Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01034/11
Data do Acordão:09/23/2015
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IVA
FUNDAMENTAÇÃO
DEDUÇÃO
Sumário:I – É exclusivamente à luz da fundamentação externada pela AT quando da prática da liquidação adicional de IVA que deve aferir-se a legalidade desse acto tributário.
II - Tendo a AT aceitado a liquidação de IVA respeitante a uma determinada operação (e recebido o montante do imposto liquidado), não pode depois, para efeitos do exercício do direito à dedução do imposto, entender que a mesma liquidação é inválida.
Nº Convencional:JSTA00069343
Nº do Documento:SA22015092301034
Data de Entrada:11/17/2011
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A............, SA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF LEIRIA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR FISC - IVA.
Área Temática 2:DIR COMUN.
Legislação Nacional:CONST05 ART266 N2.
ETAF02 ART26 B ART38 A.
LGT98 ART5 N2 ART55.
CPPTRIB99 ART280 N1.
CIVA08 ART6 N1 ART19 ART20 N1 A.
RITI92 ART3 ART8 N4 ART14 ART19.
Referência a Doutrina:XAVIER DE BASTO - A TRIBUTAÇÃO DO CONSUMO E A SUA COORDENAÇÃO INTERNACIONAL CTF164 PAG41.
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 1350/08.3BELRA

1. RELATÓRIO

1.1 A Fazenda Pública (a seguir Recorrente) recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que, julgando procedente a impugnação judicial deduzida pela sociedade denominada “A…………, S.A.” (a seguir Impugnante ou Recorrida), anulou as liquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) e dos respectivos juros compensatórios efectuadas pela Administração tributária (AT) na sequência de uma inspecção àquela sociedade no âmbito da qual considerou que a mesma recebeu indevidamente o reembolso do imposto que suportou numa aquisição de 50 viaturas que efectuou à sociedade denominada “B…………”.

1.2 O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo e a Recorrente apresentou as alegações, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«A) A autora deduziu acção de Impugnação Judicial contra as notas de liquidação adicionais de IVA n.ºs 08111597, período 0410, no valor de € 610.263,50 e n.º 08111598, período 0410, no valor de € 84.266,52 (documentos n.ºs 1, 2 e 3 juntos à p.i. da impugnação), tudo no montante total de € 710.215,24 incluindo juros de mora e custas;

B) A matéria tributável, objecto da impugnação da contribuinte, foi apurada com recurso a correcções de natureza meramente aritmética resultantes de inspecção levada a efeito pelos Serviços de Prevenção e Inspecção de Leiria à contabilidade da Impugnante e ao conteúdo das declarações apresentadas;

C) Face ao probatório, Sua Exa. o Meritíssimo Juiz considerou procedente a acção porque, na sua opinião, a Administração Fiscal fizera uma interpretação excessivamente formalista dos factos provados;

D) Não concorda a Fazenda Pública com esta interpretação, tendo em conta que foi dado como provado que a impugnante realizou uma falsa operação triangular, que recebeu um reembolso indevido e que não ficaram esclarecidos os contornos e objectivos do negócio celebrado;

E) Isto não obstante se colocar a questão de falta de cumprimento do n.º 4 do art. 8.º do RITI [(De acordo com a correcção a fls. 215/216.)], a douta sentença recorrida considera excessiva a exigência da Administração Fiscal quanto ao cumprimento dos pressupostos do reembolso de IVA.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., deverá ser concedido provimento ao presente, revogando-se a decisão recorrida […]».

1.3 A Impugnante contra alegou, pugnando pela manutenção da sentença.

1.4 Recebidos neste Supremo Tribunal Administrativo, os autos foram com vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto proferiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação:

«A recorrente F.P. põe em causa a sentença proferida em processo de impugnação, a qual anulou os actos de tributação praticados quanto ao IVA que devia ter incidido sobre as 50 viaturas novas em causa, a qual teve lugar por correcção aritmética.
Invoca-se tal, com base no decidido quanto à “questão da falta de cumprimento do n.º 4 do art. 8.º do RITI”.
Se bem se entende a posição da recorrente, a A…………, S.A., seria ainda responsável pela aquisição intracomunitária apesar de se reconhecer não ter sido a destinatária dos veículos em causa, tal como foram adquiridos em circulação intracomunitária por uma outra empresa, “B…………”, não de acordo com o que consta das respectivas facturas, pois as mesmas nunca chegaram a ser transportadas para o território português.
O IVA em causa era de entender como gerado na aquisição, tal como previsto no art. 1.º al. a) do RITI, a qual só foi efectuada pela “B…………”, operador/vendedor dos ditos veículos.
Esta era quem, em princípio, tinha de pagar o imposto automóvel e obter as respectivas matrículas – contudo, sendo esta questão duvidosa, foi colocada à apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia pelo ac. deste S.T.A. proferido a 27-1-10 no proc. 0766/09.
Afigura-se que o facto das ditas matrículas terem sido obtidas pela impugnante que as fez ainda registar, conforme ficou a constar do ponto 20 do probatório, não permite sustentar a manutenção dos referidos actos praticados pela A.F., sendo os relativos à dita aquisição pela “B............”, que não foram postos em causa, que deveriam ter servido para a tributação, nos termos acima referidos, face ao que parece ser de julgar o recurso como sendo de improceder».

1.5 A questão suscitada pela Recorrente é a de saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento (Apesar da referência da Recorrente à violação pela sentença do art. 125.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário efectuada nas alegações, mas omitida nas conclusões – pelas quais de define o âmbito do recurso, de acordo com o disposto no art. 282.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário e no art. 635.º, n.º 4, e 639.º, do Código de Processo Civil –, não cumprimos o disposto no n.º 3 do art. 659.º do mesmo Código, por não encontramos na motivação do recurso qualquer alegação susceptível de suportar a invocação de uma nulidade da sentença.) na medida em que anulou a liquidação de IVA, ou seja, se a ora Recorrida tinha ou não direito ao reembolso do imposto que suportou numa aquisição de 50 viaturas que efectuou à sociedade denominada “B............”, o que, como procuraremos demonstrar, passa por indagar se a aquisição que fez das viaturas e a revenda por ela efectuada das mesmas viaturas podem ou não ser consideradas como aquisição em território nacional e como transmissão intracomunitária de bens (TIB), respectivamente.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:
«
1) A Impugnante “A…………, SA”, com o NIPC e matrícula ………, com sede na ………, n.º ……, Km ……, ………, Turquel, Alcobaça, é concessionária do fabricante alemão (“C............, AG”) dos camiões da marca “………” e tem por objecto social o “comércio de veículos automóveis, manutenção e reparação de veículos automóveis, comércio de peças e acessórios para veículos automóveis”;

2) [No] Ano de 2004, a impugnante comprou à representante do fabricante e marca “………” em Portugal (a “B............”) 50 viaturas, novas, pesadas, ao preço unitário € 64.238,26 acrescido de IVA a taxa legal de € 12.205,27;

3) As aquisições dessas 50 viaturas foram registadas na contabilidade da impugnante através das facturas do fornecedor, a quem pagou integralmente o preço global de € 3.822.176,50, incluindo o correspondente IVA, que lhe foi liquidada à taxa normal, no valor global de € 610.263,50;

4) A “B............” contabilizou a aquisição das referidas viaturas pesadas que efectuou à sociedade de direito alemão “C............, AG”, como sendo uma aquisição intracomunitária e assim fez constar nos campos 10 e 11 da sua declaração periódica;

5) Após ter efectuado a aquisição das referidas viaturas, a “B............” transmitiu as mesmas para a impugnante, tendo considerado que se tratava de uma transmissão interna sujeita a IVA à taxa normal;

6) A impugnante pagou o correspondente IVA que lhe foi liquidado e exerceu o direito de dedução desse imposto, constante das facturas emitidas pela “B............”;

7) A Administração Tributária (AT) não efectuou então qualquer correcção à declaração dessa referida operação por parte da “B............” (dedução e liquidação do IVA - “Reverse Charge”);

8) Contudo, no ano seguinte a ter aprovado e efectuado o reembolso do IVA à impugnante, por despacho do Director de Finanças, foi emitida a Ordem de Serviço n.º OI 200601580 de 03/07/2006, para inspecção, “por suspeitas de fraude fiscal de IVA, do tipo carrossel, em transmissões intracomunitárias de bens”, tendo a acção início em 06/07/2006 (PNAIT 22139), de âmbito parcial, sobre o IVA e IRC dos Exercícios de 2003 e 2004 (Janeiro de 2003 a Dezembro 2004);

9) A impugnante foi notificada para exercer o direito de audição sobre o 1.º Projecto de Relatório que concluía pela existência de indícios de uma operação simulada e fraude de IVA em carrossel;

10) A impugnante exerceu o direito de audição, explicando que não havia qualquer acordo simulatório; o interesse económico do negócio para ela impugnante; o interesse para a empresa holandesa D………… na aquisição dos 50 camiões; o impedimento da aquisição directa ao fabricante alemão pela empresa holandesa; a oportunidade de negócio para a “B............”; o motivo subjacente à revenda de 7 camiões; que não havia “fraude carrossel”, nem “simulação” nem falta de “substância económica” das operações comerciais, nem “missing trader”;

11) Por despacho de 14-04-2008, do Senhor Chefe de Divisão dos Serviços de Inspecção Tributária, foi declarado “sem qualquer efeito” o aludido Projecto de Relatório.

12) A impugnante foi então convidada a exercer, novamente, o seu direito de audição sobre outro Projecto de Relatório emitido ao abrigo da mesma Ordem de Serviço (n.º OI 200601589);

13) A impugnante exerceu, novamente, o direito de audição sobre esse novo Projecto de Relatório, que abandonou a fundamentação para correcções técnicas em sede de IVA, baseada na simulação e na fraude fiscal em carrossel, e fundamentou-se em que a impugnante «Conforme ponto III.2.2 a empresa A………… deduziu IVA que, de acordo com o disposto no artigo 20.º, conjugado com o artigo 19.º do Código do IVA e artigo 19.º do RITI, não é dedutível. (...)» -pg 3 do Relatório.

14) Em 08-07-2008 foram emitidas as notas de liquidação adicional de IVA n.º 08111597, referente ao período 0410, no valor de € 610.263,50 e de juros compensatórios n.º 08111598, referente ao período 0410, no valor de € 84.266,52, cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 31-08-2008;

15) A “B............” contabilizou a aquisição que efectuou à sociedade de direito alemão “C…………, AG” como sendo uma aquisição intracomunitária e assim o fez constar nos campos 10 e 11 da sua declaração periódica; e após ter efectuado a aquisição, a “B............” transmitiu as viaturas para a impugnante, considerando que se tratava de uma transmissão interna sujeita a IVA à taxa normal;

16) A AT não efectuou qualquer correcção às referidas declarações de IVA apresentadas da “B............”;

17) Todas as referidas viaturas foram registadas e matriculadas em Portugal;

18) A “B............” entregou à AT o IVA que liquidou e recebeu da impugnante;

19) A AT elaborou dois projectos de Relatório, sendo que o segundo substituiu o primeiro, por considerar como válidas as explicações prestadas pela ora impugnante, em sede de direito de audição;

20) A impugnante registou e adquiriu matrículas e registos para as viaturas em causa, através de uma empresa à qual estava ligada, a “E…………, Lda.”, melhor identificada no relatório; empresa esta com os sócios comuns à impugnante, F…………, G…………, H………… e I…………;

21) A referida “E…………” deu baixa dos registos e matrículas de 17 daquelas viaturas, em Agosto de 2005;

22) Em 23/01/2007, a DGV emitiu certidão, confirmando que todas as matrículas ficaram canceladas;

23) As supra referidas viaturas não entraram, à data da transacção em causa, fisicamente, em Portugal;

24) Dou por reproduzidos os documentos de notificação das liquidações e citação de fls. 43, 44 e 45;

25) Pelos factos em presença foi instaurado o Processo de Inquérito Criminal n.º 89/2007.1 EDACB, o qual foi arquivado nos termos do artigo 277.º, n.ºs 2 e 3 do CPP, pelo Magistrado dos Serviços do Ministério Público de Alcobaça, em 06/04/2009, concluindo, entre o mais, que «Foi solicitado à administração fiscal holandesa a realização de uma auditoria à D………… Holandesa que veio confirmar a realização do negócio, corroborando a versão dos factos trazida pela A………… – cfr. fls. 1772 a 1782. Não foi encontrado, nem pela administração fiscal portuguesa, nem holandesa, indícios de que o negócio tivesse sido simulado (...) Relativamente ao ilícito de fraude fiscal, conclui-se não terem sido carreados para os autos indícios suficientes da sua verificação (...)». - fls. 68/ss, 71/ss, 86 e 92-95;

26) Dou por reproduzidos os documentos relativos a elementos enviados à AT pela impugnante, de fls. 89 e 90, bem como o relatório de inspecção, seus anexos, elementos da Conservatória do Registo Comercial, cheque, locação financeira (leasing) e escritura de constituição, juntos ao PA anexo;

27) A presente impugnação deu entrada em 10/11/2008, cfr. fls.4.».


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2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

A sociedade denominada “A…………, S.A.” (Impugnante e ora Recorrida) comprou à “B............”, representante no nosso país da sociedade de direito alemão denominada “C…………, AG” (fabricante de viaturas pesadas da marca “…………”), 50 viaturas novas, cujo preço pagou, bem como o IVA que lhe foi liquidado pela vendedora, este no montante de € 610.263,50 (cf. factos provados sob os n.ºs 2, 3, 5 e 6).
Previamente, a sociedade vendedora (“B............”) comprou as referidas viaturas à “C…………, AG” e registou na sua contabilidade essa operação como aquisição intracomunitária. Assim, porque considerou que a operação em causa constituía uma aquisição intracomunitária de bens (AIB) liquidou o IVA [autoliquidação ou reverse charge (Reverse chargeé o mecanismo, adoptado por razões de combate à evasão fiscal, pelo qual se considera como sujeito passivo de IVA não o prestador de serviços ou transmitente de bens (ou seja, as pessoas que exerçam as actividades de produção, comércio ou prestação de serviços), como normalmente acontece, mas o adquirente dos mesmos. Este regime foi adoptado nas aquisições intracomunitárias relativamente aos meios de transporte novos (RITI) como modo de combater a tendência dos adquirentes explorarem as diferenças das taxas nos vários Estados Membros se o imposto fosse liquidado pelo fornecedor no Estado-Membro de origem – poderiam existir desvios na localização das aquisições que iriam gerar distorções de concorrência, com prejuízo para os Estados-Membros que praticassem taxas de IVA mais altas.)], à taxa normal, no montante de € 597.500,00, que entregou nos cofres do Estado (cf. factos provados sob os n.ºs 4, 7 e 15 e os documentos para que se remete no julgamento da matéria de facto).
Por seu turno, quando as vendeu à “A…………, S.A.” (Impugnante e ora Recorrida), considerando que se tratava de uma transmissão interna, liquidou e cobrou o IVA, à taxa normal, no montante de € 610.263,50, e entregou-o nos cofres do Estado (cf. factos provados sob os n.ºs 2, 3, 5, 6, 15 e 18).
Os veículos em causa, apesar de terem sido registados e matriculados em Portugal, nunca chegaram a entrar no território nacional: a “A…………, S.A.” vendeu-os à sociedade de direito holandês “D…………” e os mesmos foram directamente da Alemanha para a Holanda (cf. factos provados sob os n.ºs 10, 17 e 23 e os documentos para que se remete no julgamento da matéria de facto).
Tendo a “A…………, S.A.” considerado que esta operação – venda à “D…………” – constituía uma transmissão intracomunitária de bens (TIB), entendeu que a mesma estava isenta de IVA (cf. documentos para que se remete no julgamento da matéria de facto).
Nesse pressuposto, a “A…………, S.A.” pediu o reembolso do IVA que suportou na aquisição dos veículos à “B............”, no montante de € 610.263,50, o que lhe foi deferido pelo SIVA, pelo que o recebeu (cf. documentos para que se remete no julgamento da matéria de facto).
Ulteriormente, no âmbito de uma acção de inspecção à sociedade “A…………, S.A.” (ora Impugnante e Recorrida), suscitaram-se dúvidas à AT sobre a possibilidade desta sociedade obter o reembolso do IVA que suportou com a aquisição dos veículos à “B............”.
Se bem alcançamos o que se passou em sede dessa acção inspectiva à sociedade “A…………, S.A.”, a AT, numa primeira fase, elaborou um relatório no sentido de que o IVA em causa não podia ser deduzido porque considerou existirem indícios de uma operação simulada e de fraude «do tipo carrossel»; no entanto, após aquela sociedade ter exercido o direito de audiência prévia, a AT deu sem efeito esse primeiro relatório, bem como a tese que lhe estava subjacente e que se alicerçava na simulação da operação (cfr. factos provados sob os n.ºs 8 a 11 e 19).
Aliás, o próprio Ministério Público de Alcobaça arquivou o inquérito que correu termos nos respectivos serviços com referência aos factos referidos nesse primeiro relatório elaborado pelos Serviços de Inspecção Tributária, concluindo, par além do mais, que «[f]oi solicitado à administração fiscal holandesa a realização de uma auditoria à D………… Holandesa que veio confirmar a realização do negócio, corroborando a versão dos factos trazida pela A………… – cfr. fls. 1772 a 1782. Não foi encontrado, nem pela administração fiscal portuguesa, nem holandesa, indícios de que o negócio tivesse sido simulado (...) Relativamente ao ilícito de fraude fiscal, conclui-se não terem sido carreados para os autos indícios suficientes da sua verificação (...)» (cfr. facto provado sob o n.º 25).
Sem prejuízo de ter abandonado essa tese, a AT elaborou novo relatório em que considerou não ser admissível a dedução do imposto pela ora Recorrida, «de acordo com o disposto no artigo 20.º, conjugado com o artigo 19.º do Código do IVA e artigo 19.º do RITI» (cfr. factos provado sob os n.ºs 13 e 19 e documentos para que se remete no julgamento da matéria de facto) e concluiu que «o “corte” do direito à dedução do IVA constante das facturas de compra [efectuada pela “A…………, S.A”] à B………… das 50 viaturas» tem por fundamento «o facto demonstrado de se tratar de uma operação inerente a bens não situados no território nacional, o que face ao art. 6.º, n.º 1, conjugado com o artigo 20.º, n.º 1, a), ambos do CIVA, e artigo 14.º do RITI, determina o não reconhecimento do direito à dedução do IVA respectivo».
Embora as muitas dúvidas – ousamos até dizer a confusão – manifestadas pela Fazenda Pública no processo em torno da fundamentação do acto impugnado [parecendo, inclusive, na contestação, como nas alegações pré-sentenciais e nas alegações de recurso da sentença, recuperar a tese, abandonada pelos Serviços de Fiscalização, de que as operações são simuladas (Vejam-se as alegações de recurso vertidas sob o n.º 17, onde a Recorrente afirma, a respeito das vendas da “B............” à “A…………, S.A.” e desta última à “D…………”, que «se concluiu que estas não existiram na realidade», sob o n.º 22, onde ficou dito que «apenas podemos concluir que estamos perante operações simuladas» e sob o n.º 32, onde a Recorrente afirma que «tudo aponta para que o negócio tenha sido simulado».)], afigura-se-nos que podemos assentar no seguinte:
i) a liquidação adicional impugnada tem origem no entendimento de que a ora Recorrida não podia deduzir ou obter o reembolso do IVA que lhe foi liquidado pela “B............” quando lhe vendeu as viaturas e que ela pagou e a vendedora entregou nos cofres do Estado (reembolso originado pelo facto de na revenda das mesmas viaturas que a ora Recorrida efectuou à “D…………” não ter liquidado IVA, no pressuposto de que se tratava de uma TIB e, por isso, isenta de IVA ao abrigo do art. 14.º do RITI);
ii) a fundamentação expendida pela AT para considerar que esse reembolso foi ilegal foi [bem ou mal, por ora não interessa, pois da fundamentação material trataremos adiante (Uma coisa é saber se a Administração deu a conhecer os motivos que a determinaram a actuar como actuou, as razões em que fundou a sua actuação, questão que se situa no âmbito da validade formal do acto; outra, bem diversa e situada já no âmbito da validade substancial do acto, é saber se esses motivos correspondem à realidade e se, correspondendo, são suficientes para legitimar a concreta actuação administrativa.)], não a de que a “A…………, S.A.” (ora Recorrida) deveria ter liquidado IVA na venda que fez à “D…………” (Se assim fosse, o montante da liquidação não poderia ser, como é, de € 610.263,50, mas teria de ser de € 627.000,00, atento o valor global da venda (3.300.000,00) e tendo em conta que a taxa de imposto era, à data, de 19%.), mas que a “B............” não deveria ter liquidado IVA à ora Recorrida (como liquidou, pressupondo que se tratava de uma transmissão interna) e isto porque a aquisição que fez das viaturas à “C…………, AG” não pode ser considerada como uma AIB – por os veículos não terem dado entrada no território nacional (não ter havido expedição ou transporte para território nacional, na terminologia do art. 3.º do RITI) – e, por esse motivo, não devia a “B............” ter autoliquidado o imposto com referência a essa operação.
A “A…………, S.A.” (ora Recorrida) impugnou essa liquidação.
O Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria deu-lhe razão e anulou a liquidação. Se bem interpretamos a sentença recorrida, aí, após se tecerem considerandos em torno do conceito de AIB e respectivo enquadramento legal, relevou-se a «entrada dita “normativa” dos bens em território nacional», assim se considerando preenchido o conceito de AIB do art. 3.º do RITI. Mais considerou a sentença, em síntese, que «[s]e fisicamente os bens tivessem passado por território nacional, o resultado final seria o mesmo que o caso apresenta» e «sem que qualquer dos Estados-Membros envolvidos tivesse qualquer benefício ou prejuízo fiscal, obrigar-se-ia as empresas ao ónus de despender os gastos de transporte ou expedição de 50 camiões da Alemanha para o território nacional, para, de seguida, os levar de regresso, para um país próximo da Alemanha, seu último destino», motivo por que afastou a interpretação efectuada pela AT, que considerou «demasiado formalista».
A Fazenda Pública discorda desse entendimento e insiste que a “A…………, S.A.” recebeu um reembolso indevido. De acordo com as conclusões do recurso, discorda da interpretação que foi efectuada pelo Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria «tendo em conta que foi dado como provado que a impugnante realizou uma falsa operação triangular, que recebeu um reembolso indevido e que não ficaram esclarecidos os contornos e objectivos do negócio celebrado» e porque «não obstante se colocar a questão de falta de cumprimento do n.º 4 do art. 8.º do RITI [(Ver nota 1.)], a douta sentença recorrida considera excessiva a exigência da Administração Fiscal quanto ao cumprimento dos pressupostos do reembolso de IVA».
Salvo o devido respeito, não é fácil acompanhar a alegação da Recorrente, pois não segue uma linha argumentativa inequívoca, antes “misturando” argumentos que parecem suportar teses contraditórias.
Seja como for, continua a sustentar que a sociedade ora Recorrida recebeu um reembolso indevido porque não tinha direito à dedução do IVA constante da factura respeitante à aquisição dos veículos à “B............” (que a Recorrida pagou e esta última sociedade entregou nos cofres do Estado) porque esta não lhe devia ter liquidado o imposto, uma vez que a aquisição que, por seu turno, fez das mesmas viaturas à “C………… AG” não pode ser tida como uma AIB e, por isso, não devia a “B............” ter autoliquidado o imposto com referência a esta operação.
Vejamos, então, se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao considerar que o reembolso não era indevido.

2.2.2 DA LEGALIDADE DO PEDIDO DE REEMBOLSO

Antes do mais, cumpre deixar bem claro que, pese embora a argumentação da Recorrente, a liquidação adicional impugnada não teve por fundamento que a operação que esteve na origem do IVA cujo reembolso foi pedido e concedido à ora Recorrida seja simulada. Essa fundamentação, que a AT ensaiou no primeiro relatório da fiscalização, ficou definitivamente arredada no segundo.
Assim, salvo o devido respeito, toda a argumentação aduzida pela Fazenda Pública na tentativa de recuperar essa tese carece de sentido, uma vez que, como este Supremo Tribunal Administrativo tem dito inúmeras vezes, a legalidade do acto não pode ser aferida senão à luz da fundamentação externada pela AT quando da prática desse acto tributário.
Do mesmo modo, não faz sentido imputar à sentença a falta de esclarecimento quanto aos contornos das operações em causa, embora não deixe de se realçar a perplexidade motivada por essa alegação, quando a própria Fazenda Pública não consegue decidir-se sobre a natureza das mesmas.
Depois, cumpre também ter presente que o reembolso pedido pela ora Recorrida e que a AT lhe deferiu – e que a AT veio, ulteriormente, a considerar indevido, assim dando origem à liquidação impugnada – teve origem, não em qualquer aquisição intracomunitária, mas numa aquisição no território nacional (a que a Recorrida efectuou à “B............”), seguida de uma transmissão intracomunitária (a efectuada pela Recorrida à “D…………”).
Dito de outro modo, a ora Recorrida fez assentar o seu pedido de reembolso na circunstância de ter suportado o IVA na aquisição que efectuou à “B............” e de não ter liquidado IVA na venda que efectuou à “D…………”, por se tratar de operação isenta.
A nosso ver, a tese da Fazenda Pública assenta num pressuposto que condiciona toda a sua argumentação: o de que a “B............” não deveria ter liquidado IVA na venda que efectuou à “A…………, S.A.” (ora Recorrida) porque a aquisição que aquela fez dos mesmos bens à “C………… AG” também não estava sujeita a imposto. Tudo isto porque os veículos não chegaram a dar entrada no nosso País.
Ora, independentemente de saber se o deveria ou não ter feito, o que resulta da factualidade dada como provada, que a Recorrente não discute (E, se a discutisse, a competência em razão da hierarquia para conhecer do presente recurso não seria deste Supremo Tribunal Administrativo, atento o disposto nos arts. 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, e no art. 280.º, n.º 1, do CPPT.), é que esse imposto foi entregue pela Recorrida à vendedora (“B............”) que, por sua vez, o entregou nos cofres do Estado (cfr. factos provados sob os n.ºs 2, 3, 5, 6 e 18).
Não vamos, sequer, discutir se a aquisição que a “B............” efectuou à “C………… AG” podia ou não ser considerada uma AIB, designadamente por não ter havido a deslocação física dos bens da Alemanha para o território nacional (Note-se que a deslocação física dos bens, enquanto requisito para que a operação seja considerada intracomunitária visa apenas assegurar a aplicação do princípio da atribuição da receita fiscal ao Estado membro onde ocorre o consumo final, ou seja, o princípio da tributação no destino aplicável ao comércio intracomunitário.). A verdade, é que a AT aceitou tal aquisição como uma AIB, na medida em que, como resulta provado nos autos, recebeu o IVA que a “B............” autoliquidou e entregou nos cofres do Estado e nunca promoveu a correcção dessa liquidação.
Mas não é essa aquisição que está aqui em causa e, por isso e salvo o devido respeito, se nos afigura despiciendo discorrer aqui sobre a natureza dessa operação, suas características (Nomeadamente a divergência entre o circuito das facturas [C…………, AG (Alemanha) B............ (Portugal) A………… (Portugal) D………… (Holanda)] e o circuito dos bens [C…………, AG (Alemanha) D………… (Holanda)].) e a eventual violação do RITI. Como dissemos já, o reembolso pedido pela ora Recorrida e que lhe foi concedido – e que a AT, depois, considerou indevido, dando origem à liquidação impugnada – teve origem, não em qualquer aquisição intracomunitária, mas numa aquisição no território nacional (efectuada pela Recorrida à “B............”, ambas sociedades portuguesas), tendo-se-lhe seguido uma transmissão intracomunitária (efectuada pela Recorrida à “D…………”).

Ora – e, a nosso ver, reside neste ponto o nó górdio da questão –, pela aquisição que a Recorrida efectuou à “B............”, esta liquidou e cobrou o IVA, que aquela pagou com o preço, esse imposto foi entregue nos cofres do Estado e a AT nunca corrigiu essa liquidação, aceitando a operação subjacente como uma transmissão interna, fazendo seu o imposto liquidado pela vendedora e pago pela compradora.
Assim, mal se compreende que a AT pretenda agora obviar ao reembolso do imposto (rectius, considerar como indevido o reembolso que ela mesma deferiu a pedido da Recorrida) com o fundamento de que essa liquidação não era devida e, por isso, que não há direito à dedução do imposto respectivo. Se a AT não diligenciou pela correcção daquela liquidação – que sustenta ser indevida – como pretende agora obviar à dedução do imposto?
Nem se diga, como o fez a ora Recorrente nas alegações pré-sentenciais que «um erro não se deve corrigir com outro erro». Dando de barato que a liquidação de IVA que a “B............” efectuou seja um erro, se a AT assim o entendia não lhe restava outro caminho – porque a isso está obrigada pelo princípio da legalidade que deve enformar toda a sua actividade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e arts. 5.º, n.º 2, e 55.º da Lei Geral Tributária) – senão promover a sua correcção, designadamente promovendo a devolução do montante indevidamente recebido. Não o tendo feito, não pode obviar ao exercício do direito de dedução do imposto (sob pena de somar um erro em cima de outro).
A não ser assim, a AT estaria a locupletar-se com um imposto que considera não ser devido, numa clamorosa violação dos princípios por que deve pautar a sua actividade, designadamente os da boa-fé e da justiça. Por outro lado, estaria também a introduzir um desvio inadmissível naquele que é um dos princípios fundamentais do IVA: o direito à dedução do imposto que, como expressão do método subtractivo indirecto, constitui «a trave-mestra do sistema do imposto sobre o valor acrescentado» (XAVIER DE BASTO, A tributação do consumo e a sua coordenação internacional, Cadernos Ciência e Técnica Fiscal, n.º 164, pág. 41.); bem como estaria a reduzir a letra morta o desígnio de neutralidade prosseguido pelo imposto sobre o valor acrescentado.
Em conclusão, tendo a AT aceitado a liquidação de IVA respeitante a uma determinada operação (recebendo o montante do imposto liquidado), não pode depois, para efeitos do exercício do direito à dedução do imposto, entender que a mesma liquidação é inválida.
Tudo o resto, salvo o devido respeito, não releva para a decisão.
Assim, entendemos que a decisão recorrida deve manter-se, se bem que com fundamentos não inteiramente coincidentes com os da sentença.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - É exclusivamente à luz da fundamentação externada pela AT quando da prática da liquidação adicional de IVA que deve aferir-se a legalidade desse acto tributário.
II - Tendo a AT aceitado a liquidação de IVA respeitante a uma determinada operação (e recebido o montante do imposto liquidado), não pode depois, para efeitos do exercício do direito à dedução do imposto, entender que a mesma liquidação é inválida.


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.


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Lisboa, 23 de Setembro de 2015. - Francisco Rothes (relator) – Aragão SeiaIsabel Marques da Silva.