Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0524/14
Data do Acordão:05/17/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:MAGISTRADO JUDICIAL
REDUÇÃO REMUNERATÓRIA
ESTATUTO
Sumário:I - O artigo 32º-A, nº1, aditado ao Estatuto dos Magistrados Judiciais pela Lei do Orçamento de Estado de 2011, porque de natureza «transitória» e de vigência «plurianual», não viola a «unicidade de estatuto»;
II - Atenta essa natureza e vigência temporária, bem como as razões e contexto que a ditaram, a «redução remuneratória» feita ao vencimento dos magistrados judiciais não viola o princípio da «independência dos juízes».
Nº Convencional:JSTA000P23296
Nº do Documento:SA1201805170524
Data de Entrada:05/12/2014
Recorrente:ASSOCIAÇÃO SINDICAL DOS JUÍZES PORTUGUESES
Recorrido 1:TRIBUNAL DE CONTAS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório
1. A ASSOCIAÇÃO SINDICAL DOS JUÍZES PORTUGUESES [ASJP] - com sede no Edifício ARCIS, rua Ivone Silva, número 6, lote 4, 19º direito, Lisboa - intenta a presente acção administrativa especial [AAE] em representação dos «seus associados» Juízes Conselheiros do Tribunal de Contas – A………………, B………………, C…………….. D……………., E……………., e F……………….. - contra o TRIBUNAL DE CONTAS [TC], formulando os seguintes pedidos:

a) Anulação dos actos administrativos de «processamento de vencimentos» dos representados pela ora autora, referentes ao mês de Janeiro de 2013, e todos os subsequentes efectuados ao «abrigo do artigo 19º da LOE/2011, mantido em vigor pelos artigos 20º da LOE/2012, e 27º da LOE/2013, e 32º-A do Estatuto dos Magistrados Judiciais [EMJ];

b) Condenação do réu a restituir as diferenças remuneratórias que lhes foram retidas ao abrigo da redução remuneratória plasmada nesse preceito legal, acrescidas de juros moratórios, à taxa legal, vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento;

c) Declaração de que os representados pela autora têm direito a auferir o seu vencimento sem essa redução remuneratória.

Como causa destes pedidos, invoca a «ilegalidade» dos actos impugnados, que deverão ser «anulados» [artigo 135º do CPA], uma vez que as normas legais que eles aplicam [artigo 27º da Lei nº66-B/2012, de 31.12, que prolongou a vigência do artigo 19º da Lei nº55-A/2010, de 31.12, e 32º-A do EMJ, aditado por esta última] são inconstitucionais por violação da «unicidade estatutária do EMJ» [aprovado pela Lei nº21/1985, de 30.07], e ainda por violação do «princípio da independência dos juízes» [artigos 203º da CRP, 19º nº1 do TUE, 47º da CDFUE].

2. O demandado TC juntou contestação, limitando-se a oferecer o merecimento dos autos.

3. Enviado o processo a este Supremo Tribunal - pelo TAC Lisboa, onde a acção começou por ser proposta, e que se julgou incompetente em razão da hierarquia - foi ordenada a notificação das partes para alegações [artigo 91º, nº4 e nº6, do CPTA na versão aplicável].

4. Apenas a autora - ASJP - juntou alegações, que concluiu assim:

1. O artigo 32º-A, aditado ao EMJ pela LOE/2011, no sentido de permitir a redução das remunerações dos Magistrados Judiciais, é uma norma temporária, nos termos e para os efeitos do artigo 7º, nº1, do CC, e, como tal, apenas vigorou no ano de 2011, apenas se admitindo a prorrogação da sua vigência se tivesse sido determinada por novos preceitos da LOE/2012 e da LOE/2013, o que não aconteceu;

2. Tendo em conta a jurisprudência do Tribunal Constitucional, plasmada no AC nº620/2007, de 14.01.2008, a unicidade estatutária de que gozam os Juízes impõe ter de existir uma alteração estatutária expressa pela AR, em sede da sua reserva absoluta, para que o seu regime, onde se inclui o regime remuneratório, possa ser alterado, o que não sucedeu no caso, pois não houve alteração por parte da AR - artigo 164º, alínea m), da CRP;

3. Qualquer interpretação que seja contrária a este entendimento, no sentido de ser entendido que as remunerações dos Juízes do Tribunal de Contas podem ser reduzidas com fundamento no artigo 27º da LOE/2013, está ferida de inconstitucionalidade por violação dos artigos 202º e seguintes da CRP, e, por isso, são ilegais os actos administrativos impugnados por se basearem em interpretação inconstitucional da lei;

4. A redução efectuada é ainda inconstitucional por violação do princípio da independência dos juízes, previsto no artigo 203º da CRP, na medida em que não pode confundir-se o Estatuto jurídico dos magistrados [que compreende um conjunto de deveres, de incompatibilidades, de direitos e regalias, incluindo remuneração e sistema adequado de protecção social] com a normação estatutária que caracteriza a situação dos funcionários públicos em geral;

5. Na medida em que a Carta Europeia sobre o Estatuto dos Juízes, tal como os demais direitos e deveres, aponta a estabilidade da remuneração como condição de garantia da independência e da inamovibilidade [ver ponto 6 da Carta Europeia sobre o Estatuto dos Juízes], a ideia da precaridade da normação estatutária relativa aos funcionários públicos em geral não poderá transpor-se, sem mais, para o Estatuto dos Magistrados Judiciais, de modo que possam por em causa princípios da independência, inamovibilidade e irresponsabilidade que constituem garantias da actividade judicial;

6. Ideia que é acentuada no Relatório de 2010 sobre a Eficiência e a Qualidade da Justiça nos sistemas judiciais europeus, da Comissão Europeia, para a Eficiência da Justiça, referindo-se a propósito da independência da Justiça e Estatuto dos Juízes, que a retribuição dos juízes deve estar de acordo com o seu estatuto e as suas responsabilidades e que a tendência europeia tem sido de aumento significativo em relação ao salário médio do país, mesmo levando em linha de conta as disparidades importantes entre os vários países e o impacto da actual crise económica e financeira [página 322], o que não se tem verificado em Portugal, onde se assiste nestes últimos oito anos à estagnação e mesmo retrocesso do valor relativo das remunerações dos juízes portugueses, como se assinala claramente nos gráficos comparativos de folhas 232 a 234 do referido Relatório;

7. O sistema de redução das remunerações do sector público que é adoptado pela LOE/2011 e mantido pela LOE/2012 e LOE/2013, diminui a diferença inerente à especificidade funcional e estatutária dos juízes e acentua a dita depreciação em relação à média do país, contrariando a orientação e tendência europeia;

8. Entendendo-se, hipótese que apenas se coloca sem conceder, que o artigo 32º-A do EMJ não é uma norma temporária, e, por isso, não caducou, determinará que todos os anos, no OE, o sistema retributivo dos juízes passará a estar flutuante, o que constitui uma violação do direito à estabilidade remuneratória dos juízes, consagrado constitucionalmente pelo artigo 203º CRP, como corolário da independência judicial, e também de textos internacionais, e, nomeadamente do artigo 13º do Estatuto Universal do Juiz e princípio III, designadamente, da Recomendação R(94) 12 do Conselho da Europa e da Recomendação aprovada em 17.11.2010.

5. A tramitação ulterior deste processo esteve suspensa, à espera da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia [TJUE] sobre reenvio prejudicial que, acerca da mesma questão, havia sido provocado no «processo nº67/15» desta Secção, entre as mesmas partes, e sob a mesma titularidade.

6. O Ministério Público não se pronunciou [artigo 146º, nº1, do CPTA].

7. Colhidos que foram os «vistos» legais, importa apreciar e decidir a acção.

II. De Facto

São os seguintes os factos articulados, provados, e pertinentes:

1- Os Juízes Conselheiros Dr. A………………, Dra. B……………, Dr. C…………….., Dr. D…………, Dr. E………….. e Dr. F…………., são associados da autora - ver documento de folha 23 dos autos;

2- A partir de Janeiro de 2013, inclusive, os seus vencimentos foram processados e pagos com a redução imposta pelo artigo 27º da Lei do Orçamento de Estado de 2013 - ver documentos de folhas 50 e 61 a 63 dos autos.

III. De Direito

1. Devidamente ponderado o conteúdo do articulado inicial da ASJP, bem como o das alegações por si apresentadas, são duas as questões que se colocam no âmbito desta acção administrativa:

A) Saber se os actos de processamento de vencimentos dos aqui representados da autora são ilegais, por se traduzirem na aplicação de norma inconstitucional por violar a unicidade do EMJ, ou por aplicarem uma norma «caducada»;

B) E, ainda, saber se o são por a «redução remuneratória» a que procedem violar o princípio da independência dos juízes.

No entender da autora, o artigo 32º-A, que foi aditado ao EMJ pela LOE/2011 [Lei nº55-A/2010, de 31.12] traduz-se numa «norma temporária» [ver artigo 7º, nº1, do CC], cuja vigência caducou com o termo da LOE/2011. Deste modo, proceder à «redução» das retribuições dos seus representados, ao seu abrigo, durante o ano de 2013, é ilegal, quer porque essa redução se baseia em norma não vigente quer porque, a sê-lo, será inconstitucional por violar a unicidade do EMJ. De qualquer modo, sempre a redução de vencimentos em causa será ilegal, por violadora do direito à estabilidade remuneratória que é corolário da «independência judicial» [203º da CRP, 19º, nº1, do Tratado da União Europeia (TUE), e 47º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE)].

2. Sublinhe-se, antes de prosseguir, que as medidas de redução remuneratória, tal como a ínsita no artigo 27º da LOE/2011, também aplicável aos juízes [ver o nº9 alínea f) desse artigo 27º e o artigo 32º-A do EMJ], foram justificadas, nos sucessivos relatórios do Orçamento de Estado do Ministério das Finanças e da Administração Pública [MFAP], por imperativos de consolidação orçamental, tendo em conta, sobretudo, a decisão do Conselho da União Europeia, de 02.12.2009, que exortou o Estado Português a reverter a sua situação de défice excessivo [Relatório do Orçamento de Estado de 2011, Ministério das Finanças e da Administração Pública, disponível em www.portugal.gov.pt, página 26], e foi-lhes atribuído, sempre, carácter transitório.

E, em 09.10.2012, foi recomendado ao Estado Português que corrigisse o défice excessivo até 2014, o mais tardar [Recomendação do Conselho de 18.06.2013, seus considerandos 5 e 6].

Num tal contexto, de correcção de défice excessivo - disciplinado e monitorado pelas «instituições europeias» -, seguido de assistência financeira - concedida e regulada por actos jurídicos europeus - é difícil recusar que as medidas económicas e financeiras tomadas, nomeadamente a contenção da despesa concretizada na redução dos vencimentos dos representados da autora desta acção, o foram no quadro do direito da EU. No mínimo, podemos concluir pela sua origem também europeia.

Daí que, no âmbito da questão B), supra enunciada, uma vez que era invocada, também, a violação dos «artigos 19º, nº1, do TUE, e 47º da CDFUE», se tenha atendido o pedido de reenvio prejudicial formulado pela autora, que deu origem, como dissemos, ao acórdão do TJUE cuja cópia se encontra a folhas 161 a 174 destes autos.

3. Ainda antes de prosseguir, vejamos o teor das normas legais em causa, e seu respectivo encadeamento.

A Lei nº55-A/2010, de 31.12, que aprovou o «Orçamento do Estado para 2011» [LOE/2011], no seu capítulo III, sobre «Disposições relativas a trabalhadores do sector público», Secção I, sob epígrafe de «Disposições remuneratórias», diz o seguinte:


Artigo 19º

Redução remuneratória


1. A 1 de Janeiro de 2011 são reduzidas as remunerações totais ilíquidas mensais das pessoas a que se refere o nº9, de valor superior a 1500€, quer estejam em exercício de funções naquela data, quer iniciem tal exercício, a qualquer título, depois dela, nos seguintes termos:

[…]

9. O disposto no presente artigo é aplicável aos titulares dos cargos e demais pessoal de seguida identificado:

[…]

f) Os juízes do Tribunal Constitucional e juízes do Tribunal de Contas, o Procurador-Geral da República, bem como os magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público e juízes da jurisdição administrativa e fiscal e dos julgados de paz;

[…]

11. O regime fixado no presente artigo tem natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excepcionais em contrário, e sobre instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos.

[…]


Artigo 20º

Alteração à Lei nº21/85, de 30 de Julho


É aditado ao Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei nº21/85, de 30 de Julho, o artigo 32º-A, com a seguinte redacção:

Artigo 32º-A

Redução remuneratória


1- As componentes do sistema retributivo dos magistrados, previstas no artigo 22º, são reduzidas nos termos da lei do Orçamento do Estado.

2- Os subsídios de fixação e de compensação previstos nos artigos 24º e 29º, respectivamente, equiparados para todos os efeitos legais a ajudas de custo, são reduzidos em 20%.

[…]

A Lei nº64-B/2011, de 30.12, que aprovou o «Orçamento do Estado para 2012» [LOE/2012], no seu capítulo III, sobre «Disposições relativas a trabalhadores do sector público», Secção I, sob epígrafe de «Disposições remuneratórias», diz o seguinte:


Artigo 20º

Contenção da despesa


1- Durante o ano de 2012 mantêm-se em vigor os artigos 19º […] da Lei nº55-A/2010, de 31.12, alterada pelas Leis nºs 48/2011, de 26.08, e 60-A/2011, de 30.11 […]

[…]

16. O regime fixado no presente artigo tem natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excepcionais em contrário, e sobre instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos.

[…]

A Lei nº66-B/2012, de 31.12, que aprovou o «Orçamento do Estado para 2013» [LOE/2013], no seu capítulo III, sobre «Disposições relativas a trabalhadores do sector público, aquisição de serviços, protecção social e aposentação ou reforma», Secção I, sob epígrafe de «Disposições remuneratórias», diz o seguinte:


Artigo 27º

Redução remuneratória


1. A partir de Janeiro de 2013 mantêm-se a redução das remunerações totais ilíquidas mensais das pessoas a que se refere o nº9, de valor superior a 1500€, quer estejam em exercício de funções naquela data quer iniciem tal exercício, a qualquer título, depois dela, conforme determinado no artigo 19º da Lei nº55-A/2010, de 31.12, alterada pelas Leis nºs 48/2011, de 26.08, e 60-A/2011, de 30.11, e mantido em vigor pelo nº1 do artigo 20º da Lei nº64-B/2011, de 30.12, alterada pela Lei nº20/2012, de 14.05, nos seguintes termos:

[…]

9. O disposto no presente artigo é aplicável aos titulares dos cargos e demais pessoal de seguida identificado:

[…]

f) Os juízes do Tribunal Constitucional e juízes do Tribunal de Contas, o Procurador-Geral da República, bem como os magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público e juízes da jurisdição administrativa e fiscal e dos julgados de paz;

[…]

15. […] o regime fixado no presente artigo tem natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excepcionais em contrário, e sobre instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos.

[…]

Acrescentemos ainda, para maior elucidação, o teor dos artigos do Estatuto dos Magistrados Judiciais [EMJ] - aprovado pela Lei nº21/85, de 30 de Julho - que são referidos no artigo 32º-A que lhe foi aditado pelo artigo 20º da LOE/2011:


Artigo 22º

Componentes do sistema retributivo


1- O sistema retributivo dos magistrados judiciais é composto por: a) Remuneração base; b) Suplementos.

2- Não é permitida a atribuição de qualquer tipo de abono que não se enquadre nas componentes remuneratórias referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no artigo 25º [este artigo diz respeito a «despesas de representação»].


Artigo 24º

Subsídio de fixação


Ouvido o Conselho Superior da Magistratura e as organizações representativas dos magistrados, o Ministro da Justiça pode determinar que seja atribuído um subsídio de fixação a magistrados judiciais que exerçam funções nas regiões autónomas e aí não disponham de casa própria.

[…]


Artigo 29º

Casa de habitação


1- Nas localidades onde se mostre necessário, o Ministério da Justiça, pelo Gabinete de Gestão Financeira, põe à disposição dos magistrados judiciais, durante o exercício da sua função, casa de habitação mobiliada, mediante o pagamento de uma contraprestação mensal, a fixar pelo Ministério da Justiça, de montante não superior a um décimo do total das respectivas remunerações.

2- Os magistrados que não disponham de casa ou habitação nos termos referidos no número anterior ou não a habitem, conforme o disposto no nº2 do artigo 8º, têm direito a um subsídio de compensação fixado pelo Ministro da Justiça, para todos os efeitos equiparado a ajudas de custo, ouvidos o Conselho Superior da Magistratura e as organizações representativas dos magistrados, tendo em conta os preços correntes no mercado local de habitação.

4. Citadas as respectivas «normas», nos seus segmentos pertinentes, importará deixar vincado o seguinte: - de acordo com o objecto da acção, consubstanciado na impugnação dos actos de processamento de vencimentos dos representados da autora, referentes ao mês de Janeiro de 2013, e todos os subsequentes, que foram efectuados ao abrigo do artigo 27º da LOE/2013, apenas está em causa, no que respeita ao artigo 32º-A do EMJ, aditado pelo artigo 20º da LOE/2011, o seu nº1, e não, também, o seu nº2. Esta delimitação, que, desde já, fica feita, não é de somenos importância como na sequência da exposição se adivinhará.

5. Como se constata das normas citadas, o artigo 19º da LOE/2011 operou uma redução nas remunerações, entre 3,5% e 10%, consoante o seu montante, de amplo universo de pessoas, identificadas no nº9 desse preceito. Genericamente são abrangidos todos quantos auferem retribuições mensais pagas por dinheiros públicos, superiores a 1500€, entre eles os titulares de órgãos de soberania, tal os juízes. E o artigo 20º do mesmo diploma, por sua vez, altera o EMJ mediante aditamento, a esse corpo normativo especial, do artigo 32º-A, segundo o qual, de acordo com o seu nº1, se determina a redução «nos termos da lei do Orçamento de Estado», das componentes retributivas [vencimento mensal e diuturnidades] previstas no artigo 22º desse estatuto, e se determina, de acordo com o seu nº2, a redução em 20% dos «subsídios de fixação e compensação» previstos nos artigos 24º e 29º do mesmo.

A autora, em representação dos seus referidos associados, não põe em causa a constitucionalidade ou a legalidade das «reduções remuneratórias» mantidas na LOE/2013, questão que, como é sabido, já obteve pronúncia negativa por parte do Tribunal Constitucional. O que ela questiona é a «constitucionalidade e/ou a legalidade» da aplicação dessa redução remuneratória aos juízes, por entender que o artigo 32º-A aditado ao EMJ pela LOE/2011 não foi renovado na LOE/2013.

Ora, subjaz à sua alegação que se este aditado artigo tiver vigência «temporal», isto é, limitada à vigência da lei orçamental que o aditou, a partir de Janeiro de 2013 [de acordo com o objecto da acção] já tinha caducado. E, se lhe for negada a vigência temporal, ou seja, se for considerado norma de «génese orçamental» mas sem «natureza orçamental», configurará, então, um cavaliers budgétaires violador da reserva especial qualificada de densificação do EMJ, que pertence à Assembleia da República [artigos 110º, nº1, 164º, alínea m), e 202º, da CRP], e da unicidade do EMJ [artigo 215º, nº1, da CRP] - os artigos da CRP, acabados de referir, dizem respeito ao seguinte: - o 110º inclui os tribunais entre os órgãos de soberania; - o 164º, alínea m), inclui o legislar sobre o estatuto dos titulares de órgãos de soberania na reserva absoluta da Assembleia da República; - o 202º define a função dos tribunais enquanto órgãos de soberania; - o 215º, nº1, diz que os juízes dos tribunais judiciais formam um corpo único e regem-se por um só estatuto].

Importará, pois, em primeiro lugar, saber da temporalidade ou não da vigência do artigo 32º-A do EMJ aditado pelo artigo 20º da LOE/2011, isto é, saber se tal norma, com génese orçamental, tem também natureza orçamental, operando a título temporário ou se, embora com génese orçamental, opera a título definitivo.

Verificando-se a primeira hipótese, para a autora os actos de processamento de vencimentos a partir de Janeiro de 2013 padecem de ilegalidade, por carecerem de base legal. Verificando-se a segunda hipótese, tais actos serão ilegais por se basearem numa norma que desrespeita os parâmetros constitucionais referidos.

6. A análise estritamente jurídica da norma em questão não poderá ignorar que a «redução remuneratória» estabelecida nas leis do orçamento [LOE/2011, LOE/2012 e LOE/2013] teve como objectivo final a diminuição do défice orçamental para um valor respeitador do limite estabelecido pela União Europeia, no quadro das regras da união económica e monetária. Para o efeito, foram calendarizadas etapas anuais, e assumida a sua consecução como compromissos do Estado Português perante instâncias internacionais [Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) + Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica + Memorando de Políticas Económicas e Financeiras].

A justificação económica para tal redução, dada no «Relatório» que acompanha a LOE/2011, é clara ao salientar que se insere num contexto de excepcionalidade, não visando qualquer tipo de retrocesso social, antes o cumprimento das metas resultantes do «PEC». Aí se afirma que «Uma medida como a da redução remuneratória só é adoptada quando estão em causa condições excepcionais e extremamente adversas para a manutenção e a sustentabilidade do Estado Social. Não se pretende instituir qualquer tipo de padrão ou de retrocesso social, mas sim assegurar a assumpção das responsabilidades e dos compromissos do Estado Português, quer internamente, continuando a prestar serviço público de qualidade, quer internacionalmente, desde logo na esfera da União Europeia, no quadro do Pacto de Estabilidade e Crescimento».

Trata-se, pois, de medida excepcional e integrada num programa cuja realização integral se estende no tempo, destinada, enquanto medida orçamental, a vigorar anualmente, mas vocacionada, enquanto necessária ao cumprimento do programa plurianual que a justifica e a integra, a ser reactivada nos anos seguintes. E esta «reactivação», atento o objectivo final da medida, e toda a grave e excepcional circunstância que a justifica, surge ao legislador da LOE/2011 como certa. Seria medida a accionar anualmente, e em princípio até 2013. Há a convicção, assim, de que apesar da sua vigência anual, e sem pôr em causa o carácter transitório, ela terá uma duração plurianual.

E esta constatação encontra suporte na própria letra da lei orçamental de 2012, e de 2013, já que, tanto o nº1 do artigo 20º da primeira, como o nº1 do artigo 27º da segunda, determinam que «se mantém em vigor a redução das remunerações…» ou seja, é o próprio legislador - ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA - a encarar esta medida no sentido da sua continuidade plurianual.

Assim, como já disse o Tribunal Constitucional [AC TC nº396/2011, de 21.09.2011] também a respeito do artigo 32º-A, em referência, «Estando estas medidas instrumentalmente vinculadas à consecução de fins de redução de despesa pública e de correcção de um excessivo desequilíbrio orçamental, de acordo com um programa temporalmente delimitado, é de atribuir-lhes idêntica natureza temporária, nada autorizando, no presente, a considerar que elas se destinam a vigorar para sempre». Aliás, esse artigo 32º-A, aditado pela LOE/2011 ao EMJ tem - ao menos no seu nº1 - uma clara função orçamental, pois que se destina a permitir, e sem sombra de dúvida, a redução do vencimento dos magistrados judiciais «nos termos da lei do Orçamento de Estado». Está imbricado com a fixação de verbas do mapa orçamental, relativas às despesas com pessoal, tendo imediata incidência orçamental. Nisso reside a sua «exclusiva função». Não visa regular, de modo permanente, qualquer «aspecto estatutário», antes surge como «uma providência avulsa», com alcance temporal limitado às transitórias «medidas de redução orçamental» a contemplar nas LOE’s, com carácter de excepcionalidade, e de forma a garantir, num futuro próximo, o «afastamento de uma situação de insustentabilidade económica e financeira do país».

Resulta, assim, que o artigo 32º-A, aditado ao EMJ pelo artigo 20º da LOE/2011, não configura uma «alteração estatutária», mas, enquanto norma gerada na lei orçamental e destinada à execução orçamental, tem natureza transitória, sendo a sua vigência limitada, temporalmente, à necessidade plurianual de medidas de redução remuneratória.

Ao determinar que as componentes do sistema retributivo dos juízes «são reduzidas nos termos da lei do Orçamento de Estado», sem limitar tal redução a um concreto orçamento, fica aberta a possibilidade aplicativa transitória e plurianual.

Aliás, a firmeza desta intenção legislativa da Assembleia da República está bem patente nas três leis do Orçamento de Estado supra citadas, pois que em todas [LOE/2011 - artigo 19º nº11; LOE/2012 - artigo 20º nº16; e LOE/2013 - artigo 27º nº15] é dito que «O regime fixado no presente artigo tem natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excepcionais em contrário, e sobre instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos».

Poderemos concluir, assim, que não traduzindo uma «alteração estatutária», o artigo 32º-A do EMJ - aditado pelo artigo 20º da LOE/2011 - não viola a «unicidade de estatuto» dos magistrados judiciais, constitucionalmente consagrada [artigo 215º, nº1, da CRP], e sendo esta norma, não obstante temporal, de aplicação plurianual, resulta que os «actos de processamento de vencimentos», objecto desta acção, não se mostram «ilegais» quer por aplicarem norma «inconstitucional» quer por aplicarem norma «caducada».

7. Relativamente à invocada violação da «independência» dos juízes, o TJUE já declarou, no reenvio prejudicial que, sobre a questão, foi suscitado em idêntico processo pendente neste Supremo Tribunal [acção administrativa especial nº67/15], que «O artigo 19º nº1, segundo parágrafo, do TUE, deve ser interpretado no sentido de que o princípio da independência judicial não se opõe à aplicação aos membros do Tribunal de Contas [Portugal] de medidas gerais de redução salarial, como as que estão em causa no processo principal, associadas a imperativos de eliminação de um défice orçamental excessivo e a um programa de assistência financeira da União Europeia».

E para tanto considera: que «qualquer Estado-Membro deve assegurar que as instâncias que, enquanto órgão jurisdicional na acepção do direito da União Europeia, fazem parte do seu sistema de vias de recurso nos domínios abrangidos pelo direito da União, satisfaçam as exigências de uma tutela jurisdicional efectiva»; que «para garantir essa tutela, é fundamental que seja preservada a independência […] inerente à missão de julgar»; independência que pressupõe «que a instância exerça as suas funções jurisdicionais com total autonomia, sem estar submetida a nenhum vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a quem quer que seja e sem receber ordens ou instruções de qualquer origem, e esteja, assim, protegida contra intervenções ou pressões externas susceptíveis de afectar a independência de julgamento dos seus membros e influenciar as suas decisões» [páginas 10 e 11 do acórdão do TJUE em referência].

Porém, feitas estas afirmações de princípio, o TJUE considera que «as medidas de redução salarial em causa […] foram adoptadas em razão de imperativos ligados à eliminação do défice orçamental excessivo do Estado português e no contexto de um programa de assistência financeira a esse Estado-Membro […] que previam uma redução limitada do montante da remuneração […] que foram aplicadas não apenas aos membros do Tribunal de Contas […] mas para que um conjunto de membros da função pública nacional contribua para o esforço de austeridade ditado pelos imperativos de redução do défice excessivo do orçamento do Estado Português […] com carácter transitório […] e segundo um processo progressivo de supressão […]», e concluiu que, nestas condições, «as medidas de redução salarial em causa […] não podem ser consideradas lesivas da independência dos membros do Tribunal de Contas» [páginas 11 e 12 do acórdão do TJUE em referência].

Uma vez que esta apreciação se mostra perfeitamente adaptável à aferição das «reduções remuneratórias» dos membros do Tribunal de Contas, representados pela associação autora, face à «independência dos juízes» tal como se mostra garantida na Constituição da República Portuguesa [203º da CRP], aqui a reiteramos para esse efeito, restando concluir no mesmo sentido, ou seja, que «o princípio da independência judicial não se opõe à aplicação aos membros do Tribunal de Contas de medidas gerais de redução salarial, como as que lhes foram aplicadas nos vencimentos auferidos no ano de 2013, associadas a imperativos de eliminação de um défice orçamental excessivo e a um programa de assistência financeira da União Europeia».

Não vemos que a independência judicial tenha, na nossa Constituição, um grau de protecção mais elevado, ou mais densificado, que a obtida no TUE e CDFUE.

8. Em face do exposto, deverá ser julgada improcedente a acção, e o demandado absolvido do pedido. Assim se decidirá.

IV. Decisão

Nestes termos, decidimos julgar improcedente a acção e absolver do pedido o Tribunal de Contas.

Custas pela autora - ver decisão judicial de folhas 39 e 40 destes autos.


Lisboa, 17 de Maio de 2018. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – Ana Paula Soares Leite Martins Portela – Jorge Artur Madeira dos Santos.