Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02651/10.6BELRS 0903/16
Data do Acordão:10/23/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NEVES LEITÃO
Descritores:AUTOLIQUIDAÇÃO
TRIBUTAÇÃO AUTONOMA
DESPESAS DE REPRESENTAÇÃO
VEÍCULO LIGEIRO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Sumário:I - Nas tributações autónomas não se trata de tributar um rendimento no fim do período tributário, mas determinado tipo de despesas, que constituem o facto gerador de imposto, uma vez que cada despesa é um facto tributário autónomo, a que o contribuinte fica sujeito, venha ou não a ter rendimento tributável em IRC, no fim do período, sendo irrelevante que esta parcela de imposto só venha a ser liquidada num momento posterior e conjuntamente com o IRC
II - A taxa a aplicar a cada despesa é a que vigorar à data da sua realização, uma vez que o facto tributário se verifica no momento em que se incorre nas despesas sujeitas a tributação autónoma, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo do ano, mas perante um facto tributário instantâneo
III - Não pode a lei agravar o valor da taxa de tributação autónoma, relativamente a despesas já efectuadas aquando da sua entrada em vigor, incorrendo a norma do artigo 5.º, nº 1, da Lei nº 64/2008, de 5 de Dezembro, ao determinar a retroacção de efeitos a 1 de Janeiro de 2008 da alteração do artigo 81.º, nº 3, do CIRC, em inconstitucionalidade por violação da proibição imposta no artigo 103.º, nº 3, da Constituição
Nº Convencional:JSTA000P25056
Nº do Documento:SA22019102302651/10
Data de Entrada:07/12/2016
Recorrente:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............, LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: 1.RELATÓRIO
1.1. A Fazenda Pública interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença proferida no Tribunal Tributário de Lisboa em 28 janeiro 2016, a qual julgou parcialmente procedente a impugnação judicial deduzida por A…………, Lda contra decisão de indeferimento de reclamação graciosa e anulou o acto de autoliquidação de IRC (exercício de 2008) no montante de € 170 999,72

Apresentou as suas alegações, que sintetizou com a formulação das seguintes conclusões:
A. Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença que julgou parcialmente procedente a impugnação deduzida A…………, Lda, considerando que o nº 1 do art. 5° da Lei nº 64/2008 de 5 de Dezembro, se encontra ferido de inconstitucionalidade material, por determinar que a alteração ao art. 81° (actual 88°) do CIRC, tem efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2008.
B. A Lei n.º 64/2008 entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, conforme prevê o seu art. 6°, mas a produção de efeitos retroage a 1 de Janeiro de 2008, em função do que estabelece o art. 5° do mesmo diploma.
C. Entende a Fazenda Pública, contrariamente ao sustentado da douta sentença, que não ocorre qualquer violação dos princípios constitucionais.
D. O regime das tributações autónomas, tal como vertido no artigo 81° do Código do IRC, é enformado por um facto tributário complexo e duradouro ou de formação sucessiva e que não obstante a tributação autónoma incidir sobre a despesa, tal tributação não descaracteriza a natureza jurídica daquele imposto e a circunstância do facto tributário se reportar ao último dia do período de tributação.
E. Nestes termos, constituindo aquele facto tributário complexo o facto referente para a aferição da aplicação da lei fiscal no tempo, a retroacção dos efeitos, a 1 de Janeiro de 2008 - prescrita pelo n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro -, da nova redacção conferida ao artigo 81° do Código de IRC, consubstanciaria, somente, uma retroactividade fraca, mínima ou de 3.º grau, admitida pelo n.º 3 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa.
F. Decorre do exposto que, ao ter decidido com base em entendimento contrário ao sustentado nas presentes alegações, a sentença recorrida violou os preceitos legais invocados nas mesmas, razão pela qual deverá ser revogada, com as legais consequências.

1.2. A recorrida apresentou contra-alegações, que sintetizou com a formulação das seguintes conclusões:
A. Através da tese propugnada pela digna Recorrente nos presentes autos de Recurso, é posto em causa um dos mais basilares direitos dos contribuintes.
B. Ao contrário do que defende a Recorrente, as tributações autónomas não incidem - ao contrário do IRC - sobre um qualquer rendimento no fim do período tributário, mas antes sobre determinado tipo de despesas, que constituem o facto gerador de imposto, sendo, consequentemente, cada despesa um facto tributário autónomo, entre si, e face ao IRC.
C. O contribuinte fica sujeito a tributação autónoma, portanto, por cada despesa realizada, e aquando da realização da mesma, venha ou não a ser apurado qualquer rendimento tributável em IRC, no fim do período, sendo irrelevante, assim, que aquela(s) só venha(m) a ser liquidada(s) num momento posterior à realização da(s) despesa(s) sobre a qual incide(m) e conjuntamente com o IRC.
D. Com efeito, na situação da tributação autónoma, e sendo que o facto gerador da mesma é a própria realização da despesa e não um rendimento (ou o englobamento de um rendimento) anual, não se está, pois, perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano ou exercício, mas sim perante um facto tributário instantâneo.
E. E, agravando a lei as taxas de tributação autónoma aplicáveis a despesas efectuadas em momento anterior ao da sua entrada em vigor, viola frontalmente o Princípio, constitucionalmente consagrado, da proibição da retroactividade (de primeiro grau) da lei fiscal.
F. E esse foi, como em entendeu o Tribunal recorrido, o que ocorreu com o artigo 5.º, nº 1, da Lei n° 64/2008, de 5 de Dezembro, ao determinar a retroacção de efeitos a 1 de Janeiro de 2008 da alteração do (então) artigo 81.º, nº 3, do CIRC, porquanto esta norma se aplicou a factos tributários instantâneos integralmente verificados em momento anterior ao da sua publicação, em violação da proibição imposta no artigo 103.º, nº 3, da Constituição

1.3.O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso (processo físico, fls.377/378)

1.4. Cumpre decidir em conferência, com dispensa de vistos aos juízes-adjuntos (art.92º nº 1 CPTA / art.2º al. c) CPPT)

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DE FACTO
A sentença recorrida julgou provados os seguintes factos:
1. Em 28 de Maio de 2009, a Impugnante procedeu à entrega da declaração de rendimentos Modelo 22, referente ao exercício de 2008, em que procedeu à autoliquidação de IRC de acordo com as taxas de tributação autónoma previstas na nova redacção conferida ao artigo 81.º (actual 88.º) do CIRC pelo artigo 1.º-A da Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro (cf. doc. constante de fls. 37 e segs. do PA apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido e acordo das partes);
2. Dá-se por integralmente reproduzido o teor da demonstração de liquidação, referente à liquidação n.º 2009 2910242342, de 17 de Junho de 2009, constante de fls. 209 do PA apenso;
3. Em 25 de Fevereiro de 2010, a Impugnante deduziu reclamação graciosa contra o acto de autoliquidação de IRC, relativo ao exercício de 2008, na parte referente à tributação autónoma incidente sobre os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos suportados até ao dia 5 de Dezembro de 2008 (cf. doc. constante de fls. 3 e segs. do PA apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
4. Em 19 de Outubro de 2010, foi prestada pela Divisão de Justiça Administrativa da Direcção de Finanças de Lisboa a informação constante de a fls. 219 e segs. do PA apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
5. Em 21 de Outubro de 2010, foi emitido pelos mesmos serviços o parecer constante de fls. 219 verso do PA apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
6. Em 22 de Outubro de 2010, foi proferido despacho pela Directora de Finanças Adjunta, que indeferiu a reclamação graciosa a que alude o número anterior (cf. doc. constante de fls. 219 e segs. do PA apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
7. Em 29 de Outubro de 2010, a Impugnante foi notificada do despacho de indeferimento a que alude o número anterior (cf. doc. constante de fls. 228 do PA apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
8. Em 16 de Novembro de 2010, deu entrada em juízo a p. i. que deu origem aos presentes autos (cf. carimbo aposto na p. i., a fl. 2, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
9. Em 23 de Maio de 2011, foi prestada pela Divisão de Justiça Contenciosa da Direcção de Finanças de Lisboa a informação constante de a fls. 243 e segs. do PA apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
10. Em 15 de Junho de 2011, foi emitido pelos mesmos serviços o parecer constante de fls. 263 do PA apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
11. Em 15 de Junho de 2011, foi proferido o despacho concordante com a informação e parecer referidos nos números anteriores constante de fls. 263 do PA apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

2.2. DE DIREITO
2.2.1. Questão decidenda: inconstitucionalidade da norma constante do art. 5º nº 1 Lei nº 64/2008,15 dezembro (diploma que alterou o art. 81 nº 3 al. a) CIRC, agravando de 5% para 10% a taxa de tributação autónoma incidente sobre os encargos relativos a despesas de representação e a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas) que retroagiu a produção de efeitos a 1 janeiro 2008, por violação do princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal (art. 103º nº 3 CRP)

2.2.2. Apreciação jurídica
2.2.2.1.A questão foi apreciada e decidida sem divergência em jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo - Secção de Contencioso Tributário, designadamente destilada nos acórdãos 6.07.2011 processo nº 281/11, 14.06.2012 processo nº 757/11, 14.02.2013 (processo nº 1375/12), 17.04.2013 (processo nº 166/13), 22.01.2014 (processo nº 1714/13) e 21.01.2015 (processo nº 470/14)
Em consequência, cumprindo os objectivos de:
- interpretação e aplicação uniformes do direito (art. 8º nº 3 CCivil);
- tutela jurisdicional efectiva em prazo razoável (art. 20º nº 4 CPRP; art. 96º nº 1 CPPT);
a fundamentação do presente acórdão acolhe por remissão a fundamentação sólida e convincente do acórdão 21.01.2015 processo nº 470/14 cujo sumário se transcreve, nos segmentos pertinentes (art. 663º nº 5 CPC/art. 281º CPPT):
I - Nas tributações autónomas não se trata de tributar um rendimento no fim do período tributário, mas determinado tipo de despesas, que constituem o facto gerador de imposto, uma vez que cada despesa é um facto tributário autónomo, a que o contribuinte fica sujeito, venha ou não a ter rendimento tributável em IRC, no fim do período, sendo irrelevante que esta parcela de imposto só venha a ser liquidada num momento posterior e conjuntamente com o IRC.
II - A taxa a aplicar a cada despesa é a que vigorar à data da sua realização, uma vez que o facto tributário se verifica no momento em que se incorre nas despesas sujeitas a tributação autónoma, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo do ano, mas perante um facto tributário instantâneo
III - Não pode a lei agravar o valor da taxa de tributação autónoma, relativamente a despesas já efectuadas aquando da sua entrada em vigor, incorrendo a norma do artigo 5.º, nº 1, da Lei nº 64/2008, de 5 de Dezembro, ao determinar a retroacção de efeitos a 1 de Janeiro de 2008 da alteração do artigo 81.º, nº 3, do CIRC, em inconstitucionalidade por violação da proibição imposta no artigo 103.º, nº 3, da Constituição.

Noutra linha jurisprudencial o acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional nº 617/2012,19 dezembro 2012 emitiu pronúncia no sentido de julgar inconstitucional, por violação do n.º 3, do artigo 103.º, da Constituição, a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal
Esta jurisprudência foi consolidada nos acórdãos nº 85/2013, 5 fevereiro 2013 (Plenário) e 171/2017, 5 abril 2017

2.2.2.2. No caso concreto os juros indemnizatórios, abstractamente devidos em consequência da prática de acto tributário baseado em norma declarada inconstitucional, não devem ser atribuídos ao sujeito passivo, porque a alteração introduzida no art. 43º nº 1 LGT, com aditamento da alínea d) pela Lei nº 9/2019, 1 fevereiro (São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias (…)
d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respectiva devolução) apesar da natureza retroactiva, apenas se aplica aos juros relativos a prestações tributárias que tenham sido liquidadas após 1 janeiro 2011 (arts1º e 3º Lei nº 9/2019, 1 fevereiro)

3.DECISÃO
Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar na ordem jurídica a sentença recorrida
Custas pela recorrente

Lisboa, 23 de Outubro de 2019. - José Manuel de Carvalho Neves Leitão (relator) - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia.