Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:093/12
Data do Acordão:05/09/2012
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:COSTA REIS
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE CIVIL
ACÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE POR ACTO MÉDICO
Sumário:I - O artº. 653º, nº2 do C.P.Civil apenas exige a análise crítica das provas e a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, não exigindo que a fundamentação da resposta a cada um dos quesitos não provados tenha de se traduzir numa análise exaustiva de cada uma das provas que a eles foram indicadas.
II - Improcede a acção de indemnização por responsabilidade civil extracontratual se da matéria de facto assente não se prova a ilicitude, a culpa e o nexo causal (entre a conduta ilícita e culposa e o evento).
Nº Convencional:JSTA00067589
Nº do Documento:SA120120509093
Data de Entrada:01/30/2012
Recorrente:A...
Recorrido 1:MATERNIDADE ALFREDO DA COSTA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAC LISBOA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA
Legislação Nacional:CPC96 ART653 N2 ART668 N1 B
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC36993 DE 1995/03/16; AC STA PROC35909 DE 1996/03/21; AC STA PROC35412 DE 1996/10/30; AC STA PROC43138 DE 1998/10/13; AC STA PROC48155 DE 2002/03/06; AC STA PROC487/02 DE 2002/09/26; AC STA PROC1331/02 DE 2002/11/06; AC STA PROC1683/02 DE 2002/12/18; AC STA PROC966/08 DE 2009/01/29
Referência a Doutrina:HENRIQUES GASPAR RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO CJIII 1978 VOL I PAG342.
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

A……, com os demais sinais nos autos, propôs contra a Maternidade Dr. Alfredo da Costa acção de responsabilidade civil extracontratual decorrente da prática de actos ilícitos de gestão pública pedindo a sua condenação no pagamento da indemnização de 9.786.162$00, acrescida de juros, por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos durante e depois do parto aí realizado em resultado da falta de tratamento ou dos tratamentos inadequados que lhe ministraram.
Sem êxito já que, por sentença de 6/07/2011, lhe foi negado provimento.

Inconformada a Autora recorreu para este Tribunal, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. Mostra-se desconforme a matéria de facto dada como assente pela M.mª Juiz a quo em “SSS” e “JJJJ” da sentença e o decidido pelo Tribunal Colectivo na resposta à reclamação sobre as respostas da Base Instrutória a fls. 429 a 431 dos autos, pelo que se impugna a decisão de matéria de facto (art.º 690.° - A do CPC), por violação do disposto no art.º 659°, n.° 3, do CPC;
2. Devendo-se, em consequência, alterar a decisão recorrida em consonância com o decidido, extraindo-se as consequências jurídicas de tal alteração, por constarem do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto ora apreciados.
3. A sentença recorrida, ao ter considerado oficiosamente como facto assente os Relatórios Final e Pericial no âmbito do processo de inquérito realizado pela Inspecção-Geral de Saúde aos factos relacionados com a assistência prestada à A., na sequência do qual foi proferido despacho de arquivamento, sem sujeitar tais factos ao exercício do contraditório, de modo que pudessem efectivamente serem clarificados ou esclarecidos os factos essenciais que já constavam da decisão sobre matéria de facto, violou o disposto no art.º 3.°, n.° 3, do CPC.
4. Muito embora a M.mª Juiz a quo não estivesse sujeita às alegações das partes no tocante a factos instrumentais (art.º 264°, n.° 2 do CPC), também não é menos certo e importante que o actual sistema processual estabelece uma proibição absoluta das decisões-surpresa, devendo assim ter sido dado cumprimento ao disposto na parte final do n.° 3 do citado normativo, antes de os ter qualificado como assentes.
5. Poderia (e deveria) tê-lo feito de tal sorte que, certamente, se apuraria como facto assente concomitante àqueles, que o referido despacho de arquivamento foi objecto de recurso hierárquico pela A., o qual, uma vez admitido, foi arquivado por força da extinção do procedimento disciplinar por considerar amnistiadas as invocadas infracções disciplinares, nos termos do art.º 7.°, da Lei n.° 29/99, de 12.05.
6. No segmento relativo à matéria de facto, ao ter sido dado como não provado em 4 que “A episiotomia a que a A. foi submetida durante o parto não foi necessariamente a origem do hematoma que foi diagnosticado cerca das 18.00 horas do dia 15 de Março”, tratando-se de uma afirmação através de uma dupla negativa, i é, não se tendo provado que a episiotomia a que a A. foi submetida durante o parto não foi “necessariamente” a origem do hematoma que foi diagnosticado à A., está-se a afirmar, pela positiva, que a episiotomia possa ter estado, como in casu verdadeiramente sucede, na origem do referido hematoma.
7. Porém, tal facto está em contradição directa com o provado em “CCC” quando, ao invés, dá como provado que “O hematoma do períneo que foi diagnosticado à A., cerca das 18H, não decorreu necessariamente da episiotomia e episiorrafia a que foi submetida” e ainda com o não provado em 10 (“O referido hematoma foi consequência directa da episiotomia realizada pela R.“).
8. Também, no tocante aos factos provados em Z. (“Z. A A. voltou aos serviços da R. no dia 18 de Abril onde foi observada pelo médico de serviço que insistia na afirmação de que a A. se encontrava bem tendo receitado apenas o antibiótico FLAGYL.), AA. (AA. A A. desesperada em face da contínua degradação do seu estado de saúde, decidiu-se a ser tratada particularmente pelo prestigiado cirurgião Dr. B…… que a observa pela primeira vez nesse mesmo dia 18 de Abril.), BB. (BB. Este cirurgião refere. “Observada por mim pela primeira vez em 18 de Abril de 1995 com infecção perineal grave, arrastada com ponto de “partida em parto tido em 15 de Março “. A evolução do problema local foi complicada com infecção persistente e difícil de controlar, obrigando a várias intervenções de drenagem que não resolveram o problema. Assim quando a vi pela primeira vez mantinha-se infiltração local extensa com dores intensas e dificuldade de marcha. Não melhorou significativamente com antibioterapia reforçada e acabou por ser internada por mim para uma drenagem cirúrgica mais ampla. “), LL. (LL. Em consequência da infecção (Klebsiella,) contraída, a A. foi igualmente sujeita a terceira intervenção cirúrgica com anestesia geral que não conseguiu debelar a infecção que persistia), e em OO. (“A A. sofreu ainda quarta intervenção cirúrgica no dia 17 de Novembro de 1995 (hospital da C.U.F.) perante a ainda existente fistula entre a parede da vagina e a região perineal — em consequência da infecção (Klebsiella,) contraída.”), constata-se que tal factualidade contradiz flagrantemente o vertido como assente em “ZZZ” e “BBBB”: “A intervenção cirúrgica sob anestesia geral realizada em 10 de Abril pelo Director de Serviço de Urgência, com o fim de promover e cura cirúrgica da fístula recto vaginal, diagnosticado pelo próprio em 6 de Abril, foi eficaz. “, eO factor tempo permitiria a evolução favorável (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.), e bem assim o considerado como não provado em 9. (“Após a terceira intervenção cirúrgica, com anestesia geral, de 10 de Abril, a A. carecia de efectiva medicação, internamento e nova intervenção adequados (cf. resposta dada a fls. 424 e ss);
9. Mostra-se igualmente contraditório o provado em “FFFF” “Enquanto esteve internada a A. passou pelas situações descritas nas alíneas I, J e K” (I - A A. apresentava palidez da pele e mucosas bem como tonturas e sofria de um mal-estar crescente que a impedia de sentar, de se deslocar e de prestar os cuidados mínimos indispensáveis ao recém-nascido. J. Estes sintomas mantém-se durante todo o dia e noite de 16 de Março e parte do dia seguinte. K No dia 17 de Março, dada a persistência da hemorragia, verificou-se uma descida grave do nível de hemoglobina tendo a A sido submetida a urgente transfusão de 2 unidades de sangue na Unidade de Reanimação e Cuidados Intensivos. “) com factualidade dada como não provada no ponto 6., ou seja, queA A. durante o parto, e enquanto esteve internada, nunca correu perigo eminente de vida” (excepto se se considerar como facto não provado que a A. nunca correu perigo eminente de vida sendo pela positiva, perante a dupla negativa, de que a A. efectivamente correu perigo de vida — como, aliás, decorre do provado em “K”, o que, por seu turno, contraria o dado como não provado em 14 (“A A., em face da continuada hemorragia, sofreu o risco eminente de perder a sua vida”);
10. É possível também detectar contradição com o teor da fundamentação da douta sentença quando nela se pode lerNão resulta dos autos e designadamente da matéria provada, portanto, que existia uma hemorragia, que era exigido aos médicos da MAC identificar em momento anterior ao que ocorreu essa identificação.” (fls. 19 da sentença, penúltimo parágrafo), quando nos factos provados - em “K” - se alude, de modo inequívoco, à existência de uma hemorragia (persistente) padecida pela A..
11. Mostra-se ainda incompatível a factualidade dada como provada em “U.”, “V”, “W” e “OOOO” (“U. A A., nos dias 4 e 5 de Abril notou o aparecimento de fezes no interior da vagina, o que a levou, já profundamente debilitada, ao Serviço de Urgência da R. no dia 6 de Abril pelas 10.00.; V. Aí foram-lhe diagnosticados infecção, abcesso e fistula recto vaginal. W. Também no dia 6 de Abril é conhecida pelo médico de serviço da R. a identidade da estirpe da infecção em causa como sendo “Klebsiella Pneumoniae “, atento o resultado analítico da colheita ao exsudado vaginal efectuada em 3] de Março nas instalações da R. e a menos de 24 horas da Alta Médica conferida pela R.” e em “OOOO”. “Como consequência do hematoma, a A. padeceu igualmente de infecção pós-operatória do períneo que se prolongou pelo menos até Setembro de 1995”), com a factualidade vertida, no ponto 15 da decisão da matéria de facto ao ter sido considerado como não provado queEsta infecção, cansada pela bactéria “Klesiella “, foi contraída durante o período de permanência nas instalações da Ré “, porquanto o resultado analítico que detecta tal estirpe à A. foi efectuada a menos de 24 horas da alta médica conferida à A., sendo que, tomando-se em consideração o teor da fundamentação apresentada a fls. 430 pelo Colectivo de Juízes (decisão à reclamação sobre as respostas aos quesitos no tocante à falta de motivação das respostas aos quesitos 27°, 29° e 54°) afigura-se-nos ser de concluir, dando-se consequentemente como provado, que a A. - pela resposta dada pela testemunha C…… - contraiu a infecção durante o período de permanência nas instalações da Ré, como efectivamente sucedeu.
12. Igualmente se mostra contraditório o dado como assente em “E”, “F”, e “H” (“E. Por volta das 13.30 horas a A., acometida de profundas dores e encontrando-se já na sala 23 - “NORMAIS”, solicitou, por diversas vezes, junto da enfermeira de turno a urgente presença do médico obstetra. E. E só cerca das 18.00 horas que se dá a primeira observação por parte dos médicos e é diagnosticado um grande hematoma do períneo. G. Tratava-se de um hematoma profundo, sob tensão, doloroso, com distensão da região perineal, vulvar e vaginal. Ii Às 22.00 horas do dia 15 de Março foi efectuada a drenagem do referido hematoma, com anestesia geral, não tendo sido identificado vaso a sangrar activamente. “) e a factualidade considerada provada em “BBB” que refere quePelo que teve a vigilância e o acompanhamento do pessoal de enfermagem da Maternidade até que, dadas as queixas da A. foi solicitada atempadamente a observação pela médica do Serviço de Urgênciae ainda a factualidade dada como não provada em 11 e 12 (“11. A A., não obstante as insistentes queixas e apelos à vinda do médico, foi vítima da omissão de assistência médica no período compreendido entre as 13.30 horas e as 18.00 do dia 15 de Março, hora a que foi observada e em que lhe foi diagnosticado o referido hematoma que se formou e agravou neste período de tempo (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.). 12. Em consequência desta omissão a A. sofreu profundo choque psicológico e uma degradação muito acentuada do seu estado geral em consequência do grande hematoma que entretanto se formara (cf resposta dada a fls. 424 e ss.). “).
13. Por fim, a matéria de facto considerada provada em “QQQ”, “RRR”, “SSS”, “TTT” e “GGGG” (“QQQ. Essa intervenção (26/3) consistiu na desinfecção do campo operatório, à excisão dos tecidos superficiais necrosados, à exerése dos tecidos de granularão existentes e à regularização dos bordos da ferida. Tendo-se identificado e isolado os músculos transverso superficial do períneo e bulbo-cavernoso (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.). RRR. E na sutura num só plano do tecido muscular e pele, com pontos simples e separados (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.). SSS. No final da intervenção foi confirmada a integridade da ampola rectal através do toque rectal (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.). (dado como não provado a fls. 430 e quesito 22); TTT. E foi ainda revista terapêutica antibiótica, instituindo-se gentamicina e clindamicina (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.). “; e “GGGG. A cirurgia (ressutura do períneo) a que a A. foi submetida no dia 26 de Março também obedeceu às regras de assepsia instituídas na M.A.C. e foi realizada segundo a técnica médica habitual para este tipo de intervenção cirúrgica (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).”, contradiz flagrantemente o constante no relatório produzido pela Inspecção-Geral de Saúde junto aos autos e considerado em “SSSS” da factualidade provada (cfr. fls. 310 do referido Relatório: «Decorre, também, salientado no mesmo parecer, a insuficiência, ou mesmo a ausência, dos registos clínico nomeadamente por falta de rigor e clareza nalgumas descrições operatórias (quanto à situação clínica objectiva encontrada, quanto aos procedimentos praticados e materiais usados); insuficiência e falhas que as descrições feitas a posteriori (em contestação à queixa) não podem colmatar e suprir devidamente, merecendo aqui destaque a intervenção (ressutura) do dia 26.3»).
14. Trata-se de um acervo de contradições na decisão da matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, devendo-se, em consequência, determinar a remessa ao Tribunal recorrido em ordem a suprir tais deficiências - art.° 729°, n.° 3, in fine, do CPC.
15. O preceituado no art.° 653.°, n° 2, do CPC, não se basta com a fundamentação dos factos provados, antes exige, de igual modo, que os factos não provados sejam devida e criteriosamente fundamentados através da apreciação crítica das provas propostas pelas partes de modo a evidenciar a razão ou razões que levaram o Tribunal a quo a concluir não serem as mesmas suficientes para infirmarem a conclusão diversa da de considerar tais factos como não provados, ou seja, a sindicabilidade da decisão sobre matéria de facto é incompatível com a desnecessidade da fundamentação das respostas não provado.
16. Nos presentes autos, da decisão sobre a matéria de facto, o que se constata é que o Tribunal a quo não apresentou fundamentação para a factualidade considerada não provada, não bastando uma simples referência genérica para que se possa concluir que houve análise crítica da prova e especificação dos fundamentos que foram decisivos para o Tribunal a quo de molde a poder controlar-se a razoabilidade da convicção sobre o julgamento da factualidade que considerou não provada.
17. Ao fazê-lo, i. é, ao não fundamentar a decisão no tocante à factualidade negativa, violou o Tribunal a quo o disposto no art.º 653.°, n.º 2, do CPC, devendo-se, em consequência, determinar que aquele Tribunal proceda à fundamentação da referida factualidade, nos termos a que alude o disposto no art.º 712.°, n.° 5, do CPC.
18. Em nenhum momento da prova - testemunhal ou documental - produzida em audiência, permite concluir por um qualquer “quadro clínico” de “urgência” ou de “emergência” médicas que tornasse a A. incapaz de decidir, ou seja, que permitisse, em “estado de necessidade”, sujeitar a A. a uma intervenção cirúrgica, presumindo-se o seu consentimento, sendo certo que a matéria de facto dada como assente refere que a A. não prestou consentimento à realização da referida episiotomia apenas por ser um tipo de intervenção frequente.
19. A dispensa de consentimento fundada na invocada “frequência” da intervenção, i. é, pelo uso rotineiro da intervenção cirúrgica a que a A. foi sujeita, não merece a tutela do Direito.
20. A medicina é uma actividade de risco, sendo que, no caso da episiotomia, são sobejamente conhecidas pela ciência médica as complicações associadas àquela, a saber: infecção; hematoma; roturas do períneo graus III e IV; celulite; deiscência; abcesso, incontinência de gases; incontinência de fezes; fístula rectovaginal; lesão do nervo pudendo; fasceíte necrosante e morte (cfr. BÁRBARA BETTENCOURT BORGES, FÁTINA SERRANO, FERNANIDO PEREIRA, Serviço de Ginecologia e Obstetrícia, Maternidade Dr. Alfredo da Costa, Lisboa, “EPISIOTOMIA - Uso generalizado versus selectivo”; Artigo Revisão, in ACTA MÉDICA PORTUGUESA, 2003).
21. Na ausência de tal consentimento, a intervenção médica cirúrgica está ferida de ilicitude com a consequente responsabilidade da Ré enquanto unidade prestadora de cuidados de saúde, pela actuação dos médicos ao seu serviço, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de uma intervenção cirúrgica arbitrária.
22. O nosso ordenamento jurídico consagra não apenas o direito a ser informado como o direito ao consentimento e ao dissentimento livres e esclarecidos de modo que a informação seja prestada de forma clara, incidindo sobre o estado de saúde, atendendo-se à personalidade, grau de instrução e às condições clínicas e psíquicas do paciente, contendo a informação elementos relacionados com o diagnóstico, prognóstico, tratamento a efectuar, riscos associados e eventuais tratamentos alternativos, sob pena de estarmos perante uma intervenção ou tratamento arbitrários por não terem sido consentidos.
23. Impunha-se in casu o dever dos médicos ao serviço da Ré de informar e obter o consentimento da A. previamente à intervenção médico-cirúrgica em que se traduziu a episiotomia a que a A. foi sujeita a qual, como efectivamente se constata da Literatura Médica supra citada, comporta riscos significativos.
24. Recentemente, através do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia pertencente à Ré, pela pena de BÁRBARA BETTENCOURT BORGES, FÁTIMA SERRANO, FERNANDO PEREIRA, em artigo denominado “EPISIOTOMIA - Uso generalizado versus selectivo” (in ACTA MÉDICA PORTUGUESA, 2003) acabou-se por reconhecer não apenas um conjunto de riscos significativos associados àquela intervenção cirúrgica - muitos dos quais sofridos pela A. - como se salienta que o seu uso generalizado ou imponderado é contrário a uma prática médica conforme as leges artis.
25. No vertente caso, de acordo com a matéria de facto dada como assente, a A., logo após à episiotomia a que foi sujeita - por razões simplesmente ligadas à sua (elevada) frequência, padeceu um conjunto de sequelas subsequentes que são descritas na literatura médica da especialidade obstétrica como riscos associados àquela intervenção cirúrgica já então conhecidos, a saber: hemorragia, hematoma do períneo, infecção do períneo e a fístula recto-vaginal.
26. Só através do consentimento devidamente esclarecido sobre os riscos associados à realização da episiotomia permitiria transferir para a A. a responsabilidade pelas consequências negativas daquela intervenção médico-cirúrgica que, de outro modo, sem aquele consentimento, terão de ser suportados pela Ré, porquanto a ilicitude, no tipo de obrigações a que a Ré estava sujeita - nomeadamente de tratar a A. pelos meios mais adequados, humanamente, com prontidão, correcção técnica e privacidade - mas também com o respeito pela sua decisão em receber ou recusar a prestação de cuidados que lhe fosse proposta - está equiparada à omissão da mais elevada medida de cuidado exterior, ou seja, dos melhores cuidados possíveis de acordo com as leis da arte ou da ciência médica.
27. Neste contexto, a prova de “primeira aparência” assume importância determinante, no que respeita à culpa e ao nexo de causalidade.
28. Tendo ficado demonstrado - como resulta dos factos provados - o nexo causal estabelecido entre hematoma e infecção e entre esta patologia e a fístula recto vaginal, a circunstância de se ter dado como provado que o hematoma do períneo não decorreu “necessariamente” da episiotomia a que a A. foi submetida (cfr. “CCC”. “DDDD”, e “EEEE” dos factos provados - neste último não se declina a possibilidade de surgir imediatamente ao acto cirúrgico, e em 4. e 10. dos factos não provados, em resposta a dupla quesitação), não se afastando a probabilidade da episiotomia estar na sua origem (não só é reconhecido pela Literatura Médica que o hematoma vulvar massivo constitui um dos riscos da episiotomia, como a lógica, as máximas da experiência e os juízos de normalidade nos dizem que uma incisão (no caso, episiotomia) conduzirá, em regra, ao sangramento dos tecidos e a este sangramento se seguirá um hematoma), será de presumir que aquela intervenção cirúrgica foi adequada à produção desse outro dano (o hematoma) e que, segundo a “normalidade das coisas” e a “experiência comum” tal hematoma não teria ocorrido se não tivesse havido episiotomia, sendo que, em matéria de acto médico, só o consentimento devidamente esclarecido obtido junto da A. permitiria transferir para esta os riscos da referida intervenção que, de outro modo, deverão ser suportados pela Ré.
29. Independentemente de se configurar a relação estabelecida entre a A., ora Recorrente, e a Ré, ora Recorrida, como de natureza contratual ou extracontratual, inserida no âmbito de uma actividade de gestão pública ou de gestão privada, tal relação originou para a Ré obrigações de, através dos médicos e demais funcionários postos ao seu serviço e no exercício das suas funções, assistir a A. antes, durante e após o parto, empreendendo todos os seus esforços e a sua ciência para a tratar pelos meios mais adequados, humanamente, com correcção técnica, de acordo com as regras da arte (obrigação de meios), mas também a de obter o seu prévio consentimento informado antes de a sujeitar a uma intervenção cirúrgica como é a episiotomia, sobretudo quando tal intervenção apresentava riscos significativos já então conhecidos da ciência médica, o parto foi classificado de “eutócico”, ou seja, como “normal” e a sua razão de ser resultou apenas da sua (elevada) frequência, de modo a que a A. pudesse - como efectivamente podia - decidir, em consciência, receber ou recusar tal intervenção (obrigação de resultado).
30. Perante a factualidade dada como provada, a Ré, ora Recorrida, omitiu o dever de informar a Recorrente sobre os riscos da episiotomia a que foi submetida e bem como inobservou o dever de obter o seu consentimento esclarecido, tendo incumprido, assim, culposamente uma obrigação de resultado.
31. Desta forma, incumpriu a Ré, culposamente, a obrigação que sobre ela se impunha de respeitar a liberdade da vontade da A. na sujeição à episiotomia, violando o seu direito à autodeterminação, componente essencial do direito da A. à sua integridade moral e ainda do seu direito à integridade física pela realização de uma incisão cirúrgica no seu corpo sem que, para tal, previamente tivesse dado o seu consentimento.
32. Trata-se, não só do incumprimento dos deveres da Ré na prestação de serviços médicos, como também foi realizada uma intervenção médica arbitrária, o que determina a obrigatoriedade para a Ré, de indemnizar a A. nos termos dos art.ºs 798.° e 483.° do Código Civil, quer por violação do direito à integridade física, sendo que o dano aqui em causa é a intervenção não consentida na zona de reserva que o corpo é para a pessoa da A. e ainda pela lesão da liberdade da vontade que constitui lesão da integridade moral da pessoa da A. e que, igualmente, impõe à Ré o dever de a indemnizar.
33. Ao não pronunciar-se, extraindo as consequências jurídicas, sobre factualidade dada como provada no tocante à falta de consentimento da A. à realização da episiotomia, limitando-se a justificar tal intervenção com a sua frequência, o Tribunal a quo não apenas incorreu na omissão a que alude o disposto na al.ª d), do n.° 1, do art.º 668° do CPC aplicável, ferindo a sentença de nulidade, como violou o disposto nos art.ºs 25°, 26°, e 8° da CRP (neste último ao estabelecer a recepção automática das normas de Direito Internacional no ordenamento jurídico interno), o Capítulo II (art.º 5°) da Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos e da Dignidade do Ser Humano em Relação às Aplicações da Biologia e da Medicina, a Carta Europeia dos Direitos dos Pacientes (3.3) o estatuído nos art.ºs 70°, n.° 1, 798.°, 800° e 483.° do Código Civil e ainda nos artigos 156° e 157° do Código Penal, aplicável à data dos factos.
34. Em matéria de serviços médicos, comparativamente com os produtos, mostra-se bem mais difícil provar a “negligência” que, eventualmente, possa ter sido cometida no interior de uma sala de cirurgia, até porque o paciente estará na maior parte das vezes em situação de “inconsciência”, não podendo assistir ao que se passa no bloco operatório.
35. Daí a necessidade de provar a cargo da parte menos débil que foram tomadas todas as medidas exigíveis ao caso, conformes à “lex artis”, em função das circunstâncias, de molde a evitar o resultado danoso, atenta a posição de vantagem perante o paciente e que se traduz, desde logo, no domínio dos conhecimentos técnicos adequados.
36. Neste contexto, a prova de “primeira aparência” assume importância determinante, no que respeita à culpa e ao nexo de causalidade, uma vez que, se se produz uma lesão na saúde do paciente após a sujeição a determinado acto médico (v.g. cirúrgico), será de presumir que, em princípio, aquela intervenção foi adequada à produção daquele dano e que, segundo a “normalidade das coisas”, “a experiência comum” o dano provavelmente não teria ocorrido se fossem observadas todas as regras técnicas, de acordo com estádio dos conhecimentos médico-científicos aplicáveis ao caso.
37. Trata-se de uma técnica dedutiva que permite concluir que houve negligência, porque a experiência comum revela que, no curso ordinário das coisas, certos acidentes não poderão ocorrer senão por uma causa que se traduza em falta de cuidado.
38. A infecção por “Klebsiella Pneumoniae” padecida pela A., constitui “(...) importante agente etiológico de infecções no meio hospitalar” (cfr. www.spp.pt.).
39. Ainda que se pudesse admitir que o referido agente patogénico se considere agente habitual no trato digestivo de todo o ser humano, a A., quando dá entrada nas instalações da Ré para ser assistida num parto considerado normal, sem riscos aparentes, não apresentava qualquer sinal de patologia ou infecção.
40. As ocorrências padecidas pela A. surgem após o parto considerado normal e durante o período em que esteve internada nas instalações da Ré e aos seus cuidados, não revestindo um carácter de normalidade que uma paciente que seja internada em unidade hospitalar para ser assistida a um parto no dia 15/03/95 que a ciência médica classifica de eutócico (ou normal) e a seguir acabe por sofrer incisão na região perineal médio lateral direita com cerca de 2-3 cm de comprimento (C.), para a qual não deu qualquer consentimento (13), grande hematoma do períneo (F), profundo, sob tensão, doloroso, com distensão da região perineal, vulvar e vaginal (G), hemorragia, urgente transfusão de sangue na Unidade de Reanimação e Cuidados Intensivos (K), segundo grande hematoma muito doloroso (M.), infecção, infiltrado inflamatório e deiscência da sutura do períneo (N), infecção, abcesso e fístula recto vaginal (V), três intervenções cirúrgicas com anestesia geral nas instalações da Ré (Y), e uma quarta intervenção cirúrgica no dia 17/11/95 no Hospital da CUF perante a ainda existente fístula entre a parede da vagina e região perineal em consequência da infecção (“Klebsiella”) (00), atento o resultado analítico da colheita ao exsudado vaginal efectuada em 31/03/95 nas instalações da Ré e a menos de 24 horas da Alta Médica conferida pela Ré (W).
41. É do domínio da experiência comum, suportada pela evidência científica de que a declaração da testemunha Dr. B…… é reflexo (cfr. “BB.” dos factos provados), que, no caso da A., não é a “infecção que se manifesta em virtude da saída de fezes pela vagina” (fístula recto vaginal) mas o seu contrário: a fístula recto vaginal surge após a infecção, na sequência da infecção, causada pela infecção dos tecidos, infecção que é detectada no dia 31 de Março e diagnosticada à A. no dia 6 de Abril, conforme resulta da matéria de facto que a M.mª Juiz a quo deu como provada em “II” “Em consequência da infecção (Klebsiella) contraída a A. nos dias 4 e 5 de Abril, a par do aumento brutal das dores, detectou o aparecimento de fezes na vagina o que lhe provocou enorme angústia e desgosto”; em “U” A A., nos dias 4 e 5 de Abril notou o aparecimento de fezes no interior da vagina, o que a levou, já profundamente debilitada, ao Serviço de Urgência da R. no dia 6 de Abril pelas 10.00 horas.”; “V” ( foram-lhe diagnosticados infecção, abcesso e fistula recto vaginal. “); e “W.” (Também no dia 6 de Abril é conhecida pelo médico de serviço da R. a identidade da estirpe da infecção em causa como sendo “Klebsiella Pneumoniae”, atento o resultado analítico da colheita ao exsudado vaginal efectuada em 3 de Março nas instalações da R., e a menos de 24 horas da Alta Médica conferida pela R.”).
42. Relativamente à formação do abcesso, à origem da infecção padecida pela A. por “Klebsiella”, estirpe diagnosticada à A. a menos de 24 horas da alta médica concedida pela Ré, ressalta do teor do Relatório Final da Inspecção-Geral de Saúde que tudo aponta para relacionar a formação da referida infecção, que veio a ser drenada a 10 de Abril de 1995, com a intervenção cirúrgica realizada à A. no dia 26 de Março de 1995 e ainda que a infecção pode ter tido origem quer através da contaminação externa durante o acto operatório, ou nos dias subsequentes àquele acto, ou através de uma contaminação directa através da lesão da mucosa rectal - sendo que, em ambas as situações de contaminação, a sua ocorrência dá-se nas instalações da Ré durante o período de internamento da A,.
43. A Ré estava obrigada a prestar à A. os melhores cuidados de saúde pelos meios mais adequados, humanamente e com correcção técnica, privacidade e respeito, pelo que lhe caberia não apenas diagnosticar a A. e a tratá-la à luz de conhecimentos tecnicamente actualizados, mas também a obrigação de prevenir o risco de infecções que pudessem surgir (ou formar-se) em pacientes internados nas suas instalações.
44. É do conhecimento ou da experiência comuns que em pacientes sujeitos a longos períodos de internamento e submetidos a várias intervenções cirúrgicas, como foi o caso da A., por estarem mais debilitados, existe maior risco ou probabilidade séria de virem a contrair uma infecção que, no caso da A., foi causa do aparecimento da fístula recto vaginal.
45. A Ré não logrou demonstrar a erradicação da bactéria “Klebsiella Pneumoniae” existente nas suas instalações em meio hospitalar.
46. O facto considerado não provado em 15. (“Esta infecção, causada pela bactéria “Klebsiella“, foi contraída durante o período de permanência nas instalações da Ré por não existirem condições de assepsia hospitalar capazes de erradicar a referida bactéria”) não significa a demonstração em juízo do seu contrário, ou seja, de que existiam as condições de assepsia hospitalar capazes de erradicar a bactéria “Klebsiella”.
47. Cabia à Ré demonstrar a existência das condições de assepsia hospitalar capazes de erradicar a bactéria “Klebsiella”, porquanto em matéria de responsabilidade médica-hospitalar, atento o princípio favor victimae, não caberá uma rígida aplicação dos clássicos princípios da culpa, causalidade e ónus da prova da culpa, que frustre - como sucede na douta decisão ora recorrida - a finalidade reparadora da responsabilidade civil quando, após um parto normal (eutócico) sobrevieram à A. complicações extremas, tendo sofrido lesões desproporcionais àquele primeiro evento e cuja explicação não pode fundar-se em “características intrínsecas da A.”, estando em causa actividades técnicas e profissionais que, logo à partida, acarretam uma desigualdade entre a A. - que não exerce medicina - e os médicos ao serviço da Ré que intervieram na situação da A., detentores de conhecimentos médicos.
48. Não tendo a Ré demonstrado, através dos seus funcionários e agentes, ter tomado as medidas conhecidas no estado da ciência à altura dos factos e ao seu alcance para erradicar das suas instalações, em particular nos blocos operatórios/Serviços de Cuidados Intensivos, a bactéria “Klebsiella Pneumoniae”, impedindo que surgisse, como aconteceu à A., infecção causada pelo referido agente que lhe provocou, para além do mais, dores, fístula recto vaginal, enorme angústia e desgosto, incorreu a Ré, por não o ter feito, em conduta omissiva que não pode deixar de considerar-se ilícita e culposa, sendo inegável, por ser da lógica e das máximas da experiência, que o risco de infecção aumentou com a prática de vários procedimentos (cirúrgicos) em meio hospitalar a que a A. foi sujeita durante o longo período de internamento nas instalações da Ré.
49. Cabia-lhe através dos seus agentes, que tinham o controle da segurança da A. e dos instrumentos que permitiriam tratá-la, ter tomado as concretas medidas ou operações materiais de desinfecção, tendentes ao banimento de qualquer foco infeccioso, sendo que a A., à data em que entrou nas instalações da Ré para ser assistida a um parto normal, se encontrava numa situação de estabilidade e normalidade de saúde e volvidos vários dias de internamento, após diversas intervenções cirúrgicas, a primeira das quais sem o seu consentimento, fê-la encontrar-se com sequelas (hemorragia, hematomas do períneo, infecção e fístula recto vaginal etc.), debilitada e com franca diminuição das suas capacidades de reacção e defesa.
50. Ao não o fazer, procedeu a Ré de forma censurável, em desacordo com as “leges artis”, infringindo os deveres gerais referidos no art.º 6° do DL n.° 48051 e que no caso se impunham, pelo que agiu com ilicitude e com culpa que aqui se confundem (cfr. Acs de 26/9/96 - rec.º n.° 40177, de 116199 - rec.º n.° 43505 e de 24/9/2003 - rec.º n.° 1864/2002), incumbindo-lhe compensar a A. pelos danos por esta sofridos.
51. Desde o momento em que a A., internada nas instalações da Ré e padecendo de “hematoma profundo, sob tensão, doloroso, com distensão da região perineal, vulvar e vaginal”, solicita, por diversas vezes, a presença do médico obstetra - às 13.30 horas - até ao momento em que se dá a intervenção médica urgente - às 22.00 horas desse mesmo dia - decorrem oito horas e meia.
52. Trata-se de funcionamento irregular e anormal dos serviços duma instituição hospitalar como a Ré, especializada em cuidados obstétricos, em que uma paciente em situação de urgência, internada nos serviços da Ré e apesar de, por diversas vezes, ter solicitado assistência médica, vem a ser intervencionada cirurgicamente 8 horas e meia depois de a ter solicitado.
53. A desvalorização das queixas sobre o estado de saúde da A. e a consequente demora na sujeição à intervenção cirúrgica que se impunha e que apenas ocorreu cerca de oito horas e meia depois das diversas solicitações, constitui omissão na organização dos serviços de urgência da A. naquilo a que a doutrina francesa designou de faute du service, doutrina, aliás, reconhecida na jurisprudência do STA por acórdão de 17 de Junho de 1997 citado.
54. Trata-se de omissão que se relaciona com a má organização do serviço de urgência da Ré, com a privação das garantias médicas que um paciente tem direito a exigir de um serviço público hospitalar, que não se compadece com o funcionamento tardio ou “defeituoso” do serviço público.
55. A Autora - na sequência de um parto eutócito ou normal - contraiu durante os dois longos períodos de internamento nas instalações da Ré graves sequelas, mostrando-se grande a disparidade entre a situação anterior e posterior aos internamentos - o segundo tardio por recusa da Ré em internar a A. - o que revela um funcionamento defeituoso do serviço em que a ilicitude se dilui na culpa e se traduz na prática de omissões que infringem regras de prudência comum como seja o não atendimento pronto e eficaz na contenção de um quadro sintomático óbvio de infecção que progrediu desde um dia após a “alta” (que mais não é do que a ordem médica que deu por terminado o tratamento e o internamento hospitalares confiados à Ré) concedida no dia 30 de Março, ao dia 6 de Abril, data do reinternamento da A., quando esta já apresentava uma fístula recto-vaginal, apesar de se ter deslocado sucessivamente às instalações da Ré (Urgência) no dias 31 de Março, 2 de Abril, 3 de Abril, 4 de Abril e 5 de Abril de 1995 e de a Ré, não obstante o estado patente de infecção, não ter encontrado motivos clínicos para a reinternar.
56. De acordo com a matéria fáctica considerada provada, a organização do serviço da Ré relativamente às solicitações de atendimento acima referidas revelou-se incorrecta, havendo “culpa funcional”, constituindo-se a Ré, no dever de indemnizar a A. pelos danos não patrimoniais (provados em I, Q, V, CC, EE, HH, II, JJ, PP, SS, PPPP e QQQQ) e patrimoniais (provados em UU, VV, RRRR) nos termos dos art.ºs 2° e 6° do D.L. 48.051, de 21/11/1967, e do artigo 483° do Código Civil.
57. Ao ter interpretado diversamente os factos dados como provados na sentença e mediante a subsunção jurídica efectuada, o Tribunal a quo, por via da sentença proferida, violou, entre outras, as disposições previstas no 2° e 6° do D.L. 48.051 e do artigo 483° do Código Civil aplicável ex vi do art.º 4°, no 1 do mesmo diploma legal.
58. A A. não mantém interesse no recurso do agravo retido - art.º 748°, n.° 1, do CPC aplicável.
59. Por todo o exposto, deverá ser dado provimento ao presente recurso de apelação, revogando-se a sentença ora impugnada, substituindo-a por outra que julgue procedente a acção, condenando-se a Ré no pedido, tomando-se em consideração a impugnação da decisão de matéria de facto (art.º 690°- A do CPC aplicável), em decorrência da violação ao disposto no art.º 659°, n° 3, do CPC, para alteração à decisão em “SSS” e “JJJJ” dos factos provados e em consonância com o decidido pelo Tribunal Colectivo na resposta à reclamação sobre as respostas da Base Instrutória a fls. 429 a 431 dos autos (constando do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto ora apreciados) ou, se assim não se entender, reenviando-se o processo à 1ª Instância para conhecimento e suprimento da nulidade a que alude o disposto na al. d) do n.° 1 do art.° 668° do CPC aplicável, pela omissão de pronúncia no que se refere à questão da falta de consentimento da A. à realização da episiotomia, e novo julgamento, nos termos do disposto nos art. ° 712°, n°5 e 729°, n.° 3 do mesmo diploma legal aplicável, afim de suprir as contradições à decisão sobre matéria de facto, assim se fazendo JUSTIÇA.

O Sr. PGA Adjunto emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.
Desde logo, porque não ocorria a invocada nulidade de sentença uma vez que, por um lado, ela se debruçou sobre a falta de consentimento da Autora para a realização da episiotomia e, porque assim era, não tinha havido omissão de pronúncia sobre essa matéria e, por outro, fundamentou suficientemente as respostas aos quesitos negativos afirmando que estas “resultaram da falta ou insuficiência da prova quanto à matéria em causa”.
Ademais, no tocante a esta última alegação, era jurisprudência uniforme deste Tribunal considerar que a nulidade decorrente da falta de fundamentação implicava a falta absoluta da mesma e não fundamentação insuficiente e era óbvio que a sentença não sofria daquele vício. Sendo certo, em qualquer caso, que a Recorrente não tinha reclamado atempadamente daquelas respostas nem da forma como elas foram fundamentadas.
Depois, porque, em sede de recurso jurisdicional o Tribunal só deve alterar a matéria de facto se, após a sua reapreciação, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida. E tal não acontecia in casu.
Acrescia que, muito embora a Recorrente litigasse com razão no tocante à matéria de facto dada como provada na al.ª «JJJ» e à matéria dada como não provada no ponto 4 dos factos não provados, a alteração que importava fazer no tocante a essa matéria não tinha qualquer relevante consequência para a decisão de mérito.
Por outro lado, não existia qualquer contradição entre os factos referidos na conclusão 8.ª e os factos indicados na conclusão 9.ª, nem entre a factualidade constante das al.ªs U, V, W, OOOO e o ponto 15 dos factos não provados, como não existia a contradição factual mencionada na conclusão 12.ª.
Finalmente, não se verificavam os pressupostos de responsabilidade civil já que “não ficou demonstrada qualquer omissão ou falta de cuidado por parte dos serviços da Ré, não ficando provadas quer a ilicitude quer a culpa.”

Mostrando-se colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

I. MATÉRIA DE FACTO

A sentença recorrida julgou provados os seguintes factos:
A. No dia 15 de Março de 1995, cerca das 9.30 horas, a A. deu à luz uma criança do sexo masculino nas instalações da R.
B. No decurso do parto, assistido apenas por uma enfermeira, especialista em saúde materno e obstétrica, sem a presença de médico, a A. sofreu uma episiotomia sem que para tal desse o seu consentimento.
C. O referido acto cirúrgico consistiu apenas numa incisão na região perineal médio lateral direita com cerca de 2-3 cm, de comprimento.
D. Apenas pelas 11.30 horas, a A. foi suturada.
E. Por volta das 13.30 horas a A., acometida de profundas dores e encontrando-se já na sala 23 “NORMAIS“ solicitou, por diversas vezes, junto da enfermeira de turno a urgente presença do médico obstetra.
F. E só cerca das 18.00 horas que se dá a primeira observação por parte dos médicos e é diagnosticado um grande hematoma do períneo.
G. Tratava-se de um hematoma profundo, sob tensão, doloroso, com distensão da região perineal, vulvar e vaginal.
H. Às 22.00 horas do dia 15 de Março foi efectuada a drenagem do referido hematoma, com anestesia geral, não tendo sido identificado vaso a sangrar activamente.
I. A A. apresentava palidez da pele e mucosas bem como tonturas e sofria de um mal-estar crescente que a impedia de sentar, de se deslocar e de prestar os cuidados mínimos indispensáveis ao recém-nascido.
J. Estes sintomas mantêm-se durante todo o dia e noite de 16 de Março e parte do dia seguinte.
K. No dia 17 de Março, dada a persistência da hemorragia, verificou-se uma descida grave do nível de hemoglobina tendo a A. sido submetida a urgente transfusão de 2 unidades de sangue na Unidade de Reanimação e Cuidados Intensivos.
L. Foi feita ainda, na mesma altura, inibição parcial da lactação.
M. Nos dias 18, 19 e 20 de Março verificou-se a persistência de segundo grande hematoma muito doloroso que impossibilitava a marcha em posição normal.
N. No dia 21 de Março constatou-se existirem infecção, infiltrado inflamatório e deiscência da sutura do períneo.
O. No dia 26 de Março a A. é submetida a cirurgia (ressutura do perineo), de novo com anestesia geral.
P. No dia 30 de Março a A., obteve “Alta médica”.
Q. No dia 31 de Março cerca das 23.30 a A., em face da forte inflamação em toda a zona perineal, da febre intensa, das dores profundas, dirigiu-se à Urgência da R. tendo sido realizadas colheitas para exames ao sangue e ao muco (exsudado) vaginal.
R. Após observação no Serviço de Urgência da R. foi efectuada apenas desinfecção local tendo a A. sido medicada somente com “Betadine - dérmico e pomada” (a A. abandonou as instalações da R. cerca das 4.00 do dia 1 de Abril).
S. Perante a persistência do mal-estar voltou a deslocar-se ao Serviço de Urgência da R. no dia 2 de Abril.
T. No dia 3 de Abril a A. dirigiu-se novamente à R. não tendo sido reconhecidos motivos clínicos para reinternamento da mesma.
U. A A., nos dias 4 e 5 de Abril notou a aparecimento de fezes no interior da vagina, o que a levou, já profundamente debilitada, ao Serviço de Urgência da R. no dia 6 de Abril pelas 10.00 horas.
V. Aí foram-lhe diagnosticados infecção, abcesso e fístula recto vaginal.
W. Também no dia 6 de Abril é conhecida pelo médico de serviço da R. a identidade da estirpe da infecção em causa como sendo “Klebsiella Pneumoniae”, atento o resultado analítico da colheita ao exsudado vaginal efectuada em 31 de Março nas instalações da R., e a menos de 24 horas da Alta Médica conferido pela R.
X. Após permanência de quase 24 horas no Serviço de Urgência da R., na expectativa de ser drenado o abcesso, tal não se realizou e foi ministrada nos dias 6, 7, 8 e 9 de Abril forte cobertura antibiótica por via venosa.
Y. No dia 10 de Abril a A. é novamente submetida a terceira intervenção cirúrgica, com anestesia geral.
Z. A A. voltou aos serviços da R. no dia 18 de Abril onde foi observada pelo médico de serviço que insistia na afirmação de que a A. se encontrava bem tendo receitado apenas o antibiótico FLAGYL.
AA. A. desesperada em face da contínua degradação do seu estado de saúde, decidiu-se a ser tratada particularmente pelo prestigiado cirurgião Dr. B…… que a observa pela primeira vez nesse mesmo dia 18 de Abril.
BB. Este cirurgião refere: “Observada por mim pela primeira vez em 18 de Abril de 1995 com uma infecção perineal grave, arrastada com ponto de “partida em parto tido em 15 de Março”. A evolução do problema local foi complicada com uma infecção persistente e difícil de controlar, obrigando a várias intervenções de drenagem que não resolveram o problema. Assim quando a vi pela primeira vez mantinha-se infiltração local extensa com dores intensas e dificuldade de marcha. Não melhorou significativamente com antibioterapia reforçada e acabou por ser internada por mim para uma drenagem cirúrgica mais ampla.”
CC. O referido hematoma provocou à A. dores intensas.
DD. A A., em face da continuada hemorragia, foi submetida a transfusão de sangue.
EE. Em consequência da infecção contraída a A. sofreu uma deescência de resutura que lhe provocou intensas dores.
FF. A A. foi também objecto de segunda intervenção cirúrgica com anestesia geral.
GG. A A. deslocou-se por duas vezes - nos dias 31 de Março pelas 23.30 horas e 2 de Abril - aos serviços de urgência da R. tendo o médico de serviço, recusado internar a doente, limitando-se a medicá-la com Betadine dérmico.
HH. No dia 3 de Abril a A. debaixo de grande sofrimento físico deslocou-se novamente à R., foi observada e, não obstante os sintomas patentes de infecção, recusaram-se a reinternar a doente apesar de a mesma se queixar do estado de saúde em que se encontrava.
II. Em consequência da infecção (Klebsiella) contraída a A. nos dias 4 e 5 de Abril, a par do aumento brutal das dores, detectou o aparecimento de fezes na vagina o que lhe provocou enorme angústia e desgosto.
JJ. Em consequência da infecção (Klebsiella) contraída, a A., nos dias 6, 7, 8 e 9 de Abril, foi sujeita a cobertura antibiótica por via venosa - o que provocou na A. grande sofrimento físico
KK. E inibição provocada da amamentação - o que lhe acarretou profundo desgosto.
LL. Em consequência da infecção (Klebsiella) contraída, a A. foi igualmente sujeita a terceira intervenção cirúrgica com anestesia geral que não conseguiu debelar a infecção que persistia.
MM. E viu-se assim obrigada a ser tratada em consultório particular pelo Dr. B……
NN. E esteve igualmente internada no hospital de S. José (no período compreendido entre 15 e 22 de Maio).
OO. A A. sofreu ainda quarta intervenção cirúrgica no dia 17 de Novembro de 1995 (hospital da C.U.F.) perante a ainda existente fistula entre a parede da vagina e a região perineal - em consequência da infecção (Klebsiella) contraída.
PP. Viu-se privada, com elevado sofrimento, de dar o indispensável carinho ao filho recém-nascido durante os três períodos de internamente hospitalar (os dois primeiros nas instalações da R. e um terceiro no Hospital de S. José) bem como durante o tempo de “alta” nas condições descritas.
QQ. A A., aquando dos factos supra mencionados, tinha completado a fase curricular do seu Mestrado em Linguística na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (com classificação média de Muito Bom), e preparava-se para realizar a dissertação de mestrado com o objectivo de obter uma valorização profissional para progredir na sua carreira como docente.
RR. A A. por força da doença que contraiu, viu-se obrigada a adiar a preparação e consequentemente a apresentação da sua dissertação de Mestrado e, portanto, de progredir em termos profissionais.
SS. A A. padeceu de enorme sofrimento pelo tratamento prolongado, por força da doença que contraiu.
TT. A família mais próxima da A. ficou fortemente chocada.
UU. A A., de despesas com medicação pagou Esc. 64.486$00 para se tratar da doença que contraiu.
VV. E, de tratamento no Hospital da C.U.F., Esc. 12.476$00.
WW. A A. sempre gozara de boa saúde.
XX. A episiotomia a que a A. foi submetida é um tipo de intervenção frequente em partos eutócitos, como o da A. e, por isso, não lhe foi solicitado o seu consentimento, uma vez que o seu quadro clínico assim o exigia naquela altura (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
YY. A A. foi submetida a uma episeorrafia (sutura da incisão da episiotomia) “Apenas pelas 11.30 horas “, atendendo a que após o parto sobrevém a dequitadura (expulsão ou extracção da placenta) e é fundamental assegurar que a mesma foi completa e que concomitantemente há ausência de hemorragia, sendo correctas as duas horas de intervalo (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
ZZ. A episeorrafia obedeceu assim, à técnica médica habitual e às regras de assépsia protocoladas tendo sido verificado e assegurada a hemostase, suturados os músculos bulbocavernoso e transverso superficial, com pontos separados, de modo a reconstituir a integridade anatómica dos panos musculares (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
AAA. Após o referido acto Cirúrgico e antes da transferência da A. para a sala 23, do Serviço de Normais, a mesma apresentava o útero bem contraído e com perdas hemáticas normais (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
BBB. Pelo que teve a vigilância e o acompanhamento do pessoal de enfermagem da Maternidade até que, dadas as queixas da A. foi solicitada atempadamente a observação pela médica do Serviço de Urgência (cf. resposta dada a fls. C4 e ss.).
CCC. O hematoma do períneo que foi diagnosticado à A., cerca das 18 horas, não decorreu necessariamente da episiotomia e episeorrafia a que foi submetida (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
DDD. Após o referido diagnóstico, a A. foi transferida de imediato para o Serviço de Urgência da Maternidade, tendo-se iniciado no local a terapêutica com antialgicos e soros por via endovenosa (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
EEE. E solicitados exames complementares, indispensáveis à preparação do acto cirúrgico de drenagem do hematoma que ocorreu sob anestesia geral às 22 horas do dia 15 de Março (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
FFF. Foram retirados múltiplos coágulos (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
GGG. No decurso do mesmo acto cirúrgico, procedeu-se à lavagem com soro fisiológico quente da incisão da episiotomia, não tendo sido identificado nenhum vaso a sangrar activamente, pelo que se fez a sutura hemostática dos planos musculares e da pele com pontos separados (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
HHH. Verificou-se ainda, pelo toque rectal a integridade da mucosa ano-rectal e colocou-se tampão vaginal (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
III. A A. continuou no pós-operatório sob vigilância médica, tendo-lhe sido administrada analgesia e antibioterapia de largo espectro (ampicilina e gentamicina) para profilaxia da infecção e aplicado gelo no períneo (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
JJJ. A A. foi transferida para a Unidade de Cuidados Pós-Anestésicos, onde permaneceu sob observação durante 24 horas e foi submetida a exames complementares pós- operatórios (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
KKK. O resultado desses exames (0V - 2 980 000; HB - 9,3; FICT - 26,8; GB -16 ); Plaquetas - 184 000), não evidenciava naquela altura a necessidade de proceder a qualquer transfusão de sangue (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
LLL. O exame objectivo realizado à A. na mesma altura, revelou pelos toques vaginal e rectal que as paredes vaginais não tinham sinais de hematoma sob tensão e existia integridade do esfíncter e ampola rectal, sem evidência de abaulamento (cf. resposta dada a fls. 24 e ss.).
MMM. A inibição parcial da lactação a que a A. foi submetida, teve carácter preventivo, e é prática usual em situações clínicas como a descrita pela A. (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
NNN. Vinte e quatro horas após a transfusão, a A. foi transferida para o Serviço de Purpúreas Patológicas com bom estado geral, melhoria sintomática e estabilizada hemodinamicamente com os seguintes resultados laboratoriais: GV - 2 440 000; HB - 7,6; CT - 23,3, tendo sido mantidas a antibioterapia, a analgesia e a administração de sulfato ferroso “per os..” (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
OOO. Estado clínico que, nada fazia prever que no quarto dia pós-operatório viesse a ser diagnosticado uma infecção, infiltrado inflamatório e deiscência da sutura do períneo (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
PPP. Em face disso, procedeu-se à ressutura do períneo no bloco operatório da Maternidade sob anestesia geral (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
QQQ. Essa intervenção consistiu na desinfecção do campo operatório, à excisão dos tecidos superficiais necrosados, à exerése dos tecidos de granulação existentes e à regularização dos bordos da ferida. Tendo-se identificado e isolado os músculos transverso superficial do períneo e bulbo-cavernoso (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
RRR. E na sutura num só plano do tecido muscular e pele, com pontos simples e separados (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
SSS. No final da intervenção foi confirmada a integridade da ampola rectal através do toque rectal (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
TTT. E foi ainda revista a terapêutica antibiótica, instituindo-se gentamicina e clindamicina (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
UUU. Quatro dias depois do pós-operatório, que decorreu sem incidentes, teve alta com o períneo em via de cura e aparentemente com bom aspecto (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
VVV. No dia 31 de Março de 1995 o médico de turno, após colheita de sangue e exsudado vaginal para exame laboratorial, procedeu à desinfecção do períneo e medicou com Betadine, para aplicação tópica (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
WWW. No dia 3 de Abril manteve-se a terapêutica prescrita no dia 31 de Março no Serviço de Urgência da Maternidade (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
XXX. A A. teve alta médica no dia 30 de Março e até então, os exames complementares a que foi submetida não revelaram a presença da referida bactéria (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
YYY. A presença da bactéria “Klebsiella Pneumoniae” apenas existiu na Unidade de Cuidados Intensivos de Recém-Nascidos da Maternidade, local onde a A. nunca esteve internada, tendo sido devidamente controlada (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
ZZZ. A intervenção cirúrgica sob anestesia geral realizada em 10 de Abril pelo Director do Serviço de Urgência, com o fim de promover a cura cirúrgica da fístula recto vaginal, diagnosticado pelo próprio em 6 de Abril, foi eficaz (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
AAAA. Porquanto apesar da natural persistência do edema localizado e outros sinais inflamatórios resultantes da manipulação dos tecidos, a terapêutica indicada com FIagyl visava a profilaxia de eventuais agentes anaeróbios (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
BBBB. O factor tempo permitiria a evolução favorável (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
CCCC. A episeorrafia e a drenagem do hematoma obedeceram às regras de assepsia instituídas na M.A.C. e segundo a técnica médica habitual para este tipo de intervenções (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
DDDD. A sintomatologia descrita pela A. no artigo 33° da douta p.i., resultou do hematoma, não sendo necessariamente consequência directa da episiotomia, pois em muitos casos, em períneos aparentemente intactos pós-parto, pode ocorrer hematomas vulvares intensos (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
EEEE. O hematoma diagnosticado à A. cerca das 18 horas do dia 15 de Março, é uma complicação que pode surgir imediata ou tardiamente e mesmo na ausência de qualquer acto cirúrgico (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
FFFF. Enquanto esteve internada a A. passou pelas situações descritas nas alíneas I, J e K (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
GGGG. A cirurgia (ressutura do períneo) a que a A. foi submetida no dia 26 de Março também obedeceu às regras de assepsia instituídas na M.AC. e foi realizada segundo a técnica médica habitual para este tipo de intervenção cirúrgica (cf. resposta dada a fls. 424 e ss,).
HHHH. Foi dada alta à A. quatro dias depois, com o períneo em via de cura (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
IIII. A recusa do pessoal médico do Serviço de Urgência da Maternidade em reinternar a A. nos dias 31 de Março e 2 e 3 de Abril de 1995, deveu-se a não existirem motivos de ordem médica para tal e de já ter sido prescrita no referido serviço a terapêutica possível naquela altura (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
JJJJ. A depressão reactiva e síndrome de stress pós-traumático (do parto) diagnosticado à A., é muito frequente no pós-parto (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
KKKK. No dia 30 de Março a A. obteve “alta médica” não obstante o estado doloroso em que se encontrava e dele se ter queixado (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
LLLL. No dia 3 de Abril, quando se dirigiu à R., onde não foram reconhecidos motivos clínicos para reinternamento, a A. continuava com grande hematoma muito doloroso que a impossibilitava a marcha em posição normal (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
MMMM. Em consequência do provado nas alíneas E) e F) a A. sofreu choque psicológico (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
NNNN. Em consequência do hematoma a A, foi sujeita a intervenção cirúrgica com anestesia geral sem que tivesse sido identificado a fonte da hemorragia (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
OOOO. Como consequência do hematoma, a A. padeceu igualmente de infecção pós-operatória do períneo que se prolongou pelo menos até Setembro de 1995 (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
PPPP. As deslocações e as recusas ao internamento da doente causaram à A. fadiga, nervoso e abalo psicológico (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
QQQQ. O sofrimento psicológico provocado acarretou à A. necessidade de tratamento psiquiátrico efectuado pelo Professor Doutor D…… em consultório particular (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
RRRR. Pagou a A., de consultas particulares para se tratar da doença que contraiu, Esc.213.000$00 (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
SSSS. Em 14.10.1997 foi emitido o Relatório Final no âmbito de um processo de inquérito aos factos relacionados com a assistência prestada à ora A., aberto após queixa desta, conforme doc. de fls. 98 a 133, que aqui se dá por reproduzido, na sequência do qual por despacho de 31.12.1997, do Inspector-Geral da IGS, exarado naquele relatório, foi arquivado o inquérito (facto considerado nos termos dos artigos 659°, n°2 e 264°, n°2, do CPC).
TTTT. Em 30.08.1996 no âmbito do referido processo de inquérito foi emitido o relatório pericial de fls. 353 a 363, que aqui se dá por reproduzido (facto considerado nos termos dos artigos 659°, n.° 2 e 264°, n.° 2, do CPC).
*
Factos não provados:

1. No dia 31 de Março de 1995 quando a A. foi observada no Serviço de Urgência cerca das 23.30 horas pelo médico de turno, a sua situação clínica era idêntica à do dia da alta médica (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
2. No dia 3 de Abril, continuando o estado clínico da A. idêntico ao do dia 31 não houve necessidade de proceder ao seu reinternamento, uma vez que, naquela altura, a única terapêutica possível já tinha sido prescrita no dia 31 de Março no Serviço de Urgência da Maternidade (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
3. A infecção da autora causada pela presença da bactéria Klebsiella Pneumoniae foi contraída nas instalações da Maternidade (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.)
4. A episiotomia a que a A. foi submetida durante o parto não foi necessariamente a origem do hematoma que foi diagnosticado cerca das 18.00 horas do dia 15 de Março (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
5. A A. após a episeorrafia, no período entre as 13.30 e as 18.00 horas do dia 15 de Março esteve sob vigilância e acompanhamento do pessoal de enfermagem até ao momento em que foi tido por necessária a observação médica (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
6. A A. durante o parto, e enquanto esteve internada, nunca correu perigo eminente de vida (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
7. Para além de que, o reiternamento da A. só iria agravar ainda mais a debilidade dos seus estados físico e psíquico (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.)
8. O estado clínico da A. após o parto requerendo vigilância, acompanhamento médico e internamento hospitalar não a impediram de se relacionar com o filho recém-nascido (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
9. Após a terceira intervenção cirúrgica, com anestesia geral, de 10 de Abril, a A. carecia de efectiva medicação, internamento e nova intervenção adequados (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.)
10. O referido hematoma foi consequência directa da episiotomia realizada pela R. (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
11. A A., não obstante as insistentes queixas e apelos à vinda de médico, foi vítima da omissão de assistência médica no período compreendido entre 13.30 horas e as 18.00 do dia 15 de Março, hora a que foi observada e em que lhe foi diagnosticado o referido hematoma que se formou e agravou neste período de tempo (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
12. Em consequência desta omissão a A. sofreu profundo choque psicológico e uma degradação muito acentuada do seu estado geral em consequência do grande hematoma que entretanto se formara (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
13. Quando a A. foi sujeita a intervenção cirúrgica impunha-se que tivesse sido identificado a fonte da hemorragia para que não se voltasse a formar novo hematoma (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
14. A A., em face da continuada hemorragia, sofreu o risco eminente de perder a sua vida (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
15. Esta infecção, causada pela bactéria ‘Klebsiella’, foi contraída durante o período de permanência nas instalações da R. por não existirem condições de assepsia hospitalar capazes de erradicar a referida bactéria (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
16. As sucessivas recusas ao necessário e urgente reinternamento da doente acarretaram perigo grave para a sua saúde (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).
17. A A., para efeitos de progressão na carreira, perdeu a bonificação de quatro anos de serviço docente por obtenção do grau de Mestre durante o período de dois anos e meio - no montante de Esc. 996.200$00 (Esc.29.300$00 x 34 meses) (cf. resposta dada a fls. 424 e ss.).

II. O DIREITO

A Recorrente intentou, no TAC de Lisboa, contra a Maternidade Dr. Alfredo da Costa (doravante MAC) acção administrativa especial pedindo a sua condenação no pagamento de uma indemnização que a ressarcisse dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos durante e após o parto que teve lugar nesse estabelecimento de saúde, os quais resultaram da omissão e/ou da deficiência da assistência médica e dos tratamentos que lhe foram ministrados nessa ocasião.
Com efeito, e em suma, aí fizeram-lhe sem o seu consentimento uma incisão no períneo e a correspondente sutura o que provocou hemorragia e hematoma que não foram atempada e correctamente tratados daí resultando infecção, infiltrado inflamatório e deiscência da sutura e a necessidade de ser cirurgicamente intervencionada. Acresce que, apesar do seu estado de saúde exigir o internamento, os médicos da Ré deram-lhe «alta» o que a obrigou a regressar por diversas vezes aos seus serviços de urgência, debaixo de grande sofrimento físico e muito angustiada com a contínua degradação do seu estado de saúde, para receber novos tratamentos e fazer novas cirurgias. No pós-operatório foi infectada nas instalações da Ré por uma bactéria e tal ficou a dever-se à inexistência de assepsia hospitalar capaz de a erradicar.
Tudo isto provocou-lhe dores físicas, sofrimento psicológico, significativas perdas económicas e atrasos na progressão da sua carreira académica e profissional.

Essa acção foi, contudo, julgada improcedente por ter sido entendido que não se provara que a Ré praticara factos ilícitos e culposos já que ficara por demonstrar que os seus profissionais tivessem infringido as leges artes ou o dever geral de cuidado que deviam ter observado aquando dos tratamentos e intervenções a que a Autora foi submetida ou que não tivessem tido a diligência e a atenção que os profissionais medianamente competentes, prudentes e avisados costumam ter. Como ficara por provar a existência de um nexo de causalidade entre aquelas intervenções e tratamentos e os peticionados danos.

Esta decisão não convenceu a Autora e daí o presente recurso. Nele se sustenta que a sentença está ferida por vícios que determinam a sua nulidade e por erros de julgamento que impõem a sua revogação.
Vejamos, pois.

1. A Recorrente reputa a sentença de nula por entender que a fundamentação dos factos não provados devia ser feita através de uma criteriosa “apreciação crítica das provas propostas pelas partes de modo a evidenciar a razão ou razões que levaram o Tribunal a quo a concluir não serem as mesmas suficientes para infirmarem a conclusão diversa da de considerar tais factos como não provados, ou seja, a sindicabilidade da decisão sobre matéria de facto é incompatível com a desnecessidade da fundamentação das respostas não provado (Vd. conclusão 16.ª.), e de tal não ter acontecido o que significava ausência de fundamentação dessa decisão e a consequente nulidade da sentença.
Mas não tem razão.

Inexiste dúvida de que a decisão sobre matéria de facto deve declarar “quais os factos que o Tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador” (art.º 653.º/2 do CPC) pelo que a Recorrente teria razão se, na fundamentação dos factos julgados não provados, fosse de concluir que essa obrigação foi incumprida.
Mas tal não aconteceu.

Com efeito, colhe-se nos autos que, finda a leitura das respostas aos quesitos, a Autora reclamou contra essa decisão afirmando: (1) que as respostas aos quesitos 20.º, 21.º, 22, 23.º, 27.º, 29.º, 39.º e 54.º não foi suportada numa análise crítica das provas e que a mesma omitiu as razões que a levaram a desconsiderar os depoimentos de certas testemunhas; (2) que havia contradição entre as respostas dadas aos quesitos 30.º e 47.º; e que (3) a resposta ao quesito 44.º não fora fundamentada já que não foi acompanhada da razão porque tinha sido considerado provado.
O Tribunal apreciou essa reclamação pela forma constante de fls. 429 a 432 e essa decisão, aparentemente, convenceu a Autora já que esta, neste recurso, não regressou a essa matéria centrando agora a sua crítica ao julgamento da matéria de facto na alegada falta de fundamentação das respostas aos quesitos julgados não provados.
Mas essa crítica não procede já que o Tribunal justificou essa decisão dizendo que “as respostas de sentido negativo resultaram da falta ou insuficiência da prova produzidas quanto à matéria da causa” o que constitui uma indicação suficientemente clara dos motivos porque tais quesitos foram julgados não provados. É certo que o Tribunal podia ter sido mais rigoroso e ter exposto com maior detalhe as razões porque decidira que os depoimentos prestados a esses quesitos não eram convincentes ou não tinham trazido matéria suficiente para que os mesmos fossem julgados de forma diferente. Mas o desenvolvimento pretendido pela Recorrente nas respostas a esses quesitos não é exigido pela citada norma já que esta exige apenas a análise crítica das provas e a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador não exigindo que a fundamentação da resposta a cada um dos quesitos não provados tenha de se traduzir numa análise exaustiva de cada uma das provas que a eles foram indicados.
Deste modo, atenta a justificação suficientemente circunstanciada dos quesitos julgados provados, bastava uma indicação, ainda que sumária, do motivo porque certos quesitos foram julgados não provados para que a sua fundamentação pudesse ser considerada consoante à lei. E, se assim é, e se, no exercício dos seus poderes de livre apreciação (art.º 655.º do CPC), o Tribunal considerou que as provas apresentadas aos quesitos não provados era insuficiente para que eles poderem merecer resposta diferente, a sentença não sofre do vício que se lhe aponta.

1. 1. A Recorrente sustenta que a sentença é, ainda, nula por uma outra razão; por não se ter pronunciado sobre as consequências jurídicas decorrentes de não ter dado consentimento à realização da episiotomia.
Mas essa alegação não é verdadeira visto a sentença se ter debruçado sobre essa questão afirmando que o consentimento da Recorrente relativamente à realização dessa intervenção era dispensável, atenta a frequência com que ela acontecia, querendo com isso dizer que sendo a mesma uma ocorrência normal e vulgar durante os trabalhos de parto aquele consentimento era dispensável. E daí que essa omissão não fosse ilícita.

2. A Recorrente entende que o Tribunal errou ao consignar no probatório, sob as al.ªs «SSS» e «JJJJ», que “no final da intervenção foi confirmada a integridade da ampola rectal através do toque rectal” e que “a depressão reactiva e síndrome de stress post traumático (do parto) diagnosticado à A., é muito frequente no pós-parto” quando a verdade é que esses quesitos haviam sido julgados não provados.
E há que reconhecer que, neste ponto, tem razão.
Com efeito, a resposta inicialmente dada a esses quesitos foi a de provado mas, a reclamação da Autora, o Tribunal reconsiderou e, corrigindo tais respostas, acabou por julgar tais quesitos como não provado (vd. fls. 425, 428, 430 e 431).
Trata-se de um evidente lapso e não propriamente de um erro de julgamento pelo que, sem necessidade de mais desenvolvidas considerações, se excluem esses factos da matéria julgada provada acrescentando-se os mesmos aos factos considerados não provados.

3. A Recorrente defende que o Tribunal violou o princípio do contraditório ao ter “considerado oficiosamente como facto assente os Relatórios Final e Pericial no âmbito do processo de inquérito realizado pela Inspecção-Geral de Saúde aos factos relacionados com a assistência prestada à A., na sequência do qual foi proferido despacho de arquivamento, sem sujeitar tais factos ao exercício do contraditório, de modo que pudessem efectivamente serem clarificados ou esclarecidos os factos essenciais que já constavam da decisão sobre matéria de facto.”
Mas não tem razão.
E isto porque, muito embora esse Relatório - elaborado no âmbito de um inquérito que a IGS mandou fazer - tenha sido oficiosamente mandado juntar aos autos (pg. 97), tenha sido objecto de ponderação nas respostas dadas aos quesitos (fls. 426) e tenha, até, sido levado ao probatório sob a al.ª SSSS certo é que o mesmo, logo que junto, foi notificado à Recorrente e esta pôde não só se pronunciar sobre o seu conteúdo como também requerer a junção de elementos com ele relacionados (pg. 136). De resto, encontrando-se esse documento nos autos e sendo o seu conteúdo conhecido pelas partes, não faz sentido alegar que o facto dele constar do probatório constitui violação do princípio do contraditório tanto mais quanto é certo que elas não só podiam impugná-lo como, aquando das alegações, fazer as considerações que julgassem oportunas sobre o seu conteúdo.
E daí que também se não perceba porque razão se afirma que a sentença constitui uma decisão surpresa.

4. A Recorrente alega que o ter-se afirmado na sentença que “A episiotomia a que a A. foi submetida durante o parto não foi necessariamente a origem do hematoma que foi diagnosticado cerca das 18.00 horas do dia 15 de Março” só pode ser interpretado como significando que aquela intervenção pode ter estado na origem do referido hematoma o que contradiz o facto constante da al.ª CCC - “O hematoma do períneo que foi diagnosticado à A., cerca das 18 horas, não decorreu necessariamente da episiotomia e episiorrafia a que foi submetida” - e ainda com o não provado em 10 - “O referido hematoma foi consequência directa da episiotomia realizada pela R.”.
Mas a interpretação sugerida pela Recorrente não é aceitável visto a forma como ele foi redigido só poder querer significar que a origem do hematoma que sobreveio à episiotomia é desconhecida e que, por isso, não será através dele que se poderá ficar a conhecer a origem do mesmo. E, se assim é, inexiste qualquer contradição entre aquele facto e o que se consignou na al.ª CCC e com o facto dado como não provado sob o n.º 4.

Acresce que a alegação da Recorrente é, no fundo e ainda que veladamente, uma censura à forma como aquele quesito foi redigido, mas essa censura é tardia já que a mesma, acompanhada de requerimento a solicitar a alteração dessa redacção, deveria ter sido feita aquando da notificação da base instrutória. Não tendo tal sido feito não é agora que se pode pretender modificar a resposta àquele quesito ou atribuir-lhe um significado que ele não tem.

5. A Recorrente afirma, que a sentença contém um “acervo de contradições na decisão da matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, devendo-se, em consequência, determinar a remessa ao Tribunal recorrido em ordem a suprir tais deficiências.” Alegação que, a ser verdadeira, poderia determinar não só a nulidade da sentença - uma vez que a existência de fundamentos de facto contraditórios equivaleria a ausência de fundamentos (art.º 668.º/1/b) do CPC), visto ambos se anularem reciprocamente – mas também a remessa dos autos ao Tribunal a quo para que essa contradição pudesse ser desfeita.
Vejamos que contradições são essas e se elas se verificam.
A
A Autora sustenta que os factos provados em Z, AA, BB, LL e em OO contradizem o vertido em ZZZ e BBBB e bem assim o considerado não provado no ponto 9.

Mas não tem razão.
Desde logo, porque o julgar-se não provado um determinado quesito não equivale a dizer que se tenha por provado o contrário do que nele se pergunta. Deste modo, se se consignou que se não provou que, após a terceira intervenção, a Recorrente precisava de efectiva medicação, de novo internamento e de nova intervenção não quer dizer, em contraponto, que a Autora carecesse de medicação, de novo internamento e de nova intervenção.
Depois, porque os factos provados em Z, AA, BB, LL e OO apesar de nos informarem que a Recorrente, em 18/04, ainda se não encontrava bem, muito embora o médico da Ré afirmasse o contrário, e que a infecção que a atingiu a forçou a uma terceira intervenção, sem grande êxito visto em Novembro ter sido submetida a nova cirurgia, só poderão ser considerados contraditórios com as afirmações vertidas em ZZZ e BBBB - de que a intervenção de 10/4 tinha sido eficaz e que o tempo iria permitir uma evolução favorável - se pudéssemos atribuir a este “eficaz” o sentido de que a intervenção de 10/4 tinha solucionado definitivamente os problemas da Recorrente e de que o tempo que se lhe seguiria, por si só, iria melhorar o seu estado de saúde. Mas essa interpretação não é legítima tanto mais quanto é certo que na al.ª AAAA se explica porque se considerou eficaz a dita cirurgia e daí não se retira o sentido que a Recorrente lhe atribui.
Finalmente, o considerar-se que a Autora passou mal não equivale a dizer que a ela esteve em perigo de vida.
B
A Recorrente defende que o facto FFFF (Enquanto esteve internada a Autora passou pelas situações descritas em I, J e K) contradiz o facto considerado não provado no ponto 6 (A Autora durante o parto, e enquanto esteve internada, nunca correu perigo eminente de vida) mas também sem razão e isto porque, uma vez mais, erradamente, a Recorrente supõe que o julgar-se não provado que ela nunca correu perigo de vida equivale a considera-se provada a situação contrária, isto é, que ela correu esse perigo. Ora, essa interpretação não tem fundamento.
C
A Recorrente vislumbra uma contradição entre a parte discursiva da sentença e o facto constante da al.ª K já que naquela se afirma que “Não resulta dos autos e designadamente da matéria provada, portanto, que existia uma hemorragia, que era exigido aos médicos da MAC identificar em momento anterior ao que ocorreu essa identificação” (fls. 19 da sentença, penúltimo parágrafo), e em “K” se alude, de modo inequívoco, à existência de uma hemorragia (persistente) de que padecia a A.
Se tal fosse verdade isso corresponderia a erro de julgamento – uma errada interpretação dos factos constantes do probatório – o qual determinaria a revogação da decisão e não a nulidade da sentença.
Mas a alegada contradição não existe já que o sentido da frase acima transcrita é o de afirmar que não era exigível aos médicos da Ré que identificassem a mencionada hemorragia antes do momento em que dela se deram conta e que, por isso, a sua conduta e a forma como trataram a Recorrente não era censurável. De resto, são diversos os pontos onde a sentença se refere a existência da hemorragia e, assim sendo, que não faz sentido supor que ela declarou que não existia hemorragia.
D
E - na alegação da Recorrente - era também visível a contradição entre a factualidade julgada provada em U, V, W, e OOOO e o facto de se ter considerado não provado que a “infecção causada pela bactéria Klesiella foi contraída durante o período de permanência nas instalações da Ré”.
Mais uma vez a argumentação da Recorrente improcede e isto porque a circunstância de ter sido julgado não provado que a Recorrente tivesse contraído dita infecção nas instalações da Ré significa, apenas e tão só, que ficou por apurar onde e quando aquela infecção foi contraída – se nas instalações da Ré no período do seu internamento ou se noutro local e noutra ocasião. Acresce que dos identificados factos só o referido em W se refere àquela infecção e àquela bactéria para afirmar a existência de uma relação entre eles e, por isso, não se entende a convocação dos factos constantes de U, V e OOO para fundamentar a alegada contradição.
E
E também não se verifica a contradição entre os factos inscritos sob as al.ªs E, F, G e H com o facto constante em BBB uma vez que a circunstância da Recorrente, após o parto, ter sido colocada na sala das parturientes normais e de só cerca das 18H ter sido observada por um médico obstetra, apesar de desde cerca das 13,30H ter solicitado a sua presença, não quer significar que ela não tenha tido a vigilância e o acompanhamento do pessoal de enfermagem da Ré e que não tenha sido solicitada atempadamente a presença de um médico, visto esta solicitação poder ter sido feita mas não ter sido atendida. Importa, ainda, repetir o que vem sendo dito acerca das consequências a retirar dos factos não provados, isto é, que deles não se pode retirar a existência do facto que se lhe opõe e que, por ser assim, os factos não provados 11 e 12 não podem contribuir para a existência da alegada contradição.
F
Finalmente, a Recorrente sustenta que os factos constantes das al.ªs QQQ, RRR, SSS, TTT e GGGG - que descrevem em que consistiu a intervenção cirúrgica a que a mesma foi submetida, a situação clínica em que se encontrava e a terapêutica que lhe foi ministrada - se encontram em contradição com o que consta no Relatório da IGS, considerado como provado em SSSS, já que neste se refere a insuficiência ou, mesmo, a ausência de registos clínicos.
Mas essa contradição não existe uma vez que a falta daqueles registos não impede a reconstituição da situação clínica da Recorrente através de elementos porventura não conhecidos ou desatendidos aquando da realização daquele Relatório. Ademais, embora este Relatório tenha sido um dos elementos de prova a que o Tribunal lançou mão isso não significa que o que nele se contém é o repositório da verdade absoluta insusceptível de ser contrariada ou complementada por outras provas.

São, assim, inexistentes as contradições visualizadas pela Recorrente.

Posto isto vejamos o mérito da causa.

6. A presente acção vem fundada na responsabilidade civil extra contratual da Ré.
É ponto assente que essa responsabilidade decorre de actos de gestão pública e que assenta nos pressupostos da responsabilidade civil previstos nos art.ºs 483.º e seg.s do CC, o que vale por dizer que a sua concretização depende da prática de um facto (ou da sua omissão), da ilicitude deste, da culpa do agente, do dano e do nexo de causalidade entre o facto e o dano (Vd., a título meramente exemplificativo, Acórdãos de 16/3/95 (rec. 36.993), e 21/3/96 (rec. 35.909), de 30/10/96 (rec. 35.412), de 13/10/98 (rec. 43.138), de 6/03/2002 (rec. 48.155), de 26/9/02 (rec. 487/02) de 6/11/02 (rec. 1.331/02) e de 18/12/02 (rec. 1.683/02).) .

E, porque assim é, não haverá que censurar a sentença se for de concluir que os médicos e demais funcionários da Ré não infringiram as suas obrigações legais ou as regras de ordem técnica e de prudência comum que deviam ter observado na assistência prestada à Recorrente e, portanto, que não foram eles a provocar os danos que ela quer ver ressarcidos. E isto porque o citado normativo estabelece que só fica constituído na obrigação de indemnizar aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger os interesses alheios e o disposto no art. 6.º do citado DL 48.051 prescrever que só se consideram «ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração».
Ou seja, só haverá que censurar a sentença e concluir pela responsabilidade da Ré no pagamento dos prejuízos peticionados se for entendido que os seus serviços, no exercício das suas funções e por causa dele, praticaram os actos ilícitos e culposos determinantes daqueles danos.

7. É sempre difícil e delicado considerar se a realização de determinado acto ou tratamento de natureza médica foi o mais correcto e adequado às circunstâncias ou se, pelo contrário, na realização dessa actividade houve violação das regras de ordem técnica (as leges artis) e/ou das regras de cuidado e prudência comum que deviam ter sido observadas, pois não sendo o exercício da medicina uma ciência exacta em que o diagnóstico e o tratamento que lhe corresponde tenham de ser um único é forçoso concluir que um mau resultado não prova, sem mais, um mau diagnóstico e/ou um mau tratamento. Dito de forma diferente, o facto do resultado pretendido com o tratamento prescrito não ser obtido não significa que isso se ficou a dever a falta censurável ou ilícita. E isto porque a obrigação do médico consiste, apenas e tão só, em prestar ao doente os tratamentos exigidos pelo seu estado, com vista a restituir-lhe a saúde ou minorar-lhe os padecimentos, nela não estando incluída a obrigação de garantir o seu êxito.
E, por ser assim, não é fácil definir quando é que no exercício dessa actividade - onde intervêm as mais variadas condicionantes e onde se colocam (ou podem colocar) inúmeras dúvidas e incertezas - foi cometido um erro e, mais difícil ainda, afirmar que esse erro resultou da falta de cuidado, da falta dos conhecimentos técnicos exigíveis – as designadas leges artis (As quais vêm sendo definidas como o conjunto de regras técnico-científicas que um médico medianamente competente, prudente e sensato tem obrigação de conhecer e de saber utilizar correctamente, tendo em conta o estado da ciência e a situação concreta do doente.) –, da imponderação, da falta de diligência ou da violação das regras legais, regulamentares, de experiência comum que deviam ter sido empregues. Tanto mais quanto é certo que o médico, quer no diagnóstico quer no tratamento, não pode prever todas as hipóteses nem antecipar todos os riscos pelo que é errado pensar que as leges artes e as demais regras só estão cumpridas quando a sua acção é coroada de êxito. Daí que só se lhe possa exigir que represente os riscos prováveis ou os que, comummente, se produzem e, “de entre os demais possíveis, os que, por não serem extraordinários ou fortuitos, possam ainda caber nas expectativas de um avaliador prudente (Acórdão do STA de 29/01/2009, (REC. 966/08).).
Deste modo, a circunstância do resultado desejado não ter sido alcançado não significa que as opções tomadas não tenham sido as devidas ou as mais aconselháveis no momento em que ocorreram tanto mais quanto é certo que, sendo a natureza e a constituição física de cada doente diferente e única, não é possível garantir que a terapêutica que resultou nuns casos resulta em todos os demais. E, porque assim é, não se pode afirmar que o médico errou só porque o doente não reagiu ou reagiu mal ao tratamento ministrado (Vd. A. Henriques Gaspar “A Responsabilidade Civil do Médico”, in Colectânea de Jurisprudência, ano III, 1978, Tomo I, pg. 342. ).

Nesta conformidade, o erro médico capaz de desencadear os mecanismos indemnizatórios terá de ser aferido não em função do (mau) resultado obtido mas em função do juízo que se faça sobre a forma como o profissional agiu e desse juízo resultar a conclusão de que houve uma culposa violação das regras que ele devia respeitar e de que se ela não se tivesse verificado os danos cuja reparação se peticiona não teriam sido existido. Ou seja, a apontada responsabilidade pressupõe a formulação de um juízo de reprovação que parte da existência de um comportamento padrão que o agente podia e devia observar e de que ele não foi observado e que foi esse desvio que provocou os danos que se impõe ressarcir. O que, a contrario, quer dizer que se o médico usou do cuidado, da ponderação, dos meios e dos conhecimentos técnicos e científicos que lhe eram exigíveis e se, apesar disso, o resultado foi mau não se pode deixar de considerar que ele cumpriu o seu dever e, por isso, que se não lhe pode imputar responsabilidade civil extracontratual a título de ilicitude e culpa.

Posto isto, cumpre analisar, à luz dos princípios acabados de expor, se os serviços médicos da Ré incorreram nas faltas que a Recorrente lhe imputa. Para o que importa ordenar de modo lógico e coerente os factos que constam do probatório, corrigindo-se a forma caótica como se encontram ordenados - a qual, como se viu, levou a Recorrente visualizar nessa factualidade um sem número de contradições – pois sem esse ordenamento dificilmente se poderá compreender como tudo se passou e proferir a decisão que melhor se lhes adapta.

8. A Recorrente, pelas 9,30H do dia 15/03/95, deu à luz uma criança nas instalações da Ré, assistida apenas por uma enfermeira a qual, durante os trabalhos de parto, lhe fez uma episiotomia (uma incisão na região perineal destinada a facilitar a extracção fetal) com cerca de 2/3 cm de comprimento para a qual, por se tratar de uma intervenção normal e frequente, não lhe foi pedido o seu consentimento. Tanto a episiotomia como a episiorrafia (a sua sutura) foram feitas de acordo com as técnicas médicas habituais e as regras de assépsia protocoladas, sendo que a sutura foi feita dentro do intervalo de tempo recomendado. De seguida, atenta a aparente normalidade do seu estado - apresentava um útero bem contraído com perdas hemáticas normais - a Recorrente foi transferida para a sala das «Normais» onde ficou sob a vigilância e o acompanhamento do pessoal de enfermagem (A, B, C, D, E, XX, YY, ZZ, AAA, BBB e CCCC).
Pelas 13,30H a Recorrente foi acometida por fortes dores pelo que solicitou, por diversas vezes, junto da enfermeira de turno, a urgente presença de um médico mas sem sucesso já que este só se deslocou para a observar cerca das 18H e, nesta altura, diagnosticou-lhe um hematoma do períneo, profundo, sob tensão, doloroso, com distensão da região perineal, vulvar e vaginal o qual, bem como as dores intensas que provocou, pode não ter decorrido da episiotomia e episiorrafia a que a Autora foi submetida visto, por um lado, ele poder surgir, imediata ou tardiamente, na ausência de qualquer acto cirúrgico e, por outro, poderem ocorrer hematomas vulvares intensos em períneos aparentemente intactos pós-parto (E, F, G, CCC e EEEE).
Após o diagnóstico do referido hematoma a Autora foi imediatamente transferida para o serviço de urgência, tendo sido iniciada a terapêutica com antiálgicos e com soros por via endovenosa e solicitados os exames necessários à preparação da sua drenagem a qual ocorreu, sob anestesia geral, às 22H desse dia 15/03, e consistiu na lavagem da incisão e na retirada dos múltiplos coágulos que se haviam formado. Não tendo sido identificado nenhum vaso a sangrar activamente e tendo sido verificada a integridade da mucosa recto-anal foi feita a sutura hemostática dos planos musculares e da pele. No pós-operatório a Recorrente continuou sob vigilância médica, foi-lhe ministrada a medicação considerada adequada para a profilaxia da infecção e foi transferida para a Unidade de Cuidados Pós-Anestésicos onde permaneceu sob observação durante 24H, aí sendo submetida a exames complementares pós operatórios os quais não evidenciaram a necessidade de qualquer transfusão de sangue. Nesse período foi-lhe feito exame que revelou que as paredes vaginais não tinham sinais de hematoma sob tensão e que existia integridade do esfíncter e ampola anal (H, DDD, EEE, FFF, GGG, HHH, III, JJJ, KKK e LLL).
Porém, apesar da aparente correcção dos tratamentos a que a Recorrente foi submetida e da aparente evolução favorável do seu estado, a verdade é que ela apresentava palidez da pele, tinha tonturas e mal estar o que a impedia de se sentar, de andar e de prestar os cuidados mínimos ao recém nascido, sintomas que se mantiveram durante todo o dia e noite de 16/03 e parte do dia seguinte, dia em que, perante a persistente hemorragia responsável pela grave descida do nível da hemoglobina, foi submetida a uma urgente transfusão de 2 unidades de sangue. 24 H após essa transfusão foi transferida para o Serviço de Purpúreas Patológicas em bom estado geral, com melhoria sintomática e estabilizada hemodinamicamente, o que não fazia prever que no quarto dia pós-operatório viesse a ser diagnosticada uma infecção, infiltrado inflamatório e deiscência da sutura do períneo. Nessa altura foi feita a inibição parcial da lactação a qual teve carácter preventivo e é normal em situações como a da Recorrente (I, J, K, L, MMM, NNN e OOO).
Num dos dias seguintes surgiu um novo e grande hematoma, muito doloroso, que persistia nos dias 18, 19 e 20/03 o que impedia a Recorrente de andar na posição normal e, no dia 21/03, constatou-se existir infecção, infiltrado inflamatório e deiscência da sutura do períneo. O que obrigou a que, no dia 26, fosse submetida a nova cirurgia, com anestesia geral, que consistiu na desinfecção do campo operatório, na excisão dos tecidos necrosados, na exerése dos tecidos de granulação existentes, na regulação dos bordos da ferida e na ressutura do períneo. No final da intervenção foi confirmada a integridade da ampola rectal, revista a terapêutica antibiótica e no quarto dia do pós-operatório (30/03), que decorreu sem incidentes, foi-lhe dada alta, não obstante o estado doloroso em que se encontrava e de se ter queixado disso, com o períneo em via de cura e aparentemente em bom estado e sem suspeita de que tivesse sido infectada por qualquer bactéria (M, N, O, P, PPP, QQQ, RRR, SSS, TTT, KKKK, UUU e XXX).
Porém, logo no dia seguinte a ter tido alta (31/03), pelas 23,30H, a Recorrente, atenta a forte inflamação em toda a zona perineal, a febre intensa e as dores profundas, foi obrigada a dirigir-se à urgência da Ré onde lhe fizeram uma desinfecção local, colheitas para exames ao sangue e ao muco vaginal e medicaram-na com Betadine recusando-se, porém, a interná-la pelo que a Recorrente regressou a casa (Q, R, GG e VVV). Mas o seu mal-estar persistiu o que a levou a dirigir-se, debaixo de grande sofrimento físico, aos serviços da Ré nos dias 2 e 3/04 mas os médicos desta, não obstante os sintomas patentes de infecção, da existência de um hematoma muito doloroso que a impossibilitava de caminhar normalmente e das queixas que apresentou, não viram motivos para o seu reinternamento pelo que regressou a casa sem qualquer alteração na sua medicação (S, T, HH, IIII, LLLL e WWW).
Nos dias 4 e 5/04, a Recorrente, a par do aumento brutal das dores, notou o aparecimento de fezes no interior da vagina o que lhe provocou enorme angústia e sofrimento e a levou, já profundamente debilitada, a recorrer aos serviços de urgência da Ré, pelas 10H do dia 6/04, onde lhe diagnosticaram infecção, abcesso e fístula recto vaginal e ficaram a conhecer, pelos resultados analíticos do muco vaginal anteriormente colhido, que a origem daquela infecção era uma bactéria (KLEBSIELLA) que tinha sido detectada numa Unidade da Ré onde a Recorrente não havia estado internada (U, V, W, II e YYY).
A Recorrente esteve quase 24 horas naquele serviço na expectativa de lhe ser drenado o abcesso, o que não aconteceu, tendo-lhe nos dias 6, 7, 8 e 9/04 sido apenas ministrada forte cobertura antibiótica por via venosa, que lhe provocou grande sofrimento físico. No dia 10/04 a Recorrente, em consequência da infecção contraída pela citada bactéria, foi submetida a terceira intervenção cirúrgica, com anestesia geral, para promover a cura cirúrgica da fístula recto vaginal diagnosticada a 6/04, mas a infecção não foi debelada e apesar da mesma persistir regressou a casa (X, Y, Z, LL e ZZZ).
Voltou aos serviços da Ré no dia 18/04 onde foi novamente observada pelo médico de serviço que, insistindo em que se encontrava bem, lhe receitou apenas um antibiótico pelo que desesperada, face à contínua degradação do seu estado de saúde, consultou um cirurgião particular que lhe fez o diagnóstico que se pode ler na al.ª BB e a tratou (Z, AA e MM).
A Recorrente esteve igualmente internada no Hospital de S. José entre 15 e 22/05 e foi novamente operada no Hospital da CUF no dia 17/11 para curar a fístula que persistia entre a parede da vagina e a região perineal provocada pela infecção resultante da supra referida bactéria (NN e OO).
As deslocações e recusas de internamento causaram à Recorrente fadiga, nervoso e abalo psicológico pelo que teve de ser trata psiquiatricamente (PPPP e QQQQ).

9. Ordenados os factos por forma a permitir uma melhor compreensão do que, realmente, se passou resta indagar se na abordagem desse caso os serviços da Ré respeitaram, ou não, o standard técnico-científico de comportamento que lhes era exigível. Para isso importa colocarmo-nos na situação em que o caso se lhes apresentou para depois, despindo-nos do conhecimento da sua evolução posterior, comparar se o que foi feito está conforme a diligência, o cuidado e as leges artis que deviam ter sido observadas as quais, na maioria das vezes, “são regras não escritas, são métodos e procedimentos, comprovados pela ciência técnica, que dão corpo a standards contextualizados de actuação aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica como os mais adequados e eficazes.” – Ac. deste STA de 13/03/2012 (proc. 477/11). No mesmo sentido vd. Acórdão de 12/04/2012 (proc. 798/11).

A leitura desses factos permite-nos ter por adquiridas duas certezas.
A primeira, a de que não é frequente que uma parturiente que sempre gozou de boa saúde, como a Recorrente, após um parto considerado normal passe pelos sofrimentos que ela passou, designadamente pela inflamação da zona perineal e a ocorrência de dois grandes hematomas, profundos e dolorosos, nessa zona e que venha a ter uma hemorragia que obrigou a uma urgente transfusão de sangue e que, mesmo depois de intervencionada cirurgicamente para sanar aqueles problemas, venha a ter infecção, infiltrado inflamatório e deiscência da sutura do períneo, abcesso e fístula recto vaginal que obrigaram a duas novas intervenções cirúrgicas, com anestesia geral, nas instalações da Ré e uma quarta intervenção cirúrgica no dia 17/11/95 no Hospital da CUF.
Depois, a de que a aparente anormalidade da evolução do estado de saúde da Recorrente após o parto não garante que a forma como este foi executado e/ou que os tratamentos ministrados para atacar as complicações que, entretanto, sobrevieram tenham decorrido de violações das regras de ordem técnica e científica ou de experiência e prudência comum que deviam ser observadas e que tal determine a responsabilidade civil da Ré. E isto porque sendo a obrigação desta uma obrigação de meios e não de resultados, a ocorrência daquelas complicações e o facto daqueles tratamentos não terem conduzido aos resultados pretendidos não significa que os seus serviços agiram de forma ilícita e culposa. Sendo certo que só uma conduta com violação daquelas regras, isto é, com a prática de actos ilícitos e culposos é susceptível de fundamentar um pedido indemnizatório como o formulado nos autos.
Deste modo, impõe-se analisar com mais detalhe aqueles factos para ver se os mesmos podem ser qualificados como ilícitos e culposos.

10. Ora, a primeira conclusão a retirar dessa análise é a de que sendo a episiotomia uma intervenção que ocorre frequentemente durante os trabalhos de parto e que sendo a sua realização ser incerta, decorrendo do juízo de necessidade que o profissional que assiste ao parto faça, não é exigível que a sua realização dependa de consentimento da parturiente. Só assim não seria se a mesma envolvesse sérios riscos para a saúde da parturiente ou do bebé sem que isto queira significar que essa intervenção é totalmente destituída de riscos uma vez que todos os actos cirúrgicos, por menores e mais fáceis que se apresentem, podem trazer consequências anormais e inesperadas. Daí a improcedência das considerações que a Recorrente tece a este propósito, designadamente a de que, atenta a falta de autorização, aquela intervenção constituiu um facto ilícito determinante da obrigação de indemnizar.
Depois, decorre do probatório que a episiotomia e a episiorrafia foram realizadas de acordo com as técnicas médicas habituais e as regras de assépsia protocoladas e que é normal o aparecimento de hematomas na sequência do parto, mesmo nos casos em que não houve a prática de qualquer acto cirúrgico, o que equivale a dizer que não se pode ter como adquirido que tenham sido a episiotomia e/ou a episiorrafia a provocar tais hematomas e as complicações que se lhe seguiram. E daí que tanto aquela incisão como a sua sutura não possam ser qualificadas como actos ilícitos e culposos susceptíveis de fundar a pretensão indemnizatória da Recorrente.
Por outro lado, os factos supra descritos não demonstram que as intervenções cirúrgicas a que a Recorrente foi submetida tivessem decorrido com falta de observância das leges artis nem que a terapêutica que se lhes seguiu não fosse a mais adequada e de que, por isso, tanto as referidas intervenções como os tratamentos que se lhe seguiram foram a causa dos peticionados danos. De resto, sintomaticamente, não vem indicado, nem sequer sugerido, qualquer outro tipo de intervenção que os serviços médicos da Ré pudessem ou devessem ter tido nem indicada qualquer terapêutica alternativa.

É certo que alguns dos factos acima enunciados não deixam de causar perplexidade, designadamente o das referidas intervenções, aparentemente simples, não terem tido os resultados esperados, visto não só não terem resolvido os problemas da Recorrente como não lhe minoraram as dores, e o de lhe ter sido dada «alta» por várias vezes quando, aparentemente, tal não se justificava já que os sintomas de infecção, da existência de um hematoma muito doloroso que a impossibilitava de caminhar normalmente e causavam fortes dores persistiam o que a obrigava a, pouco tempo depois, a regressar aos serviços de urgência da Ré em virtude da evolução desfavorável do seu estado de saúde.

Numa análise mais ligeira poderá parecer que, atenta a aparente facilidade daquelas intervenções, elas não foram realizadas de acordo com as leges artis ou que as «altas» dadas à Recorrente foram precipitadas e, nessa medida, desrespeitadoras das regras de prudência e de cuidado que deveriam ter sido cumpridos, tanto mais quanto é certo que os exames a que ela era, de seguida, submetida confirmavam as queixas apresentadas, que a evolução do seu estado de saúde não era satisfatória e que tal a obrigava a submeter-se a novos tratamentos e a novas intervenções. Sendo que, numa das vezes foi mandada para casa com a indicação de que se encontrava bem, o médico particular que consultou referiu que a mesma tinha uma infecção perineal grave, persistente e difícil de controlar e que isso a obrigou a ser novamente internada, atenta a falência da medicação que lhe foi ministrada (BB). O que permite que se equacione se, de facto, os profissionais da Ré agiram com o profissionalismo e o rigor exigidos quando executaram as ditas cirurgias, se não desvalorizaram indevidamente as queixas e os padecimentos que a Recorrente apresentava e se a terapêutica que lhe ministraram não decorreu de uma censurável e displicente apreciação do seu estado de saúde.
Mas a verdade é que os factos provados não confirmam essas suspeições, não permitindo concluir que a forma como a Recorrente foi tratada importa a violação das leges artis ou do dever objectivo de cuidado, visto não demonstrarem de forma segura que as cirurgias foram erradamente executadas, que o seu internamento era aconselhável ou mesmo imperioso ou, até, que a terapêutica ou a medicamentação que lhe foram ministradas foram indesculpavelmente erradas ou deficientes.
Como também não indiciam que o não ter sido internada nas diversas vezes que se dirigiu aos serviços da Ré determinou o agravamento do seu estado de saúde e/ou impediu um mais rápido restabelecimento e que, por isso, constituíra um errado procedimento, censurável à luz das leges artis, recusar o seu internamento. Ao contrário, o que se provou foi que os serviços da Ré deram à Recorrente o tratamento que consideraram mais adequado não se tendo demonstrado que o mesmo não era o mais aconselhável nem o mais apropriado às circunstâncias do caso e, ao menos na aparência, não ficou demonstrado que o juízo feito pelos profissionais da Ré acerca do estado de saúde da Recorrente foi errado e que este erro se ficou a dever a falta de cuidado, de ponderação ou dos conhecimentos técnicos e científicos que lhes eram exigíveis.
Finalmente, dir-se-á que a Ré também não pode ser penalizada pelo facto da Recorrente ter sido infectada com uma bactéria que surgiu nas suas instalações. E isto porque, por um lado, não se provou que ela tenha aí contraído essa bactéria (ponto 3 dos factos não provados) e, por outro, porque, mesmo que essa prova tivesse sido feita, não se demonstrou que essa bactéria se desenvolveu ou alojou nos serviços da Ré por falta dos cuidados e do dever de prevenção que esta devia ter tido.

Nesta conformidade, não se pode afirmar que o parto e a posterior evolução do estado de saúde da Recorrente tivessem sido determinados pela má prática clínica dos serviços da Ré e que esta tivesse decorrido da censurável preparação técnica e cientifica dos seus profissionais ou da forma negligente como exerceram a sua profissão.

De todos os factos provados só um constitui, inequivocamente, má prática médica; o facto de, após o parto e de ter sido colocada na enfermaria, a Ré só ter prestado assistência médica à Recorrente cerca de 4,30 horas depois desta se ter queixado, insistentemente, junto da enfermeira de que estava com fortes dores e de que necessitava de ser vista com urgência por um médico. Sendo que tais queixas tinham fundamento já que, logo que foi observada, foi-lhe diagnosticada a existência de um hematoma do períneo, profundo e doloroso, o que motivou a sua transferência para o serviço de urgência com vista à drenagem daquele hematoma, o que veio a acontecer pelas 22H desse mesmo dia 15/03.
Todavia, e ainda que esse atraso seja inadmissível, certo é que ficou por provar que essa tardia assistência tivesse consequências no desenvolvimento do hematoma diagnosticado à Recorrente, contribuindo para que ele se agravasse, ou fosse responsável por qualquer outra consequência negativa para a sua saúde.
Compreende-se que a Recorrente sinta que sofreu o que, em circunstâncias normais, não deveria ter sofrido e atribua esses padecimentos ao modo como foi tratada pela Ré mas esse sentimento desacompanhado de factos que comprovem que os serviços da Ré agiram de forma ilícita e culposa não é susceptível de fundamentar o pedido indemnizatório formulado nestes autos.

Nesta conformidade, a conclusão a que a sentença recorrida chegou - de que se não tinha provado a existência de qualquer infracção às leges artis aquando das intervenções e tratamentos em apreço nos autos – não merece censura.

Termos em que acordam os Juízes que compõem este Tribunal em negar provimento ao recurso confirmando-se, assim, a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Lisboa, 9 Maio 2012. – Alberto Acácio de Sá Costa Reis (relator) – Adérito da Conceição Salvador dos Santos – Luís Pais Borges.