Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0576/10
Data do Acordão:01/21/2016
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:COSTA REIS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P19971
Nº do Documento:SAP201601210576
Data de Entrada:04/29/2015
Recorrente:A... E ESPOSA
Recorrido 1:CENTRO HOSPITALAR DO MÉDIO AVE, EPE
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NO PLENO DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:
A…………….. e esposa B…………….., por si e na qualidade de herdeiros da sua filha menor C…………….., intentaram, no Tribunal Administrativo do Circulo do Porto, contra o Hospital S. João de Deus - hoje Centro Hospitalar do Médio Ave, EPE - acção de indemnização para efectivação de responsabilidade civil extracontratual, pedindo a condenação do Réu no pagamento da quantia global de Esc. 80.000.000$00, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, que sofreram durante e após o parto daquela menor ocorrido naquele estabelecimento hospitalar.
Por sentença, a acção foi julgada parcialmente procedente e condenado o Réu a pagar aos Autores “a quantia global de € 147.957,72, acrescida de juros à taxa legal de 7% desde 16.10.2001 até 30.4.2003 e desde esta última data apontada à taxa legal de 4% até integral pagamento, sendo o R. Centro Hospitalar do Médio Ave, EPE condenado, ainda, a pagar aos mesmos AA as quantias que se vierem a liquidar em execução de sentença, quanto às despesas em medicamentos, consultas, leite especial, sondas, seringas e, ainda, em relação aos gastos com visitas durante o internamento da A. mulher» (fls. 1371 e segs.).

O Centro Hospitalar do Médio Ave, EPE, recorreu para este Supremo e os Autores interpuseram recurso subordinado restrito aos montantes indemnizatórios fixados na sentença.
Por Acórdão de 24/05/2010 este Tribunal a) concedeu provimento ao recurso principal e, revogando a sentença recorrida, julgou totalmente improcedente a acção e b) negou provimento ao recurso subordinado.

Inconformados, os Autores recorreram para este Pleno (1) sustentando a inconstitucionalidade do art.º 103.º do DL 267/85, (2) a oposição do julgado com as decisões proferidas nos Acórdãos deste STA de 6/03/2002 (rec. 48155)no que respeita à existência de nexo de causalidade entre a conduta dos médicos do Réu e os danos peticionados – e de 20/04/2004 (rec. 982/03)no respeitante à inversão do ónus da prova - e (3) arguindo, a título subsidiário, várias nulidades do Acórdão.

O Sr. Relator proferiu despacho declarando que o citado art.º 103.º do DL 267/85 “não desrespeita qualquer preceito constitucional, designadamente os que são indicados pelos ora Recorrentes, como decorre, aliás, da mera consideração literal desses mesmos preceitos”, pelo que indeferiu a arguição de inconstitucionalidade e admitiu apenas o recurso por oposição de julgados (fls. 1717).

Os Autores interpuseram recurso dessa decisão para o Tribunal Constitucional, mas sem êxito já que esse recurso não foi admitido (despacho de fls. 1796).

Nesta conformidade, o único recurso que temos para julgar é o recurso por oposição de julgados.
Nele foram formuladas as seguintes conclusões:
1. Se, no domínio da mesma legislação o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão fundamental de direito, assentem sobre soluções opostas, pode recorrer-se para o Tribunal Pleno do acórdão proferido em último lugar (conf. n.º 1 do art.° 763.° do Cód. Proc. Civil);
2. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação sempre que, durante o intervalo da sua publicação, não tenha sido introduzida qualquer modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente na resolução da questão de direito controvertida (conf. n.º 2 do art.° 763.° do Cód. Proc. Civil);
3. Os acórdãos opostos hão-se ser proferidos em processos diferentes (conf. n.° 3 do art.° 763.° do Cód. Proc. Civil);
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior com trânsito em julgado, mas presume-se o trânsito, salvo se o recorrido alegar que o acórdão não transitou (conf. n.° 4 do art.° 763.° do Cód. Proc. Civil);
5. Como suporte do acórdão recorrido apurou-se, entre a mais constante da parte III das alegações e que aqui se dá por inteiramente reproduzida, a seguinte matéria de facto:
1.1 - Os AA. são pais da menor C……………..;
1.2 - A mesma nasceu em 04 de Novembro de 1998, pelas 15,45 horas, no Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Distrital de Vila Nova de Famalicão;
1.7 - A menor ao nascer apresentava lesões que se traduziram em encefalopatia em hipóxido-isquémica grau III, em hipertomia global, em gastrite erosiva/esofagite grau II-III e em hipertensão arterial;
1.8 - Dos registos clínicos do parto consta, às 13.00 horas “(...) traçado com alterações, foi comunicado ao médico de serviço que mandou suspender o soro com “sintocinom” e colocou soro simples;
1.9 - E pelas 13,40 horas consta “(...) Iniciou período expulsivo. Foi chamado o pediatra para assistir ao parto (...)”;
1.10 - E às 13,50 horas consta “(...) teve parto distócico “fórceps” sexo feminino apgar 4-4. Foi chamado o anestesista para reanimar o R.N. (...)”;
1.11 - A bebé C……………, foi transferida, pelas 14,15 horas, na incubadora, para os serviços de pediatria do Hospital de V.N. de Famalicão e às quatro horas de vida foi, por sua vez, transferida para o Hospital Maria Pia, no Porto;
1.12 - Donde saiu três semanas depois para o Hospital de V.N. de Famalicão, onde se manteve durante cerca de cinco meses em internamento e, posteriormente, todos os dias, frequência que foi decrescendo até que agora vem duas vezes por semana sempre para exercícios de fisioterapia;
1.13 - A A. B……………., veio a ser transferida em 04/11/1998 para o Hospital de S. João no Porto, onde deu entrada pelas 17,48 horas, e aí, depois de estabilizada a situação clínica, foi enviada ao bloco operatório para uma revisão uterina;
1.14 - E esteve internada no Hospital de S. João, no Porto até 23/11/1998, data em que lhe foi dada alta, sendo que, no entanto, tal internamento até 07/11/1998 foi na Unidade de Cuidados Intensivos de tal Hospital;
2.3 - E é então que lhe diz “Estive a pensar melhor. De facto a bebé pode não esperar uma semana e eu só estou cá na próxima quarta-feira. De maneira que o melhor é ficar cá. Vou-lhe provocar o parto e se o bebé não descer faço-lhe uma cesariana”;
2.4 - A esposa deu conhecimento ao A. marido e ficou logo, nos momentos seguintes, na sala de parto;
2.5 - O parto foi provocado;
2.7 - Foi aplicado “fórceps” e que foram aplicados cortes (incisões na vulva e no períneo);
2.8 - O traçado (relativo ao registo do exame ecocardiotocográfico) apresentava anomalias nomeadamente antes do início do período de expulsão;
2.9 - A bebé apresentava um quadro clínico de asfixia grave;
2.11 - A menor C…………… é transferida às quatro horas de vida por asfixia perinatal grave e necessidade de ventilação mecânica para o Hospital Central Especializado de Crianças Maria Pia, no Porto;
2.12 - Foi aplicado “fórceps” e que foram aplicados cortes (incisões na vulva e no períneo);
2.13 - A C…………… sofreu uma asfixia perinatal grave com todas as lesões que lhe determinaram a incapacidade permanente absoluta de que padeceu durante toda a vida;
2.14 - A C………….. mercê das lesões sofridas não tem o desenvolvimento de uma criança normal da sua idade;
2.15 - Pelo que, a mesma, aos trinta e cinco meses, pouco mais pesa que quatro quilogramas, apenas cresceu três centímetros, não fala, não ouve, não vê, não anda;
2.16 - E para se alimentar precisa de sondas pelo nariz porque não mastiga;
2.20 - A Autora na sequência do trabalho de parto sofreu várias e graves hemorragias e teve de ser submetida a intervenções cirúrgicas urgentes como correcção de laceração e episioctomia, revisão do canal do parto, foi cateterizada nova veia no dorso da mão esquerda;
2.21 - Como as hemorragias continuavam, foi transferida para o hospital de S. João com entubação endotraquial, ligada ao ventilador;
2.22 - E é em tal estado que a A. é remetida para o Hospital de João no Porto para onde foi remetida onde chega em choque hipotérmico, com hemorragia externa e demais elementos do seu estado de saúde descrito no documento junto a fls. 32 a 37 dos presentes autos cujo teor aqui se dá por reproduzido;
2.23 - Foi laparotomizada (por suspeitas de retenção de restos placentários), tendo sido efectuada histerorrafia fúndica e revisão dos restos placentários, quando no Hospital de Vila Nova de Famalicão foi dito que a dequitadura fora normal e que havia sido revisto o canal de parto;
6. Ainda há que acrescentar no que respeita à perícia médica efectuada na pessoa da A. C………….. que:
Durante o decorrer do parto sofreu uma asfixia perinatal grave que causou na examinada uma encefalopatia hipoxico-isquémica grau III, hipertonia global, gastriteerosiva/esofagite grau II-III hipertensão arterial.
Estas patologias condicionaram de forma grave e irreversível o desenvolvimento da examinada a ponto de nesta data se apresentar a exame pesando seis quilos e medindo cinquenta e cinco centímetros de comprimento, cega, surda, incapaz de deglutir, sem controlo de esfíncteres, não falando, entubada para se poder alimentar e aspirar secreções laringo-traqueais. Apresenta uma atrofia muscular gravíssima. Junto se anexa registo fotográfico do desenvolvimento físico da examinada que tem quatro anos de idade.
Não consta do processo o registo do exame ecocardiotocográfico durante o trabalho de parto, elemento imprescindível para avaliar a conduta médica deste acto.
A examinada apresenta-se a exame num quadro neurológico grave, com atraso de desenvolvimento físico e psíquico significativos.
A examinada apresenta as seguintes sequelas numa situação clínica neurológica grave: Asfixia perinatal grave, encefalopatia pipóxico-isquémica grau III, hipertomia global, gastrite erosiva/esofagite e hipertensão arterial. Polimedicada com fenobarbital, ranitidinea, captopril e cisafride.
Os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano.
As lesões atrás referidas terão resultado de traumatismo de natureza inciso-contundente o que é compatível com a informação.
Do evento resultaram para a examinada as consequências permanentes descritas, as quais sob o ponto de vista médico-legal: uma situação clínica neurológica grave, asfixia perinatal grave, encefalopatia hipósica isquémica grau III, hipertonia global, gastrite erosiva-esofagite e hipertensão arterial;
Do evento resultou, em concreto, perigo para a vida da Examinada.
Do evento resultou incapacidade permanente de cem por cento (IPP-100%).

7. Bem como acrescentar, no que respeita à perícia médica efectuada na pessoa da A. B………….., que:
Os elementos disponíveis permitem admitir o nexo e causalidade entre o traumatismo e o dano coagulopatia intradisseminada;
Incapacidade permanente geral na qual tendo em conta a globalidade das sequelas resultantes, a experiência médico-legal de casos semelhantes e a consulta das tabelas de incapacidades funcionais, designadamente a do Concours Médical ou similar, e que no caso presente é de 20% pelas alterações afectivas que apresenta.
As sequelas resultantes não a impedem de trabalhar, mas o estado físico em que a sua filha se encontra obrigam-na a estar permanentemente ocupada com os cuidados que lhe tem de prestar;
O prejuízo sexual fixável no grau dois numa escala de cinco graus de gravidade crescente.
8. É relevante também (e narra-se minuciosamente) as atribulações sofridas pelo “Registo do exame ecocardiotocográfico durante o trabalho de parto, elemento imprescindível para se avaliar a conduta médica deste acto (conf. consta da perícia de fls. 565).
a) Por despacho de Administração do Hospital R. foi instaurado processo de averiguações no sentido de apurar as circunstâncias do extravio do exame ecocardiotocográfico do processo clínico da utente B……………;
b) E de tal processo resultou a divulgação de modos de procedimento que comprometem a eficiência e cuidados devidos do Hospital R:
atentos os procedimentos administrativos internos do Hospital, os processos clínicos andam de mão em mão e por variadas pessoas e bem como a organização dos próprios processos clínicos, a da dos factos, em que o exames eram arquivados de forma solta, é possível que dito exame se tenha extraviado nas múltiplas “viagens” que fez para satisfazer os diversos pedidos;
desconhece (a chefe da secção responsável pelo arquivo clínico) mesmo se alguma vez tal exame existiu … é frequente os exames dos doentes estarem soltos no processo, pelo que é extremamente fácil a perda de documento … os documentos não são catalogados nem numerados, nem conferidos quer à entrada quer à saída dos processos.
e das conclusões do procedimento administrativo referido extrai-se o segundo texto: “Pensamos que podemos imputar a responsabilidade mais do modelo de organização dos processos clínico e a forma de controlo dos seus elementos constitutivos e bem assim da forma de controlo dos mesmos por parte de todos aqueles que o manuseiam.
Cremos estar perante uma responsabilidade colectiva e do modelo organizacional, não se podendo nos presentes autos individualizar um ou mais responsáveis pelo extravio do exame em referência, tal como não é possível apurar com exactidão quantas pessoas manusearam o processo clínico e o número de vezes que com ele tiveram contacto;
c) Não restará qualquer dúvida que com a sua actuação culposa o Hospital R. tornou impossível a prova resultante da existência do registo do exame ecocardiotocográfico que, por sua vez, é (pela perícia já referida) imprescindível para se avaliar a conduta médica no trabalho de parto.
9. Sendo parte do acórdão recorrido (Recurso n.° 576/10-5.” Secção-STA) que:
Deste modo, ficou assente que, por não ter o R. feito a prova da normalidade do parto, foi ilícita e culposa a actuação dos respectivos agentes, por não terem efectuado a cesariana.
Em aberto, porém, ficou a questão de saber se perante a factualidade provada, é legítimo concluir, como na sentença, que existiu nexo de causalidade entre essa actuação e os danos invocados pelos AA.”...
Todavia diversamente do que parece ter sido o entendimento seguido na sentença, a consideração de que os danos alegados decorreram das lesões correspondentes do quadro clínico de asfixia perinatal grave, apresentado pela bebé à nascença, não legitima a conclusão de que tal quadro clínico e essas lesões foram determinadas, numa relação de causalidade adequada pela conduta dos agentes do R.
Em suma: a factualidade provada não permite concluir pela existência de nexo de causalidade entre a conduta dos médicos agentes do R. e ora recorrente Centro Hospitalar e os danos alegados pelos AA., faltando assim, um dos pressupostos da invocada responsabilidade civil extra contratual. O que sendo estes de verificação cumulativa, implica a inexistência de obrigação de indemnizar e, por consequência, a improcedência da acção proposta”.
10. Mas este comportamento jurídico atentando para a absolvição do R. Centro Hospitalar está em oposição com o determinado e concluído no conteúdo do acórdão do STA - Processo n.º 048155, de 06/03/2002, donde resulta que:
a) “Perante o quadro referido é de concluir pela culpa do professor referido como bem se nota na sentença recorrida”;
b) “De harmonia com o disposto no art.° 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.° 48051 «a culpa dos titulares do órgão ou dos agentes é apreciada, nos termos do art.° 487.” do Código Civil» em que se estabelece que ela é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso”. Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo.
c) Afirmar a existência de ilicitude de uma conduta, por violação das regras de prudência que deveriam ser adoptadas, implica a formulação de um juízo no sentido de que o agente devia ter agido de outro modo, no caso, como se referiu, obstando a que o aluno se aproximasse da máquina com ela em funcionamento e abstendo-se de lhe pedir que lhe entregasse um documento, o que implicava uma aproximação dela.
Por isso, a culpa só seria de excluir se existisse qualquer obstáculo a que o agente actuasse da forma descrita, o que não resulta da prova produzida, pois não se vislumbra qualquer obstáculo a que o professor ordenasse ao aluno para não se aproximar da máquina e a que não lhe pedisse para lhe vir entregar o papel, aproximando-se desta. Assim, não havendo qualquer obstáculo a que o referido professor agisse de outro modo, constatada a violação das referidas regras de prudência, deve ter-se por assente a existência de culpa.
d) A norma que estabelece o regime do nexo de causalidade em matéria de responsabilidade civil é o art.° 563.º do Código Civil, que preceitua que “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.
Esta norma tem uma formulação pouco precisa, parecendo próxima da teoria da equivalência das condições. (3) Ou teoria da conditio sine qua non, segundo a qual seriam indemnizáveis todos os prejuízos que não se teriam verificado se não fosse o acto ilícito, mas contendo um elemento de probabilidade que aponta no sentido da teoria da casualidade adequada. (4) Embora haja variantes desta teoria, ela parte da mesma ideia da equivalência das condições, mas limita a existência de nexo de causalidade relativamente aos danos que, em abstracto, são consequência apropriada do facto.
e) Este Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a entender que, em matéria de nexo da causalidade, o art.° 563.° do Código Civil, consagra a teoria da causalidade adequada, e que, na falta de opção legislativa explícita por qualquer das suas formulações, os tribunais gozam de liberdade interpretativa, no exercício da qual se deve optar pela formulação negativa correspondente aos ensinamentos e ENNECERUS-LEHMANN (7).
f) Nesta formulação, a condição deixará de ser causa do dano, sempre que, “segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo portanto inadequada para este dano”.(8) ANTUNES VARELA. Das Obrigações em Geral, 6.ª edição, página 861, nota (2).
No caso em apreço, em face do que se referiu, é claro que a actuação do professor referido, não só ao não recomendar ao aluno que não se aproximasse da máquina, como podia e devia, mas também ao ordenar-lhe que lhe entregasse o papel com o desenho, fazendo com que ele, cumprindo a ordem, se aproximasse da máquina, não pode considerar-se indiferente para a produção do resultado, antes sendo de concluir que foi a causa directa e primacial do dano.
Por isso, tem de afirmar-se a existência de nexo de causalidade entre a actuação do referido professor e a produção do dano.
11. Assim se verifica que:
a) no acórdão n.º 048155 - perante o quadro referido e concluindo-se pela culpa do professor, aplicando a teoria da causalidade adequada (formulação negativa), afirma-se a existência de nexo de causalidade entre a actuação do referido professor e a produção do dano;
b) no acórdão recorrido n.º 576/10 - tendo considerado assente que, por não ter o R. feito a prova da normalidade do parto, foi ilícita e culposa a actuação dos respectivos agentes, por não terem efectuado a cesariana, mas pretensamente, aplicando a teoria da causalidade adequada (formulação negativa), conclui que “a factualidade provada não permite concluir pela existência de nexo de causalidade entre a conduta dos médicos agentes do R. e ora recorrente Centro Hospitalar e os danos alegados pelas AA.”;
c) Ora parece sensato que se entenda que efectivamente se aplique no acórdão n.º 576/10 o raciocínio e decisão constante do acórdão n.º 048155.
12. Sendo, ainda, parte do acórdão recorrido (Recurso n.º 576/10-STA) e dos autos em apreço que:
a) não consta do processo o registo do exame ecocardiotocográfico durante o trabalho de parto, elemento imprescindível para se avaliar a conduta médica deste acto;
b) o próprio Centro Hospitalar R., face ao desaparecimento de tal exame, um procedimento administrativo que levou a cabo, concluiu que “Cremos estar perante uma responsabilidade colectiva e do modelo organizacional, não se podendo nos presentes autos individualizar um ou mais responsáveis pelo extravio do exame em referência, tal como não é possível apurar com exactidão quantas pessoas manusearam o processo clínico e o número de vezes que com ele tiveram contacto.”
c) Assim assumindo a culpa (pelo menos negligência grave) pelas consequências do referido extravio.
13. O que logo determina, face à dificuldade de prova, criada pelo Centro Hospitalar R. (e seus agentes), para com as AA., que se recorra, sem dúvida, à inversão do ónus da prova.
14. Sendo em consequência, face à sua conduta ilícita, que sobre o R. impenderá o ónus da prova de que todos os actos cometidos pelos seus agentes no processo clínico das AA. foram respeitadores das legis artes.
15. Não se pronuncia o acórdão recorrido sobre tal matéria, a não ser por omissão, não fazendo operar, como devia a inversão do ónus da prova.
16. Como, aliás, vem consagrado no acórdão 0982/03, quando afirma:
No caso em apreço, não há razões que, nos termos normativamente fixados justifiquem a inversão do ónus da prova. Nem há presunção legal, nem há notícia que a R. tenha criado qualquer dificuldade à actividade probatória da Autora.
Neste quadro, diga-se, se houver non liquet probatória, haverá mesmo de resolver-se contra a A.”
17. E daqui o que haverá a concluir é que, houvera razões (e no acórdão recorrido as razões são abundantes - como se encontra narrado no autos) inverter-se-ia o ónus da prova.
18. Do que consta deste acórdão 0982/03 é que houvera notícia de que a R. tivesse criado qualquer dificuldade à actividade probatória da Autora e haveria inversão do ónus da prova (e as notícias das dificuldades que o R. criou aos AA. -nestes autos 576/10, para obstaculizar o apuramento da verdade chegam a impressionar pela sua evidencia e aspecto doloso (até).
19. A ser julgado nos termos do acórdão 0982/03 (princípios jurídicos), seria, naturalmente considerada a existência (também por esta via) do nexo de causalidade entre a actuação dos agentes (médicos) do R. e os danos causados pela sua actuação e sofridos pelas AA.
20. Desta forma:
a) quer porque em matéria de aplicação da teoria da causalidade adequada (sob a formulação negativa) (Ennecerus-lehmann) (acórdão 48155);
b) quer porque em matéria de inversão do ónus da prova (acórdão 0982/03);
21. O acórdão dos autos, aqui recorrido, aplicou legislação e doutrina em oposição com anteriores (e acima identificado) acórdãos deste S.T.A., tomando decisão (decisões) que se opõem a anteriores, não obstante versarem no domínio da legislação, à mesma questão fundamental de direito e já transitados em julgado.
22. Assim sendo deve o acórdão dos autos ser alterado nos termos expostos seguindo-se os demais termos do art.° 765.° e seguintes do Cód. Proc. Civil.
23. Em consequência deve ser lavrado Assento que julgue este conflito de jurisprudência, contemplando o pedido dos AA. ou seja, que o R. seja condenado a pagar:
a) aos AA., como representantes legais de sua filha C……………, uma indemnização correspondente a todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela mesma sua filha de montante nunca inferior a € 300.000,00 (trezentos mil euros);
b) à A. esposa, uma indemnização correspondente a todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, por ela sofridos por virtude das intervenções cirúrgicas a que foi submetida, bem como pelas sequelas correspondentes, de montante nunca inferior a € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros);
c) aos AA., por si, uma indemnização correspondente aos danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos, quer com os cuidados que tenham e terão com a C…………… quer com o desgosto, tristeza e angústia que lhes provocou e provoca o estado em que a mesma foi posta, de montante nunca inferior a € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros);
d) aos AA., os juros das referidas indemnizações à taxa legal a contar da data da citação (conf. art.° 559.° e 805.° do Cód. Civil);
e) as custa legais e procuradoria condigna.
24. O acórdão recorrido violou o disposto nos art.° 344.° e art.° 487 e 563.° todos do Cód. Civil.

O Centro Hospitalar do Vale do Ave contra alegou, e muito embora não tivesse formulado conclusões, sustentou que o recurso era extemporâneo, que não poderia ser admitido por não se verificar a oposição de julgados e que, a ser recebido, dever-se-lhe-ia negar provimento.

O Ex.mo Sr. Procurador-Geral Adjunto foi de parecer que se declarasse findo o recurso por se não verificar a invocada oposição de julgados.
Desde logo porque, contrariamente ao alegado, o Acórdão recorrido aplicou a teoria da causalidade adequada e, portanto e nesta matéria, não existia divergência com o Acórdão fundamento.
Por outro lado, inexistia identidade de facto subjacente às decisões proferidas nos Acórdãos recorrido e fundamento.

FUNDAMENTAÇÃO


I. MATÉRIA DE FACTO
A decisão recorrida julgou provados os seguintes factos:
1.1 Os AA. são pais da menor C…………….. (cfr. doc. de fls. 14 dos presentes autos cujo teor aqui se dá por reproduzido) (al. A));
1.2 A mesma nasceu em 04 de Novembro de 1998, pelas 15.45 horas, no Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Distrital de Vila Nova de Famalicão (cfr. doc. de fls. 14 dos presentes autos cujo teor aqui se dá por reproduzido) (al. B));
1.3 - A A. esposa era seguida, na sua gravidez, pela médica Dr.ª D…………… nos seus consultórios particulares, quer em Vila Nova de Famalicão, quer na Trofa, onde, durante o mesmo período de gravidez foi atendida cerca de seis vezes (al. C));
1.4 Ao aproximar-se o fim do período de gestação a Dr.ª D…………….. determinou que a Autora esposa a procurasse para consulta nas instalações do Hospital R., o que a Autora esposa fez, pela primeira vez, sem qualquer anormalidade (al. D));
1.5 E pela segunda vez, em 4 de Novembro de 1998, por determinação da Dr.ª D……………… a A. esposa apresentou-se a consulta no Hospital R. para que, pela referida médica, fosse examinada (al. E));
1.6 A referida médica examinou a A. esposa que concluiu que o bebé estava bem, mas estava muito alto (al. F));
1.7 A menor ao nascer apresentava lesões que se traduziram em encefalopatia em hipóxido-isquémica grau III, em hipertonia global, em gastrite erosiva/esofagite grau II-III e em hipertensão arterial. (cfr. doc. junto a fls. 16 a 19 dos presentes autos cujo teor aqui se dá por reproduzido) (al. G));
1.8 Dos registos clínicos do parto consta, as 13.00 horas, "(...) traçado com alterações, foi comunicado ao médico de serviço que mandou suspender soro com "sintocinom" e colocou soro simples (...)" (al. H));
1.9 E pelas 13.40 horas consta "(...) Iniciou período expulsivo. Foi chamado o pediatra para assistir ao parto (...)" (al. I));
1.10 E as 13.50 horas consta "(...) Teve parto distócico "fórceps" sexo feminino apgar 4-4. Foi chamado o anestesista para reanimar o R.N. (...)" (al. J));
1.11 A bebé C…………., foi transferida, pelas 14.15 horas, na incubadora, para os serviços de pediatria do Hospital de V.N. de Famalicão e às quatro horas de vida foi, por sua vez, transferida para o Hospital Maria Pia, no Porto (al. L));
1.12 Donde saiu três semanas depois para o Hospital de V.N. de Famalicão, onde se manteve durante cerca de cinco meses em internamento e, posteriormente, todos os dias, frequência que foi decrescendo até que agora vem duas vezes por semana sempre para exercícios de fisioterapia (al. M));
1.13 A A. B…………….., veio a ser transferida em 04/11/1998 para o Hospital de S. João no Porto, onde deu entrada pelas 17.48 horas, e aí, depois de estabilizada a situação clínica, foi enviada ao bloco operatório para uma revisão uterina (al. N));
1.14 E esteve internada no Hospital de S. João, no Porto, ate 23/11/1998, data em que lhe foi dada alta, sendo que, no entanto, tal internamento até 07/11/1998 foi na unidade de cuidados intensivos de tal Hospital (al. O));
1.15 Os AA. são agricultores (al. P)).

2. Da Base Instrutória da Causa:
2.1 Após o exame referido em aquela médica mandou a A. esposa para casa porque era muito cedo ainda (resposta ao facto 10);
2.2 Estava a A. esposa a dar a notícia ao A. marido, que aguardara fora da sala de parto, quando a Dr.ª D…………….. mandou chamar outra vez a A. esposa (resposta ao facto 2°);
2.3 E é então que lhe diz "Estive a pensar melhor. De facto, a bebé pode não esperar uma semana e eu só estou cá na próxima Quarta-feira. De maneira que o melhor é ficar cá. Vou-lhe provocar o parto e se o bebé não descer faço-lhe uma cesariana" (resposta ao facto 3°);
2.4 A A. esposa deu conhecimento ao A. marido e ficou logo, nos momentos seguintes, na sala de parto (resposta ao facto 4°);
2.5 O parto foi provocado (resposta ao facto 5°);
2.6 A A. esposa assinou o termo de responsabilidade que lhe foi solicitado e inserto a fls. 15 dos autos cujo teor aqui se dá por reproduzido (resposta ao facto 6°);
2.7 Foi aplicado "fórceps" e que foram aplicados cortes (incisões na vulva e no períneo) (resposta ao facto 22°);
2.8 O traçado (relativo ao registo do exame ecocardiotocográfico) apresentava anomalias nomeadamente antes do início do período de expulsão (resposta ao facto 23°);
2.9 A bebé apresentava um quadro clínico de asfixia perinatal grave (resposta ao facto 24°);
2.10 A Dr.ª D…………… e o Dr. E……………. já foram associados, trabalhando em conjunto, a exercer a sua profissão no sector privado (resposta ao facto 25°);
2.11 A menor C…………… é transferida às quatro horas de vida por asfixia perinatal grave e necessidade de ventilação mecânica para o Hospital Central Especializado de Crianças Maria Pia, no Porto (resposta ao facto 28°);
2.12 Foi aplicado "fórceps" e que foram aplicados cortes (incisões na vulva e no períneo) (resposta ao facto 31°);
2.13 A C……………. sofreu uma asfixia perinatal grave com todas as lesões que lhe determinaram a incapacidade permanente absoluta de que padeceu durante toda a vida (resposta ao facto 34°);
2.14 A C…………..,, mercê das lesões sofridas não tem o desenvolvimento de uma criança normal da sua idade (resposta ao facto 35°);
2.15 Pelo que a mesma, aos trinta e cinco meses, pouco mais pesa que quatro quilogramas, apenas cresceu três centímetros, não fala, não ouve, não vê, não anda (resposta ao facto 36°);
2.16 E para se alimentar precisa de sondas pelo nariz porque não mastiga (resposta ao facto 37°);
2.17 Sendo necessário estar junto dela, permanentemente, uma pessoa para lhe prestar os mais simples cuidados de higiene e outros (resposta ao facto 38°);
2.18 A C………….. não crescerá com normalidade, não viverá uma infância e uma adolescência felizes, não casará, não terá filhos, sendo que será apenas, pela vida fora, alimentada, cuidada e acarinhada pelos seus pais enquanto viverem e posteriormente pelos seus irmãos (resposta ao facto 39°);
2.19 E por completamente incapaz será um encargo durante toda a sua vida para os AA. e para os familiares que se lhe sucederem (resposta ao facto 40°);
2.20 A A. na sequência do trabalho de parto sofreu várias e graves hemorragias e teve de ser submetida a intervenções cirúrgicas urgentes como correcção de laceração e episioctomia, revisão do canal do parto e foi cateterizada nova veia no dorso da mão esquerda (resposta ao facto 42°);
2.21 Como as hemorragias continuavam, foi transferida para o Hospital de S. João com entubação endotraqueal, ligada ao ventilador (resposta ao facto 43°);
2.22 E é em tal estado que a A. é remetida para o Hospital de S. João no Porto para onde foi remetida onde chega em choque hipotérmico, com hemorragia externa e demais elementos do seu estado de saúde descrito no documento junto a fls. 32 a 37 dos presentes autos cujo teor aqui se dá por reproduzido (resposta ao facto 44°);
2.23 Foi laparotomizada (por suspeitas de retenção de restos placentários), tendo sido efectuada histerorrafia fúndica e revisão dos restos placentários, quando no Hospital de V.N. de Famalicão foi dito que a dequitadura fora normal e que havia sido revisto o canal de parto (resposta ao facto 45°);
2.24 Era a A. uma mulher forte e saudável e, à data da ocorrência destes factos, apenas com 34 anos de idade, senhora de boas capacidades físicas e psíquicas (resposta ao facto 46°);
2.25 E exercia as funções de agricultora em terra própria, sendo, conjuntamente com o marido aqui A. os únicos responsáveis de trabalho na sua casa (resposta ao facto 47°);
2.26 Do ocorrido resultou que a A. para além de estar 19 dias em internamento hospitalar, esteve ainda incapacitada de prestar trabalho durante 120 dias (resposta ao facto 48°);
2.27 Os AA. contrataram um trabalhador para auxiliar o A. marido nos trabalhos agrícolas (resposta ao facto 49°);
2.28 O trabalhador recrutado auferia € 500,00/mês (resposta ao facto 50°);
2.29 A Autora sofreu intervenções cirúrgicas com anestesia geral no foro de obstetrícia (resposta ao facto 51°);
2.30 E foi submetida a vários curativos, tratamentos, cuidados intensivos e internamento hospitalar (resposta ao facto 52°);
2.31 A Autora mulher teve inquietação, angústia e forte susto, principalmente quando estava consciente e sabia do seu estado (nomeadamente das inúmeras hemorragias) (resposta ao facto 53°);
2.32 A Autora sofreu múltiplas, frequentes e intensas dores, quer durante o parto, quer durante os tempos de internamento hospitalar que se lhe seguiram (resposta ao facto 54°);
2.33 E ainda hoje sofre dores na região do ventre (resposta ao facto 55°);
2.34 A Autora mulher sofre imenso ao recordar tais dias (resposta ao facto 56°);
2.35 Enquanto a Autora esposa esteve internada recebeu as visitas de seu marido, todos os dias (resposta ao facto 57°);
2.36 Mercê do estado de incapacidade de que padece a C…………… é constante a necessidade de presença da mãe, que entretanto não poderá desempenhar as suas tarefas de agricultora e dona de casa, o que exige a contratação de terceiro que a substitua naquelas tarefas ou nas de cuidar daquela sua filha (resposta ao facto 58°);
2.37 O facto de terem a C…………….. no estado em que se encontra provoca aos AA. uma grande tristeza, um profundo desgosto e uma angústia intensa e permanente (resposta ao facto 59°);
2.38 Os AA. despendem regularmente quantia em dinheiro não apurada em medicamentos para a C…………….. (resposta ao facto 60.º);
2.39 A C…………… terá de ser medicada a vida inteira (resposta ao facto 61°);
2.40 Os AA. despenderam quantia em dinheiro não apurada em consultas após o nascimento da C…………… (resposta ao facto 62°);
2.41 O leite que a C………….. tem de tomar é especial pelo que os AA. na sua aquisição despenderam quantia em dinheiro não apurada a mais do que teriam despendido se a sua filha consumisse leite normal (resposta ao facto 63°);
2.42 Dado que a A. não pode ajudar o marido na faina do campo e vacaria os mesmos viram-se na emergência de contratar um trabalhador que lhes fica por Esc. 100.000$00 mensais e no qual já despenderam nos últimos três anos o montante de Esc. 3.600.000$00 (resposta ao facto 64°);
2.43 Os AA. despendem dinheiro na aquisição, todos os meses, de sondas, seringas e alimentação especial, tendo já despendido quantia não apurada, medida de gastos que, naturalmente se manterá no futuro ao mesmo ritmo (resposta ao facto 65°);
2.44 Estando o feto alto, como estava, e findo o tempo de gestação (a A. estava na 40ª semana de gestação) provoca-se o parto e a descida do bebé o que foi feito (resposta ao facto 66°);
2.45 O parto durou cerca de duas horas e meia (resposta ao facto 70°);
2.46 O parto foi provocado às 11.00 horas e pelas 11.30 horas foi prescrita uma perfusão endovenosa de ocitócicos (resposta ao facto 71°);
2.47 A rotura artificial das membranas executou-se as 12.00 horas e foi desde esta hora monitorizada após tal rotura (resposta ao facto 72°);
2.48 Foi aplicado um "fórceps" de Simpson (resposta ao facto 75°);
2.49 O bloco operatório fica dois pisos abaixo da sala de partos (resposta ao facto 78°);
2.50 Foi aplicado "forceps", constando dos registos que tal se deveu a falta de colaboração materna (resposta ao facto 81º);
2.51 Foram aplicados cortes (incisões na vulva e no períneo) (resposta ao facto 82°);
2.52 As causas da paralisia cerebral são múltiplas e a asfixia perinatal é uma dessas causas em 08% dos casos (resposta ao facto 850);
2.53 O Pediatra é por rotina chamado para assistir o bebé, após um parto em que se aplicou fórceps (resposta ao facto 88°);
2.54 E foi chamado o anestesista para reanimar o recém-nascido dado haver sinais de asfixia (resposta ao facto 90°);
2.55 A A. tinha vindo às instalações do R. para consulta (resposta ao facto 94°);
2.56 Aí constatou-se que o bebé estava alto mas a mãe dizia estar já com 40 semanas de gestação, pelo que em vez de se aconselhar o regresso a casa ponderou-se e foi achado conveniente que a parturiente permanecesse ali no serviço de urgência para se lhe apressar o parto dado estar a exceder os limites que vão das 36 às 40 semanas (resposta ao facto 95°);
2.57 Após o parto a menina A. ficou aos cuidados do pediatra e foi conduzida a pediatria e daí seguiu para o Porto para o Hospital Maria Pia após se concluir ser necessária essa transferência (resposta ao facto 96°);
2.58 A mãe ora A. continuou sob os cuidados da equipa de serviço dirigida pelo Dr. E…………… e pela Dr.ª D…………….. (resposta ao facto 97°);
2.59 Após o parto, pelas 14.30 horas, a A. teve uma perda hemática vaginal abundante (resposta ao facto 98°);
2.60 O que originou a revisão (manual) da cavidade uterina, a sutura de episiotomia e a administração de ocitócicos e reposição da volemia (resposta ao facto 99°);
2.61 A dita hemorragia persistiu e a puérpera foi conduzida ao bloco operatório após recolha de sangue para análise e prova de compatibilidade (resposta ao facto 100°);
2.62 Após anestesia geral procedeu-se a revisão da hemóstase do útero e canal do parto, serviço esse executado pelos médicos anestesista e hematologista de serviço (resposta ao facto 101°);
2.63 Pelas 16.20 horas terminou este acto cirúrgico (resposta ao facto 102°);
2.64 E pelas 17.15 horas, por não ser possível controlar eficazmente um quadro de "cogulopatia de consumo" dada a falta de recursos materiais do R., foi decidida a transferência da A. para o Hospital de S. João do Porto, acompanhada de obstetra, de enfermeiro e de parteira, com entubação endotraquial, ligada ao ventilador e acompanhada de exames clínicos, folha de anestesia e indicação dos medicamentos usados (resposta ao facto 103°);
2.65 A A. mulher chegou ao Hospital de S. João consciente e colaborante e não em estado de choque (resposta ao facto 104°);
2.66 A A. após este parto teve outra gestação e o terceiro parto em Maio de 2000, do qual o recém-nascido nasceu normalmente (resposta ao facto 105°);
2.67 A A. mulher iniciou nova gestação cerca de meio ano após os factos descritos (resposta ao facto 106°).

Dos Documentos presentes nos autos:
3.1 A menor C…………… faleceu no dia 27 de Novembro de 2007, com 9 anos de idade (doc. de fls. 1256).


II. O DIREITO.

Resulta do antecedente relato que os Autores, ora Recorrentes, intentaram no TAC do Porto contra o Hospital Distrital de V.N. de Famalicão – depois transformado em Centro Hospitalar do Médio Ave, EPE acção para efectivação de responsabilidade civil extra-contratual alegando, no essencial, que os serviços do Réu, designadamente o seu corpo médico, não actuou com observância das leges artis aplicáveis ao caso e não agiu com a diligência e os cuidados devidos e que isso provocou os graves danos cujo ressarcimento pedem.

Aquele Tribunal considerou que os serviços do Réu não agiram com a diligência e o cuidado devidos e que violaram as legis artes pelo que julgou verificados os requisitos de ilicitude e culpa. E isto porque, muito embora houvesse a indicação de que “o parto por via vaginal não estava a decorrer com a normalidade desejável e que o feto estaria já em sofrimento antes do início do período de expulsão (2.8)”, certo era que inexistia prova cabal de que tal anormalidade estivesse a ocorrer e era impossível obtê-la uma vez que ela só poderia ser feita através do registo cardiotocográfico e este tinha desaparecido dos serviços do Réu por culpa deste. Por essa razão, invocando o disposto no art.º 344.º/2 do CC, entendeu que cumpria ao Réu provar que a evolução “do trabalho de parto decorreu normalmente, sem que fosse necessário ou aconselhável o recurso à via abdominal ou cesariana. Deste modo, e na medida em que o R. não logrou fazer a aludida prova da normalidade, e impondo-se, face às especificidades do caso, a descrita inversão do ónus da prova, importa concluir que estão preenchidos os requisitos da ilicitude e da culpa.”
Sendo assim, e sendo que a bebé apresentava ao nascer um quadro clínico de asfixia perinatal grave e que as lesões daí decorrentes determinaram a incapacidade permanente e absoluta que sofreu durante toda a vida, já que não via, não andava, para se alimentar precisava de sondas pelo nariz e necessitou toda a vida de uma pessoa para lhe prestar os mais simples cuidados de higiene e que a sua mãe, que era uma pessoa forte e saudável, na sequência do parto, sofreu várias hemorragias, teve de ser submetida a intervenções cirúrgicas urgentes, ficou temporalmente incapacitada para o trabalho e sofreu múltiplas, frequentes e intensas dores concluiu que conduta dos serviços do Réu era causalmente adequada à produção dos danos alegados, de acordo com a teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa, consagrada no art.º 563.º do C.C. … Como decorre do atrás exposto a conduta dos serviços do Réu não é, pela sua natureza, em abstracto indiferente à produção do dano. Em geral tem aptidão para originar o dano e, em concreto, afirma-se como condição directa e imediata dele.”
Nesta conformidade, julgou verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil o que determinou que a acção tivesse sido julgada parcialmente procedente e o Réu condenado a pagar aos Autores a quantia de 147.956,72 euros, acrescida dos devidos juros legais, e as quantias que se viessem “a liquidar em execução de sentença quanto às despesas em medicamentos, consultas, leite especial, sondas e seringas e, ainda, em relação aos gastos com visitas durante o internamento da mulher”.

Dessa decisão recorreram para este Supremo o Réu e os Autores; aquele por considerar que se não provara o nexo de causalidade entre os factos e os danos, estes por reputarem insuficiente a indemnização arbitrada.

O Acórdão recorrido, conhecendo o recurso do Réu, começou por declarar que a actuação dos seus servidores tinha sido ilícita e culposa e que, sendo assim, a única questão que se impunha resolver era a de saber se a sentença tinha feito correcto julgamento quando concluiu que existia nexo de causalidade entre essa actuação e os danos invocados pelos Autores.
Questão a que respondeu negativamente pela seguinte ordem de razões:
“Com efeito, estes (os Autores) não lograram provar, desde logo, que daquela actuação tivesse resultado, para a A. mulher, agravação das condições do parto. Pois que, ao quesito 31 («E é assim que o parto se torna de tal modo difícil que foi necessário usar o ‘forceps’, assim como foi necessário proceder a incisões na vulva e nos músculos do períneo para facilitar o parto?») da Base Instrutória, o tribunal a quo respondeu: «Provado que foi aplicado ‘forceps’ e que foram aplicados cortes (incisões na vulva e no períneo)». E àquela conclusão igualmente conduz a consideração do quesito 42 («A A. viu-se, nas circunstâncias em que decorreu o trabalho de parto, a sofrer várias e graves hemorragias e teve de ser submetida a intervenções cirúrgicas urgentes como correcção de laceração e episoctomia, revisão do canal do parto e foi cateterizada nova veia do no dorso da mão esquerda?»), da mesma Base Instrutória, a que o tribunal a quo respondeu: «Provado que a A. na sequência do trabalho e parto sofreu várias e graves hemorragias e teve de ser submetida a intervenções cirúrgicas urgentes como correcção de laceração e episoctomia, revisão do canal do parto e foi cateterizada nova veia no dorso da mão esquerda».
E também no que respeita às lesões sofridas pela C…………… se impõe concluir que não foi feita prova de que tenham sido causadas pela referida conduta dos agentes do R.. Nesse sentido, veja-se o teor do quesito 32 («O que foi feito em vão, já que, entretanto, com a demora, com a inépcia provocada pelo nervosismo e falta de convicção na acção por parte dos intervenientes nas tarefas de parto, o bebé acabou por sofrer asfixia perinatal grave?»), a que o tribunal a quo respondeu «Não provado», bem como o do quesito 34 («Por efeito da conduta desenvolvida pelos Drs. D………….. e E……………. nos serviços do Hospital de Vila Nova de Famalicão, a C…………… acabou por sofrer, na altura do trabalho, uma asfixia perinatal grave com todas as lesões que lhe determinaram a incapacidade permanente absoluta de que padece no momento e padecerá vida fora?»), a que o tribunal a quo respondeu «Provado apenas que a C……………. sofreu uma asfixia perinatal grave com todas as lesões que lhe determinaram a incapacidade permanente absoluta de que padeceu durante toda a vida» (vd. fls. 365/6 e 1357, dos autos).
Em suma: a factualidade provada não permite concluir pela existência de nexo de causalidade entre a conduta dos médicos agentes do R. e ora recorrente Centro Hospitalar e os danos alegados pelos AA., faltando, assim, um dos pressupostos da invocada responsabilidade civil extracontratual. O que, sendo estes de verificação cumulativa (Neste sentido, p. ex., os acórdãos de 25.6.98 (Rº 4376), de 21.9.2010 (Rº 859/09 e de 23.9.2010 (Rº 465/2010).), implica a inexistência de obrigação de indemnizar e, por consequência, a improcedência da acção proposta.
E, sendo improcedente a acção, com esse fundamento, improcede igualmente o recurso subordinado, que se limita à matéria relativa aos montantes indemnizatórios fixados na sentença.”

É deste Acórdão que vem o presente recurso por oposição de julgados pelo que a nossa primeira tarefa é a de saber se se verificam os requisitos que permitem a sua admissão.

Todavia, e porque o Recorrido sustentou que o mesmo tinha sido apresentado extemporaneamente, cumpre começar por dizer que essa alegação não tem fundamento e que, por isso, não é por essa razão que o mesmo não prosseguirá. E isto porque, ao invés do que supõe, sendo requerida a reforma, a aclaração da sentença ou a prestação de esclarecimentos, o prazo de recurso só se inicia após a notificação do deferimento ou indeferimento desse pedido (art.ºs 670.º e 685.º do CPC).

Vejamos, pois, se se encontram reunidos os requisitos de admissibilidade deste tipo de recursos.

1. De harmonia com o que se disciplina nas alíneas b) e b’), do art.º 24.º do ETAF verifica-se a oposição de julgados quando, no domínio do mesmo quadro jurídico e perante idênticas situações de facto, os Acórdãos em confronto hajam perfilhado soluções jurídicas opostas. O que quer dizer que a oposição de julgados pressupõe que, sob um idêntico quadro normativo e uma realidade factual substancialmente idêntica, hajam sido proferidas decisões contraditórias sobre a mesma questão fundamental de direito e que essa oposição seja apenas fruto de divergente interpretação jurídica da mesma realidade legislativa. – art.º 30.º, n.º 1, al. b), do ETAF.
O objectivo perseguido por este tipo de recursos é, assim, como se vê, a obtenção de uma uniformidade jurisprudencial que não só promova como garanta o valor da igualdade na aplicação do direito. Foi, assim, para evitar que se continuassem a prolatar decisões contraditórias nas situações em que se verificava uma idêntica realidade factual e jurídica que o legislador previu este tipo de recurso.

Será que, subjacente aos Acórdãos recorrido e fundamento, se verificam as referidas identidade factual e legislativa e que, por ser assim, foi a divergente interpretação jurídica a determinar a alegada contraditoriedade de julgamentos?

2. Os Recorrentes sustentam que essa oposição existia entre o Acórdão recorrido e os Acórdãos deste Tribunal de 6/03/2002 (rec. 48155) – no tocante ao nexo de causalidade entre a conduta dos médicos da Ré e os danos peticionados – e de 20/04/2004 (rec. 982/03) – no respeitante ao ónus da prova.
No que toca ao primeiro dos pressupostos acima identificados – a identidade legislativa - diga-se, desde já, que ele é evidente uma vez que não se discute que as decisões em confronto respeitam à efectivação da responsabilidade civil extracontratual e que foram prolatadas em momento em que o quadro legislativo aplicável a esse tipo de responsabilidade era o mesmo (os art.ºs 483.º e seg.s do CC, os quais não sofreram alteração no período em causa).
Daí que o único óbice ao prosseguimento do recurso possa ser a eventual falta de identidade substancial da matéria de facto subjacente aos referidos julgamentos.

3. O Acórdão de 6/03/2002 debruçou-se sobre um acidente ocorrido numa escola secundária durante uma aula de trabalhos oficinais, dirigida por um professor dessa escola, na sequência deste ter ordenado a um aluno que lhe desse o papel com o desenho do objecto a executar numa serra mecânica. Tendo ele obedecido, ao retirar a mão, ficou com a manga do seu blusão presa nos dentes da serra o que lhe provocou as lesões cujo ressarcimento pediu.
O Acórdão considerou que a conduta do professor era ilícita e culposa por a mesma ter violado as regras de cuidado e prudência exigíveis ao ordenar que o aluno lhe entregasse o papel com o trabalho a executar, bem sabendo que isso o forçava a aproximar-se, ainda mais, da máquina com a serra circular em funcionamento e que isso era manifestamente perigoso. Neste contexto, depois de afirmar que na análise do nexo de causalidade se devia adoptar a teoria da causalidade adequada na sua vertente negativa, o que significava que a condição deixará de ser causa do dano sempre que, segundo a sua natureza geral, a mesma for de todo indiferente para a produção do dano e só se ter tornado causa do mesmo em virtude de circunstâncias extraordinárias, o Acórdão concluiu que “a actuação do professor referido, não só ao não recomendar ao aluno que não se aproximasse da máquina, como podia e devia, mas também ao ordenar-lhe que lhe entregasse o papel com o desenho, fazendo com que ele, cumprindo a ordem, se aproximasse da máquina, não pode considerar-se indiferente para a produção do resultado, antes sendo de concluir que foi a causa directa e primacial do dano. Por isso, tem de afirmar-se a existência de nexo de causalidade entre a actuação do referido professor e a produção do dano.”

O exposto evidencia que, muito embora os Acórdãos em confronto se tivessem debruçado sobre a questão do nexo de causalidade entre a conduta ilícita e o dano, certo é que os factos em que fundamentaram as suas decisões foram diferentes.
Todavia, essa diferença de factualidades não obsta, de per si, para que se declare que não se verifica a alegada oposição de julgados e que, por isso, se tenha de declarar que, nesta matéria, o recurso não pode prosseguir.

4. Situação diferente é a que ocorre com o outro dos Acórdãos fundamento (de 20/04/2004, rec. n.º 982/03) visto que, do ponto de vista substancial, existe uma forte semelhança entre a factualidade nele fixada e a constante do Acórdão recorrido uma vez que, em ambos, esteve em causa a realização de actos médicos que, por um lado, foram praticados com violação das legis artis e com falta dos cuidados devidos, por outro, tais actos eram susceptíveis de produzir as lesões em causa e, finalmente, em que o afastamento entre a previsão do que iria suceder e o realmente sucedido teve graves consequências para os Autores.
Senão vejamos.

O Acórdão fundamento refere-se a uma cirurgia destinada à laqueação por laparoscopia da qual resultou perfuração intestinal e peritonite generalizada. O que provocou o internamento da Autora no serviço de urgências de um outro Hospital, onde permaneceu por 5 dias, tendo nesse período sido sujeita a nova intervenção cirúrgica consistente num avivamento dos bordos, sutura em dois planos da perfuração e uma lavagem de toda a cavidade peritoneal, o que lhe causou graves incómodos, dores, traumas e vexames.
Perante esta realidade, o Aresto começou por recordar que, nos termos do art.º 342.º do CC, cabia à Autora provar os factos alegados visto inexistir “presunção legal, nem há notícia que a ré tenha criado qualquer dificuldade à actividade probatória da autora” e que, por ser assim, haveria que concluir que, se houvesse “non liquet probatório, haverá o mesmo de resolver-se contra a autora”.
Todavia, estava processualmente adquirido, pela prova produzida em julgamento, que a perfuração intestinal foi causada pela intervenção cirúrgica efectuada à A., na Ré, (e que) esse facto, que é uma consequência espúria à finalidade do acto cirúrgico – laqueação tubar - é, por si só, um forte índice de que a conduta do serviço da Ré, que antecedeu tal resultado gravoso, não se pautou pelas regras da arte e/ou da prudência comum. … Na verdade, tal consequência, não é concebível, como efeito comum e corrente de um acto cirúrgico desta natureza - laqueação de trompas - num serviço que satisfaça o standard médio exigível e adequado a uma assistência diligente, ao nível de diagnóstico de especiais patologias pré-existentes, de escolha do meio técnico utilizado (laparoscopia) em detrimento de outro, da definição da oportunidade e da necessidade da intervenção, da qualidade de equipamento e de perícia da equipa cirúrgica. Portanto, no caso em apreço, a inferência, a partir do resultado, da violação das leges artis e/ou de prudência comum, se não merece assentimento, desde logo, com toda a segurança, não deve, também, afastar-se de imediato, pois é bem mais do que uma mera conjectura.”
Sendo assim, e sendo que estava “provado que a perfuração foi «causada» pela intervenção cirúrgica, temos, por um lado, a força indiciária do resultado a sinalizar que alguma coisa correu muito mal no procedimento médico/cirúrgico de prestação dos cuidados de saúde à autora e, por outro lado, a frustração do intento da Ré de provar que a perfuração intestinal estava incluída no universo dos riscos próprios, comuns e normais da cirurgia, circunstâncias convergentes que, no seu conjunto, constituem base probatória bastante de um juízo de certeza quanto à violação das regras da arte e/ou do dever geral de cuidado”. Juízo esse que não era um juízo de certeza lógica mas um juízo de probabilidade de um grau tão elevado que não feria as exigências razoáveis da segurança social.
Portanto, no caso em apreço, os factos provados, sendo escassos, têm, porém, em si mesmos, poder persuasivo bastante para, a partir deles, num juízo corrente de probabilidade firmar o convencimento de que o resultado danoso foi antecedido de gestos clínicos e/ou cirúrgicos dos serviços da Ré praticados com desrespeito das regras de ordem técnica e/ou do dever geral de cuidado. E, uma vez que o crédito de tal juízo presuntivo poderia ter sido afastado por simples contraprova (cf. Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, 4.ª ed., vol. I, p. 312), coisa que a Ré não logrou fazer, está justificada a convicção do tribunal a quo de que, neste caso concreto está provada a violação das leis da arte.” E “provada a ilicitude por violação do dever de diligência técnica exigível na assistência à autora, está, do mesmo passo, provada a culpa funcional da ré, censura que assenta no defeituoso funcionamento dos seus serviços, abaixo do standard médio de actuação que deles se poderia razoavelmente esperar.”
E – prosseguindo para análise da verificação do nexo de causalidade entre o facto e o dano – considerou que “Assente que está, que «a intervenção cirúrgica efectuada à autora, na Ré, causou-lhe perfuração intestinal e peritonite generalizada», é forçoso concluir que este nexo naturalístico é causalmente adequado à produção dos danos alegados, de acordo com a teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa, consagrada no art.º 563.º do C. Civil. Na verdade, nos termos daquela, a condição (procedimento médico/cirúrgico) só deixaria de ser causa do dano se, segundo a sua natureza geral, fosse de todo indiferente para a produção do dano e só se tivesse tornado condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias. … Ora, como decorre do atrás exposto, a conduta dos serviços da ré, não é pela sua natureza, em abstracto, indiferente à produção do dano. Em geral tem aptidão para originar o dano e, em concreto, foi condição directa e imediata dele.”

5. O exposto evidencia que, muito embora as factualidades fixadas nos Acórdãos em confronto não sejam sobreponíveis, certo é que elas se assemelham num ponto decisivo: o de se tratar de actos médicos de realização comum, aparentemente sem riscos nem dificuldades, e que, por isso, sendo realizados com o cuidado, a diligência e a prudência exigíveis não provocam consequências indesejadas. Ao que acresce que os efeitos danosos desses actos foram, em ambos os casos, fruto da violação das legis artes e/ou de prudência comum o que levou os Acórdãos a concluir que se encontravam reunidos três dos pressupostos da responsabilidade ora em causa: a ilicitude do facto, culpa dos agentes e o dano.
Todavia, e apesar dessa similitude, deram respostas contraditórias no tocante ao nexo causal entre tais actos e as consequências a eles associadas.

O Acórdão recorrido entendeu que esse nexo não se verificava por os Autores não terem feito a prova do mesmo, a quem a mesma cabia, como se via pela forma como os quesitos 31.º, 32.º, 34 e 42.º tinham sido respondidos.
O Acórdão fundamento, pelo contrário, considerou que o dano era a consequência natural do facto da intervenção cirúrgica ter sido realizada com violação das legis artes e que, por isso, entre aquele acto médico e os danos sofridos pela Autora havia uma real e efectiva ligação de causa e efeito.
E isto porque, estando provado que uma cirurgia destinada a uma laqueação das trompas provocou perfuração intestinal e peritonite generalizada, consequências que não só eram imprevisíveis como não teriam ocorrido se os médicos tivessem usado de diligência, do cuidado e do saber que era suposto terem, provada ficava quer a ilicitude do acto e a culpa funcional quer o próprio nexo causal entre a cirurgia e a sua consequência espúria. Por um lado, porque aquele acto médico era “causalmente adequado à produção dos danos alegados, de acordo com a teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa, consagrada no art.º 563.º do C. Civil”, por outro, porque o mesmo não era, em abstracto e pela sua própria natureza, indiferente à sua produção e, finalmente, porque a perfuração intestinal não “estava incluída no universo dos riscos próprios, comuns e normais da cirurgia”. Ao que acrescia que este juízo presuntivo poderia ter sido afastado por simples contraprova, prova que o Réu não tinha logrado fazer.

O que quer dizer que o Acórdão fundamento entendeu que a ilicitude da conduta e a negligência com que os agentes do Réu agiram eram, por si só, e sem necessidade de qualquer prova suplementar, razão suficiente para se considerar que os peticionados danos eram uma consequência directa dessa culposa e ilícita conduta. Uma e outra realidades estavam directa e causalmente relacionadas.

Foi outro, todavia, o entendimento do Acórdão recorrido.
Com efeito, apesar da substancial identidade factual entre esses Arestos, a verdade é que o Acórdão recorrido repudiou a possibilidade de existir um nexo causal entre a realização do parto e as graves consequências que daí advieram, justificando essa recusa com o facto dos AA não terem provado que esses danos resultaram de um agravamento das condições do parto, como se via pela resposta restritiva a certos quesitos. Só que, se bem virmos, nenhuma dessas respostas põe em causa que a realização do parto foi feita com violação das legis artesfacto que o Réu aceita sem qualquer contestação - nem que o mesmo tinha potencialidade para ser a causa directa e adequada da produção dos danos. Daí que - como se decidiu no Acórdão fundamento que vimos invocando - não tendo o Réu provado que as consequências danosas que sobrevieram ao parto estavam incluídas no universo dos seus riscos próprios, comuns e normais nem que tais danos resultaram de causa estranha e extraordinária àquele acto médico, haveria que concluir que entre essas duas realidades existia um nexo causal, juízo que não podendo ser de certeza matemática era, no entanto, um juízo de probabilidade de um grau tão elevado que não feria as exigências razoáveis da segurança social.
Ora, o Acórdão recorrido decidiu de forma diferente, isto é, decidiu contra o entendimento que havia suportado o julgamento do Acórdão fundamento.

É, assim, claro que, em ambos os Arestos, quer em abstracto quer em concreto, as realidades factuais são substancialmente idênticas, que os actos médicos que provocaram os danos eram frequentes e não envolviam grandes riscos, que pela sua própria natureza e pela forma como foram conduzidos eram susceptíveis de produzir os danos peticionados e que, sendo assim, a divergência dos seus julgamentos foi o resultado de uma diferente forma de encarar o nexo causal entre o facto ilícito e o dano.

6. É verdade que essa conclusão pode ser questionada e sustentar-se que o nexo causal que o Acórdão fundamento teve por certo não estava matematicamente demonstrado e que, afinal, poderia ter havido um facto ou uma ocorrência absolutamente exterior à opção tomada pelos médicos e que fora ela a real causadora do dano. Mas também o é que uma opção dessa natureza pressupunha que os autos indiciassem, de forma séria e credível, que esse acontecimento extraordinário não era uma mera conjuntura mas uma probabilidade real, séria, muito forte e que a mesma tinha de ser encarada. Ora, inexiste qualquer indício e, muito menos, qualquer prova desse facto extraordinário, o que nos obriga a afastar uma tal conjectura e a lidar apenas com a factualidade que aquele Aresto considerou.
Daí que sejamos forçados a concluir que quando o Acórdão recorrido considerou que não havia relação directa de causa e efeito entre o facto e o dano partiu de uma concepção de nexo causal que não é a que resulta da lei e isto porque partiu da convicção de que a resposta restritiva dada aos quesitos acima identificados afastava, por si só, a existência do nexo causal quando a verdade é que não é isso que no quadro legal é exigido para se afirmar o nexo de causalidade.
Note-se que, como se disse, na matéria provada não há facto algum que afaste o nexo de causalidade, não há nenhuma matéria que afaste a interferência da actuação ilícita no resultado, no dano. O que há são respostas que não afirmam explicitamente essa ligação imediata, mas não há respostas que neguem essa conexão. E é nesse tipo de situações que é necessário fazer entrar o regime legal e, ao fazê-lo, o Acórdão sob censura violou o disposto no artigo 563.º do Código Civil, por erro de integração do apurado nesse regime legal.
Não pode, assim, considerar-se indiferente para a produção do resultado, a actuação ilícita e culposa provada, antes sendo de concluir que foi a causa directa e primacial do dano.
Também por essa razão, pode afirmar-se a existência da alegada oposição de julgados. E isto porque o Acórdão sob censura contradiz o que vem sendo dito, sistematicamente, por este Supremo Tribunal, designadamente com o acórdão de 20/04/2004 (rec. 982/03), quando este afirmou que, na formulação legal, “a condição (procedimento médico/cirúrgico) só deixaria de ser causa do dano se, segundo a sua natureza geral, fosse de todo indiferente para a produção do dano e só se tivesse tornado condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias. … Ora, como decorre do atrás exposto, a conduta dos serviços da ré, não é pela sua natureza, em abstracto, indiferente à produção do dano. Em geral tem aptidão para originar o dano e, em concreto, foi condição directa e imediata dele.”
E igualmente nesta matéria da relação causa e efeito, isto é, entre o facto e o dano se poderá convocar ainda, o ac. de 6/3/2002 (rec. 48.155), visto este ter-se debruçado sobre essa questão e ter chegado à conclusão que agora se adopta.

7. É, pois, seguro que, pese embora os factos com que trabalharam ambos os acórdãos fundamento não sejam os mesmos, certo é que deram respostas contraditórias à do acórdão recorrido no tocante à questão de saber se nas situações aí em causa o nexo de causalidade entre o facto e o dano estava preenchido.
O que evidencia que a divergência de julgados não se fundou na falta de identidade da matéria de facto mas, apenas e tão só, na forma como os Acórdãos em confronto entenderam que o nexo de causalidade e a sua prova deveriam ser apreciadas.
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O presente recurso é julgado de acordo com a legislação em vigor à data da propositura da acção, o que significa que, verificada a oposição, as partes são notificadas para apresentarem a sua alegação sob o objecto do recurso (art.º 767.º/ 1 e 2 do CPC).
Deste modo, e muito embora seja certo que as partes se anteciparam e já formularam alegações sobre o objecto do recurso também o é que o fizeram antes do tempo próprio e que não se lhes pode retirar o direito de produzirem novas alegações.
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Termos em que acordam os Juízes que compõem este Tribunal em julgar verificada a oposição de Acórdãos e, em consequência, ordenar o prosseguimento dos autos com a notificação das partes para alegar.
Sem custas.

Lisboa, 21 de Janeiro de 2016. – Alberto Acácio de Sá Costa Reis(relator) – Alberto Augusto Andrade de OliveiraVítor Manuel Gonçalves GomesAntónio Bento São PedroJorge Artur Madeira dos Santos (vencido, nos termos da declaração que junto).

VOTO DE VENCIDO


O acórdão recorrido fundou-se no modo restritivo como se respondera a certos quesitos para negar a existência de nexo causal.

Essa negação do acórdão não foi jurídica, pois ficou-se pela falta de relação fáctica entre a conduta dos médicos e o evento danoso. E, colocadas as coisas neste plano, o problema é puramente naturalístico e, por isso, insusceptível de fundar um qualquer juízo de oposição jurídica entre arestos.

Admitamos que, ao dar relevo ao que negativamente se respondera aquando do julgamento de facto, o acórdão recorrido incorreu num erro de direito. Nem assim a posição dos recorrentes melhora. É que a «quaestio juris» que então teria sido erradamente decidida – a de extrair efeitos positivos de respostas restritivas ou negativas – não consta de nenhum dos dois acórdãos fundamento; pelo que não há, a seu propósito, qualquer oposição.

Portanto, e por falta das denunciadas oposições, ou até de quaisquer outras, não se devia entrar no conhecimento do recurso.


Lisboa, 21 de Janeiro de 2016
Jorge Artur Madeira dos Santos