Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0196/23.3BALSB-A
Data do Acordão:04/11/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ADRIANO CUNHA
Descritores:PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ÂMBITO DA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
ACTO LEGISLATIVO
ACTO ADMINISTRATIVO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA HIERARQUIA
Sumário:I – O DL nº 80/2023, de 6/9 (“Estabelece o procedimento excecional de atribuição de capacidade de ligação à rede de instalações de consumo de energia elétrica em zonas de grande procura”), ao prever, em zonas de grande procura, um procedimento excecional para atribuição, a projetos industriais estratégicos, de capacidade de ligação à rede elétrica de serviço público, reavaliando as necessidades, e respetivas calendarizações, de capacidades já atribuídas mas não utilizadas, mostra-se editado pelo Governo, em Conselho de Ministros, no exercício da sua função político-legislativa.
II – Efetivamente, através de tal diploma, o Governo lança as bases da sua opção política de permitir uma redistribuição das capacidades de ligação à rede elétrica. Opção ou medida política que o próprio introito do diploma explica que é tomada para responder a uma necessidade económico-social: dar resposta ao problema emergente da procura excecional gerada pela realização de novos investimentos estratégicos no nosso país, no quadro da transição energética, de modo a potenciar as condições de acesso à rede necessárias para a concretização destes investimentos.
III - Assim, não é exercida pelo Governo, através da emissão do DL nº 80/2023, função administrativa, a qual é remetida para os concretos procedimentos administrativos excecionais a posteriormente empreender, gizados apenas por forma abstrata neste diploma.
IV - Não é pela circunstância de um diploma ou uma norma legal “precarizar” situações individuais – isto é, mostrar-se, desde logo, em abstrato, “prejudicial” para eventuais destinatários - que perde essa sua natureza de diploma ou norma legislativa, adquirindo só por isso e desde logo, uma natureza administrativa idêntica à dos atos aplicativos dessa norma legal nas diversas situações individuais e concretas.
V - Não é, assim, pela circunstância de o DL nº 80/2023 “precarizar” a situação das Requerentes que perde a natureza de diploma emitido no exercício da função legislativa, pois que uma real lesão que eventualmente possam sofrer (as Requerentes ou outros) só pode advir de uma decisão administrativa, tomada pela Administração em aplicação de tal legislação, na sequência de um concreto e necessário procedimento administrativo excecional que as tenha por interessadas, tal como previsto no referido DL nº 80/2023 – procedimento administrativo que, aliás, tem estado a decorrer.
VI - Está excluída do âmbito da jurisdição administrativa a impugnação de atos praticados no exercício da função política e legislativa - cfr. art. 4º nº 3 a) do ETAF -, tal como o conhecimento de algum meio cautelar que a prepare.
VII – Dirigindo-se os pedidos cautelares subsistentes à abstenção de condutas por parte do “Ministério do Ambiente e da Ação Climática” e da “A..., S.A.”, entidades que não figuram do elenco inserto na alínea a) do nº 1 do art. 24º do ETAF, carece o STA de competência, em razão da hierarquia, para o conhecimento de tais pedidos.
Nº Convencional:JSTA00071838
Nº do Documento:SA1202404110196/23
Recorrente:B..., S.A. (E OUTROS)
Recorrido 1:CONSELHO DE MINISTROS (E OUTROS)
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:PROVIDÊNCIA CAUTELAR SUSPENSÃO DE ACTO
Objecto:ACTO ADMINISTRATIVO E PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO ESPECIAL INSTITUÍDO PELO DL Nº 80/2023, PRATICADO PELO CONSELHO DE MINISTROS, MINISTÉRIO DO AMBIENTE E ACÇÃO CLIMÁTICA E REN - REDE ELÉCTRICA NACIONAL SA.
Decisão:JULGAR A JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA E FISCAL INCOMPETENTE PARA CONHECER DO PEDIDO CONTRA O CONSELHO DE MINISTROS E JULGAR COMPETENTE O TAF DE BEJA PARA CONHECER DOS RESTANTES PEDIDOS
Área Temática 1:COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS
Área Temática 2:COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA E DA HIERARQUIA
Legislação Nacional:DL nº 80/2023, de 6/9, Artigos 4º nº 3 a) e 24º nº 1 a) do ETAF E Artigo 148º do CPA.
Aditamento:
Texto Integral:

Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – RELATÓRIO

1.1. “B..., S.A.” e “C..., S.A.”,

vêm, nos termos dos arts. 112º e segs. do CPTA,

requerer “adoção de providências cautelares de suspensão de ato e de procedimento administrativo” contra o “Conselho de Ministros”, o “Ministério do Ambiente e da Ação Climática” e a “A..., S.A.”,

como incidente cautelar da ação administrativa que corre termos neste STA com o nº 196/23.3BALSB contra os ora Requeridos, onde pediram a declaração de nulidade ou a anulação do ato administrativo contido no DL nº 80/2023, de 6/9, emanado pelo ora 1º Requerido (alegando que, por ele, os seus direitos a certa capacidade de ligação à rede adquiridos mediante contrato celebrado com a ora Requerida “A…”, até então definitivos, foram precarizados), bem como a condenação dos dois últimos ora Requeridos à não emissão de qualquer ato administrativo ou outro qualquer ato jurídico, ao abrigo do disposto no DL nº 80/2023, que tenha por efeito determinar e concretizar a cedência da capacidade de 560 MVA contratualizada com a “A...”.

1.2. Requerem, a final, que «o presente processo cautelar seja julgado procedente e provado e, em consequência, a imediata suspensão do ato administrativo suspendendo e do procedimento administrativo especial instituído pelo DL nº 80/2023, com a consequência de os Requeridos terem que se abster de praticar qualquer ato jurídico ou material pelo qual se obrigue as Requerentes a ceder a terceiros o seu direito de ligação de 560 MVA».

2. Citados os Requeridos,

2.1. Veio a Requerida “A…” apresentar oposição (cfr. fls. 181 e segs. SITAF) onde, além de defender a não verificação dos pressupostos exigidos no art. 120º do CPTA para o deferimentos dos pedidos cautelares (“fumus boni iuris”, “periculum in mora” e, ainda, a “proporcionalidade” referida no nº 2), apresentou defesa por exceção:

- Por “Incompetência absoluta do tribunal”,
defendendo que, não consubstanciando o DL nº 80/2023 um ato administrativo – contrariamente ao alegado pelas Requerentes -, trata-se de um diploma aprovado pelo Governo no exercício da sua função legislativa, sendo certo que os atos praticados no exercício da função política e legislativa estão excluídos da jurisdição administrativa pelo art. 4º do ETAF.

2.2. O “Conselho de Ministros” e o “Ministério do Ambiente e da Ação Climática” vieram, também, apresentar oposição (cfr. fls. 276 e segs. SITAF) onde, para além de também defenderem a ausência dos requisitos de “fumus boni iuris”, “periculum in mora” e, ainda, relativo à ponderação de interesses referida no nº 2 do art. 120º do CPTA, apresentaram defesa por exceção:

a) Quanto ao pedido cautelar de suspensão (de suposto ato administrativo sob forma legislativa inserido no DL nº 80/2023),

i) Por “Incompetência absoluta do tribunal”,
defendendo que – contrariamente ao alegado pelas Autoras – o DL nº 80/2023 não consubstancia ou insere um comando individual e concreto (um ato administrativo), mas sim um ato legislativo, adotado no âmbito do exercício das funções político-legislativas do Governo, pelo que, “ex vi” do art. 4º nº 3 a) do ETAF, é matéria que escapa ao controlo jurisdicional dos tribunais administrativos.

ii) Por “Inimpugnabilidade”,
em decorrência de o DL nº 80/2023 não conter uma “decisão que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, vise produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta”, pelo que inexiste nele qualquer ato ou norma administrativa impugnável e/ou suspensível.

iii) Por “Falta de interesse processual das Requerentes”,
defendendo que o DL nº 80/2023, independentemente da qualificação das suas normas, não interfere, por si, nos direitos das Requerentes, o que só poderá eventualmente suceder na sequência de um processo administrativo excecional instaurado nos termos legalmente previstos naquele diploma.

b) Quanto aos pedidos condenatórios (de abstenção de condutas),

i) Por “Incompetência do STA em razão da hierarquia”,
alegando que, sobrevivendo apenas os pedidos condenatórios, de abstenção de condutas, formulados contra o “Ministério do Ambiente e da Ação Climática” e contra a “A…”, o STA é hierarquicamente incompetente para o seu conhecimento. Além de que, para competir ao STA a apreciação de todos os pedidos cumulados, nos termos da competência alargada prevista no art. 21º nº 1 do CPTA, é necessário que todos esses pedidos cumulados sejam dirigidos contra entidade, ou entidades, integrante(s) do elenco constante do art. 24º nº 1 a) do ETAF (tal como julgado no Acórdão do STA de 9/6/2022, proc. 053/22).

ii) Por “Falta de interesse processual”,
alegando que, nos termos do nº 2 do art. 39º do CPTA, “a condenação à não emissão de atos administrativos só pode ser pedida quando seja provável a emissão de atos lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos e a utilização dessa via se mostre imprescindível”, o que dizem não suceder “in casu”, além do mais porque, em sentido contrário, já foram, até, “aprovadas/validadas”, pela Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), do Ministério do Ambiente e Ação Climática, nos termos e para os efeitos do nº 3 do art. 8º do DL nº 80/2023, relativamente às Requerentes, “as justificações das evidências da necessidade da capacidade atribuída não utilizada, bem como a calendarização da mesma”.

iii) Por “Ilegitimidade passiva”,
Em decorrência de não ter sido também demandada a “Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE)”, a quem incumbe, nos termos do nº 6 do art. 8º do DL nº 80/2023, aprovar o modo e a quantidade da capacidade (de ligação à rede elétrica de serviço público) eventualmente a ceder.

- Liminarmente, os Requeridos “Conselho de Ministros” e “Ministério do Ambiente e da Ação Climática” entendem que se verifica “inutilidade superveniente da lide”, uma vez que, após a sua instauração (em 12/2/2024, os presentes autos cautelares, e em 6/12/2023 a ação principal), foi já decidido, por despacho de 29/2/2024, do Diretor-Geral de Energia e Geologia, aprovar/validar as justificações apresentadas pelas Requerentes/Autoras quanto à evidência da necessidade da capacidade atribuída não utilizada, e respetiva calendarização, donde resulta a não imposição às Requerentes/Autoras de obrigação de cedência da capacidade 560MVA por elas contratualizada com a “A…”.

3. Notificada das oposições apresentadas, as Requerentes vieram responder às exceções invocadas (cfr. fls. 457 e segs. SITAF),

i) Quanto à alegada “Inutilidade superveniente da lide”,
afirmando que a conclusão de que não será imposto às Requerentes a cedência, no todo ou em parte, da capacidade de 560MVA contratualizada com a “A...” é uma conclusão adiantada pelos Requeridos “CM” e “MAAC” no seu articulado de oposição – que as Requerentes registam, com relevância em termos de boa fé e de confiança -, mas que não retiram, com absoluta segurança, do despacho do Diretor-Geral de Energia e Geologia que decidiu aprovar/validar as justificações apresentadas pelas Requerentes quanto à evidência da necessidade da capacidade atribuída não utilizada, e respetiva calendarização.
Por isso, as Requerentes já apresentaram, em 14/3/2024, um pedido de esclarecimento à “DGEG”, que ainda não obteve resposta, pelo que, enquanto não for aclarado que os direitos contratualizados com a “REN” relativos à capacidade de 560MVA não serão afetados, mantém-se a utilidade da presente lide.

ii) Quanto às alegadas “Incompetência absoluta do tribunal” e “Inimpugnabilidade”,
afirmando que as Requerentes não impugnam nem pedem a suspensão do DL nº 80/2023, mas apenas do ato administrativo nele contido – decisão administrativa individual e concreta -, o qual afeta, precarizando, de uma forma direta e imediata, o direito das Requerentes, contratualizado com a “A…”, a uma capacidade de ligação de 560MVA.

iii) Quanto à alegada “Incompetência absoluta em razão da hierarquia”,
afirmando que, diversamente da interpretação efetuada pelos Requeridos, o mencionado Acórdão do STA de 9/6/2022 (053/22) só determinou a incompetência, em razão da hierarquia, do STA, por não ter conhecido do pedido cautelar ali formulado contra o Conselho de Ministros, por ter entendido estar em causa ato praticado no exercício da função política e legislativa, e os restantes pedidos serem dirigidos contra outras entidades (Ministérios) em relação às quais o STA não era o tribunal hierarquicamente competente.

iv) Quanto à alegada “Falta de interesse processual”,
afirmando que a imposição da cedência que poderá resultar do procedimento administrativo previsto no DL nº 80/2023 não se confunde com a precarização que, para os direitos das Requerentes, decorre desde logo, e imediatamente, daquele diploma, o que lhes confere manifesto interesse processual em eliminar a insegurança jurídica daí advinda.

v) Quanto à alegada “Ilegitimidade passiva”,
afirmando não a ser à “ERSE” mas sim à “DGEG” que compete, nos termos do art. 8º nºs 2 a) e 3 do DL 80/2023 validar as evidências da necessidade de capacidade atribuída não utilizada e respetiva calendarização, sendo que, no momento da apresentação da presente providência cautelar, a “ERSE” já tinha definido o “modo e a quantidade de capacidade a ceder” (como previsto no art. 8º nº 6 do DL nº 80/2023) através da Diretiva nº 20º-A/2023, de 29/12, não se justificando, assim, a sua presença nestes autos.

II – Fundamentação de direito (questão da incompetência absoluta da jurisdição administrativa)

4. Nos termos do art. 13º do CPTA, «o âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria».

Assim sendo, cumpre liminarmente, precedentemente a qualquer das outras exceções e questões colocadas no âmbito dos presentes autos cautelares – inclusivamente, à questão suscitada da inutilidade superveniente da lide -, apreciar e decidir das questões referentes à competência material dos tribunais administrativos e à competência deste STA em razão da hierarquia, as quais, sendo de conhecimento oficioso (“de ordem pública”), foram, porém, concretamente suscitadas, como acima vimos, pelos próprios Requeridos nas oposições que apresentaram.

5. Como se retira do acima exposto no Relatório, estão em causa, nos presentes autos cautelares, os seguintes pedidos formulados pelas Requerentes:

a) a suspensão de eficácia do ato administrativo, que afirmam contido no DL nº 80/2023, de 6/9, emanado pelo ora 1º Requerido “Conselho de Ministros”, alegando que, por esse diploma, os seus direitos a certa capacidade de ligação à rede, adquiridos mediante contrato celebrado com a ora Requerida “A…”, até então definitivos, foram precarizados; e

b) a condenação dos dois últimos ora Requeridos (“Ministério do Ambiente e da Ação Climática” e “A…”) à suspensão do procedimento administrativo especial instituído pelo DL nº 80/2023 quanto às Requerentes, bem como à não emissão de qualquer ato administrativo ou outro qualquer ato jurídico, ao abrigo do disposto no DL nº 80/2023, que tenha por efeito determinar e concretizar a cedência da capacidade de 560 MVA contratualizada com a “A…”.

Relativamente ao pedido cautelar a), dirigido contra o “CM” por ser a entidade emitente do DL nº 80/2023 em causa, todos os Requeridos, nas suas duas oposições (do “CM” e MAAC”, por um lado, e da “A…”, por outro), invocaram a incompetência absoluta da jurisdição administrativa e, consequentemente, a incompetência em razão da matéria deste STA, por estar em causa um diploma emitido no exercício da função político-legislativa do Governo, contendo normas gerais e abstratas, insuscetíveis de produzir efeitos jurídicos externos em situações individuais e concretas, nele inexistindo, pois – contrariamente ao alegado pelas Requerentes – qualquer ato administrativo, no conceito definido pelo art. 148º do CPA.

Por isso, os Requeridos opõem, também, que, para além da incompetência absoluta da jurisdição administrativa (“ex vi” do art. 4º nº 3 a) do ETAF), inerentemente se verifica, outrossim, a inimpugnabilidade do suposto, mas efetivamente inexistente, ato administrativo invocado pelas Requerentes como contido no DL nº 80/2023.

As Requerentes replicam, como vimos, que o DL nº 80/2023, ao prever uma possível redistribuição das capacidades de ligação à rede elétrica antes contratualizadas, precariza, de imediato, os direitos adquiridos pelos detentores, como as Requerentes, desses direitos contratualizados – destinatários que serão, aliás, determináveis, tanto mais que, segundo dizem, o DL em causa se dirige e circunscreve à área territorial de ....

6. Entendemos, porém, que as Requerentes não têm razão, procedendo a invocada exceção da incompetência absoluta da jurisdição administrativa e, portanto, deste STA, “ex vi” do art. 4º nº 3 a) do ETAF, para conhecer de impugnações de atos praticados no exercício da função política e legislativa.

Como tem sido afirmado por este STA (cfr. acórdão de 9/6/2022, proc. 053/22, e a vasta jurisprudência nele elencada), considera-se “função administrativa” «o conjunto dos atos de execução de atos legislativos traduzida na produção de bens e na prestação de serviços destinados a satisfazer necessidades coletivas que, por virtude de prévia opção legislativa, se tenha entendido que incumbem ao poder político do Estado - Coletividade».

Diferentemente, «estaremos em presença de um ato materialmente legislativo quando este introduz na ordem jurídica disciplina normativa reveladora de uma opção primária e inovadora, que tem como parâmetro de validade a Constituição ou outras leis que, por força daquela, sejam pressuposto normativo necessário ou que por outras devam ser respeitadas (cfr. nº 3 do art. 112º da CRP), e isso independentemente de saber se essa materialidade se exprime com caráter geral e abstrato, visando destinatários determináveis ou indetermináveis ou através de uma determinação individual e concreta, na certeza de que um ato, para ser administrativo, não lhe basta ser individual e concreto já que para assim ser qualificado tem ainda de proceder do exercício da função administrativa».

Ora, não se afigura que o DL nº 80/2023 tenha sido emitido no exercício de função administrativa do Governo, pois não se alcança qual a política (e legislação) primária que o mesmo se limitaria a executar, antes se mostrando patente que, através de tal diploma, o Governo lança as bases da sua opção política de permitir uma redistribuição das capacidades de ligação à rede elétrica. Opção ou medida política que o próprio introito do diploma explica que é tomada para responder a uma necessidade económico-social: dar resposta (político-legislativa) ao problema emergente da procura excecional gerada pela realização de novos investimentos estratégicos no nosso país, no quadro da transição energética, de modo a potenciar as condições de acesso à rede necessárias para a concretização destes investimentos.

Assim, não é exercida pelo Governo, através da emissão do DL nº 80/2023, função administrativa, a qual é remetida para os concretos procedimentos administrativos excecionais a posteriormente empreender, gizados apenas por forma abstrata neste diploma.

E independentemente desta sua natureza de ato político/legislativo, também não é verdade, contrariamente ao defendido pelas Requerentes – e como observado pelos Requeridos – que resulte do diploma em questão qualquer efeito jurídico externo que afete situações individuais e concretas.

E esta conclusão nem sequer é contraditória com a alegação de que o diploma “precariza” a situação das Requerentes enquanto titulares de um direito antes contratualizado com a “A…”, pois não é o mesmo a “precarização” resultante de uma norma legal para eventuais destinatários (v.g., uma norma legal que agrave, por forma geral e abstrata, determinado imposto, ou altere a idade da reforma) e a lesão produzida nas situações individuais e concretas pelos atos administrativos que apliquem tal lei tida como “precarizadora”. Ou seja, não é pela circunstância de uma norma legal “precarizar” situações individuais – isto é, mostrar-se, desde logo, em abstrato, “prejudicial” para eventuais destinatários - que perde essa sua natureza de norma legislativa, adquirindo só por isso e desde logo, como pretendem as Requerentes, uma natureza administrativa idêntica à dos atos aplicativos dessa norma legal nas diversas situações individuais e concretas.

Retornando ao caso, não é pela circunstância de o DL nº 80/2023 “precarizar” a situação das Requerentes que perde a natureza de diploma emitido no exercício da função legislativa, pois que uma real lesão que possam sofrer (as Requerentes ou outros) só pode eventualmente advir de uma decisão administrativa, tomada pela Administração em aplicação de tal legislação, na sequência de um concreto e necessário procedimento administrativo excecional que as tenha por interessadas, tal como previsto no DL nº 80/2023 – procedimento administrativo que, aliás, tem estado a decorrer.

Conclusão que sai reforçada da circunstância de a “DGEG” já ter validado, por despacho 29/2/2024 do Diretor-Geral, no âmbito do concreto procedimento administrativo excecional instaurado, as justificações apresentadas pelas Requerentes quanto à necessidade de utilização dos 560MVA contratualizados com a “A…”, o que aponta no sentido de que a aplicação do DL nº 80/2023 não afetará, afinal, os direitos das Requerentes. Para além de que tal aplicação permitirá até, eventualmente, um ganho de capacidade para as Requerentes - dos contratualizados 560 MVA para uma capacidade adicional de 840MVA, a que as mesmas se candidataram no âmbito desse mesmo procedimento administrativo excecional.

Acrescente-se que - embora não fosse decisivo, por tudo o que se disse, para negar ao DL nº 80/2023 a sua natureza de ato político e legislativo -, nem sequer é correto o argumento adiantado pelas Requerentes de que os seus destinatários seriam determináveis por se reconduzirem ao universo dos detentores de direitos contratualizados de ligação à rede elétrica na área territorial de ....

Tal não é correto, pois que o diploma em causa (DL nº 80/2023) tem, diversamente, uma previsibilidade e aplicabilidade geral, não circunscrita, portanto, à área territorial de ..., mas sim a todas as “zonas de grande procura”, o que facilmente se deteta face à previsão legal do “reconhecimento de zona de grande procura” através de “despacho do membro do Governo responsável pela área da energia” (cfr. art. 2º, em especial nº 8), sendo o gizado “procedimento (administrativo) excecional de atribuição de capacidade de ligação à rede” “aplicável às zonas de grande procura” (cfr. art. 3º). Ocorreu apenas que a área territorial de ... foi, desde logo, reconhecida como “zona de grande procura” (art. 20º), sendo certo, porém, que todas as normas do diploma (arts. 1º a 19º), se referem, em abstrato e genericamente, a qualquer “zona de grande procura” (reconhecida ou a reconhecer).

É, pois, de concluir que este STA, como tribunal da jurisdição administrativa, é absolutamente incompetente, em razão da matéria, para conhecer de pedido impugnatório – e, inerentemente, do pedido cautelar suspensivo aqui formulado pelas Requerentes contra o “Conselho de Ministros” («estando excluída do âmbito da jurisdição administrativa a impugnação de atos praticados no exercício da função política e legislativa, também está fora da jurisdição o conhecimento de algum meio cautelar que a prepare», cit. Ac. STA de 9/6/2022, proc. 053/22) -, uma vez que o DL nº 80/2023 apenas contem normas editadas pelo Governo no exercício das suas funções político-legislativas, e não no exercício de funções administrativas, não contendo, tal diploma, qualquer ato administrativo (ou norma administrativa) suscetível de afetar diretamente, por forma individual e concreta, os direitos das Requerentes ou de outrem, o que só eventualmente poderá decorrer da aplicação de tais normas legislativas através do competente e previsto procedimento administrativo excecional e da sua respetiva decisão administrativa.

III – Fundamentação de direito (questão da incompetência deste STA em razão da hierarquia)

7. Sobrevivendo o pedido cautelar de abstenção de condutas – uma vez que o pedido impugnatório/suspensivo relativo ao DL nº 80/2023 não pode ser conhecido pelos tribunais administrativos – resulta que, tal como oposto pelos Requeridos, este STA é incompetente, agora em razão da hierarquia, para conhecer de tal pedido cautelar sobrante, uma vez que o mesmo é dirigido contra entidades (“Ministério do Ambiente e da Ação Climática” e “A…”) que não constam do elenco inserto no art. 24º nº 1 a) do ETAF, pelo que compete ao TAF de Beja o seu conhecimento (“ex vi” do art. 44º nº 1 do ETAF, do art. 16º do CPTA e do Mapa anexo ao DL nº 325/2003, de 29/12).

Efetivamente, como se disse no Acórdão deste STA de 9/6/2022 (proc. 053/22), já supra mencionado:
«(…) dirigindo-se o pedido cautelar subsistente à suspensão de eficácia de despacho da Secretária de Estado da Educação, ente que não figura do elenco dos órgãos que se mostram incluídos na al. a) do n.º 1 do art. 24.º do ETAF, carece o STA de competência em razão da hierarquia para o conhecimento de tal pedido»,
acórdão que foi alvo de interpretação, por parte das próprias Requerentes, na réplica que apresentaram (cfr. seu artigo 64º), pela seguinte forma:
«(…) naqueles autos, o STA considerou-se incompetente para conhecer de uma das pretensões pelo facto de esta respeitar a um ato praticado no exercício da função política e legislativa, tendo sido apenas em virtude da absolvição da instância da entidade demandada quanto a este pedido, cuja presença determinava a competência hierárquica do STA, que essa Alta Instância veio – como era devido – a considerar-se hierarquicamente incompetente para conhecer dos demais pedidos cumulados, dirigidos contra outras entidades em relação às quais o STA não era hierarquicamente competente».

Assim, também nos presentes autos se está perante situação idêntica: incompetência absoluta para conhecer de uma das pretensões das aqui Requerentes, pelo facto de a mesma respeitar a ato praticado no exercício da função política e legislativa, e, em decorrência, incompetência hierárquica deste STA para conhecer dos demais pedidos cautelares (de condenação à abstenção de condutas), dirigidos contra outras entidades em relação às quais o STA não é hierarquicamente competente.

8. Por tudo o exposto, deve ser declarada a incompetência absoluta, em razão da matéria, da jurisdição administrativa, e, portanto, deste STA, para apreciar e decidir o pedido cautelar, deduzido contra o “Conselho de Ministros”, de suspensão do ato administrativo contido (segundo as Requerentes, mas tido por inexistente) no DL nº 80/2023, de 6/9; e ser declarada a incompetência deste STA, agora em razão da hierarquia, para a apreciação e decisão dos restantes pedidos cautelares – condenação à abstenção de condutas – deduzidos contra os Requeridos “Ministério do Ambiente e da Ação Climática” e “A…”, remetendo-se, em consequência, oportunamente, os presentes autos cautelares, nos termos do art. 14º nº 1 do CPTA, ao TAF de Beja por ser o tribunal competente para o conhecimento dos pedidos cautelares sobreviventes (arts. 44º nº 1 do ETAF, 16º do CPTA e Mapa anexo ao DL nº 325/2003, de 29/12).

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202º da Constituição da República Portuguesa, em:

a) julgar a jurisdição administrativa incompetente para conhecer do pedido cautelar deduzido contra o “Conselho de Ministros”, de suspensão de eficácia do suposto ato administrativo contido no DL nº 80/2023, absolvendo-se o Requerido da instância; e

b) julgar este STA incompetente, em razão da hierarquia, para conhecer dos demais pedidos cautelares (de condenação à abstenção de condutas), deduzidos contra os Requeridos “Ministério do Ambiente e da Ação Climática” e “A…”, determinando-se, em consequência, a oportuna remessa dos presentes autos cautelares ao TAF de Beja.

Custas a cargo das Requerentes.

Lisboa, 11 de abril de 2024 – Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha (relator) – Liliana Maria do Estanque Viegas Calçada – Maria do Céu Dias Rosa das Neves.