Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0984/18.2BEAVR
Data do Acordão:06/26/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24728
Nº do Documento:SA1201906260984/18
Data de Entrada:06/04/2019
Recorrente:DIREÇÃO GERAL DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA
Recorrido 1:A..........., SA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

I. RELATÓRIO

B…………, SA e A………….., SA intentaram, no TAF de Aveiro, contra o Ministério da Justiça, acção de contencioso pré contratual pedindo a anulação dos actos de homologação do relatório final, de adjudicação e, ainda, do contrato entretanto celebrado, uma vez que o acto de exclusão da proposta por si apresentada padece de ilegalidade, por violação de lei

Indicou como contra-interessada C………………., Lda.

O TAF julgou a acção procedente mas, considerando verificar-se uma situação de impossibilidade absoluta de satisfação dos interesses da, convidou as partes, nos termos do disposto no art.º 45.º/1/d) do CPTA, a acordarem, no prazo de 30 dias, no montante da indemnização devida

E o TCA Norte, para onde o Réu apelou, confirmou essa decisão.

É desse Acórdão que o Ministério da Justiça vem recorrer (artigo 150.º do CPTA).

II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO
1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o STA «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. O Ministério da Justiça, no âmbito do “Acordo Quadro para aquisição e aluguer operacional de equipamento informático”, convidou os interessados a apresentarem propostas para a aquisição de 153 computadores de secretária, tendo o respectivo Caderno de Encargos estabelecido que a proposta deveria conter por uma Declaração de aceitação do conteúdo do convite e de um ficheiro - apelidado “PAQ_146_2018_Computadores_T+_Lote 2_AQ_ Proposta.xls” - donde constasse o preço unitário proposto para cada item identificado, a sua marca e modelo e o prazo de entrega proposto. Fixando, também, que o critério de adjudicação seria o da proposta economicamente mais vantajosa.
A Autora apresentou uma proposta onde, sob compromisso de honra, declarou (1) que se obrigava “a executar o referido contrato em conformidade com o conteúdo do mencionado caderno de encargos, relativamente ao qual declara aceitar, sem reservas, todas as suas cláusulas” - dele constando uma cláusula que obrigava à prestação de um serviço de assistência técnica por 48 meses – e (2) que assegurava um “serviço de assistência técnica pelo período de 36 meses, sendo o período de garantia contado a partir da data de entrega dos produtos.”
O júri tendo em atenção a desconformidade entre o período de assistência técnica exigido no CE - 48 meses – e o período que a proposta da Autora assegurava – 36 meses – e, portanto, tendo em conta a apontada divergência propôs a exclusão da proposta da Autora e a adjudicação à proposta da Contra-interessada. O que, tendo sido aceite, determinou a prática do acto impugnado e a celebração do correspondente contrato, o qual já se encontra executado.

Inconformada, a Autora instaurou esta acção alegando que a sua proposta padecia de “manifesto e evidente erro de escritajá que dela constava que o prazo de assistência técnica que asseguraria era de 36 meses quando pretendia dizer que esse prazo era de 48 meses por ele ser o imposto pelo CE e ter declarado, sob compromisso de honra, que o iria cumprir. E que, sendo assim, importava desvalorizar esse erro ou solicitar os esclarecimentos permitidos pelo art.º 72º do CCP e classificar a sua proposta como se ele não existisse.
Ao não fazer, o Réu violou o disposto no art.º 146º/2/o) daquele Código já que excluiu a sua proposta sem qualquer fundamento.

O TAF julgou a acção procedente pelas razões que se destacam:
“Na situação em apreço, como vimos, a proposta apresentada pelas AA. contém um prazo de garantia/ assistência técnica de 36 meses ... mas, como a tal estava obrigado, também declara aceitar, sem reservas, todas as cláusulas do caderno de encargos; e, no documento .... inclui a proposta de preço unitário e total para o item “Serviços adicionais (Assistência Técnica) // Assistência técnica - 48 meses .....
Ora, da factualidade assente e tendo presente o enquadramento jurídico exposto, o Tribunal julga que a menção a 36 meses constante do documento ... se trata, de um evidente e manifesto erro de escrita.
Com efeito, se considerarmos todos os documentos que compõem a proposta das AA. como um todo, a verdade é que só o documento com a referência Proposta n.º JV.01-180424 é que apresenta essa desconformidade com o caderno de encargos. E, se é certo que apenas este é da total autoria das AA., é, também, evidente que não era obrigatório; também não é despiciendo constatar que no preenchimento do documento ...... onde se mencionam os 48 meses - pese embora, a alegação de que este campo estivesse pré-preenchido e não fosse editável – a verdade é que essa premissa estava presente quando as AA. ali apuseram o seu preço unitário/ total para a prestação de tal serviço, dessa forma acordando – declarando, ainda que implicitamente – com o prazo ali consignado.
Destarte, tendo presente que os erros de escrita são os que se detectem e se identifiquem como tais pelo e no seu contexto e que respeitem à expressão material da vontade do declarante, considerando os documentos que integram a proposta das AA. como um todo, o Tribunal conclui que o prazo incluído no documento com a referência Proposta n.º JV.01-180424 se trata de um evidente lapso de escrita, cuja rectificação deveria ter sido, a esta luz, admitida.
........
.... verifica-se que a pretensão das AA. é fundada, mas que à satisfação dos seus interesses obsta uma situação de impossibilidade absoluta, isto é, a execução do contrato, obstando essa circunstância à emissão da pronúncia por estas peticionada ... pelo que estas terão direito a ser indemnizadas por tal facto.
Assim sendo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 45º n.º 1 alínea d) do CPTA, convido as partes a acordarem no montante de indemnização devida, no prazo de 30 dias.”

O Ministério da Justiça apelou para o TCA mas este confirmou a sentença recorrida pelas razões seguintes:
“......
No caso presente, a proposta apresentada pela B………… integrava, entre os demais, dois documentos que não deixavam margem para qualquer dúvida de que, em face do seu teor, a mesma se obrigava a prestar a assistência técnica por 48 meses
O que se retira, sem margem para qualquer dúvida intrínseca, de dois dos documentos que deviam integrar, e integravam, a proposta e relembra-se: (i) A declaração de aceitação dos termos do caderno de encargos e a obrigação de executar o contrato em conformidade com tal peça do procedimento, ou seja, obrigou-se a prestar assistência técnica por 48 meses; e (ii) Um documento em Excel, denominado “PAQ_146/2018.Computadores_T+Lote2:proposta”, pelo qual apresenta para a assistência técnica o prazo de 48 meses.
O júri do concurso, todavia, ignorando tais documentos integrados na proposta, entendeu haver uma desconformidade, porque a concorrente apresentou “... no ficheiro Excel que acompanha a proposta um prazo de 48 meses, violando, assim, o princípio da comparabilidade das propostas, nos termos unanimemente considerados pela Jurisprudência.”
Trata-se, como bem julgou o Tribunal a quo, de evidente lapso de escrita exarado naquele complementar documento, não obrigatório, uma vez que, em face dos restantes documentos que integram a proposta, designadamente os dois acima identificados, tal erro se mostra facilmente detectável e identificável como tal, pelo contexto da declaração negocial consubstanciada na proposta integrada por tais documentos, sem os quais não existe, sequer, proposta completa.
......
Para o preenchimento daquela permissão de correcção consideram-se como lapsos de escrita os que sejam ostensivos, facilmente detectáveis e identificáveis como tais pelo contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita e que respeitem à expressão material da vontade (já não os que possam ter influenciado a formação dessa vontade).
..........
Analisando a conduta do R. à luz do enquadramento doutrinário exposto, o Tribunal conclui que, face à posição do R. de considerar não existir um evidente erro de escrita - e consequentemente, não admitir a sua rectificação - e, ainda assim, perante uma divergência nos elementos que compõem a proposta (que, no seu entender, não é motivada por erro de escrita manifesto), decide não solicitar quaisquer esclarecimentos às AA. ao abrigo do disposto no artigo 72° do CCP, este violou, os princípios da boa-fé e confiança, da proporcionalidade e inquisitório.”

3. O Ministério da Justiça não se conforma com esse julgamento e daí a interposição desta revista para a qual formula, entre outras, as seguintes conclusões:
e. A errada determinação das normas aplicáveis – quando se cerceou ao caso dos autos a aplicação das normas corretas e se concluiu ser de aplicar o “antigo” CCP constitui também fundamento da revista, nos termos do que vem previsto na parte final da alínea a) do n.º 1 do artigo 674.º do CPC, aplicável “ex vi” do n.º 3 do artigo 140.º do CPTA;
f. O erro de escrita, ou lapsus calami, pressupõe a existência de um erro ostensivo na declaração negocial, de tal maneira evidente e notório para qualquer declaratário de boa fé, que seria ilegal não permitir ao declarante a sua retificação;
g. A invocação de um lapsus calami num documento onde se menciona um prazo de assistência técnica de 36 meses ao invés dos 48 meses exigidos para assistência técnica aos bens fornecidos, não colhe. Além de não haver identidade entre os algarismos, como seria o caso de se indicar um prazo, por exemplo, de “84 meses”, “44 meses” ou de “480 meses”, há a evidência de que são indicados dois prazos que correspondem a períodos de tempo muito concretos – a 48 meses correspondem 4 anos e a 36 meses correspondem 3 anos;
h. Termos em que não seria objetivamente exigível ao júri do procedimento a obrigação de reconhecer um manifesto erro de escrita;

4. A questão que se coloca neste recurso é a de saber se uma proposta deve ser excluída se dela constarem dois documentos onde se inscreveram dois diferentes prazos destinados a assegurar a assistência técnica aos bens fornecidos. Foi esse erro que determinou a exclusão da proposta da Autora já que, por um lado, assinou uma declaração e preencheu um ficheiro onde garantia que asseguraria por um período de 48 meses a assistência técnica dos computadores fornecidos e, por outro, fez constar dessa proposta que essa garantia só abrangia um período de 36 meses.
As instâncias, como se viu, entenderam que não se justificava a referida exclusão por ser evidente que a indicação do prazo de 36 meses constituía um lapso manifesto de escrita e que, por ser assim, o disposto no art.º 249.° do CC autorizava a que o mesmo pudesse ser oficiosamente rectificado.
Todavia, a justificação para esse entendimento não é inteiramente convincente, tanto mais quanto é certo que a classificação de um determinado erro como grosseiro ou manifesto nem sempre é fácil e, muitas vezes, está envolta em considerações de natureza subjectiva.
Como também a aplicação do art.º 45 do CPTA não é isenta de dúvidas.
Nesta conformidade, justifica-se a intervenção deste Supremo Tribunal com vista a uma mais esclarecida aplicação do direito.
DECISÃO.
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.
Sem custas.

Porto, 26 de Junho de 2019. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.