Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0739/16
Data do Acordão:11/23/2016
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:NULIDADE
REFORMA DE ACÓRDÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P21183
Nº do Documento:SA1201611230739
Data de Entrada:09/01/2016
Recorrente:A......................,SA
Recorrido 1:B...................,SA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1. A…………., S.A. (A……….), devidamente identificada nos autos, tendo sido notificada do acórdão deste Supremo de 20.10.16, que, concedendo parcial provimento ao recurso de revista, julgou parcialmente procedente a acção por si interposta, vem apresentar o presente pedido de reforma do acórdão e, de igual forma, vem deduzir arguição de nulidade por omissão de pronúnica nos termos da alínea d) do artigo 615.º, n.º 1, do CPC.

1.1. Alega para o efeito, e em síntese, que:

(i) O acórdão recorrido deve ser reformado “no sentido de passar a abranger a condenação da recorrida a apreciar a candidatura da A…………. em relação aos lotes 18 a 22” (fl. 1592).

(ii) O acórdão recorrido padece de nulidade por omissão de pronúncia por não ter sido apreciado o fundamento de ilegalidade relacionado com a exigência de um “preço mínimo”, requerendo-se, por esse motivo, “que apreciem a questão da ilegalidade do requisito do valor mínimo de serviços prestados e que declarem essa mesma ilegalidade, invalidando a exclusão da candidatura da A………… ao lote 25 e condenando a recorrida a apreciar a candidatura da A…………. em relação ao lote 25” (fl. 1593).

1.2. De forma mais concreta, e no que toca à reforma do acórdão, a mesma é sustentada com base, entre outros, nos seguintes argumentos:

- “No douto Acórdão de 20 de Outubro de 2016, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu (…) ser ilegal o requisito do artigo 8.º do PC” (ponto 1.º);

- “Tendo presente que o requisito do artigo 8.º do PC é exigido quer para os serviços isolados quer para os serviços combinados, e portanto, também para os lotes 18 a 22 (…)”(ponto 4.º);

- “E que o cumprimento do requisito é verificado através da declaração do Anexo III do PC, sendo aquele o único fundamento de exigibilidade desta declaração: verificar o requisito 8.º do PC” (ponto 5.º);

- “A consequência lógica do entendimento do Supremo Tribunal Administrativo de que o requisito do artigo 8.º do PC é ilegal seria a condenação da recorrida a apreciar a candidatura da A…………… não apenas em relação aos lotes 8, 10 a 14 e 24, mas também em relação aos lotes 18 a 22, que também são regionais” (ponto 6.º);

- “Com efeito, a consequência da ilegalidade do requisito é a sua desaplicação na análise das candidaturas aos lotes regionais e, consequentemente, a desaplicação da exigência de apresentação de documentação comprovativa do cumprimento daquele requisito em todos os lotes regionais” (ponto 8.º);

- “Sendo, pois, as declarações do Anexo III apresentadas pela A………… para os lotes regionais absolutamente irrelevantes porque destinadas a comprovar o preenchimento de um requisito ilegal que, por isso, é inválido, não subsistindo na ordem jurídica” (ponto 9.º).

1.3. Quanto à arguição da nulidade por omissão de pronúncia, ela assenta na seguinte argumentação:

- “(…), e para além deste fundamento, a Recorrente invocou um outro fundamento que conduziria à ilegalidade do requisito do artigo 8.º do PC, a saber, a exigência de uma prestação de serviços de determinado valor mínimo como requisito de qualificação não serve para aferir a experiência” (ponto 12.º);

- “Fundamento que o douto Acórdão acabou por não apreciar” (ponto 13.º);

- “Tendo apenas apreciado a exigência de prestação de serviços em cada região específica” (ponto 14.º);

- “Ora, aqueloutra ilegalidade invocada pela recorrente porque respeitante a todos os lotes (e portanto também aos lotes nacionais) – pois a exigência de um valor mínimo de prestação de serviços aplica-se a todos os lotes – determina a invalidade da exclusão da candidatura da A……… ao lote 25” (ponto 15.º);

- “Com efeito, sendo o requisito do valor mínimo de 500.000 € de serviços prestados em todo o território nacional, não poderá subsistir a exclusão da candidatura da A………….. quanto ao lote 25, lote que é nacional, com fundamento no deficiente preenchimento de um documento destinado a comprovar um requisito que foi declarado ilegal e que portanto terá que ser desaplicado” (ponto 16.º).

2. Devidamente notificadas, vieram a recorrida C……… e a contra-interessada B………., ora requeridas/reclamadas, sustentar a improcedência das arguidas reforma do acórdão e nulidade por omissão de pronúncia (cfr. fls. 1610 e ss. e fls. 1623 e ss., respectivamente).

3. Sem vistos, cumpre apreciar e decidir em Conferência.

II – Apreciação da Questão

4. Cumpre, desde já, apreciar o pedido de reforma do acórdão reclamado.

4.1. Antes disso, porém, é conveniente caracterizar brevemente o incidente de reforma previsto no n.º 2 do artigo 616.º do CPC e aplicável ao processo administrativo ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.

Dispõe o n.º 2 do artigo 616.º do CPC (Reforma da sentença) do seguinte modo: “Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz: a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos; b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida”.

O preceito em apreço confere às partes a faculdade de requerer a reforma da sentença/acórdão apenas e nos termos estritos aí delimitados, ou seja, o pedido de reforma pressupõe que se tenha registado um lapso manifesto, consubstanciado no modo ostensivamente errado como a apreciação jurídica foi realizada ou na falta de consideração de elementos atendíveis e susceptíveis de imprimir um distinto sentido à decisão objecto do pedido de reforma.
Trata-se de uma faculdade excepcional, na medida em que derroga o princípio do esgotamento do poder jurisdicional do juiz depois de proferida a decisão, consagrado no n.º 1 do artigo 613.º do CPC, por sua vez associado à ideia da estabilidade das decisões judiciais.
Por outras palavras, esta faculdade não pode “ser interpretad[os]a no sentido de permitir ao juiz corrigir todo e qualquer erro de julgamento, na medida em que estamos no domínio do mérito da decisão. Impõe-se, por isso, uma interpretação cautelosa, sob pena de subversão completa de um dos princípios estruturantes do sistema, o do citado art.º 613.º, n.º 1” (cfr. acórdãos do STA de 03.04.14, processo n.º 0535/13, e de 05.06.08, processo n.º 862/06). O que “se conclui é que, sob a aparência de uma maior permissividade, o que se pretende é tão só e ainda a rectificação de erros palmares, patentes, que, pelo seu carácter manifesto, se teriam evidenciado ao autor da decisão, não fora a interposição de factores acidentais ou uma menor ponderação tê-lo conduzido ao desacerto” (cfr. acórdãos do STA de 03.04.14, processo n.º 0535/13, e de 05.06.08, processo n.º 862/06). Assim, por exemplo, é de indeferir o pedido de reforma do acórdão quando se verifica que o requerente, não obstante invocar o artigo 616.º do CPC, se limita a manifestar a sua discordância quanto ao modo como o acórdão interpretou um determinado preceito legal, sem contudo indicar qual o concreto erro que nessa interpretação se teria manifestado. De igual modo, um tal pedido fica, desde logo, inviabilizado se o requerente nem sequer alega tratar-se de um lapso, mas de um mero erro de julgamento. Ainda a título ilustrativo, mas de forma mais específica, não há motivo para reforma de uma sentença/acórdão se um elemento de facto, considerado erradamente na decisão, conduz a uma solução que seria necessariamente igual se tal facto fosse considerado na sua dimensão exacta, ou, outrossim, se se demonstrar que um elemento alegadamente não considerado conduziria à mesma solução.
A excepcionalidade desta faculdade de solicitar a reforma da decisão reflecte-se na exigência acrescida posta na demonstração da verificação dos respectivos pressupostos. Basicamente, caberá ao autor do pedido de reforma, através de um discurso devidamente fundamentado, demonstrar, por um lado, que o erro de julgamento em que supostamente a decisão incorreu se enquadra numa das hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 616.º do CPC. Por outro lado, caberá demonstrar que não se trata de mero erro de julgamento, antes de um erro de julgamento que assume uma dimensão excepcional de erro desrazoável e inquestionável.
Em síntese, não é susceptível de reforma a decisão cujo sentido decisório não resulta de erro ostensivo na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, nem no desconhecimento indiscutível de quaisquer elementos probatórios capazes, de por si só, implicarem solução diversa.
Importa ainda salientar, com interesse para a caracterização do incidente de reforma da decisão, que não há que confundir a figura da omissão de pronúncia, geradora de nulidade susceptível de suprimento (art. 615.º e 617.º do CPC), com a figura do erro de julgamento, este último, na medida em que resultar de lapso manifesto, susceptível de fundar a reforma da decisão (arts 616.º e 617.º do CPC).
Cumpre dizer, por último, que a possibilidade de reforma da decisão de mérito nos termos do artigo 616.º, n.º 2, do CPC pode ocorrer nos tribunais de recurso, pelo que também o STA, nas vestes de tribunal de revista, poderá ser confrontado com um pedido de reforma da sua decisão (art. 685.º do CPC ex vi arts 1.º e 140.º do CPTA). Como facilmente se compreende, a invocação pelas partes dos fundamentos de reforma do acórdão terão que necessariamente ter em consideração a natureza dos poderes de cognição do tribunal de revista.

4.2. Feito este brevíssimo enquadramento jurídico do incidente de reforma da sentença/acórdão, passemos, então, à análise do caso em presença.
Assim, compulsadas as proposições recursivas, constata-se, antes de tudo, que a requerente/reclamante não sustenta esta sua pretensão em nenhuma norma jurídica, designadamente, na al. b) do n.º 2 do artigo 616.º do CPC.
De seguida, afigura-se óbvio, a partir da leitura da alegação da requerente/reclamante, que ela parte de um pressuposto errado, que é o de que o acórdão recorrido julgou ilegal o requisito do artigo 8.º do PC. Este específico e relevante aspecto foi devidamente assinalado pelos ora requeridos/reclamados. Efectivamente, afirma a B…………. que “apenas a exigência de experiência adquirida no espaço geográfico abrangido pelo lote foi considerada inválida”, não havendo, por conseguinte, “nenhuma consequência lógica (ou outra) a retirar deste segmento decisório para as demais matérias decididas no Acórdão” (pontos 9. e 10.). Também a C………. assinala a errada interpretação do acórdão recorrido por parte da requerente/reclamante, afirmando que, “para melhor clarificar esta matéria, atente-se no facto de apenas ter sido considerado ilegal o requisito do ‘valor mínimo’ em relação aos lotes regionais” (ponto 9). Como se antecipou, a ambas assiste razão.
De facto, em parte alguma do acórdão recorrido se afirma ou se conclui que o requisito do artigo 8.º do PC é ilegal, sem mais. O que se assinala é, desde logo, que “este fundamento recursivo [a pretensa ilegalidade do artigo 8.º do PC] não ganha autonomia, na medida em que, directamente, não serviu de fundamento para a não qualificação nos lotes em apreço, embora, como se verá mais adiante, possa ser considerado, pelo menos parcialmente, aquando da apreciação de uma outras pretensão recursiva da recorrente” (cfr. fl. 1568). E ainda, assevera-se que “a recorrida pretendeu atestar da capacidade técnica dos candidatos para efectuar as prestações objecto do concurso exigindo que os mesmos tivessem já produzido prestações similares na área geográfica dos lotes a que apresentaram candidatura. Mas não só, a recorrida fez ainda reportar a anterior experiência na região a um valor mínimo de € 100.000,00, independentemente da região. Ora, esta formulação combinada suscita-nos algumas dúvidas” (fl. 1572). Mais à frente diz-se o seguinte: “Atentando novamente no requisito combinado do artigo 8.º do PC, é notório que a entidade adjudicante estabeleceu um requisito mínimo relativo ao local de execução do contrato ou, o que dá no mesmo, um critério de implantação geográfica do prestador” (fl. 1574). Para terminar deste modo: “o requisito do ‘valor mínimo’ por região constante do artigo 8.º do PC, tal como aí definido, é ilegal, na medida em que impõe um requisito de prévia prestação de serviços no local/região (assimilável a um requisito de implantação local) sem que haja um fundamento claro e objectivo, necessariamente relacionado com a adequação do requisito “à natureza das prestações objecto do contrato a celebrar”, que o justifique. Com isto, foram desrespeitados o n.º 1 do artigo 165.º do CCP e, bem assim, os princípios da concorrência, da igualdade de tratamento e da proporcionalidade” (fls. 1574-5) – negritos nossos.
Por último, relembra a C……… que “a exclusão das candidaturas da A……… em relação aos lotes 18 a 22 e 25 do Concurso não se ficou a dever ao incumprimento do requisito ‘valor mínimo’, mas antes à incorreção do descritivo associado ao objeto daqueles lotes” (ponto 6.).
Vejamos o que consta, quanto a este aspecto, do acórdão recorrido: “Não obstante termos optado por sintetizar esta prestensão recursiva da recorrente relativamente à ilegalidade do artigo 8.º do PC, há que lembrar que a recorrente foi excluída ou não foi seleccionada para os lotes 8, 10, 11, 12, 13, 14, 18, 19, 20, 21, 22, 24 e 25 por outros motivos que não directamente o do não preenchimento dos requisitos constantes no artigo 8.º do PC. Relembremos: em relação aos lotes 18, 19, 20, 21, 22 e 25, porque se registou uma inconsistência entre as designações dos objetos constantes nas declarações e os objetos relativos àqueles lotes; no tocante aos lotes 8, 10, 11, 12, 13, 14 e 24, entendeu-se que as declarações apresentadas contemplam mais do que uma região com um valor contratual único, não estando consistente com o lote em apreço, tendo impedido o júri de aferir dos valores individuais de cada região. Deste modo, este fundamento recursivo não ganha autonomia, na medida em que, directamente, não serviu de fundamento para a não qualificação nos lotes em apreço, embora, como se verá mais adiante, possa ser considerado, pelo menos parcialmente, aquando da apreciação de uma outras pretensão recursiva da recorrente” (cfr. fl. 1568). Mais adiante, pode ler-se o seguinte trecho: “Em síntese, existem razões válidas para aceitar que o júri não teve dúvidas relativamente às declarações apresentadas pelos clientes da recorrente, concluindo pela incapacidade técnica desta última para a prestação dos serviços combinados relativos aos lotes 18 a 22 e 25. Improcede, deste modo, a pretensão recursiva da recorrente relativamente a invalidade da sua exclusão em relação aos lotes 18 a 22 e 25” (fl. 1571).
Tem, pois, razão a C………., sendo certo, porém, que a constatação da errada interpretação do acórdão recorrido, por parte da requerente/reclamante, quanto à ilegalidade do requisito do 8.º do PC, é de molde a afastar, de per si, a sua pretensão.
Em face de todo o exposto, cumpre concluir que não se verificam, no caso vertente, os fundamentos de aplicação da figura da ‘reforma de sentença’. Com efeito, o único erro manifesto que se detecta é o da própria requerente/reclamante quando a mesma afirma que o acórdão recorrido julgou o artigo 8.º do PC, in toto, ilegal. Sendo este o único argumento da requerente/reclamante, e estando ele errado, o que se constata é que não há nada que, por si, imponha solução diversa da proferida, e que este tribunal, por manifesto lapso, não tenha considerado.

Improcede, deste modo, a pretensão da requerente/reclamante acabada de apreciar.

5. No que concerne à invocada nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, diga-se que também a mesma não procede.

5.1. Como é sabido, a obrigatoriedade de conhecimento de todas as questões colocadas pelas partes à apreciação do tribunal resulta do disposto no n.º 2 do artigo 608.º do CPC, servindo a sanção de nulidade constante da al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC de cominação ao seu desrespeito. Basicamente, o juiz deve resolver na decisão judicial todas as questões (não resolvidas antes) que as partes tenham suscitado, com excepção daquelas que estejam prejudicadas (e, portanto, se tenham tornado inúteis) pela solução já adoptada quanto a outras. Além disso, uma tal nulidade não se verificará quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre meros argumentos, considerações, razões ou motivos de que as partes se socorram para fundar as suas pretensões.

5.2. Feita esta brevíssima explanação, temos que quanto a esta nulidade soçobra o pedido da requerente/reclamante. Como já decorre do que atrás foi dito, a exclusão da A……….. ao lote 25 foi decidida nos termos mencionados no ponto anterior. Tendo sido decidido dessa maneira, o Tribunal não estava obrigado a apreciar outras razões de exclusão. A única hipótese de vir a ver procedente algum vício de omissão de pronúncia implicaria que a requerente/reclamante tivesse provado que não foi excluído nos termos em que o foi, o que não sucedeu, haja em vista a clareza do motivo da exclusão em causa. Assim sendo, este Supremo Tribunal não necessitava de dizer mais nada nem de acrescentar qualquer outra argumentação.

Em face do exposto, cabe concluir que deve igualmente improceder a pretensão da da requerente/reclamante quanto à alegada nulidade do acórdão por omissão de pronúncia.

III – Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em indeferir o pedido de reforma da decisão reclamada e, de igual modo, a arguição da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia.

Custas pela requerente/reclamante.

Lisboa, 23 de Novembro de 2016. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – Vítor Manuel Gonçalves Gomes – Alberto Augusto Andrade de Oliveira.