraria” com esta perplexidade: i) no procedimento tributário do artigo 63.º do CPPT só o substituto poderia participar por ser ele o único que estaria em condições de “afastar” a aplicação da CGAA, justificando as razões económicas daquela construção; ii) mas a liquidação não poderia ter esta entidade como destinatária, por a vantagem tributária ter sido proporcionada a outro: os sócios. No absurdo, se a AT tivesse iniciado – como parece decorrer dessa decisão – o procedimento tributário do artigo 63.º do CPPT contra os sócios, a mesma tese defenderia que tal constituiria uma “distorção” da relação jurídica tributária por não terem sido os sócios a praticar o acto (a deliberação) que deu origem à construção que proporcionou a vantagem tributária que a CGAA desconsiderara. Assim, concluímos que a tese sufragada pela sentença recorrida não se pode manter por repousar numa interpretação do n.º 2 do artigo 38.º da CGAA, conjugado com o artigo 63.º do CPPT, que, na prática, conduziria a uma impossibilidade de aplicação daquela norma. A interpretação que assegura a efectividade do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT é, assim, aquela que está subjacente à posição da AT, no sentido de que, sempre que a aplicação da CGAA resulte na desconsideração de uma construção que resulte na não aplicação de uma retenção na fonte a título definitivo, e pese embora o facto de a vantagem fiscal se produzir na esfera do beneficiário, é o substituto quem, em primeira linha, responde por essa obrigação tributária, sempre que a vantagem que o terceiro obtém resulte de uma operação praticada por ele, que levou à não retenção na fonte do imposto que agora (por efeito da desconsideração daquela construção) se pretende liquidar e cobrar.

Por aqui se percebe, como é afirmado nos trabalhos preparatórios da Lei n.º 32/2019, que sendo a regra do artigo 38.º, n.º 2 da LGT a de que a CGAA visa neutralizar financeiramente uma vantagem tributária indevida, e, por isso, o seu destinatário é quem dela beneficia (sendo, nestes casos, esses beneficiários os sócios), tal não significa que, o princípio da praticabilidade associado aos princípios da igualdade tributária e da racionalidade não imponham que nestes casos em que está subjacente à aplicação da CGAA uma relação jurídica de substituição fiscal total, com retenção na fonte a título definitivo, não devam também aplicar-se as regras da substituição tributária em geral. De acordo com estas regras, aquele que esteja legalmente obrigado à liquidação em substituição e não o faça, se tiver conhecimento (ou devesse ter) da construção que se substituiu a esta obrigação de retenção na fonte a título definitivo, será o responsável originário pelas quantias que devia ter retido e não reteve.

A novidade introduzida pela Lei n.º 32/2019, e que não pode aplicar-se no caso dos autos, é, pois, a de que também o substituído, no caso, os accionistas, podem ser chamados a responder por este crédito tributário, a título subsidiário e, por isso, passa também a ser exigida a sua participação no âmbito do procedimento de aplicação da CGAA, previsto e regulado no artigo 63.º do CPPT.

A exigência do imposto devido por efeito da CGAA à sociedade não é uma novidade é apenas a consagração em letra de lei (uma mera clarificação) do que, pelas razões antes esgrimidas, já se retirava das regras e dos princípios legais em vigor na redacção anterior dos preceitos legais em causa. De resto, a solução que aqui se adopta é um corolário da aplicação das regras da responsabilidade em caso de substituição tributária, em que não pode deixar de impender sobre aquele que legalmente está obrigado à retenção na fonte a título definitivo a obrigação de satisfazer, em primeira linha, o pagamento do imposto devido, que, por incumprimento da lei pela sua parte (não nos esqueçamos que estes são casos de liquidação tributária em substituição), o Estado deixou de arrecadar.

A única questão que se poderia suscitar era a de a referida obrigação, nestes casos, resultar do acto de aplicação da CGAA e não directamente da lei, pois o substituto, ao ter praticado (antes da aplicação da CGAA) uma operação diversa da que legalmente impunha aquela retenção na fonte, não poderia agora ser “responsabilizado por aquela omissão”. Mas também este argumento é afastado pelo facto de ser sempre exigível, por efeito da verificação dos pressupostos da correcta aplicação da CGAA, que no procedimento (decisão depois escrutinada em sede de impugnação judicial da liquidação ou do acto de correcção dos prejuízos fiscais) de aplicação da CGAA fique provado que o substituto “tinha conhecimento da construção”, o que significa, neste caso, que sabia (tinha o dever de saber) que as decisões de amortização com redução de capital poderiam, antes, ter dado lugar a distribuição de dividendos, cabendo-lhe explicar o fundamento económico da decisão que tomou. …”.

Perante o carácter assertivo do que ficou exposto, e que de forma Superior, trata da realidade agora em equação nos autos, temos por adquirido que a interpretação que assegura a efectividade do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT é, assim, aquela que está subjacente à posição da AT, no sentido de que, sempre que a aplicação da CGAA resulte na desconsideração de uma construção que resulte na não aplicação de uma retenção na fonte a título definitivo, e pese embora o facto de a vantagem fiscal se produzir na esfera do beneficiário, é o substituto quem, em primeira linha, responde por essa obrigação tributária, sempre que a vantagem que o terceiro obtém resulte de uma operação praticada por ele, que levou à não retenção na fonte do imposto que agora (por efeito da desconsideração daquela construção) se pretende liquidar e cobrar, sendo que, quanto ao mais, é ponto assente que a deliberação da Assembleia Geral que aprova a aquisição de acções próprias, na proporção das participações sociais dos accionistas, e da subsequente redução capital social, é aprovada pelos accionistas que fazem parte da administração da impugnante e que são os beneficiários directos dessa operação, através da qual recebem o lucro da venda da G............ através da mencionada venda de acções que permite beneficiar da isenção da tributação das mais-valias nos termos do art. 10.º, n.º 2, do CIRS, o que significa que não pode proceder a alegação da Recorrente neste âmbito, não existindo também nesta sede qualquer situação de vício de (absoluta) falta de fundamentação quanto à Recorrente, ficando a sensação, quanto a esta alegação, de que não lhe basta que o acto contenha as razões de facto e de direito de que a decisão brotou, quer que as razões mostrem que a decisão é boa - o que confunde a forma com o fundo, em relação ao qual, como vimos, a posição da Recorrente não merece a adesão da jurisprudência deste Tribunal.

A Recorrente defende depois que a situação em apreço nos autos não é subsumível à disposição antiabuso consagrada no artigo 38º nº 2, da LGT, por não estarem verificados os pressupostos para tanto necessários.

Como é sabido, o art. 38º nº 2 da LGT estabelece uma cláusula geral antiabuso, nos termos da qual “são ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”.

Com referência à norma agora apontada, importa discutir o que poderá ser entendido como sendo um “meio artificioso ou fraudulento” ou um “abuso de formas jurídicas”, na medida em que se tratam de conceitos indeterminados, nem sempre fáceis de enquadrar num cenário de planeamento fiscal, sendo que neste domínio a jurisprudência comunitária já se pronunciou sobre o conceito de meio artificioso ou fraudulento aquando da decisão do caso Cadbury-Schweppes (Processo C-196/04 de 12/09/2006) n.ºs 67-68), verificando-se que na asserção do TJCE, o conceito de meios artificiosos ou fraudulentos que nos é dado pelo legislador português traduz-se no uso de “expedientes puramente artificiais cuja finalidade é fugir à alçada da legislação do Estado-membro em causa”.

Avançando, diga-se que o planeamento fiscal legítimo “consiste numa técnica de redução da carga fiscal pela qual o sujeito passivo renuncia a um certo comportamento por este estar ligado a uma obrigação tributária ou escolhe, entre as várias soluções que lhe são proporcionadas pelo ordenamento jurídico, aquela que, por acção intencional ou omissão do legislador fiscal, está acompanhada de menos encargos fiscais” (Prof. Saldanha Sanches, Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pág. 21).

Por seu lado, o planeamento fiscal ilegítimo “consiste em qualquer comportamento de redução indevida, por contrariar princípios ou regras do ordenamento jurídico-tributário, das onerações fiscais de um determinado sujeito passivo”.

Pois bem, é às situações que configuram planeamento fiscal ilícito ou extra legem que irá ser aplicada a CGAA e, consequentemente serão desconsiderados os efeitos fiscais do acto ou negócio jurídico lícito praticado pelo contribuinte que desencadeou na obtenção de vantagens fiscais.

Em termos de enquadramento, tendo presente o exposto na decisão recorrida, podemos ainda dizer que a norma acima apontada é complementada pelo extenso artigo 63.º do CPPT, que contém um conjunto disposições que concretizam os parâmetros conformadores do procedimento de aplicação das disposições antiabuso, apontando-se os seguintes elementos:

- o elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida - acto ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de actos ou negócios jurídicos, sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário - pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal;

- o elemento resultado, que tem a ver com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos actos ou negócios jurídicos «normais» e de efeito económico equivalente;

- o elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja «essencial ou principalmente dirigid[a] [...] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos» (artigo 38.º, n.º 2 da LGT), ou seja, que exige não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objectivamente, se o contribuinte «pretende um acto, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam»;

- o elemento normativo, que «tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela»;

- e, por fim, o elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos actos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT).

Pois bem, quanto ao elemento resultado, analisando de uma forma isolada e objectiva os negócios jurídicos que envolveram a aquisição de acções próprias aos accionistas da impugnante com o proveito realizado com a venda da G............, participada da impugnante, na proporção das respectivas participações sociais e por um valor que resulta dos proveitos obtidos com o valor da venda da G............ bem como a redução dos capitais próprios provenientes dos proveitos obtidos com a venda da G............, através da aquisição de acções próprias para subsequente redução do capital social, temos de conceder que a situação em apreço permite aos accionistas da ora Recorrente aceder aos proveitos obtidos com a venda da G............, o que afasta o pagamento do IRS devido pela tributação dos rendimentos distribuídos aos accionistas a título de dividendo, ou seja, com esta operação, a Recorrente transformou dividendos que seriam sujeitos a tributação em mais-valias não tributadas, o que significa que nenhuma dúvida subsiste quanto à existência deste elemento em função da vantagem fiscal enunciada.

No que diz respeito ao elemento intelectual, o negócio é reprovável porque a vantagem fiscal influencia e determina plenamente a actuação do contribuinte no que toca às formas escolhidas, motivando a sua actuação com vista a alcançar o resultado fiscal pretendido, ou seja, os actos ou negócios em questão tenham, pois, sido “essencial ou principalmente dirigidos” à obtenção de uma vantagem fiscal, sendo esta relevante para efeitos de aplicação da norma.

Neste ponto, importa determinar quando e como é que o nível de importância da motivação do contribuinte para a realização de certa operação ultrapassa o limite do aceitável, de tal modo que, quando tal aconteça, leve a concluir pela verificação do elemento, cabendo ao juiz, enquanto aplicador do direito, fazer o juízo que visa perceber e atestar se determinada conduta deve considerar-se como reprovável pelo ordenamento jurídico, por estar teleologicamente direccionada para a obtenção de uma vantagem, também ela reprovável.

Com interesse nesta sede, a decisão recorrida ponderou que:

“…

Em síntese, aqui está em causa a aquisição de ações próprias aos acionistas da impugnante com o proveito realizado com a venda da G............, participada da impugnante, na proporção das respetivas participações sociais e por um valor que resulta dos proveitos obtidos com o valor da venda da G............, porque com essa venda a impugnante ficava com capitais próprios muito elevados que punham em causa o desempenho financeiro da impugnante à luz do método EVA e que alegadamente seria o motivo da redução do capital social.

Todavia, este Tribunal entende que a impugnante ao invocar o desempenho financeiro da impugnante à luz do método EVA como motivo para redução dos capitais próprios provenientes dos proveitos obtidos com a venda da G............, através da aquisição de acções próprias para subsequente redução do capital social, não é senão um meio artificial de conseguir o propósito fiscal de fazer chegar aos seus acionistas os proveitos obtidos com a venda da G............ iludindo o pagamento do IRS devido pela tributação dos rendimentos distribuídos aos acionistas a título de dividendo (com esta operação a impugnante transformou dividendos sujeitos a tributação em mais-valias não tributadas), fazendo uso de uma forma inadequada, que visa iludir o sistema tributário, alcançando as partes substancialmente, do ponto de vista económico o mesmo resultado que teriam se tivessem optado pela forma jurídica correspondente à relação económica normal, não tendo a forma adotada desvantagens jurídicas ou uma importância diminuta.

A intenção preponderante ou exclusivamente fiscal e a falta de racionalidade económica cuja única explicação seja a de aforro fiscal resulta do facto de através da operação realizada pela impugnante os proveitos obtidos com a venda da G............ são distribuídos pelos acionistas sem que sejam tributados como rendimento de capitais, nos termos do art. 5.º, n.ºs 1 e 2, alínea h), do CIRS, uma vez que a venda das ações está isenta de IRS nos termos do art. 10.º, n.º 2, alínea a), do CIRS.

E não se diga que a impugnante foi constituída muitos anos antes e sem qualquer perspetiva da realização desta operação. Muito embora se admita que a impugnante não tenha sido constituída com o intuito de vir a realizar esta operação, o que é certo é que objectivamente esta operação foi realizada na sequência da realização dos proveitos obtidos com a venda da G............ e com o intuito de distribuir esses proveitos pelos acionistas da impugnante sem serem sujeitos a tributação e como objetivo evidente de obter este aforro fiscal.

Esta constatação do Tribunal é ainda sustentada na circunstância de as deliberações sociais que aprovaram esta operação terem sido votadas e aprovadas pelos acionistas que faziam parte da administração da impugnante e que são os seus beneficiários diretos.

Outra circunstância relevada pelo Tribunal foi o facto da falta de racionalidade económica desta operação. Com efeito, se a impugnante obteve proveitos com a venda da G............ e sendo uma SGPS, com os proveitos obtidos com a sua atividade o efeito económico normal seria ou o investimento noutras participações sociais, isto é, fazendo a aplicação dos proveitos obtidos no desenvolvimento da sua atividade e na prossecução do seu objeto social ou alternativamente na distribuição dos proveitos pelos seus acionistas.

Se a impugnante optasse por qualquer dessas soluções, que seria no fundo um motivo económico válido e plausível para a sua atividade social, não se colocaria a alegada questão do excesso de capitais próprios e do alegado motivo de aquisição de ações próprias para subsequente redução do capital social, para com isso poder justificar o desempenho financeiro à luz do método EVA. Para o tribunal, este foi um argumento artificial para justificar a operação realizada e não é um motivo económico plausível para realizar a operação em causa.

Outro facto ainda é que com a aquisição das ações próprias na proporção das participações sociais de cada um dos acionistas faz-se uma distribuição dos proveitos da venda da G............ exatamente na mesma proporção que se fosse aprovada a distribuição de dividendos.

Mais ainda. Não se diga, que se os acionistas vendessem as suas participações sociais na impugnante pelo valor comercial das ações à data em que foi aprovada a aquisição de ações próprias, os acionistas obteriam o mesmo proveito sem a tributação de IRS porque a mais-valia proveniente da alienação dessas ações sempre estaria isenta de IRS, nos termos do art. 10.º, n.º 2, alínea a), do CIRS.

Neste caso, essa venda corresponderia a uma venda efetiva porque os accionistas deixariam de ter a qualidade de acionistas da impugnante. Ao invés, com a operação realizada os acionistas beneficiaram da distribuição dos proveitos obtidos com a venda da G............, na mesma proporção que a distribuição de dividendos, mas continuaram a manter a qualidade de acionistas da impugnante e na mesma proporção o que evidencia que aquela operação teve como fim económico efetivo a distribuição dos dividendos obtidos com a venda da G............ sem qualquer tributação em sede de IRS, proveitos que também já tinham sido excluídos de tributação em sede de IRC, uma vez que a mais-valia obtida com a venda da G............ não está sujeita a IRC por força do art. 32.º do EBF. ...”.

Como já ficou dito, a norma portuguesa adoptou uma forma intermédia no que respeita à verificação da motivação do sujeito passivo, sendo importante determinar quando e como é que o nível de relevo da motivação do contribuinte relativamente à realização de certa operação ultrapassa um nível admissível, de tal modo que leve a concluir pela verificação deste elemento, sendo ao aplicador do direito que compete o juízo subjectivo com vista a perceber se determinada conduta está finalisticamente direccionada para a obtenção de uma vantagem que deva ser reprovável pelo ordenamento jurídico, realidade que tem evoluído no sentido da objectivização do funcionamento destas normas, tendo presente que este elemento intelectual decorre do art. 38º nº 2 da LGT quando fala a lei em “actos ou negócios jurídico essencial ou principalmente dirigidos”, exigindo-se, para a respectiva verificação, como prescreve o artigo 63.º, n.º 3, alínea b) do CPPT, que se ateste se o contribuinte “pretende um acto, negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionaram”, análise que racionaliza a aplicação do mecanismo da CGAA, não se bastando o legislador com a mera obtenção de um resultado que é fiscalmente vantajoso, não promovendo uma aplicação automática desta norma, como acontece noutros ordenamentos.

Deste modo, ponderando a argumentação aduzida pelo Tribunal a quo não se pode assim deixar de concluir pelo preenchimento do elemento intelectual, pois que a motivação fiscal abrange qualquer conduta ou comportamento (humano) que seja finalisticamente direccionado à obtenção de uma vantagem de cariz tributário, pressupondo a predeterminação da actuação do sujeito, sendo que a realidade posta em evidência na decisão recorrida denuncia o comportamento fiscalmente motivado no que respeita aos procedimentos adoptados, que prevalece, de forma clara, sobre a finalidade económica, verificando-se que nos casos de elisão fiscal, a finalidade económica do negócio é desvalorizada pelo sujeito passivo, enfatizando-se substancialmente o seu propósito fiscal, enquanto razão decisiva para a sua realização.

Nesta sequência, diga-se que a sentença recorrida prosseguiu a sua análise quanto aos restantes pressupostos de que depende a subsunção da situação em apreço à disposição antiabuso a que alude o art. 38º nº 2 da LGT, referindo que:

“…

A operação utilizou um meio artificial. A aquisição de ações próprias e a posterior redução do capital social, para alegadamente diminuir o valor dos capitais próprios provenientes dos proveitos realizados coma venda da G............, são negócios e atos inúteis para a prossecução da impugnante. Com efeito, a impugnante podia aplicar esses proveitos no desenvolvimento da sua atividade, tanto mais que é uma SGPS, ou então distribuir os proveitos pelos seus acionistas, que seriam o destino económico mais plausível dos proveitos e que representaria uma racionalidade económica normal da aplicação de resultados e de desenvolvimento da sua atividade económica normal.

A operação realizada - a aquisição de ações próprias e a redução do capital social - são atos inúteis ou desnecessários a prossecução do objeto social da impugnante, a menos que se insira no propósito de distribuir os rendimentos obtidos com a sua atividade comercial pelos acionistas, sem tributação dos respetivos rendimentos.

A impugnante realiza a operação com abuso da forma jurídica. Na verdade a impugnante usa inadequadamente a aquisição de ações próprias e a redução do capital social para dessa forma iludir o sistema tributário e fazer chegar aos seus acionistas (que são administradores da impugnante e que aprovaram eles próprios as deliberações sociais) os proveitos realizados que deveriam ser distribuídos através da aprovação da distribuição de dividendos, que seria a forma adequada de distribuir os resultados.

Com esta forma inadequada de distribuir os proveitos da sua atividade, a impugnante e os seus acionistas alcançam, substancialmente, do ponto de vista económico, o mesmo resultado que obteriam se tivessem optado pela aprovação em assembleia geral da distribuição de dividendos, que seria a forma a adequada de distribuir os lucros obtidos com a venda da G............ pelos acionistas da impugnante.

As desvantagens jurídicas da forma adotada - a aquisição de ações próprias e a redução do capital social - não tem qualquer importância, sobretudo quando comparada com as vantagens fiscais obtidas com a operação realizada que permite a distribuição encapotada de dividendos sem a respetiva tributação.

Por isso, entendemos que estão verificados todos os pressupostos para a aplicação da CGAA prevista no art. 38.º, n.º 2, da LGT, à operação realizada pela impugnante através da qual com a referida aquisição de ações próprias e subsequente redução do capital social, exatamente na mesma proporção da participação social de cada um dos acionistas, a impugnante conseguiu obter do ponto de vista económico o mesmo resultado que se tivesse aprovado a distribuição de dividendos do exercício em que realizou os proveitos com a venda da G............ e com a vantagem fiscal de não tributar essa distribuição de rendimentos uma vez que a forma utilizada - a aquisição de ações aos acionistas - permitiu que essa aquisição estivesse isenta de IRS por força do art. 10.º, n.º 2, alínea a), do CIRS, sendo beneficiários diretos dessa operação os próprios acionistas que aprovaram as deliberações sociais e que são parte da administração da impugnante.

A operação em causa também não configura uma simulação, porque a operação realizada foi a operação efetivamente pretendida e desejada pelas partes, só que foi realizada com o intuito de eliminar a tributação em sede de IRS, evitando a tributação em sede de IRS por distribuição de dividendos, criando uma operação económica que permite obter o mesmo efeito económico, mas socorrendo-se da utilização duma forma jurídica desadequada ao fim económico pretendido. Com a operação realizada, a impugnante transformou dividendos sujeitos a tributação em mais-valias não tributadas. …”.

Em suma, a Recorrente através da alienação da G............ viu consideravelmente aumentados os seus capitais próprios e dispunha de lucros para distribuir, tendo optado por realizar a operação de aquisição de acções próprias e a redução do capital social, as quais, como já ficou dito, são totalmente desprovidas de racionalidade económica, delas não resultando qualquer vantagem, fiscal ou extra fiscal, para a sociedade e produzindo efeitos somente na esfera dos accionistas, ou seja, a operação de aquisição de acções próprias e a redução do capital social teve como único e exclusivo fim beneficiar os seus accionistas, sendo que, perante o excesso de capital e a existência de lucros por distribuir, a Recorrente entendeu por bem reduzir o capital, fazendo uso das possibilidades que lhes são conferidas pelo CSC de forma abusiva, já que o objectivo económico prosseguido não foi o societário mas tão só objectivos individuais dos accionistas, ficando por demonstrar a prossecução de qualquer objectivo económico-societário legítimo.

Assim, quanto ao elemento normativo que pretende distinguir, no âmbito do próprio direito, a elisão fiscal da poupança fiscal legítima, tal decorre da necessidade de que o resultado da análise dos factos seja conciliado com os princípios e valores do ordenamento jurídico, só assim se podendo atestar e concluir pela reprovação do resultado ou vantagem fiscal obtida, em face do ordenamento jurídico-tributário, permitindo a exclusão da aplicação da CGAA do conjunto de casos que comportam actos ou negócios jurídicos que, não obstante serem levados a cabo por motivos predominantemente fiscais, não ofendem a norma, o código ou os princípios do ordenamento jurídico-fiscal.

Exige-se que o resultado fiscal obtido seja antijurídico, querendo isto significar que a desconsideração dos actos e negócios praticados apenas ocorra quando seja demonstrado que o efeito fiscal obtido é merecedor de um juízo de reprovação pelo direito.

No que diz respeito ao elemento meio, está em causa a via que é utilizada para alcançar a vantagem ou ganho fiscal, sendo que os actos ou negócios em causa podem surgir de modo isolado ou integrados numa sequência lógica de actos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas que se dirigem à obtenção de uma vantagem fiscal.

Tendo presente o que ficou dito sobre a dinâmica e alcance de todo a situação descrita nos autos, só pode entender-se que a AT tenha concluído pela artificialidade da situação, mormente em função do seu significado para a sociedade em contraponto com os interesses individuais dos accionistas, não se retirando desta análise a prossecução de qualquer objectivo económico-societário legítimo, o que nos remete para o campo de actuação da cláusula geral anti-abuso, na medida em que, não havendo motivos económicos válidos a justificar o recurso a configurações jurídicas anómalas, nos encontramos no domínio da elisão e já não da economia de opção, de modo que, perante realidade apurada nos autos, é manifesto que a decisão recorrida andou bem na ponderação da situação em apreço, o que impõe a conclusão de que a aplicação da CGAA prevista no art. 38º nº 2 da LGT não padece de qualquer ilegalidade.

Finalmente, cabe notar que a Recorrente, quer em relação à conclusão de que a interpretação que assegura a efectividade do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT é, assim, aquela que está subjacente à posição da AT, no sentido de que, sempre que a aplicação da CGAA resulte na desconsideração de uma construção que resulte na não aplicação de uma retenção na fonte a título definitivo, e pese embora o facto de a vantagem fiscal se produzir na esfera do beneficiário, é o substituto quem, em primeira linha, responde por essa obrigação tributária, sempre que a vantagem que o terceiro obtém resulte de uma operação praticada por ele, que levou à não retenção na fonte do imposto que agora (por efeito da desconsideração daquela construção) se pretende liquidar e cobrar e bem assim no que concerne ao entendimento de que a aplicação, in casu, da CGAA prevista no art. 38º nº 2 da LGT não padece de qualquer ilegalidade, defende, em qualquer das situações, que o Tribunal se afaste desse tipo de apreciação, recusando a aplicação da norma apontada, nas duas vertentes assinaladas, por a mesma padecer de inconstitucionalidade material, violando os princípios constitucionais da liberdade económica, previsto no artigo 61.º da CRP, da segurança jurídica, na sua expressão de princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito democrático consagrada no artigo 2.º da CRP, da legalidade fiscal, em particular na sua dimensão de princípio da tipicidade, previsto no n.º 2 do artigo 103.º, no artigo 104.º e na al. i) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, da capacidade contributiva (e da tributação da empresa de acordo com o rendimento real enquanto manifestação desse princípio - art. 104º nº 2 da C.R.P.), o qual, por sua vez, concretiza em matéria de impostos o princípio da igualdade, constante do artigo 13.º da CRP, da proporcionalidade e da propriedade, dispostos no artigo 18.º, n.º 1 e no artigo 62º da CRP.

Como é sabido, a liberdade de iniciativa privada tem um duplo sentido, com referência à capacidade de iniciar uma actividade económica (direito à empresa, liberdade de criação de empresa) e, por outro lado, na liberdade de gestão e actividade da empresa (liberdade de empresa, liberdade de empresário).

Por seu lado, o princípio da legalidade encontra-se definido no art. 103º nº 2 e art.165º nº 1, alínea i), da CRP, prevendo a exigência de criação dos impostos através de um acto de órgão com maior representatividade popular, assim, a Assembleia da República, sendo que o princípio da tipicidade, em matéria tributária decorre dos diversos elementos que compõem a obrigação fiscal se encontrarem tipificados, por consequência do princípio da legalidade e, por isso, têm que ser definidos por lei e de acordo com a Constituição.

O princípio da segurança jurídica está relacionado com a capacidade de ter presente o quadro normativo em sede de tributação, não sendo permitida a cobrança de impostos quando estes tenham por base a aplicação de cláusulas gerais, quando estas coloquem em causa a segurança jurídica.

Diga-se ainda que o tributo deve ser repartido na medida da capacidade que cada um mostre para o suportar: aos contribuintes com uma força económica maior deve corresponder um imposto maior, a contribuintes com menor força económica deve corresponder imposto mais pequeno, sendo que esta exigência de a tributação se encontrar em conformidade com a capacidade contributiva é apenas uma expressão clara do princípio da igualdade tributária, sendo que é ao legislador que é atribuída a tarefa de estabelecer a medida dessa capacidade que deve ser exigida em cada imposto, considerando que este princípio decorre directamente do princípio da igualdade.

A partir deste breve apontamento sobre os princípios a que alude a Recorrente, temos por adquirido que a decisão recorrida não merece qualquer censura, quando refere que:

“…

A impugnante não tem razão quando alega que no caso concreto a administração tributária está a interpretar o art. 38.º, n.º 2, da LGT com o sentido de que se trata de uma espécie de tipo legal aberto ou de sobreposição que permite a tributação de factos ou realidades que a ordem jurídica não pretendeu tributar, assim conduzindo a uma sorte de aplicação analógica das normas tributárias.

Na verdade, a interpretação que a administração tributária faz desta norma é uma interpretação típica da CGAA aproximando do seu elemento substancial: a prevalência da substância sob a forma.

A administração tributária tendo considerado que as deliberações de aquisição de acções próprias e de redução do capital social visaram alcançar a distribuição dos proveitos obtidos com a alienação da G............ pelos acionistas da impugnante sem serem tributados em sede de IRS pela distribuição de dividendos da impugnante, entendeu que era de aplicar a CGAA do art. 38.º, n.º 2, da LGT, para desconsiderar fiscalmente esse negócio e fê-lo dentro dos limites de interpretação dessa disposição legal.

Com a CGAA “o que se procura resolver é o problema da contradição potencial entre a forma jurídica e o resultado jurídico dos contratos e negócios jurídicos, por que se podem prosseguir caminhos diversos para encontrar resultados (efeitos jurídicos) que são economicamente equivalentes. Caso se prove que foram realizados com o fim exclusivo de redução da carga tributária e de forma abusiva, poderão ser objeto de desconsideração legal, tributando-se o negócio que seria realizado se não se tivesse procurado contornar uma norma fiscal. Não está – nem pode estar – em causa a liberdade de escolha do contribuinte na conformação dos seus negócios, i.e., não está em causa o exercício da sua autonomia privada: o que se limita é a possibilidade de a vontade do contribuinte ser relevante no que respeita ao grau da sua oneração fiscal. O fim que preside à introdução de regras sobre a fraude à lei fiscal no ordenamento jurídico tributário (…) é, sobretudo, o de encontrar uma solução que concilie a liberdade do contribuinte para escolher a conformação dos seus negócios jurídicos numa área extra-fiscal e as consequências fiscais desses mesmos negócios. Quer dizer, a procura de uma regra de concorrência para as relações existentes entre o Direito Fiscal·- cujas consequências não podem depender da vontade do sujeito passivo – e o princípio da liberdade jurídica de conformação negocial – a autonomia privada, que constitui uma regra básica no Direito Civil e tem de ser respeitada pelo Direito Fiscal ” (J.L. Saldanha Sanches, Manuel de Direito Fiscal, 3.ª Edição, 2007, Coimbra Editora, págs. 155 e 156).

No caso sub judice a administração tributária ao desconsiderar o negócio declarado pela impugnante e ao tributá-lo como rendimentos da categoria E do CIRS como lucros colocados à disposição dos acionistas da impugnante pelo valor equivalente aos proveitos obtidos com a venda da G............ está a subsumir os factos apurados no RIT e a fazer uma interpretação real e legal dos factos apurados. Isto é, a administração tributária está a corrigir os defeitos fiscais do negócio e declaração apresentados pela impugnante, por forma a fazê-la coincidir com a realidade dos factos: apesar da impugnante ter realizado uma aquisição de ações próprias para de seguida reduzir o seu capital social, na realidade o que a impugnante e os seus acionistas – que são no fundo quem define e definiu a sua vontade – pretendiam era distribuir os proveitos obtidos com a venda da G............ pelos acionistas sem que estes fossem tributados em sede de IRS pela distribuição desse rendimento.

Esta interpretação ao corrigir a realidade declarada e ao conformá-la com a realidade material e com a realidade jurídica, isto é, com a realidade fáctica e substancialidade material do negócio subjacente ao negócio declarado, atendendo à prevalência substância sob a forma do negócio, não está a fazer qualquer interpretação do art. 38.º, n.º 2, da LGT como uma espécie de tipo legal aberto ou de sobreposição que permite a tributação de factos ou realidades que a ordem jurídica não pretendeu tributar, assim conduzindo a uma sorte de aplicação analógica das normas tributárias.

Com efeito, esta interpretação permite a tributação que a própria lei prevê no art. 5.º, n.º 2, alínea h), do CIRS, que obriga a impugnante a realizar a retenção na fonte à taxa liberatória de 20%, nos termos do art. 71.º, n.º 3, alínea c), do CIRS.

Logo, inexiste qualquer interpretação como uma espécie de tipo legal aberto ou de sobreposição que permite a tributação de factos ou realidades que a ordem jurídica não pretendeu tributar, nem qualquer espécie de aplicação analógica das normas tributárias.

Além disso, a impugnante não tem razão quando alega que a interpretação do art. 38.º, n.º 2, da LGT realizada pela administração tributária com o sentido de que se trata de uma norma que admite apenas uma via fiscalmente aceitável para cada objetivo económico-jurídico prosseguido pelo contribuinte, que é a fiscalmente mais onerosa (e, por conseguinte, restringe ou suprime a liberdade de utilização de direitos e prerrogativas de natureza fiscal conferidos pela ordem jurídica), consubstancia uma interpretação materialmente inconstitucional porque viola o princípio constitucional da liberdade económica, previsto no art. 61.º da CRP.

Como se disse, a administração tributária ao corrigir os efeitos fiscais do negócio declarado pela impugnante e ao conformar o negócio declarado, com a realidade material e jurídica subjacente, fazendo-o coincidir com o negócio corrigido que respeita a realidade material e económica subjacente ao negócio declarado não está qualquer interpretação limitativa do princípio constitucional da liberdade económica da impugnante.

Aqui não pode deixar de invocar-se o douto acórdão do Venerando Tribunal Central Administrativo Sul, citado pela Fazenda Pública, que aprecia questão idêntica e que concluiu que “Assim, não estando, nem podendo estar em causa a liberdade de escolha do contribuinte na conformação dos seus negócios, ou, dito de outro modo, não estando em causa o exercício da sua autonomia privada, o que se limita é a possibilidade de a vontade do contribuinte ser relevante no que respeita ao grau da sua oneração fiscal, pelo que a interpretação da norma constante do art°.38, n°.2, da L. G. Tributária, produzida pela A. Fiscal e sufragada por este Tribunal nos sobreditos termos é conforme com a Constituição.“ (Acórdão do Venerando Tribunal Central Administrativo Sul, de 15/02/2011, processo n.º 04255/10, disponível em www.dgsi.pt).

Com efeito, a correção dos efeitos fiscais do negócio jurídico realizada nos termos do art. 38.º, n.º 2, da LGT, não consubstancia qualquer interpretação limitativa do princípio constitucional da liberdade económica da impugnante ou dos sujeitos passivos.

A interpretação do art. 38.º, n.º 2, da LGT realizada pela Autoridade Tributária e Aduaneira também não representa qualquer clara ofensa do princípio constitucional da segurança jurídica, na sua expressão de princípio da proteção da confiança, ínsito na ideia do Estado de Direito democrático consagrado no art. 2.º da CRP.

Esta questão reconduz-se sempre à questão essencial da reposição da verdade material. A interpretação realizada pela administração tributária reconduz-se sempre à prevalência da substância sob a forma. A administração tributária interpreta o art. 38.º, n.º 2, da LGT, por forma a poder corrigir os efeitos fiscais do negócio declarado – o negócio formal realizado pelas partes - fazendo-o coincidir com a realidade substantiva, material e económica subjacente ao negócio. Ou seja, a administração tributária corrige os efeitos fiscais do negócio declarado e tributa-o de acordo com os efeitos fiscais próprios correspondentes aos efeitos económicos subjacentes ao negócio declarado, já que o negócio real, efetivo, não é o negócio declarado, mas o negócio correspondente aos efeitos económicos efetivos pretendidos pelas partes.

A interpretação realizada pela administração tributária que corrige o negócio declarado, fazendo-o coincidir com a realidade material e económica subjacente ao negócio, que repõe a verdade e a correspondência entre realidade material e a realidade jurídica não pode configurar qualquer interpretação materialmente inconstitucional por violação do princípio constitucional da segurança jurídica, na sua expressão de princípio da proteção da confiança, ínsito na ideia do Estado de Direito democrático consagrado no art. 2.º da CRP ou de qualquer outro princípio constitucional. …”.

Na verdade, tendo presente a essência da realidade em equação nos autos, temos que a AT, ao corrigir os efeitos fiscais do negócio declarado pela Recorrente e ao conformar o negócio declarado, com a realidade material e jurídica subjacente, fazendo-o coincidir com o negócio corrigido que respeita a realidade material e económica subjacente ao negócio declarado não coloca em crise o princípio constitucional da liberdade económica, pois limita-se a definir o alcance efectivo da realidade substantiva, material e económica subjacente ao negócio, situação que também não belisca o princípio da segurança jurídica, na sua dimensão de protecção da confiança e, ao contrário do que defende a Recorrente, dá plena expressão ao princípio da capacidade contributiva (e da tributação da empresa de acordo com o rendimento real enquanto manifestação desse princípio - art. 104º nº 2 da C.R.P.) e salvaguarda o princípio da igualdade, impondo-se ainda referir, quanto ao primeiro elemento descrito, se é verdade que a CGAA visa neutralizar financeiramente uma vantagem tributária indevida, e, por isso, o seu destinatário é quem dela beneficia (sendo, nestes casos, esses beneficiários os sócios), tal não significa que, o princípio da praticabilidade associado aos princípios da igualdade tributária e da racionalidade não imponham que nestes casos em que está subjacente à aplicação da CGAA uma relação jurídica de substituição fiscal total, com retenção na fonte a título definitivo, não devam também aplicar-se as regras da substituição tributária em geral e, de acordo com estas regras, aquele que esteja legalmente obrigado à liquidação em substituição e não o faça, se tiver conhecimento (ou devesse ter) da construção que se substituiu a esta obrigação de retenção na fonte a título definitivo, será o responsável originário pelas quantias que devia ter retido e não reteve, o que significa que, neste ponto, não pode conceder-se abrigo ao exposto quanto à violação dos princípios da proporcionalidade e do direito à propriedade, o que afasta qualquer virtualidade ao exposto pela Recorrente, em qualquer das situações, apontadas, o que implica, nesta altura, a total improcedência do presente recurso.

Nos termos do n.º 7 do art. 6.º do RCP, «[n]as causas de valor superior a (euro) 275.000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento».
Mais tem vindo a considerar a jurisprudência constitucional que «os critérios de cálculo da taxa de justiça, integrando normação que condiciona o exercício do direito fundamental de acesso à justiça (art. 20.º da Constituição), constituem, pois, a essa luz, zona constitucionalmente sensível, sujeita, por isso, a parâmetros de conformação material que garantam um mínimo de proporcionalidade entre o valor cobrado ao cidadão que recorre ao sistema público de administração da justiça e o custo/utilidade do serviço que efectivamente lhe foi prestado (artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da mesma Lei Fundamental), de modo a impedir a adopção de soluções de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito».
É certo que o juízo de proporcionalidade entre a taxa cobrada e o valor do serviço prestado se apresenta como problemático, pois envolve a ponderação de diversas variáveis, nem todas objectivas. Mas nem por isso o tribunal se pode eximir do mesmo.
Assim, aplicando a referida interpretação normativa ao caso dos autos, ponderada a tramitação dos autos e o comportamento processual da ora Recorrente, mas também o elevado valor da causa (mais de 8 milhões de euros) e a utilidade económica dos interesses a ela associados, a complexidade da questões submetidas a juízo - que se situa na média -, considera-se adequado dispensar a Recorrente e Recorrida do pagamento de 90% do remanescente da taxa de justiça, na parte que corresponderia ao excesso sobre o valor tributário de € 275.000, apenas sendo, deste modo, a pagar, para além do inicialmente devido, o valor de 10% do dito remanescente, neste Supremo Tribunal Administrativo.
Note-se, finalmente e justificando a dispensa parcial, que a norma do citado n.º 7 do art. 6.º do RCP, referindo apenas a dispensa, deve ser interpretada no sentido de ao juiz ser lícito dispensar o pagamento, quer da totalidade, quer de uma fracção ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida pelo facto de o valor da causa exceder o patamar de € 275.000, consoante o resultado da ponderação das especificidades da situação, feita à luz dos princípios da proporcionalidade e da igualdade.


4. DECISÃO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em negar provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Recorrente, mantendo-se a decisão judicial recorrida.

Custas pela Recorrente, com dispensa de ambas as partes do pagamento de 90% do remanescente da taxa de justiça, pelo montante superior a € 275.000.

Notifique-se. D.N..




Lisboa, 16 de Fevereiro de 2022. – Pedro Nuno Pinto Vergueiro (relator) - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos.