Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:019/19.8BALSB
Data do Acordão:04/22/2021
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
INCOMPATIBILIDADE
VIDA PRIVADA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Sumário:I - O indeferimento do pedido de autorização para o «exercício de funções de formador na OA», em horário pós-laboral, formulado por um procurador-adjunto, não se traduz numa ingerência indevida na vida privada deste, se o fundamento invocado pelo CSMP se centra nas repercussões negativas desse exercício para o desempenho das funções de magistrado;
II - Segundo o artigo 13º, nº2, da CRP, o princípio da igualdade proíbe discriminações decorrentes dos índices aí definidos. Fora desses casos, expressamente proibidos, só existe violação da igualdade quando nos confrontarmos com discriminações arbitrárias ou manifestamente injustificadas, o que significa que a prevalência da igualdade, como um dos valores supremos do ordenamento jurídico, tem de ser compaginada caso a caso.
Nº Convencional:JSTA00071120
Nº do Documento:SAP20210422019/19
Data de Entrada:01/25/2021
Recorrente:A....................
Recorrido 1:CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Votação:UNANIMIDADE
Legislação Nacional:ART. 81.º do EMMP
ARTS. 13.º, n.º 2, e 26.º, n.º1, da CRP
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório
1. A……………… - procurador-adjunto, identificado nos autos - interpõe recurso para o «Pleno da Secção de Contencioso Administrativo» do Supremo Tribunal Administrativo, do acórdão proferido por essa Secção, em 15.10.2020, que julgou improcedente a acção em que pedira a declaração de nulidade, ou a anulação, da deliberação do «Plenário do CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO» [CSMP], de 22.01.2019, que, indeferindo a sua reclamação - da deliberação da Secção Permanente de 21.12.2018 -, confirmou o indeferimento do seu pedido de autorização para o exercício de funções de formador de Direito Processual Penal na Ordem dos Advogados Portugueses [OAP], bem como a prática dos actos devidos.

Conclui assim as suas alegações:

1- A deliberação de 22.01.2019 do Plenário do CSMP, que indefere a reclamação apresentada pelo autor, contra a deliberação da Secção Permanente do CSMP, que indeferiu pedido com vista à autorização para o exercício de funções de formador de Direito Processual Penal na OAP é ilegal;

2- Com efeito, o entendimento que prevaleceu maioritariamente ofende o «bloco normativo» constituído pelos artigos 12º da Declaração Universal dos Direitos Humanos [DUDH], 31º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia [CDFUE], e 7º, alínea d), do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais [PIDESC], sendo certo que todos os normativos vindos de citar integram a ordem jurídica portuguesa por força dos adequados instrumentos jurídicos;

3- Deveria, por isso mesmo, ter sido declarada nula, ou, se assim melhor fosse a final entendido, anulada;

4- E deveria o CSMP ter sido condenado na prática dos actos materiais e jurídicos com vista ao deferimento da pretensão apresentada pelo autor e ora recorrente;

5- Decidindo em sentido contrário, fez o tribunal a quo errada interpretação e aplicação daquelas normas, razão pela qual deve ser revogada e substituída por decisão condenatória;

6- O tribunal a quo, chamado a pronunciar-se para dizer o Direito, optou por usar de silêncio, esvaziando de sentido a garantia de acesso ao tribunal e a um processo equitativo, previsto no artigo 20º, nº1 e nº4, da CRP, e artigo 6º, nº2, da CEDH;

7- O acórdão recorrido, ao referir que «não dispõe de elementos suficientes para poder concluir pelo tratamento desigual» quando o conspecto processual confirma o inverso, ocorre em erro notório na apreciação da prova, vício que expressamente se invoca, importando aditar à matéria de facto a seguinte factualidade:

«Nas autorizações deferidas no último quadrimestre de 2018 para a actividade lectiva, nunca o CSMP apurou, nem se pronunciou sobre circunstancialismo funcional concreto dos magistrados requerentes»;

8- De resto, a admissão da referida lacuna - a qual, a nosso ver, não existe, mas agora é apenas pressuposta por exercício académico - obrigaria o tribunal a quo a carrear os elementos necessários para poder decidir, pelo que não o havendo feito, incorreu em insuficiência da matéria de facto para a decisão;

9- Caso a decisão recorrida fosse fiel ao critério por si estabelecido - isto é, imperiosa necessidade de análise por reporte à especificidade concreta - alcançaria uma solução diametralmente oposta à encontrada, pois teria de admitir, necessariamente, que o mesmo foi observado no caso do autor mas completamente olvidado no caso dos seus colegas, os quais beneficiaram da tal autorização automática que o próprio acórdão reprova;

9- Nessa sequência, forçosamente compreenderia que o procedimento aplicado ao autor foi diferenciado, em manifesto prejuízo deste; logo, em manifesta violação do artigo 13º da CRP, e, concomitantemente, do artigo 8º da CEDH;

10- A não autorização para o exercício da actividade lectiva representou uma intromissão abusiva no plano, já não da vida profissional do autor, mas da sua vida privada, restringindo a sua liberdade de forma desproporcionada e desnecessária, impedindo-o de fazer algo que contribuiria para o seu desenvolvimento pessoal e profissional, o que colide com o disposto nos artigos 18º, nº2, e 26º, nº1, da CRP, e 8º, nº1 e nº2, da CEDH.

Termina pedindo que seja revogado o acórdão recorrido e julgada procedente a acção.

2. O CSMP contra-alegou, concluindo assim:

1- O acórdão recorrido, ao julgar a acção improcedente, fez uma correcta apreciação dos factos e material probatório, inexistindo erro de julgamento e fundamento para ser aditada a matéria de facto, nos termos expostos, atendendo aos documentos apresentados e factos provados, não podendo o tribunal considerar provada matéria de facto que não demonstrou e cuja prova incumbia ao autor;

2- O tribunal realizou todas as diligências pertinentes que lhe foram requeridas, não havendo fundamento para que o recorrente considere existir insuficiência da matéria de facto para a decisão;

3- Por outro lado, o «Pleno», em recurso de acórdão da respectiva Secção, funciona como «tribunal de revista», só apreciando matéria de direito, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova;

4- Assim, está subtraído à sua apreciação eventual erro na apreciação dos factos e na fixação da matéria de facto relevante, nos termos dos artigos 12º, nº3, do ETAF, e 674º, nº3, e 682º, nº1 e nº2, do CPC, e 150º, nº4, do CPTA - por todos, AC STA/Pleno de 07.05.2020, Rº042/19.2BALSB;

5- Pelo exposto, bem decidiu o acórdão recorrido que não se verifica violação do princípio da igualdade que é previsto no artigo 13º da CRP e 8º da CEDH, por entender que não dispõe de elementos suficientes para poder concluir que tenha havido por parte do CSMP um tratamento desigual em relação ao autor e demais colegas de profissão que viram os seus pedidos serem deferidos;

6- Pela aplicação do artigo 81º do EMMP [ora revogado] o CSMP tem de aferir em concreto cada um dos requerimentos que lhe são dirigidos no que toca a este tipo de autorizações, pois só em face de cada caso em particular, estará habilitado a decidir, sem que a diferença de posições [deferimento ou indeferimento] possa ser considerada violadora do princípio da igualdade;

7- O referido preceito do EMMP aqui aplicável regula o «regime de incompatibilidades dos Magistrados do Ministério Público», no que toca ao desempenho de funções públicas ou privadas, de índole profissional, ressalvando funções docentes, de investigação científica ou directivas em organizações representativas da magistratura do Ministério Público;

8- E visa impedir, na parte aplicável ao caso em apreço, o exercício de actividades privadas que, pela sua natureza ou pelo empenhamento que exigem, possam conflituar com a dedicação ao interesse público ou com o próprio cumprimento dos horários e tarefas da função pública;

9- O referido preceito visa igualmente impedir que com o exercício de outras actividades os magistrados possam dispersar-se e prejudicar o normal exercício das funções e a necessária produtividade, requisitos também aplicáveis aos funcionários que exercem outras funções públicas em geral;

10- Qualquer magistrado conhece as limitações a que está sujeito, devido à exclusividade de funções que lhe é exigida, assim como a restrição de outros direitos consagrados no Estatuto e na Constituição, o que também sucede com os juízes;

11- Tendo o CSMP entendido que se verificava prejuízo para o serviço, atendendo às condições deste, com carência de magistrados, às funções desempenhadas, e ao número de horas excessivo e prolongado no tempo, que o autor teria de utilizar ao ministrar formação externa na Ordem dos Advogados;

12- Pelo exposto, não se verifica qualquer ingerência indevida na vida privada do Magistrado, nem lhe foram coarctados quaisquer direitos constitucionais, não sofreu qualquer ofensa ou restrição dos seus direitos, liberdades e garantias, no exercício das funções e fora dele, como sobejamente demonstrado e atendendo à razão de ser das limitações impostas às funções de magistrado do Ministério Público, não se mostrando ofendidos os artigos 18º, nº2, 26º, nº1, da CRP, e 8º, nº1 e nº2, da CEDH;

13- Também não foi restringida ou se verifica entorpecimento, seja de que forma for, do seu direito à intimidade ou reserva da vida privada, pois que este não se mostra impedido de gerir o seu tempo livre da forma como bem entender, ficando-lhe apenas vedado exercer as funções de formador para as quais foi convidado, mediante as exigências legais referidas;

14- Deste modo, não ofendeu também a deliberação do CSMP o bloco normativo constituído pelos artigos 12º da DUDH, 31º da CDFUE, e 7º, alínea d), do PIDESC;

15- Direitos que se relacionam, respectivamente, com a não ingerência na vida privada dos cidadãos e com a existência de condições de trabalho equitativas e satisfatórias que, como demonstrado, não se mostram ofendidos;

16- Também não se verifica esvaziamento da garantia de acesso aos tribunais e a um processo equitativo, nos termos do artigo 20º, nº1, da CRP, e 6º, nº2, da CEDH, uma vez que a lei permite a possibilidade de impugnação do acto em causa, a acção não foi rejeitada pelo tribunal, e foram apreciados detalhadamente os argumentos do autor;

17- Como a própria denominação indica, o processo equitativo será aquele que possibilita a ambas as partes idênticas condições para tutelarem as suas posições jurídicas e interesses legalmente protegidos;

18- Princípio que foi respeitado atendendo aos mecanismos processuais previstos na lei de processo, que utilizou, e foram devidamente aplicados com o devido exercício do contraditório e do tratamento das duas partes em pé de igualdade, sem qualquer benefício do CSMP, ou discriminação em detrimento da posição jurídica e processual do autor;

19- Assim, deverá ser negado provimento a este recurso, não se verificando os vícios imputados ao acto impugnado e os alegados quanto ao acórdão recorrido, que não incorreu em qualquer erro de julgamento da matéria de facto, e não ofendeu as normas, os princípios constitucionais e legais, e de direito europeu e internacional invocados pelo ora recorrente.

3. Colhidos que foram os «vistos» legais, importa apreciar e decidir o recurso.

II. De Facto

São os seguintes os factos dados como provados no acórdão recorrido:

1- A………………., desempenha funções de Procurador-Adjunto, e encontra-se desde 07.01.2019 na secção do DIAP de …………….., comarca do Porto;

2- Em 12.12.2018 dirigiu ao CSMP requerimento peticionando autorização para exercer funções de formador de Direito Processual Penal, na Ordem dos Advogados Portugueses, Conselho Distrital do Porto, a partir de Janeiro de 2019, o que compreende, nomeadamente, a docência, a correcção dos trabalhos escritos, bem assim, a integração nos júris das provas orais e nas entrevistas integrantes da prova final de agregação do estágio - ver documento 1 junto com a petição inicial cujo teor aqui se dá por reproduzido;

3- Por acórdão proferido em 21.12.2018, pela Secção Permanente do CSMP, o pedido formulado em 2 foi indeferido, conforme documento 2 junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por reproduzido, donde se destaca o seguinte:

«8. No passado dia 23.10.2018 o CSMP adoptou orientações sobre o regime de incompatibilidades aplicável aos magistrados do Ministério Público.

9. No essencial, e para aquilo que in casu releva, expressou-se que a configuração de um regime de incompatibilidades para os magistrados, judiciais e do Ministério Público, serve, por um lado, a dedicação plena e exclusiva à função, evitando-se dispersões ou distracções desnecessárias ao bom desempenho do seu labor, potenciando-se a eficiência na acção da justiça; e, por outro, a preservação da integridade, independência, autonomia e probidade dos magistrados, indispensáveis ao prestígio e dignidade das instituições e para que os cidadãos confiem na imparcialidade e isenção da sua justiça.

10. O artigo 81º, nº1 do EMP prescreve: «1. É incompatível com o desempenho do cargo de magistrado do Ministério Público o exercício de qualquer outra função pública ou privada, de índole profissional, salvo funções docentes ou de investigação científica de natureza jurídica ou funções directivas em organizações representativas da magistratura do Ministério Público».

11. O Estatuto estabelece assim a incompatibilidade absoluta [não dependente de autorização] e de exercício [só vigente para os magistrados em exercício ou jubilados, pois implicam o desempenho do cargo] para os magistrados do Ministério Público que os impede de exercer qualquer outra função de índole profissional, ou seja, com características de estabilidade, habitualidade e expectativa de auferir proventos ou remunerações.

12. Pretende-se, ao invés do que acontece com os funcionários públicos em geral, impedir que os magistrados do Ministério Público exerçam outra actividade com as referidas características, seja de natureza pública ou privada.

13. Exceptua-se desta proibição a docência ou investigação científica de natureza jurídica, admitindo-se destarte que magistrado do Ministério Público possa exercer essas funções, às quais está normalmente associada a expectativa de auferir provento ou remuneração [o que não significa, evidentemente que essa expectativa se concretize, estando vedado aos magistrados auferir remunerações não associadas à prestação do seu ofício ou à percepção de direitos de autor], com carácter de estabilidade e habitualidade.

14. Aliás, este CSMP assim o tem autorizado, mas com duas significativas diferenças em relação à situação do requerente.

15. Em primeiro lugar, o CSMP tem autorizado o exercício de funções docentes ou de investigação científica de natureza jurídica apenas a nível académico ou universitário e já não ao nível da formação profissional ou, por exemplo, do ensino secundário, onde se ministra a disciplina de Introdução do Estudo do Direito.

16. E assim é porquanto se entende que a docência em instituição universitária e a investigação académica por parte de magistrado do Ministério Público, não obstante, evidentemente, representarem no imediato e face à grave carência de quadros um prejuízo para o serviço do Ministério Público, aportarão com certeza, atenta a profundidade dos estudos ali desenvolvidos, futuros benefícios para os quadros do Ministério Público e para a qualidade do serviço que a instituição presta.

17. Para além do mais, a presença de magistrados do Ministério Público entre docentes de instituições académicas de ensino superior enleva o prestígio associado a esta magistratura.

18. Com isto se não pretende afirmar menosprezo pelas funções de docente em cursos de formação profissional da Ordem dos Advogados Portugueses, apenas evidenciar as devidas diferenças entre a docência ou investigação científica de natureza jurídica em instituição de ensino superior e num curso de formação profissional, para assinalar que, na ponderação entre o custo/benefício para o serviço da autorização a dar, aquela terá um peso relativo sensivelmente superior.

19. Em segundo lugar, as autorizações concedidas para o exercício de funções docentes ou de investigação científica de natureza jurídica foram-no em relação a actividades lectivas ou de investigação com uma carga horária e um nível de responsabilidade bastante inferior àquela que o requerente se propõe assumir perante a Ordem dos Advogados.

20. O Programa de Prática Processual Penal da Ordem dos Advogados prevê a realização de 50 horas de formação, espraiando-se por toda a matéria de Processo Penal, mas com incursões ainda na Organização Judiciária e no Direito Penitenciário.

21. O calendário apresentado revela que se espera que o requerente, ainda que em horário pós-laboral, ministre 50 horas de formação em 33 sessões, entre 07.01.2019 e 03.04.2019, ou seja, mais de 4 horas em média por semana.

22. Ao tempo despendido para as sessões, há que aduzir aquele necessário à sua preparação, o qual, atento o programa, será também elevado.

23. O quadro legal de procuradores-adjuntos de …………….., onde o requerente se encontra colocado é de 20.

24. Com a produção de efeitos do próximo movimento de magistrados, ficarão ali colocados apenas 16 magistrados.

25. Não se mostra por isso possível, atento tudo o supra exposto, autorizar o requerente a exercer as funções deformador de Direito Processual Penal na Ordem dos Advogados Portugueses.

26. Na verdade, mesmo considerando-se que as aulas são em horário pós-laboral, toda a actividade periférica associada - de preparação das aulas, correcção de trabalhos, integração de júris - leva a que se conclua pela impossibilidade de o requerente, caso lhe fosse concedida a autorização que pretende, se dedicar à função de magistrado do Ministério Público com a atenção e qualidade que a mesma exige, sem dispersões ou distracções desnecessárias ao bom desempenho do seu labor.

27. Por fim, refira-se apenas que é à Procuradoria-Geral da República que cabe a definição dos protocolos de cooperação com outras instituições e do eventual benefício que aos mesmos correspondam, não parecendo, salvo melhor opinião, que a selecção de um dos seus magistrados para prestar funções em outras instituições, após a realização de concurso aberto para o efeito, ademais à revelia da PGR, seja a melhor forma de o alcançar.

28. Face ao exposto, acordam na Secção Permanente do Conselho Superior do Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 81º nºs 1 e 2 do Estatuto do Ministério Público, em indeferir o pedido formulado pelo Sr. Procurador Adjunto A…………….., procurador-adjunto colocado no movimento ordinário de magistrados que produzirá efeitos no início de Janeiro de 2019 em ………….., para o exercício de funções de formador de Direito Processual Penal na Ordem dos Advogados Portugueses.

4. Desta decisão, o autor reclamou para o Plenário do CSMP, nos termos constantes do documento nº3 junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por reproduzido, referindo em síntese:

• «A formação na Ordem dos Advogados é substancialmente equiparável à formação ministrada no Centro de Estudos Judiciários, os destinatários já não são alunos das faculdades de Direito, sendo titulares de pertinente grau académico.

• O artigo 81º nºs 1 e 2 do EMP, não distingue entre funções docentes a nível académico e a nível profissional e, consabidamente, ubi lex non distinguit nec nos distlnguere debemus.

• Os cursos de pós graduação apresentam semelhanças com a formação ministrada nos cursos de estágio da OA, pelo que a docência por magistrados em pós-graduação, posto que ministrados em Universidades, não corresponde propriamente a actividade académica.

• Ao longo das aulas, surgirão temas...que exigirão um estudo rigoroso que permitirão ao docente um enriquecimento e actualização de saber, que se repercutirá na sua qualidade técnica.

• No que se refere à preparação das sessões, o tempo que se despenderá para a preparação não comprometerá o serviço e será um tempo bem empregue, com pesquisa de nova doutrina e jurisprudência, reflexão mais aturada sobre problemas jurídicos estruturantes do processo penal, e, por isso mesmo, acarretará vantagens significativas no desenvolvimento da função de magistrado.

• As tarefas de correcção de trabalhos e de integração de júris assumirão carácter residual e a sua afectação ao signatário dependerá sempre do acordo do mesmo.

• Que ao longo da sua carreira teve sempre o serviço em dia pelo que a presunção de que haverá prejuízo para o serviço é meramente especulativa».

5. Por deliberação do Plenário do CSMP, proferida em 22.01.2019 [deliberação impugnada] foi decidido indeferir a reclamação referida no ponto 4 e confirmar a deliberação da Secção Permanente de 21.12.2018 que havia indeferido o pedido formulado pelo autor de autorização para o exercício de funções de formador de Direito Processual Penal na Ordem dos Advogados, nos termos que constam do documento nº5 junto com a petição inicial cujo teor se dá aqui por reproduzido, salientando-se:

«II. Regime de Incompatibilidades

[…]

3. Estabelece-se, pois, no EMP uma incompatibilidade absoluta de exercício de uma outra função de índole profissional, ou seja, com características de estabilidade, habitualidade e expectativa de auferir proventos ou remunerações.

4. Contudo, o EMP excepciona, no artigo 81º, nº2, "o exercício de funções docentes ou de investigação científica de natureza jurídica" que pode ser autorizado pelo CSMP, desde que tal exercício não seja remunerado e se verifique ausência de prejuízo para o serviço, tratando-se neste caso de uma incompatibilidade relativa.

5. Nas orientações aprovadas na Sessão Plenária do CSMP, de 23.10.2018, estabeleceu-se ainda que, para além do regime de incompatibilidades estatuído no EMP é também aplicável aos magistrados do Ministério Público o regime da função pública [artigos 19º a 24º da Lei nº35/2014, de 20.06] onde se consagram os seguintes princípios: "o princípio da exclusividade do exercício de funções públicas, o princípio da existência de interesse público na acumulação de cargos públicos; o princípio da salvaguarda da isenção e da imparcialidade do interesse público e dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, os quais, quando aplicados aos Magistrados do Ministério Público, têm de ser lidos tomando em consideração o princípio basilar da autonomia do Ministério Público".

6. Porém, nas orientações aprovadas na Sessão Plenária do CSMP, de 23.10.2018, nunca se distinguiu expressamente a formação académica da formação profissional para abranger no regime das incompatibilidades absolutas a docência ou investigação nos cursos de formação profissional e não as incluir nas incompatibilidades relativas, apesar de naquele se fazer referência apenas à formação académica, mas sem que ali se tivesse tomado posição sobre os dois tipos deformação.

7. Por outro lado, não há fundamento para concluir que o legislador ao incluir a actividade de docência e investigação de natureza jurídica no regime da incompatibilidade relativa, disse menos do que pretendia, isto é, que apenas queria abranger a docência no âmbito da formação académica mas não da formação profissional.

8. Pelo que não é admissível uma interpretação restritiva da norma do artigo 81º, nº2, do EMP, devendo optar-se por uma interpretação declarativa, que está de acordo com a letra e o espírito da norma.

9. Conclui, por isso, que a incompatibilidade relativa, prevista no artigo 81º nº2, do EMP, tanto pode abranger a docência na formação académica como na formação profissional de natureza jurídica.

10. O Memorando relativo ao regime de incompatibilidades dos magistrados do MP [publicado no Boletim Informativo nº68, de 2004], o Parecer da Divisão de Apoio Jurídico da Procuradoria-Geral da República […] assim como o Parecer nº98/98 do Conselho Consultivo da PGR [que analisa a possibilidade de os magistrados colaborarem na preparação de diplomas legislativos] fazem uma interpretação do artigo 81º, nº1, do EMP, incluindo na excepção nele prevista a docência e investigação de natureza jurídica sem distinção entre a que ocorre nas universidades e a que ocorre nas ordens profissionais.

II. Condições de autorização da actividade docente:

A questão que se coloca é, por isso, a de saber se se verificam as condições para que tal actividade possa ser autorizada, ou seja, não remuneração e ausência de prejuízo.

1. O magistrado requerente foi seleccionado pelo Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados para exercer funções de formador na área do Direito Processual Penal, incluindo Organização Judiciária e Direito Penitenciário.

2. A Ordem dos Advogados é uma associação pública representativa dos profissionais que exercem advocacia cujas atribuições, previstas no artigo 3º do Estatuto da Ordem dos Advogados [doravante EOA], têm interesse público, pois dizem respeito a uma pessoa colectiva de direito público, única ordem profissional de advogados portugueses, com reconhecido prestígio internacional e nacional.

3. Sem discutir se tais funções são ou não concorrentes, similares ou conflituantes com as funções de magistrado do Ministério Público [artigo 22º, nºs 1 e 2, da Lei Geral do Trabalho em Funções Publicas, doravante LGTFP], se existe ou não incompatibilidade legal entre as funções de magistrado do Ministério Público e aquelas que o requerente pretende exercer [artigo 22º, nº3, alínea a) da LGTFP] se se encontra ou não comprometida a isenção e a imparcialidade exigidas ao magistrado [artigo 22º, nº3, alínea a) da LGTFP], se aquelas funções poderão ou não provocar prejuízo para o interesse público e para os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos [artigo 22º, nº3, alíneas c) e d) da LGTFP], ou se beliscam a imagem desta magistratura, não há dúvidas de que a actividade de docência na formação de futuros advogados é prestigiante para quem a exerce.

4. Contudo, apesar do interesse público das atribuições da Ordem dos Advogados, daí não pode concluir-se que haja um manifesto interesse público na acumulação das funções de magistrado do Ministério Público com as de docência na formação dos futuros advogados, pois que esta sempre poderá ser levada a cabo de outra forma, por outros juristas que não apenas Magistrados do Ministério Público [artigos 21º, nº1, e 23º, nº2, alínea e), da LGTFP].

5. O requerente declarou que não irá ser remunerado por tal actividade, pelo que estaria satisfeita uma das condições do artigo 81º, nº2, do EMP.

6. Contudo, é preciso saber se o exercício de tal actividade de docência não vai trazer prejuízo para o serviço.

7. O requerente garante que aquelas funções não irão interferir no normal desempenho da sua função como magistrado, nem irão prevalecer sobre a mesma, nem irão afectar a qualidade e produtividade do serviço que lhe está atribuído.

8. No entanto, olhando ao conteúdo da actividade que se propõe exercer, verifica-se o seguinte: o magistrado terá de ministrar 50 horas de formação em 33 sessões, no período compreendido entre 07.01.2019 e 10.04.2019, ou seja, cerca de 3 meses, com mais de 4 horas de formação por semana.

9. Para além disso, terá de preparar essas sessões, o que leva necessariamente a gastar mais de 50 horas, tendo em conta o conteúdo do programa, onde se incluem, para além de temas de todo o processo penal, direito penitenciário e organização judiciária.

10. Por outro lado, terá de corrigir trabalhos escritos, de integrar júris das provas orais e participar nas entrevistas da prova final de agregação do estágio, no que gastará muitas mais horas.

11. Tudo isto, num período de cerca de 3 meses, que implica a ocupação de uma enorme quantidade de tempo.

12. O magistrado requerente foi colocado, por efeitos do movimento, em …………., onde, de um quadro de 20 Procuradores-adjuntos, estão colocados 16 magistrados, verificando-se um défice de 4 magistrados. Foi destacada para ali uma outra magistrada e colocado ainda um magistrado do quadro complementar, pelo facto de mesmo assim, serem manifestamente insuficientes; na verdade, as necessidades de magistrados do Ministério Público, e especificamente de Procuradores-adjuntos, em …………, são enormes, tendo em conta o enorme volume de serviço que lhes corresponde em geral e individualmente. Dos 18 Procurados-adjuntos ali colocados, 7 estão afectos aos Juízos Locais Criminais e Cível de …………… [Ordem de Serviço nº4/2019-PRTCoord de 15.01, do Magistrado do Ministério Público Coordenador da Comarca do Porto, publicado no SIMP], estando 11 afectos às Secções de …………… do DIAP do Porto.

13. Neste quadro, mesmo que se pressuponha uma capacidade de trabalho do magistrado requerente acima da média, é manifesto que, se fosse concedida a autorização para o exercício da actividade de docência na formação de futuros advogados no Conselho Distrital do Porto, da Ordem dos Advogados, haveria um grande prejuízo para o serviço próprio do Ministério Público que lhe está atribuído em …………., pois aquela actividade iria naturalmente ocupar-lhe uma grande quantidade de tempo, muitíssimo superior às 50 horas de formação, durante cerca de 3 meses, não lhe permitindo que se dedicasse, como se impõe, à função do Ministério Público, sem dispersões ou distracções que certamente afectariam o desempenho exigido pelo concreto serviço atribuído.

14. Na verdade, nos termos da Ordem de Serviço nº4/2019, de 14.01.2019, do Exmº Senhor Director do DIAP do Porto, publicada no SIMP, ao magistrado requerente, compete: (i) A direcção, despacho e decisão dos processos de inquérito pendentes de que era titular a Drª B……………., excepto dos identificados supra no ponto 2.21.1., que continuam na titularidade desta, e dos que, doravante, lhe forem distribuídos na mesma proporção dos restantes magistrados das Secções genéricas sem redução; (ii) Assegurar a intervenção e representação do MP nos actos judiciais/jurisdicionais, incluindo nos recursos relacionados, que tenham lugar nos inquéritos de que seja titular, da competência dos juízes colocados no juízo criminal de ……………; (iii) Participar no turno semanal ao serviço urgente e ao expediente e atendimento diário, nos termos que adiante melhor se definirão.

15. Nas Secções de ………….. do DIAP do Porto, segundo os elementos estatísticos recolhidos pelo Grupo de Trabalho dos Valores de Referência Processual deste CSMP, entraram em 2017/2018, no período de um ano, cerca de 13.000 inquéritos, dos quais apenas 1202 inquéritos são inquéritos contra desconhecidos que duraram menos de 30 dias. Tais inquéritos são distribuídos por 4 secções, onde actualmente exercem funções 11 Procuradores-adjuntos mais 2 Procuradores da República que os dirigem. O magistrado requerente exerce funções na ………

16. Pelo que, a cada Procurador-adjunto cabem cerca de 1180 inquéritos anuais em média, o que é um enorme volume de serviço.

17. Assim, apesar de o Porto, local onde iriam ser asseguradas as funções de formador na Ordem dos Advogados, ser próximo de ……….., onde o magistrado requerente exerce funções próprias do Ministério Público, haveria um enorme prejuízo para o serviço se fosse autorizada a sua pretensão.

18. Não pode, por isso, ser autorizado o "exercício de funções de formador de Direito Processual Penal na Ordem dos Advogados Portugueses, Conselho Distrital do Porto, requerido pelo Exmº Procurador-adjunto Dr. A…………." […]»

6. Por deliberação proferida em 22.10.2018, da Secção Permanente do Conselho Superior do Ministério Público foi deferido o pedido formulado pelo Sr. Procurador da República, C…………… [a exercer funções na comarca de Lisboa Norte] para o exercício da actividade de coordenação e docência de cursos e pós-graduações jurídicas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa [actividade não remunerada, em horário pós-expediente às sextas-feiras (após as 18H00) e aos sábados], sem prejuízo para o serviço e com absoluta prioridade deste - ver documento junto aos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

7. Por deliberação proferida em 12.12.2018, da Secção Permanente do Conselho Superior do Ministério Público foi deferido o pedido formulado pelo Sr. Procurador da República, D………………. [a exercer funções na Procuradoria-Geral da República e no Juízo Cível de Almada] para leccionar num curso de especialização subordinado ao tema do Direito do Consumo [cujas sessões terão lugar entre as 18 e as 20 horas, às quartas-feiras, tendo o curso a duração de 30 horas, na Universidade Lusíada de Lisboa e a título não remunerado], sem prejuízo para o serviço e com absoluta prioridade deste - ver documento junto aos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

8. Por deliberação proferida em 12.11.2018, da Secção Permanente do Conselho Superior do Ministério Público, foi deferido o pedido formulado pelo Sr. Procurador-adjunto E……………, a exercer funções no DIAP de Lisboa, para exercer funções docentes, a título pontual e não remunerado, no âmbito do curso de pós-graduação em Ciências Jurídicas, módulo "Marcha do Processo - Fase de Inquérito", com a duração de duas horas, e a terminar previsivelmente em 29.03.2019, organizado pela Universidade Católica Portuguesa e sem prejuízo para o serviço e com absoluta prioridade deste - ver documento junto aos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

III. De Direito

1. A………….. - procurador-adjunto - através desta acção administrativa pediu a este Supremo Tribunal que declarasse nula, ou anulasse, a deliberação do Plenário do CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO [CSMP], de 22.01.2019, a qual, indeferindo a sua reclamação, manteve a deliberação da Secção Permanente do mesmo Conselho, de 21.12.2018, que lhe indeferiu o «pedido de autorização para o exercício de funções de formador de Direito Processual Penal na Ordem dos Advogados Portugueses» [ver pontos 3 e 5 do provado]. Mais pediu, a tribunal, que condenasse o CSMP a praticar os actos necessários - incluindo emissão de nova deliberação que lhe reconheça o direito a leccionar, nos termos que por ele foram solicitados - e a abster-se de tomar idêntica deliberação, no futuro, caso formule um novo pedido, baseado nos mesmos pressupostos.

Para o efeito, defende ter direito à requerida autorização, já que, no caso, se verificam todos os pressupostos exigidos pelo artigo 81º do EMMP, e que, ao indeferi-la, o CSMP proferiu uma deliberação ilegal por violar os artigos 13º, nº2, 26º, nº1, 59º, nº1, alínea d), e 266º, nº2, todos da CRP, 81º do EMMP, 12º da DUDH, 31º da CDFUE, 7º, alínea d) do PIDESC, e, ainda, 6º do CPA.

Em suma, o autor entende que o seu «pedido de autorização» merecia deferimento por parte do CSMP, e que o entendimento que suporta o indeferimento cede, além do mais, a ingerências indevidas na sua vida privada e desrespeita o princípio da igualdade.

O acórdão da Secção desatendeu a arguição de violação dos artigos 81º do EMMP, 26º, nº1, e 59º, nº1 alínea d), da CRP, mediante a seguinte apreciação jurídica:

[…]

«O artigo 81º, nº1, do EMMP regula o regime de incompatibilidades dos Magistrados do Ministério, no que toca ao desempenho de funções públicas ou privadas, de índole profissional, ressalvando as funções docentes ou de investigação científica de natureza jurídica ou funções directivas em organizações representativas da magistratura do Ministério Público.

Mas mesmo nesta ressalva, cabe sempre ao CSMP decidir, em cada caso concreto, se se verificam as condições para o referido desempenho de funções, ou seja, elas não são autorizadas de forma automática.

Tem de haver um juízo de ponderação em relação a cada caso concreto, designadamente, a natureza das funções a exercer, o tempo estimado ou estipulado para esse período de leccionação, o tempo expectável para a organização desse trabalho, a pendência de processos a cargo do magistrado requerente, a ponderação do estado do serviço [em dia, ou atrasado] o local onde se encontra colocado e as funções exercidas em concreto no tribunal onde exerce o cargo.

Ora, a deliberação impugnada explicita que as funções que o requerente pretende exercer se enquadram na formação profissional [e não apenas simples funções docentes de natureza jurídica], sendo que as 50 horas lectivas na área do Direito Processual Penal se espraiam, igualmente, em temas relacionados com a Organização Judiciária e com o Direito Penitenciário.

Igualmente, estas 50 horas lectivas, divididas em 33 sessões, entre o período de tempo que decorre de 07.01.2019 a 03.04.2019, mesmo em horário pós-laboral, não podem ser vistas em singelo, de forma estanque, ou seja, sem se ter em consideração o tempo que terá de ser despendido para a sua preparação, a correcção de exames, integração de júris e tudo o que se incluiu nesta formação.

Por outro lado, a deliberação impugnada teve em conta que todo este período de tempo se poderia manifestar de forma menos positiva [com prejuízo para o serviço] no desenrolar das funções do magistrado requerente, pois ocupariam tempo que provavelmente seria necessário dedicar aos processos, atendendo à pendência de processos existente no local onde o autor desempenha funções, como melhor se deixou consignado na deliberação em causa.

Acresce que a deliberação impugnada, também explica, de forma clara, que o local onde o autor se encontra a desempenhar funções, tem um défice de 4 magistrados [tendo sido necessário destacar uma outra magistrada e colocado outro no quadro complementar para fazer face ao elevado número de processo pendentes].

Enuncia o número de processos existentes, e a sua natureza, para evidenciar o enorme volume de serviço existente e afecto a cada Procurador-Adjunto.

Recorre ainda à Ordem de Serviço nº4/2019, de 14.01.2009, para demonstrar quais as funções concretas que estão afectas ao autor.

Ora, perante toda esta argumentação, que sempre se imporá, em cada caso concreto, não vislumbramos a violação do estatuído nos nºs 1 e 2 do artigo 81º do EMP, nem tão pouco que a deliberação impugnada restrinja ou entorpeça seja de que forma for, o direito à intimidade ou reserva da vida privada do autor, pois este não se mostra impedido de gerir o seu tempo livre da forma como bem entender, ficando-lhe apenas vedado exercer as funções de formador para as quais foi convidado.»

[…]

E desatendeu a arguição de violação do artigo 13º, nº2, da CRP, desta forma:

[…]

«As autorizações que alega, em sede de petição inicial, terem sido concedidas pelo CSMP relativamente ao exercício de funções docentes em cursos de pós-graduação e mestrados, não se mostram concretizadas, ou seja, desconhece-se em absoluto, em que condições foram deferidas.

Quanto às autorizações referidas nos pontos 6 a 8 da factualidade provada, através das quais o autor pretende ver igualmente verificada a violação do princípio legal e constitucional da igualdade [onde se prevê que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante lei e que ninguém pode ser (…) prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social], as mesmas referem-se a actividades de docência [e não de formação profissional] de cursos e pós graduações jurídicas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, e curso de Direito do Consumo e Pós-graduação em Ciências-Jurídicas, pela Universidade Católica, respectivamente, autorizadas a dois Procuradores da República e a um Procurador-Adjunto, com tempos lectivos diferentes, sendo que se desconhece, em concreto, todo o circunstancialismo em que cada um destes magistrados exerce as respectivas funções nos tribunais onde estão colocados, pendências, estado do serviço em geral e em particular, pelo que, não dispõe este tribunal de elementos suficientes para poder concluir que tenha havido por parte do demandado um tratamento desigual em relação ao autor e demais colegas de profissão que viram os seus pedidos serem deferidos.

Na verdade, o CSMP tem de aferir em concreto cada um dos requerimentos que lhe é dirigido no que toca a este tipo de autorizações ao abrigo do disposto no artigo 81º do EMMP, pois só em face a cada caso em particular, estará habilitado para decidir, sem que a diferença de posições, deferimento ou indeferimento, possa ser considerada violadora do princípio da igualdade.»

[…]

Neste recurso para o «Pleno da Secção», o autor, enquanto recorrente, imputa erro de julgamento de direito ao acórdão recorrido nas seguintes vertentes:

- O acórdão faz errada interpretação e aplicação da lei [artigos 26º, nº1, e 59º, nº1 alínea d), da CRP; 12º da DUDH; 31º da CDFUE; e 7º, alínea d) do PIDESC] ao entender que a deliberação aqui impugnada não restringe nem entorpece o seu direito à vida privada;

- O acórdão recorrido faz errada interpretação e aplicação da lei ao entender que o tribunal não dispõe de elementos suficientes para poder concluir que o autor tenha sido tratado de forma desigual à dos demais colegas de profissão que viram os seus pedidos de autorização deferidos. A este respeito, alega que importa aditar à matéria de facto provada o seguinte: «Nas autorizações deferidas no último quadrimestre de 2018 para a actividade lectiva, nunca o CSMP apurou, nem se pronunciou sobre circunstancialismo funcional concreto dos magistrados requerentes», e de todo o modo, acrescenta, se o tribunal não dispunha de elementos suficientes para apreciar do tratamento «desigual» deveria carreá-los para os autos, a fim de poder decidir.

2. Sobre o alegado erro de julgamento de direito, do acórdão recorrido, relativamente à intromissão da deliberação impugnada na vida privada do ora recorrente, vejamos o que estipulam as normas legais por ele esgrimidas:

- A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação - artigo 26º, nº1, da CRP.

- Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito ao repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas - artigo 59º, nº1 alínea d), da CRP.

- Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei - artigo 12º da DUDH.

- Todos os trabalhadores têm direito a uma limitação da duração máxima do trabalho e a períodos de descanso diário e semanal, bem como a um período anual de férias pagas - artigo 31º, nº2, da CDFUE.

- Os Estados-Signatários no presente Pacto reconhecem o direito de toda a pessoa gozar de condições de trabalho equitativas e satisfatórias que assegurem, em especial: d) O descanso, usufruir do tempo livre, a limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas pagas, assim como a remuneração dos dias feriados - artigo 7º, alínea d) do PIDESC.

A partir destas normas, o ora recorrente, enquanto autor, defendia que a deliberação do CSMP, ao indeferir-lhe o pedido de autorização para o exercício de funções de formador, procedeu a uma ingerência indevida na sua vida privada. Como vimos, no acórdão aqui recorrido entendeu-se que não, mormente porque o autor «não se mostra impedido de gerir o seu tempo livre da forma que bem entender, ficando-lhe apenas vedado exercer as funções de formador para as quais foi convidado».

Naturalmente que esta arguição do recorrente não significa que ele entenda que o acto impugnado, ao indeferir o pedido de autorização de uma docência a levar a cabo durante cerca de três meses em período pós-laboral [a partir das 18H00], interfira ilegalmente no seu «direito à vida privada» na sua dimensão mais íntima - onde se integra o extracto mais secreto da vida pessoal, que é raramente partilhado, mesmo com conhecidos -, ou até na esfera privada em sentido estrito - onde se integra aquilo que se partilha apenas com os conhecidos -, mas defende, isso sim, que um tal indeferimento se traduz numa intromissão abusiva na «dimensão pública» da sua vida privada, isto é, condiciona, indevidamente, o seu direito a dispor do tempo livre «a seu bel-prazer», segundo o seu próprio arbítrio.

O acórdão recorrido entendeu que não, e este julgamento deverá ser confirmado.

Na verdade, uma leitura atenta do conteúdo quer do deliberado pela Secção Permanente quer do deliberado pelo Plenário do CSMP [pontos 3 e 5 do provado], leva-nos a tal conclusão.

É que o CSMP, após enquadrar e interpretar o regime de «incompatibilidades» presente, mormente, no artigo 81º do EMMP aplicável - que diz: «1- É incompatível com o desempenho do cargo de magistrado do Ministério Público o exercício de qualquer outra função pública ou privada de índole profissional, salvo funções docentes ou de investigação científica de natureza jurídica ou funções directivas em organizações representativas da magistratura do Ministério Público. 2- O exercício de funções docentes ou de investigação científica de natureza jurídica pode ser autorizado, desde que não remunerado e sem prejuízo para o serviço. …» -, centra a sua atenção na «questão» de saber se se verificam ou não, no caso do aí requerente, as condições para que o exercício da actividade em causa - formador na área do Direito Processual Penal, incluindo Organização Judiciária e Direito Penitenciário, na OAP - possa ser autorizada, ou seja, não remuneração e ausência de prejuízo para o serviço. E neste último afã, do prejuízo para o serviço, o CSMP, baseado nos dados fácticos disponibilizados pelo requerente, procede a uma ponderação dos prós e contras do eventual deferimento da pedida autorização. E, assim [pontos 7 a 18 da deliberação impugnada], sublinhando que a actividade em causa «não se limita às 50 horas de leccionação» - pois que envolverá, também, tempo de preparação das sessões, correcção de trabalhos escritos, integração de júris de provas orais, entrevistas da prova final de agregação - e que o aí requerente presta funções de procurador-adjunto numa comarca exigente [……………..], com um grande volume de serviço, e défice de magistrados, acaba por concluir «[…] ser manifesto que se fosse concedida a autorização para o exercício da actividade de docência na formação de futuros advogados no Conselho Distrital do Porto, da Ordem dos Advogados, haveria um grande prejuízo para o serviço próprio do Ministério Público que lhe está atribuído em ………….., pois aquela actividade iria naturalmente ocupar-lhe uma grande quantidade de tempo, muitíssimo superior às 50 horas de formação, durante cerca de três meses, não lhe permitindo que se dedicasse, como se impõe, à função do Ministério Público, sem dispersões ou distracções que certamente afectariam o desempenho exigido pelo concreto serviço atribuído».

É patente, pois, que o CSMP, no exercício da sua competência [artigo 27º, alínea a), do EMMP aqui aplicável], ao indeferir o pedido de autorização do aí requerente, fê-lo, não por querer gerir o tempo livre daquele, restringi-lo ou limitá-lo de qualquer modo, mas sim devido às «repercussões negativas» que o exercício daquela actividade, exigente em termos de natureza e de ocupação de tempo, teria no exercício, igualmente exigente, das funções de procurador-adjunto no tribunal de …………... Não está sobretudo em causa o tempo, em si mesmo, em que é exercida a pretendida actividade, mas as dispersões, distracções, preocupações que lhe estão acopladas quer a montante, na preparação das sessões, quer a jusante, na avaliação dos formandos. E o entendimento do CSMP foi no sentido de que uma tal ocupação de tempo e um tal estado anímico se repercutiria, e pela negativa, no muito e exigente serviço atribuído ao procurador-adjunto requerente.

Este exercício, legítimo, do «poder discricionário» que compete ao CSMP, não interfere, como defende o autor e ora recorrente, no seu direito à vida privada, na dimensão que supra deixamos delineada, pois não o impede de gerir como entender o seu tempo livre, apenas atende à repercussão negativa que a concessão da autorização teria no serviço.

3. Relativamente ao julgamento de improcedência da alegada violação do «princípio da igualdade» [artigo 13º, nº2, da CRP - segundo o qual «Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual»], refere o ora recorrente que no acórdão recorrido se entende, erradamente, que o tribunal não dispõe de elementos suficientes para poder concluir que o autor tenha sido tratado de forma desigual à dos demais colegas de profissão que viram os seus pedidos de autorização deferidos, e que, de todo o modo, se o tribunal entendia não dispor dos elementos suficientes para apurar da desigualdade invocada, então, deveria carreá-los para os autos. Pede, ainda, para ser aditado à matéria de facto considerada provada, no acórdão recorrido, o seguinte: «Nas autorizações deferidas no último quadrimestre de 2018 para a actividade lectiva, nunca o CSMP apurou, nem se pronunciou sobre o circunstancialismo funcional concreto dos magistrados requerentes».

Comecemos por este último pedido de aditamento.

Sobre o assunto, e independentemente deste «Pleno» apenas conhecer de «matéria de direito» [artigo 12º, nº3, do ETAF], é evidente que o recorrente pretende ver aditada à matéria de facto uma conclusão e não um facto. Os factos donde tal conclusão é eventualmente extraível são precisamente as três autorizações levadas aos pontos 6 a 8 do provado. E assim, quer pela sua natureza conclusiva quer pela sua desnecessidade, nunca a adição reclamada poderia ser atendida por este tribunal.

Temos, pois, de avaliar o invocado erro de julgamento de direito, relativo à violação do princípio da igualdade, apenas com base na factualidade consignada no provado.

O princípio da igualdade proíbe, nos termos do artigo 13º, nº2, da CRP, discriminações decorrentes dos índices aí definidos - sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual - entre os quais não se integra, é claro, o tema que nos ocupa. E fora desses casos expressamente proibidos, só existirá violação do princípio da igualdade quando nos confrontarmos com discriminações arbitrárias ou manifestamente injustificadas - entre outros, Jorge Miranda, Direito Constitucional, Tomo IV, página 248, e jurisprudência do Tribunal Constitucional aí citada -, o que significa que a prevalência da «igualdade», como um dos valores supremos do ordenamento jurídico, tem de ser compaginada caso a caso.

Deste modo, a aferição da invocada violação do princípio da igualdade deverá ter, como ponto de apoio, os fundamentos fácticos e valorativos que subjazem à diferenciação que se verifica entre o deferimento dos pedidos de autorização levados aos pontos 6 a 8 do provado e o indeferimento do pedido que foi apresentado pelo ora recorrente.

E verificamos, desde logo, que nesses três casos - levados ao provado - apenas um deles diz respeito a um Procurador-adjunto [ponto 8 do provado], enquanto os outros são relativos a «autorizações» concedidas a Procuradores da República [pontos 6 e 7 do provado]. Trata-se, obviamente, de duas categorias distintas, com um acervo de competências que também é distinto em variados aspectos [artigos 8º, nº1 alíneas d) e e), e 63º a 69º, EMMP aqui aplicável], o que poderá ter natural influência na apreciação do pedido de autorização.

Mas, sobretudo, é manifesto que o caso desse Procurador-adjunto é «bem diferente do caso do ora recorrente» quer relativamente ao «tipo de actividade» a exercer quer em termos de «tempo a despender» com a mesma. Ali, mostra-se «autorizado» o exercício de funções docentes limitadas ao módulo Marcha do Processo - Fase de Inquérito, com uma duração de duas horas. Aqui trata-se do «indeferimento de autorização» de actividade de «formação profissional de futuros advogados», na área de «Direito Processual Penal», «Organização Judiciária e Direito Penitenciário», durante 50 horas, distribuídas por três meses, a que acresce a «correcção dos trabalhos escritos», a «integração de júris das provas orais», e a realização de «entrevistas da prova final de agregação».

Mesmo nos outros dois casos levados ao provado, em que foi «autorizada» a docência a dois Procuradores da República - e a um deles, ainda, a coordenação -, verificamos que está em causa actividade meramente lectiva, em áreas temáticas mais restritas, muito limitada no tempo, e, pelo menos à partida, sem o risco de gerar um estado anímico que possa influenciar pela negativa a prestação do magistrado enquanto tal.

Destarte, tudo aponta para que se deva concluir que o CSMP não procedeu, no caso do ora recorrente, a um tratamento irrazoável ou arbitrário da sua pretensão de autorização, de modo a justificar-se o julgamento de procedência da violação do princípio da igualdade, como pretende o autor.

A circunstância de o CSMP ter deferido de um modo mais automático - para utilizar as palavras do recorrente - as pretensões que vimos referindo, sem uma análise detalhada da situação funcional de cada um dos três requerentes, e ter procedido à mesma no caso do autor, e ora recorrente, também não se traduz em tratamento desigual, já que é perfeitamente aceitável, e compreensível, que o indeferimento de uma pretensão se louve numa análise mais detalhada e profunda, mormente para convencer o destinatário da sua bondade e justificação.

4. Ressuma, do que fica dito, que deve ser negado provimento ao recurso jurisdicional, e mantido na ordem jurídica o acórdão recorrido, proferido pela Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal.

IV. Decisão

Nestes termos, decidimos, em «Pleno da Secção», negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente.

Nos termos e para os efeitos do artigo 15º-A do DL nº10-A/2020, de 13.03, o Relator atesta que os Juízes Adjuntos - Excelentíssimos Senhores Juízes Conselheiros TERESA DE SOUSA, CARLOS CARVALHO, MARIA BENEDITA, ANA PORTELA, SUZANA TAVARES DA SILVA, ADRIANO CUNHA e CLÁUDIO MONTEIRO - têm voto de conformidade.

Lisboa, 22 de Abril de 2021

José Augusto Araújo Veloso