Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0812/13
Data do Acordão:09/10/2014
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SÃO PEDRO
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
CAUSALIDADE ADEQUADA
NEGLIGÊNCIA MÉDICA
Sumário:I – Houve violação das leges artis, e por isso, a conduta do réu deve qualificar-se como ilícita, pela não opção imediata pela cesariana, na seguinte situação de facto:- a partir da 5.55 horas os médicos deviam comprovar a situação de sofrimento fetal agudo e bradicarida fetal (facto 42); - Verificou-se uma situação de sofrimento fetal agudo, pelo menos a partir de 1 momento situado entre as 5:48 e as 6:10 (facto 31); - O período expulsivo demorou entre 20 a 35 minutos (facto 36);- O bebe nasceu às 6 horas e 30 minutos (facto 10);- Nasceu muito hipótico, com bracardia e sem movimentos respiratórios (facto 32);- Em virtude de encefalopatia hipóxico-isquémica, o autor foi internado de imediato na Unidade de Cuidados Intensivos de Recém-Nascidos do réu HUC e necessitou de reanimação profunda, tendo iniciado ventilação artificial que se prolongou até ao 7º dia de vida (facto 33);-Teve convulsões (facto 34);- Sofreu lesões no pavilhão auricular, uma fractura parietal extensa e hemorragia craniana interna (facto 35);- O período expulsivo do parto demorou entre 20 a 35 minutos, e houve, pelo menos duas tentativas de extrair o bebé por fórceps, uma pela Dra. A……. (sem êxito) e outra pelo Dr. B……. (esta bem sucedida), e o autor falecido veio a sofrer de hipoxia - isquémica (falta de afluxo de oxigénio ao cérebro – e, depois, um estado de paralisia cerebral grave (36).
II – Verifica-se ainda culpa do réu na medida em que a violação do dever objectivo de cuidado (traduzido na violação das leges artis) podia e devia ser evitada. III – Existe nexo de causalidade adequada entre o facto ilícito e os danos sofridos pelo bebé, decorrentes das lesões sofridas durante o parto. Contudo, não se tendo provado que a morte do autor – ocorrida 10 anos depois – tenha sido causada pelas lesões sofridas durante o parto, não deve o réu ser condenado a ressarcir – com autonomia – o dano morte.
Nº Convencional:JSTA00068892
Nº do Documento:SA1201409100812
Data de Entrada:05/07/2013
Recorrente:A....E HOSPITAIS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
Recorrido 1:C... E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF COIMBRA
Decisão:PROVIMENTO PARCIAL
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA.
Legislação Nacional:DL 48051/67 DE 1967/11/21 ART6.
DL 282/77 DE 1977/07/05.
CCIV66 ART494 ART496 N4 ART342 N1.
Jurisprudência Internacional:AC STA PROC0477/11 DE 2012/03/13.
AC STA PROC0982/03 DE 2004/04/20.
AC STA PROC01504/13 DE 2014/05/15.
AC STJ PROC14143/07.6TBVNG.P1.S1 DE 2012/05/31.
AC STJ PROC425/04.2TBCTB.C1.S1.6 DE 2011/09/27.



Referência a Doutrina:ANTUNES VARELA E PIRES DE LIMA - CÓDIGO CIVIL ANOTADO 1982 PÁG303.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal Administrativo

1. Relatório

HOSPITAIS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra que julgou totalmente procedente a acção ordinária de responsabilidade civil extracontratual, intentada contra aquela Entidade e contra A……….
O Tribunal a quo entendeu que "(…) tendo em consideração a concreta situação em análise, pelo dano morte, tendo em conta a idade da vítima no momento da sua morte (10 anos - pontos 1 e 2 do probatório), ponderando que a esperança média de vida é, actualmente, superior a 75 (cfr. www.ine.pt) considera-se bastante justa e adequada a indemnização peticionada, no valor de 70.000,000 €.
Quanto aos danos morais sofridos pela própria vítima, que ao longo dos 10 anos em que viveu de forma vegetativa, em sofrimento permanente e sem qualquer qualidade de vida, importa assinalar que o menor foi privado de viver a vida, foi lhe usurpada a oportunidade de viver uma vida normal, autónoma, preenchida pelos sentimentos e sensações que estão ontologicamente associadas à condição humana. Tratam-se, pois, de danos que, pela sua enorme gravidade, merecem a tutela do direito, pelo que se afigura perfeitamente justa e adequada a atribuição de uma indemnização no valor de 250.000,00 €.
Pelos danos precedentes ou contemporâneos à morte do menor, ficou provado que não teve morte imediata, tendo morrido em sofrimento, durante um internamento hospitalar, causado por problemas respiratórios, muito frequentes na parte final da sua curta vida. Por estes danos, foi peticionada uma indemnização no valor de 40.000,00 €. Tendo em conta a notória aflição, sofrimento e agonia associadas à falta de capacidade respiratória, afigura-se bastante razoável, justa e adequada a fixação da indemnização no valor reclamado.
Tudo somado, o réu deverá pagar aos sucessores do autor a quantia global de 360.000,00 e (= 70.000,00 € + 250.000,00 € + 40.000,00 €) .".

A entidade Recorrente termina as suas alegações concluindo:

1. Impugna-se nos termos do artigo 690º-A do CPC a matéria de facto dada como provada, dando-se aqui por transcritos as alterações à matéria de facto constantes do ponto I.A) destas Alegações.

2. Quanto as questões de direito, é face à factualidade que devia ter sido efectivamente dada como provada, evidente que, ao contrário do afirmado na sentença recorrida não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual

3. Efectivamente da factualidade apurada nos presentes autos, não resulta qualquer facto que permita afirmar que se verificou um facto ilícito e culposo.

4. Dos factos efectivamente apurados não resulta a existência de quaisquer falhos "na concepção da Maternidade" e muito menos que um atraso de 20 minutos no caso de ser necessária, uma cesariana de urgência seria violador das legis artis ao tempo.

5. Tão pouco se verificou qualquer omissão do dever de zelo das enfermeiras, nem violação das legis artis da médica chamada em primeiro lugar (Drª B……) para intervir.

6. Pelo que não pode ser apontado ao Réu o cometimento de qualquer facto ilícito e/ou culposo, note-se que a situação concreta deve ser apreciada em função da legis artis ao tempo do parto - 1997.

7. E não em função dos conhecimentos e capacidades técnicas e materiais que vieram posteriormente a existir.

8. Perante as circunstâncias do caso e os sinais que eram permitidos observar, não é exigível aos funcionários do Réu que, ao tempo, tivessem agido de outro modo.

9. Por outro lado, não resulta da factualidade apurada que se a sua actuação fosse diferente, tal teria obstado aos danos dados como provados.

10. Note-se que, nos termos do art° 487° do CC, é ao lesado quem incumbe provar a culpa, o que in casu não se verificou.

11. Sendo que a actuação do Réu obedeceu as legis artis ao tempo vigentes.

12. A sentença recorrida ao decidir como decidiu violou os artigos 2°, 4° e 6º do Decreto-Lei n.º 48051 e o artigo 483° e 487º nº2 do CC.

13. Sem conceder e por dever de patrocínio sempre se dirá subsidiariamente, que a indemnização arbitrada aos sucessores do autor é manifestamente exagerada.

14. O Tribunal considerou, em parte, duplamente os danos morais sofridos pela vítima em vida e não considerou a mera culpa do Réu.

15. Os danos precedentes ou contemporâneos à morte do menor foram sofridos em vida pelo que pelos danos morais sofridos pela vitima ao longo dos 10 anos de vida não podiam ter sido fixadas duas indemnizações.

16. Pelos danos morais sofridos pela vítima ao longo da sua vida e em face da mera culpa do réu (sem conceder) afirmada na sentença o montante fixado pelo Tribunal nunca poderia ter sido superior a € 100.000,00.

17. O tribunal a quo ao decidir como decidiu na fixação da indemnização de acordo com a equidade sempre violou os critérios impostos pelos artigos 496º nº3 e 494º do CC.

Nestes termos e melhores de Direito, deve ser julgado procedente o presente recurso e revogada a sentença recorrida.

Os Recorridos – C……. e outro - contra-alegaram, concluindo, assim:

I - A designada "impugnação da matéria de facto" no presente recurso é, na prática, inexistente não apontando o recorrente motivos minimamente fundados para alterar os nºs 29 e 41 da Factualidade Apurada na sentença, devendo ser rejeitada.

II - De toda a matéria dada como provada no presente recurso dúvidas não há de que o comportamento das enfermeiras e/ou da médica Dr.ª A……… ao serviço do recorrente violaram as “legis artis” causando graves e irreversíveis danos ao falecido filho dos ora AA.

III - Não houve qualquer duplicação da indemnização sendo distintos os danos morais do menor "em virtude das dores e sofrimento que sentiu durante o parto e decorrentes da situação vegetativa em que viveu toda a sua vida" e danos morais do menor "antes de morrer em sofrimento".

IV - Os valores indemnizatórios fixados são justos e equitativos tendo em conta a culpa do recorrente, as condições económicas das partes e as penosas circunstâncias do caso.

Termos em que deve ser confirmada a douta sentença sob recurso por resultar de um rigoroso apuramento dos factos e de uma correcta aplicação do direito aos mesmos, assim se fazendo justiça.

O Ex.mo Procurador Geral - Adjunto emitiu parecer no sentido de ser concedido parcial provimento ao recurso.

As partes foram notificadas do aludido parecer.

Colhidos os vistos foram os autos submetidos à conferência para julgamento do recurso.

2. Fundamentação
2.1 Matéria de Facto
A matéria de facto fixada na decisão recorrida é a seguinte:

1 - O autor nasceu em 9 de Novembro de 1997, e é filho de D…….. e C……..
2.O autor faleceu no dia 24 de Maio de 2008.
3. Entre a E……… Companhia de Seguros S. A. e a Dra. A…….e o Dr. B……… foram celebrados contratos de seguro do ramo responsabilidade civil profissional - Médicos, titulados, respectivamente, pelas apólices nº ……….. (Dra. A…….), com início em 01.08.1991, e nº ………… (Dr. B……..), com início em 16.07.1992, contratos esse que se mostravam válidos e em vigor em Novembro de 1997, sendo que o capital seguro em Novembro de 1997 na apólice ……….. - Dra. A……..- era de € 136.342,81, sendo de € 162.103,30 o valor seguro na apólice n° …………. - Dr. B…… .
4. A mãe do autor foi internada nos Hospitais da Universidade de Coimbra - Maternidade ………., por volta da 1 hora do dia 8 de Novembro de 1997 por REBA (ruptura espontânea de bolsa de águas), tendo aquela informado que a ruptura tinha ocorrido às 23 horas e 30 minutos do dia 7 de Novembro de 1997.
5. O exame ginecológico, segundo documentação hospitalar, revelava à entrada "colo formado com 1,5 cms. de dilatação. Apresentação muito alta".
6. Do registo de enfermagem, consta: "Líquido amniótico de características normais, contractibilidade esporádica, foco fetal + / - 140 batimentos por minuto".
7. A Folha Terapêutica refere no dia 8 de Novembro: "Vigiar foco, Vigiar Perda de Liquido Amniótico, Repouso absoluto no leito, Vigiar contracções, CTG (Cardiotocografia) agora e ID (durante o dia), TA (Tensão Arterial) 2 ID (2 vezes por dia)" .
8. A mãe do A. ficou no quarto 129 e aí permaneceu todo o dia 8 de Novembro.
9. A mãe do A. só deu entrada na sala de partos às 5 horas da manhã do dia 9 de Novembro, e passou então, a ser-lhe administrado soro por via intravenosa.
10. O A. nasceu às 6 horas e 30 minutos do dia 9 de Novembro de 1997.
11. O diário de enfermagem do dia 9 de Novembro refere às 7 h. 20: Parto de fórceps muito difícil, bebé nasceu com Apgar muito baixo.
12. O A., do sexo masculino, nasceu com 3,185 Kgs. de peso, com um Índice de Apgar de 2 e de 4, respectivamente ao 1º e 5º minuto de vida.
13. Antes e durante o parto, nunca foi medido o Ph do feto e os gases do escalpe fetal, e o Réu H.U.C. não dispõe nas suas instalações de aparelho para tal finalidade.
14. Das 6 folhas existentes do registo cardiotocográfico, não acompanhadas de qualquer interpretação médica nem das queixas da parturiente, quatro folhas são numeradas, e pela frequência e intensidade da contractibilidade uterina, bem como pela hora do início e fim do registo - 1h. 20m. e 3h. de 8.11.97 -, traduzem o início do trabalho de parto em fase latente com frequência cardíaca fetal inteiramente normal, sendo que as duas últimas folhas, não estando numeradas, são preenchidas entre as 6h. 13m. e as 7h. do dia 9 de Novembro de 1997.
15. Da História Clínica do A. (nº 265/97), consta no "Tipo de Parto" - "Fórceps S.F.A." (Sofrimento Fetal Agudo), nas "Observações e Análises", com referência ao dia 9 de Novembro de 1997: "RN de parto fórceps por falta de progressão e bradicardia fetal. Nasce muito hipotónico e bradicardico s/movimentos respiratórios. Recupera de imediato a F.C. c/ A c/02 à face, mas mantêm-se s/respiração espontânea pelo que é colocado TET oro-traqueal e transportado para a UCIRN", no 'Diagnóstico" consta: "Asfixia Perinatal".
16. O Relatório do Exame Imagiológico do A. (Ressonância Magnética Crânio-encefálica), de 17.12.97 efectuado nas instalações e pelos serviços do Réu H.U.C. refere "múltiplas áreas com sinal sobreponível ao do LCR com localização predominantemente cortical e cortico-medular a nível temporal e parietal esquerdo, parietal occipital e parietal direito, compatíveis com lesões de natureza vascular sequelas de encefalopatia hipóxico-isquémica, No mesmo contexto e com a mesma etiologia (anoxia grave) visualizam-se áreas de hipersinal, envolvendo ambos os Tálamos, e núcleos lenticulares. A lesão visualizada a nível parietal superior e posterior direita tem características de sinal compatíveis com transformação hemorrágica. Marcada atrofia global. Alargamento do espaço extracerebral a nível bitemporo-parietal de menor espessura à esquerda onde é menor a grau de atrofia cortical, sem efeito de massa evidente compatível com efusão extra-axial".
17. Do Resumo do Internamento da UCIR da Maternidade ………… da R. HUC, consta com referência ao dia 9 de Novembro de 1997: " RPM. Asfixia. Encefalopatia Hipóxico Isquémica. Convulsões. Insuficiência Renal".
18. No Pedido de Exame para despiste de eventual E.H.P (estenose hipertrófíca do Piloro), que se veio a confirmar, com data de 19.12.97, é referido na Informação Clínica IIª Par ( ... ) Fórceps por S.F.A. (Sofrimento Fetal Agudo) e da UCIRN: Encefalopatia hipoxico-isquémica grave".
19.A mãe do A., durante a gravidez de termo da qual veio a nascer o A., foi acompanhada por médica especialista, tendo sido realizadas três ecografias e sendo a mesma gravidez normal, nada havendo a realçar do ponto de vista patológico.
20.O A. tinha 40 semanas de gestação à data de entrada nos Hospitais da Universidade de Coimbra - Maternidade ………..
21. À entrada na Maternidade, a mãe referiu uma rotura espontânea de bolsa de águas pelas 23 horas e 30 minutos do dia 7 de Novembro de 1997.
22. A mãe do A. entregou à médica que a observou uma carta da sua médica assistente, Dra. F……., relativa à sua gravidez.
23. No dia 9 de Novembro, a Folha Terapêutica já só se refere à situação pós-parto.
24. A mãe deu entrada na sala de partos às 5 h. da manhã do dia 9 de Novembro.
25. Depois de chegar à sala de partos, e tentar fazer uma rotação manual do bebé, a Dra. A……… pediu à mãe para fazer força, no sentido de expelir o "bebé", mas sem êxito.
26. Nessa altura, uma das enfermeiras presentes, por indicação da Dra. A………, realizou a manobra de Krysteller.
27. Passado algum tempo, a Dra. A………. ordenou que fossem buscar os "fórceps".
28. Enquanto a mãe fazia força e a enfermeira realizava a manobra de Krysteller, a Dra. A………… procurou extrair o bebé através de fórceps por tracção directa, mas sem êxito.
29. A determinada altura, cerca das 6:20 e face à situação que se prolongava no tempo, com evidente sofrimento para o bebé, a Dra. A……., mandou chamar outro médico para a auxiliar, tendo comparecido o Dr. B………..
30. O referido médico, tendo-se inteirado da apresentação cefálica em OS (occipito-sagrada) no III Plano, e da bradicardia fetal, realizou a rotação de 135º e reaplicação do fórceps em OIA (Occipito-iliaca-anterior), logrando extrair rapidamente o bebé, que nasceu pelas 6:30 do dia 9 de Novembro de 1997.
31. Verificou-se uma situação de Sofrimento Fetal Agudo, pelo menos a partir de 1 momento situado entre as 5:48 e as 6:10, e até à hora do nascimento, pelas 6:30.
32. O A. nasceu muito hipotónico, com bradicardia e sem movimentos respiratórios.
33. Em virtude de encefalopatia hipóxico-isquémica, o A. foi internado de imediato na UCIRN (Unidade de Cuidados Intensivos de Recém-Nascidos) do Réu H.U.C. e necessitou de reanimação profunda, tendo iniciado ventilação artificial que se prolongou até ao 7° dia de vida.
34. O A. teve convulsões.
35. O autor sofreu lesões no pavilhão auricular, uma fractura parietal extensa e hemorragia craniana interna.
36. O período expulsivo do parto demorou entre 20 a 35 minutos, e que houve, pelo menos, duas tentativas de extrair o bebé por fórceps, uma pela Dra. A………. (sem êxito) e outra pelo Dr. B…….. (esta bem sucedida), e o autor falecido veio a sofrer de hipoxia-isquémica - falta de afluxo de oxigénio ao cérebro - e, depois, um estado de paralisia cerebral grave.
37. Não foi equacionado o recurso a uma cesariana nem foi introduzida qualquer terapêutica de combate à situação de sofrimento fetal agudo.
38. Não consta de fls. 614 qualquer registo de acompanhamento médico da mãe entre o início do dia 8 de Novembro e o dia 9 de Novembro até depois do parto.
39. É prática corrente os clínicos anotarem na folha de registo diário as observações efectuadas, designadamente ao colo do útero, avaliação da apresentação, líquido amniótico e interpretação do registo cardiotocográfico.
40. Não existem quaisquer registos cardiotocográficos [RCT] durante o período imediatamente anterior ao parto, nomeadamente a partir das 6 horas do dia 9 de Novembro, não foram realizadas medições do pH e dos gases do escalpe fetal, foi utilizada a manobra de Krysteller, e foram aplicados pelo menos dois fórceps, um pela Dra. A…….. (sem rotação), e outro pelo Dr. B……… (com rotação).
41. De acordo com as leges artis vigentes na altura, perante a falta de progressão do feto e uma situação de sofrimento fetal agudo, devia-se actuar no sentido de uma rápida extracção do feto, optando pela cesariana imediata ou parto vaginal com recurso a fórceps imediato.
42. Através dos RCT, e pelo menos a partir das 5:55, os médicos deviam comprovar a (situação de sofrimento fetal agudo e bradicardia fetal.
43. A situação clínica da mãe e do feto, só por si e desacompanhada de outros factores, nomeadamente de ordem peri-natal, não justificava que o mesmo viesse a padecer de paralisia cerebral grave.
44. A demora na extracção do feto perante uma bradicardia é apta a produzir, ou pelo menos aumentar, o risco da hipoxia isquémica e subsequente paralisia cerebral grave de que o bebé sofreu.
45. Os "fórceps" são aparelhos aptos a produzirem danos graves, caso não sejam utilizados correctamente e com cuidado.
46. O A. viveu numa situação de vida vegetativa, sem possibilidade de qualquer recuperação significativa.
47. O A. não tinha qualquer tipo de movimentação coordenada e não reagia a estímulos exteriores.
48. Não andava, falava ou ouvia.
49. Não conseguia comer sozinho, sendo alimentado através de uma sonda colocada directamente no estômago, através de uma intervenção cirúrgica.
50. Não conseguia lavar-se e tinha que usar permanentemente fraldas, porque não tinha capacidade para controlar as suas necessidades fisiológicas.
51. Era transportado regularmente ao Centro de Paralisia Cerebral de Coimbra e a sessões de fisioterapia no Hospital de Águeda.
52. Viveu em sofrimento permanente e sem qualquer qualidade de vida.
53. Não teve morte imediata, tendo morrido em sofrimento, durante um internamento hospitalar, causado por problemas respiratórios, muito frequentes na parte final da sua curta vida.
54. O A. padeceu de sofrimento e dores durante o parto.
55. A médica que recebeu a mãe do A., na sua observação clínica, registou: - Colo formado de multípara, permeável a 1 dedo (correspondente a 1,5 cms) posterior, amolecido.
- Apresentação cefálica alta. Auscultação cardíaca no quadrante inferior direito com cerca de 140 pulsações por minuto.
- Membranas rotas há 2 horas.
- Líquido amniótico normal.
56. Perante este quadro e dentro dos parâmetros habituais de trabalho de parto, a mãe do Autor quando deu entrada no Serviço de Urgência da Maternidade dos HU não estava em trabalho de parto.
57. Internada, foi-lhe feita prescrição terapêutica pela médica de serviço, que consta da folha terapêutica relativa ao dia 8 de Novembro de 1997, e que refere o seguinte:
- Vigiar foco
- Vigiar perdas de Líquido Amniótico
- Repouso absoluto no leito
- Vigiar contracções
- Controlo cardiotocográfico agora e idem (significando logo após o internamento e posteriormente)
- Controlo de Tensão Arterial no mínimo duas vezes.
58. Tendo sido sujeita a observação e cuidados de enfermagem com medição de TA (tensão arterial), de temperatura e pulso bem como de outros cuidados de preparação adoptados logo à 1 hora do dia 8 de Novembro.
59. Bem como à 1 hora e 20 minutos desse dia, momento em que foi realizado o primeiro registo cardiotocográfico.
60. Sem a parturiente referir quaisquer contracções, conforme se descreveu no registo de enfermagem constante do processo clínico.
61. A folha terapêutica nada mais refere até ao parto porquanto não houve qualquer alteração do estado do A. nem de sua mãe, sendo que as modificações terapêuticas só se fazem face a necessidades verificadas em concreto.
62. A mãe do A. foi observada por médico durante o dia 8 de Novembro de 1997, na visita subsequente à passagem do serviço de equipa de urgência.
63. Tendo sido escrito no Diário Clínico desse dia (Diário a que só os médicos têm acesso) na sequência da observação e do exame obstétrico, o seguinte:
- Ruptura membranas às 23, 30 horas de ontem
- Refere contracção há cerca de 30 minutos
- Toque: colo formado dilatado a 1,5 cms.
- Apresentação muito alta.
64. Para além e a par destas observações, exames e prescrições terapêuticas, a parturiente, mãe do A., esteve sujeita a cuidados de enfermagem com medição de T.A., temperatura, pulso e registo cardiotocográfico, para vigilância contínua das pulsações fetais e contractabilidade uterina.
65. Tendo ficado registado que revelava contracções esporádicas com líquido amniótico normal e referido que "Aguarda Evolução", na folha de enfermagem relativa ao período das 08 horas às 16 horas do dia 8 de Novembro de 1997.
66. E ficou registado no turno das 16 horas às 23 horas desse dia que:
- mantém-se em repouso
- perdas líquidas de características normais
- foco fetal positivo, rítmico, mais ou menos (+/-) 140 pulsações por minuto
- refere contracções esporádicas
- temperatura axial 36,4° .
67. Durante esse período foram feitas pela mãe do A. dois registos cardiotocográficos, sendo o primeiro às 1:20 horas do dia 8 de Novembro, e o segundo às 11:30 horas desse mesmo dia, os quais não revelavam nem revelam a existência de qualquer problema nomeadamente a de um eventual sinal de sofrimento fetal.
68. A mãe do A. esteve sem quaisquer queixas dignas de registo até às 2 horas do dia 9 de Novembro.
69. Conforme consta do Registo de enfermagem do turno das 23 horas às 8 horas (relativo ao dia 9 de Novembro, às duas horas é registado, na sequência de informação da própria e de controlo obstétrico feito pela Enfermeira, o seguinte:
- sem queixas até às 2 horas
- Observada por referir contracções
- Colo em apagamento, dilatado 2 cms, perdas escassas
- Liquido amniótico normal, foco fetal com mais ou menos (+/-)140 pulsações por minuto
- Aguarda Evolução.

70. Às 4 horas desse dia 9 de Novembro é registado pela enfermeira: - Contracções fracas
- Foco fetal mais o ou menos (+/-)140 pulsações por minuto.

71. Às 5 horas desse mesmo dia é feito o exame obstétrico pela enfermeira que regista:
- Colo dilatado a 4 cms.
- Perdas de Liquido escassas
- Liquido amniótico de cor clara
- Contracções rítmicas
- Foco fetal mais ou menos (+/-) 140 pulsações por minuto.
- Vai para a sala de partos.

72. O significado de tal observação obstétrica e o decorrente encaminhamento para a sala de partos é o de que a mãe do A. acabara (só nessa ocasião) de entrar em trabalho de parto (considerado este em termos obstétricos).
73. Até à entrada na sala de partos, o trabalho de parto ocorreu na sequência de uma evolução sem alteração ou suspeita de qualquer patologia, respeitando integralmente o protocolo de vigilância às grávidas internadas em vigor na Maternidade …….. .
74. Conforme registo de folha de enfermagem, quando a mãe do A. entra no Bloco de partos às 5 horas do dia 9 de Novembro de 1997, foi-lhe feito o acolhimento habitual, ou seja, foi informada pela senhora Enfermeira do Serviço do desenvolvimento e orientação do trabalho de parto, foi acomodada em cama própria de uma Sala de Partos, cama essa com possibilidade de se transformar de modo a nela se proceder ao parto e foi posto em curso o registo cardiotocográfico existente nesse Bloco para ser vigiada de forma continua quer às pulsações fetais quer à contractilidade uterina.
75. A par desses procedimentos foi aberto o partograma, onde normalmente se registam todas as ocorrências do trabalho de parto e do parto.
76. De acordo com a anotação feita no partograma, cerca das 5 horas e 45 minutos a parturiente apresentava uma dilatação de 7cm.
77. De acordo com o RCT (que se realizou em continuo até cerca das 6:00), até às 5:48 havia contractilidade uterina normal para essa situação, não aparentando que o feto tinha quaisquer sinais de sofrimento até esse momento.
78. O aparelho de registo cardiotocográfico do Bloco de partos apenas é acertado quanto à hora no início de cada ano pelo que, durante alguns meses (Novembro e Dezembro) a marcação de hora está adiantada 1 hora.
79. Pouco antes das 6 horas verificou-se a dilatação completa, pelo que a parturiente iniciou os seus esforços expulsivos e, como não se verificou existir qualquer incompatibilidade feto-pélvica, a apresentação do feto chegou ao 3° plano (3° plano - cabeça encravada).
80. Entre as 5:48 e 5:55, em virtude dos esforços expulsivos, a captação do foco fetal pelo R.C.T. toma-se pouco fiável, passando a ser feita de ouvido através da utilização de Transducer/Sonicaid (sem registo escrito dos batimentos).
81. Entre as 5:48 e as 6: 10 é chamada a médica de serviço na Urgência, Dra. A………, que comparece e constata, através da observação obstétrica que efectuou, que o colo cefálico se encontrava encravado - 30 plano e a apresentação do feto era em occipito-sagrada.
82. Tentou a rotação manual do pólo cefálico e, perante a falta de resultado, decidiu-se pela extracção com fórceps, em occipito-sagrada.
83. Como não obtivesse progressão com a força de tracção normal decidiu prosseguir aplicando a manobra de Krysteller com a ajuda da enfermeira.
84. A "Manobra de Krysteller" que consiste em um/a ajudante (no caso a enfermeira) encostar o seu antebraço no fundo uterino de modo a segurar o fundo uterino e assim apoiar a descida do feto.
85. Perante a falta de resultado da aplicação dessa técnica, com que não estava a obter qualquer progressão do feto, a médica chamou Dr. B………, Chefe de Equipa de Urgência, que chegou logo após (cerca das 6 horas e 20 minutos).
86. Aí chegado, o Dr. B……… foi inteirado pela Dra. A……….. do que, segundo ela, foi o desenvolvimento do parto e das dificuldades ocorridas, bem como do facto de se ter detectado uma bradicardia fetal.
87. A situação com que se deparou implicava a necessidade de uma rápida extracção do feto.
88. Tendo o Dr. B……….. decidido prosseguir o parto instrumentado.
89. Nesse quadro foi alertado o médico neonatologista de serviço - presente no serviço - que acompanhou o desenvolvimento final do parto.
90. O Dr. B……… introduziu os fórceps efectuando a rotação de 135º e, depois de retirados os fórceps, logo após proceder de novo à sua introdução em occipito-direita-anterior, conseguindo a extracção do feto, depois de ter desfeito a circular larga ao pescoço que o feto revelava.
91. A introdução dos fórceps naquela situação e naquele momento (tendo em conta a posição do feto, a dilatação completa do colo do útero, e os sinais e o momento provável de instalação da bradicardia), constituía a técnica instrumental adequada, de acordo com as boas práticas.
92. Qualquer decisão de extracção por Cesariana não era justificada no momento em que o Dr. B…….. chega a sala de partos, porque o parto instrumentado era o que melhor respondia a urgência de extracção motivada pelo sofrimento fetal agudo.
93. Qualquer decisão de efectuar uma Cesariana envolvia um atraso de, no mínimo, 20 minutos, com a deslocação para Bloco, a preparação da parturiente e a sua execução (com necessidade, face ao trabalho de parto estar numa fase de 3º plano, de ter de ser auxiliado por outra pessoa que empurrasse o feto com esforços no sentido de recuo da cabeça do feto para a cavidade uterina).
94. Naquele momento (6:20), a cesariana se revelaria de muito duvidosa decisão em termos de regras obstétricas pelo risco acrescido que a demora da extracção do feto lhe acarretaria.
95. Não foi usada qualquer ventosa.
96.O trabalho de parto da mãe do autor decorreu num período de uma hora e meia (das 5 horas às 6 horas e 30 minutos) com um período expulsivo de cerca de 20 a 35 minutos.
97. A rotura prematura de membranas (RPM) ocorrida às 23.30 do dia 7 de Novembro não significa trabalho de parto e, desde que não associada a outras alterações ou patologias, apenas exige uma vigilância expectante.
98. Da Folha de Protocolo Obstétrico da Maternidade ……….. consta o seguinte:
"Indução do trabalho de parto 24 horas após a Ruptura Prematura de membranas" .
99. A hipoxia isquémica de que o autor padeceu está normalmente associada à bradicardia fetal prolongada.
100. Foram aplicados pelo menos duas vezes os fórceps, o autor sofreu graves lesões no pavilhão auricular, uma fractura parietal extensa e hemorragia craniana interna, e estas lesões neurológicas graves de que a autor padeceu podem-se dever a bradicardia fetal aguda como também podem ter causas mecânicas.
101. Quer no período de vigilância e controlo que precedeu o início do trabalho de parto quer durante o trabalho de parto e até às 6:00, foram efectuados registos cardiotocográficos.
102. De acordo com o Protocolo de vigilância às grávidas internadas:
1. O internamento é processado através da urgência, habitualmente pelo Médico de serviço ou pela Enfermeira Especialista da área com conhecimento e orientação médica.
2. Tratando-se de uma mulher no final da sua gravidez, com qualquer dos sinais atrás referidos, é dada orientação de vigilância, quer pela ficha terapêutica, quer pelo protocolo vigente;
3. A Enfermeira Especialista do sector, que tem competência, irá acompanhar a grávida, ao mesmo tempo que regista as observações que obtém ou comunica ao médico e solicita a sua presença se assim o entender, independente da hora que for necessário;
4. Diariamente é passada a visita no sector, independentemente do dia da semana.
5. O sector possui um corpo clínico próprio, que ao terminar o seu serviço, comunica oralmente e deixa por escrito à Equipe de Urgência as situações existentes com atenção especial para "casos problemas".
103. De acordo com as regras protocoladas nos casos de internamentos por rotura de membranas, que assim se considera quando esta situação surge antes do início do trabalho de parto, deve-se:
- Vigiar as perdas vaginais tendo em atenção o aspecto do líquido amniótico, para despistar a presença de mecónio.
- Vigiar as contracções para um eventual início de trabalho de parto
- Fazer registos cardiotocográficos (vigilância da alteração no ritmo cardíaco ou presença de contracções tradutoras de actividade uterina)
- Vigiar a temperatura axilar para despistar sinais precoces de infecção
- Medição da Tensão Arterial
- Em estado de normalidade, aguarda-se até às 24 horas para o início espontâneo do trabalho de parto.
- Caso não aconteça, então iniciar-se-á a indução do trabalho de parto que será na sala de partos sob vigilância e controlo com RCT
- Todas as anomalias surgidas são motivo de atenções especiais e de tentativas de correcção
- As eventuais cesarianas realizadas entrarão no protocolo das indicações de cesarianas.
- As cesarianas electivas só são efectuadas quando houver sinais de sofrimento fetal ou outra patologia que poderá inviabilizar o parto por via vaginal.
104. A execução do parto instrumentado, no quadro descrito e perante uma situação de urgência e emergência, comporta sempre riscos de lesões e traumatismos (referidos nos livros da especialidade com uma probabilidade 10 vezes superior ao normal).
105. Até às 5:00 de 9/11/1997, as folhas referidas na alínea N. dos factos assentes mostram uma frequência cardíaca normal, sem contractibilidade uterina, o que indicia não se ter iniciado o trabalho de parto e existir um bem estar fetal, e que as últimas folhas, registadas na sala de parto (fls. 1147 e 1148), mostram contractibilidade uterina e frequência cardíaca normal, com desacelerações coincidentes com as contracções uterinas, até às 5:48.
106. Às 6 horas desse mesmo dia, foi verificada a dilatação completa, tendo sido iniciados nessa altura os esforços expulsivos.
107. Face a uma situação complicada no decurso de um parto é norma corrente que o médico que nele intervém, integrado numa equipa em serviço de urgência, solicite a presença do Chefe da Equipa, até por ser o mais graduado.
108. Após a conclusão do parto, o recém-nascido foi colocado na sala do acolhimento dos recém-nascidos da sala de partos, onde foi acompanhado pelo pediatra de serviço.
109. A estenose hipertrófica do piloro pode estar associada a uma malformação cromossómica susceptível de desencadear a paralisia cerebral grave, mas este não era o caso dos autos.
*
A factualidade assinalada nos pontos 1 a 18 do probatório constituem factos que desde logo se consideraram assentes nos termos do despacho saneador (alíneas A. a R.), sendo que os factos referidos nos restantes pontos se consideraram provados nos termos e com base na fundamentação constante da resposta à matéria de facto, que aqui se dá por integralmente reproduzida.

2.2. Matéria de direito
2.2.1. Recurso da sentença final interposto por A………..
A……… recorreu da sentença a fls. 1524. O recurso foi admitido por despacho de fls. 1532, mas a recorrente não apresentou alegações. Assim, por falta de alegações, o recurso deve ser julgado deserto – art. 102º, 1 da LPTA e 690º, 2 do CPC aplicável por se tratar de processo cujo recurso remetia para a tramitação do agravo e, portanto, para um regime anterior ao Dec. Lei 303/2007, de 24/8.

2.2.2. Recurso da sentença final, interposto por Hospitais da Universidade de Coimbra.
2.2.2.1. Recurso da matéria de facto.
O recorrente impugna a matéria de facto (conclusão 1) e a matéria de direito (conclusões seguintes).
Relativamente à matéria de facto alega o recorrente, na conclusão 1, remete para o ponto I.A do corpo das alegações, de onde decorre a concreta impugnação dos factos dados como provados sob os números 28 e 41.
Vejamos cada um deles.
(i) facto 28
No ponto IA do corpo das alegações o recorrente, depois de transcrever a matéria dada como provada, na sentença, alega o seguinte:
A- o facto 28, face ao afirmado nos depoimentos de parte da Dra. A…….. e Dr. B…….. e à inexistência de quaisquer outras provas que se pronunciem sobre o aí referido não podia ter sido considerado como provado no que respeita à hora de chamada do Dr. B……….
Entende o recorrente, face ao depoimento da Dr. A…….. e do Dr. B………, que o “pedido de chamada do Dr. B…… sempre deve ter ocorrido alguns minutos antes das 6,20 horas”. Esta sua conclusão decorre da circunstância de resultar daqueles depoimentos que a Dra. A…….. chamou o Dr. B……… depois de ter tentado a rotação manual do pólo encefálico, de ter pedido à enfermeira que executasse a manobra de Krysteller que não resultou e de ter tentado uma extracção com fórceps, em occipo-sagrada, e que este, conforme refere pelo seu depoimento chegou à sala de partos cerca das 6H:20M.

O ponto 28 da matéria provada tem a seguinte redacção:
Enquanto a mãe fazia força e a enfermeira realizava a manobra de Krysller, a Dr. A……. procurou extrair o bebé através de fórceps por tracção directa, mas sem êxito.
Como é bom de ver a matéria alegada não invalidade, de modo algum, o facto dado como provado. Pelo contrário há total adequação.

É certo que no ponto 29 se deu como provado o seguinte:
A determinada altura, cerca das 6:20H e face à situação que se prolongava no tempo, com evidente sofrimento para o bebé, a Dr. A……… mandou chamar outro médico para a auxiliar, tendo comparecido o Dr. B……….
Mas também este facto, no que respeita à hora em que o Dr. B………. foi chamado e compareceu não está em desconformidade com as declarações deste médico que disse (conforme alega o recorrente) ter chegado à sala de partos cerca das 6H.20M (fls. 1549 das alegações do réu).
Assim relativamente ao facto 28 e 29, no que respeita à hora de chegada do Dr. B…….à sala de partos o recurso da matéria de facto improcede.

(ii) facto 41
Sustenta o recorrente que o facto 41 deverá ter a seguinte redacção:
De acordo com as leges artis vigentes na altura, perante a falta de progressão do feto e uma situação de sofrimento fetal agudo, devia-se actuar no sentido de uma rápida extracção do feto optando pela cesariana imediata ou parto vaginal com recurso a fórceps imediato.
Num Hospital Central bem equipado segundo a Legis Artis da altura, em 1997, entre a decisão de se fazer a cesariana e parto e a preparação para a realização da mesma seriam necessários, no mínimo, entre 20 e 30 minutos”.

Justifica a sua pretensão no depoimento do perito, que transcreve:
“Juíza … num Hospital Central bem equipado segundo a Legis Artis da altura 97, quanto tempo é que entre a decisão de se fazer a cesariana e parto quando é que ela poderia decorrer ?
FMB – Normalmente nós gostaríamos que isso acontecesse entre 20 e 30 minutos.
Juiza: 20 e 30 ! Isso era para si a legis artis de 97 ?
FMB – Sim, mas nem sequer eram aplicáveis, porque não tínhamos por exemplo anestesistas no Hospital, não sei se em 95, 94, não me recordo muito bem, não sei, na altura não havia anestesista permanentemente no bloco. As vezes precisávamos de intervir … tínhamos um politraumatizado … não o posso deixar... portanto nós aí tínhamos que tentar resolver … como podíamos.” (fls. 1550).

O facto 41 tem a seguinte redacção:
De acordo com as leges artis vigentes na altura, perante a falta de progressão do feto e uma situação de sofrimento fetal agudo, devia-se actuar no sentido de uma rápida extracção do feto optando pela cesariana imediata ou parto vaginal com recurso a fórceps imediato.”

O recorrente pretende, portanto, acrescentar ao ponto 41, parte do depoimento do perito ouvido em tribunal, relativamente ao período de tempo que, naquela ocasião, necessário para iniciar uma cesariana, a partir do momento em que se decidia por essa técnica.
Vejamos.
O período de tempo que o Hospital levava a preparar o início da cesariana, invocado pelo recorrente decorre das condições de facto existentes no Hospital, naquela ocasião (em 1997).
O que disse o perito nas declarações, ora invocadas, foi que, naquele tempo, nem haveria anestesistas permanentemente. O que o recorrente invoca é a falta de condições do Hospital para dar início a uma cesariana antes de 20 a 30 minutos após a decisão respectiva.
Mas, em boa verdade, tal falta de condições não decorre do depoimento citado no recurso, e acima transcrito. Esse depoimento remete para os tempos de 95, 94 e os factos ocorreram em 1997, portanto, não podemos invocar o referido extracto do depoimento para dizer que em 1997 não havia anestesistas disponíveis para em menos de 30 minutos se dar início à cesariana.

De notar, todavia, que no ponto 93 dos factos provados se deu como assente que “Qualquer decisão de efectuar uma Cesariana envolvia um atraso de, no mínimo 20 minutos (…)”. Ou seja, está efectivamente dado como assente que nas circunstâncias concretas, em que ocorreu o parto “qualquer decisão de efectuar uma Cesariana envolvia um atraso de, no mínimo, 20 minutos”, pelo que o facto que o réu pretende provado está efectivamente – enquanto facto material – dado como assente.
Portanto, também neste ponto, podemos concluir que o recurso não merece provimento.

2.2.2.2 Recurso da matéria de direito
Sustenta o recorrente que da matéria de facto não resulta provado qualquer facto ilícito e culposo, pois que um atraso de 20 minutos no caso de ser necessária uma cesariana de urgência, não violava as “leges artis”.
No essencial, entende o recorrente, que “perante as circunstâncias do caso e os sinais que eram permitidos observar, não é exigível aos funcionários do réu que, ao tempo, tivessem agido de outro modo” não resultando ainda provado que “se a sua actuação fosse diferente, tal teria obstado aos danos dados como provados”.
Considera ainda que a indemnização arbitrada é manifestamente exagerada.
O Ex.mo Procurador - Geral Adjunto no seu parecer pugnou pela procedência do parcial recurso, relativamente ao montante dos danos, sem uma valoração autónoma dos danos ocorridos imediatamente antes da morte, devendo ainda atender-se a que os danos se deram por mera culpa.
O presente recurso – ao abrigo do regime da LPTA – tem como objecto matéria de facto e de direito, pelo que apreciaremos as questões do nexo de causalidade, ilicitude e culpa, sem qualquer limitação.

A ilicitude, como decorre do art. 6º do Dec. Lei 48051/67, de 21 de Novembro, traduz-se na violação de normas legais e regulamentares os princípios gerais aplicáveis ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devem ser tidas em consideração.
Estando em causa a prestação de cuidados médicos de assistência a um parto, haverá ou não ilicitude se os funcionários e agentes do réu violaram ou não as “leges artis” ou seja o conjunto de regras e procedimentos que, naquelas circunstâncias, devam ser tidas em conta. Podem ser normas legais (ex. o art. 13º do Dec. Lei 282/77, de 5 de Julho, normas regulamentares (Código Deontológico da ordem dos Médicos, ou vertidas em guias de boas práticas ou protocolos de actuação) ou ainda, em regras não escritas, traduzindo métodos e procedimentos comprovados pela ciência médica – cfr. acórdão deste STA de 13-3-2012, proferido no recurso 0477/11 e de 20-4-2004, proferido no recurso 0982/03.

Como veremos a resposta negativa dada pela sentença recorrida está certa.

Com efeito, provou-se que “de acordo com as leges artis vigentes na altura, perante a falta de progressão do feto e uma situação de sofrimento fetal agudo, devia-se actuar no sentido de uma rápida extracção do feto, optando pela cesariana imediata, ou parto vaginal com recurso a fórceps imediato” (facto 41).
Provou-se ainda que a partir da 5.55 horas os médicos deviam comprovar a situação de sofrimento fetal agudo e bradicardia fetal (facto 42).
Verificou-se uma situação de sofrimento fetal agudo, pelo menos a partir de 1 momento situado entre as 5:48 e as 6:10 (facto 31).
O período expulsivo demorou entre 20 a 35 minutos (facto 36).
O bebe nasceu às 6 horas e 30 minutos (facto 10).
Nasceu muito hipótico, com bradicardia e sem movimentos respiratórios (facto 32).
Em virtude de encefalopatia hipóxico-isquémica, o autor foi internado de imediato na Unidade de Cuidados Intensivos de Recém-Nascidos do réu HUC e necessitou de reanimação profunda, tendo iniciado ventilação artificial que se prolongou até ao 7º dia de vida (facto 33).
Teve convulsões (facto 34).
Sofreu lesões no pavilhão auricular, uma fractura parietal extensa e hemorragia craniana interna (facto 35).
O período expulsivo do parto demorou entre 20 a 35 minutos, e houve, pelo menos duas tentativas de extrair o bebé por fórceps, uma pela Dra. A……..(sem êxito) e outra pelo Dr. B…….. (esta bem sucedida), e o autor falecido veio a sofrer de hipoxia - isquémica (falta de afluxo de oxigénio ao cérebro – e, depois, um estado de paralisia cerebral grave (36).
Destes factos resulta que as “leges artis” impunham que tendo sido, às 5.48 minutos, detectada uma situação de sofrimento fetal agudo e deveriam os serviços do réu colocar a hipótese de cesariana. Hipótese que se tornava ainda mais clara, quando não era – como se verificou desde logo - possível a “rápida extracção” através de outros meios.
Julgamos, assim, que, como decidiu a sentença, houve violação das “leges artis” na não opção pela cesariana, por volta das 5:48 horas, sendo esta não opção, portanto, o facto ilícito – cfr. em sentido idêntico, num caso semelhante, o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 16/3/2005, proferido no recurso 01609/02 (citado pela sentença recorrida a fls. 1488).

Também existe culpa, uma vez que a violação das leges artis, no presente caso era evitável, ou seja, os serviços do réu poderiam ter agido de outro modo (ter optado pela cesariana) e, portanto, o comportamento ilícito é, no presente caso, censurável. Com efeito, da circunstância de ter havido ilicitude decorre a violação do dever objectivo de cuidado sendo ainda claro que, nas apontadas circunstâncias, os serviços do réu podiam e deviam ter optado – logo às 5,48 horas – pela cesariana.

Os danos morais sofridos pelo bebé – que mais tarde veio a morrer – são uma consequência adequada do comportamento ilícito. Com efeito, deu-se como provado não só que a demora na extracção do feto perante uma bradicardia é apta a produzir, ou pelo menos aumentar, o risco da hipoxia isquémica e subsequente paralisia cerebral que o bebé sofreu (facto n.º 44) e ainda que a situação clínica da mãe e do feto, só por si e desacompanhada de outros factores, nomeadamente de ordem peri-natal, não justificava que o mesmo viesse a padecer de paralisia cerebral grave (facto 43).
Deu-se, ainda, como provado que “a estenose hipertrófica do piloro pode estar associada a uma malformação cromossómica susceptível de desencadear a paralisia cerebral grave, mas este não era o caso dos autos” (facto 109).
Podemos pois concluir que a paralisia cerebral sofrida pelo autor, foi uma consequência adequada da demora na extracção do feto.

O sofrimento do autor vem descrito nos pontos 46º a 47º:
- viveu uma situação de vida vegetativa (facto 46);
- não tinha movimentação coordenada, nem reagia a estímulos exteriores (facto 47);
- não andava, não falava, não ouvia (facto 48);
- não conseguia comer sozinho, sendo alimentado através de sonda colocada directamente no estômago, através de intervenção cirúrgica (facto 49);
- não conseguia lavar-se e tinha que usar permanentemente fraldas, pois não controlava as necessidades fisiológicas (facto 50);
- viveu em sofrimento permanente e sem qualquer qualidade de vida (facto 52);
- não teve morte imediata, tendo morrido em sofrimento, durante um internamento hospitalar, causado por problemas respiratórios, muito frequentes na parte final da sua curta vida (facto 53);
- o autor nasceu em 9 de Novembro de 1997 (facto n.º 1) e faleceu em 24 de Maio de 2008 (facto 2).

Todos os danos acima referidos (com excepção do dano morte) devem ser vistos como danos não patrimoniais causados pelo facto ilícito. Na verdade são uma consequência da paralisia cerebral sofrida pelo autor, durante o seu nascimento e são uma consequência adequada dessa lesão, então sofrida.

Vejamos, agora, a dimensão dos danos ressarcíveis e sua quantificação.

A sentença recorrida fixou a indemnização destacando os seguintes danos: (i) pelo dano morte, em 70.000,00; (ii) pelo sofrimento durante os dez anos de vida, em 250.000,00 euros e (iii) pelos danos precedentes e contemporâneos com a morte, fixou uma indemnização de 40.000,00 euros.

A quantia arbitrada de 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros) arbitrada na sentença recorrida é, a nosso ver adequada, dado o quadro de vida vegetativa que o autor viveu, para compensar todo esse sofrimento. Trata-se de quantia fixada com recurso à equidade, que deve atender – art. 494º, por força do art. 496º, n.º 4, do C. Civil – aos danos, grau da culpa, situação económica do lesado e do agente e demais circunstâncias do caso. Apesar de haver mera culpa, o certo é que o sofrimento do autor durante os anos que viveu foi efectivamente muito elevado (vida vegetativa, alimentação por sonda, e sofrimento permanente), sendo a quantia fixada adequada ao incalculável sofrimento do menor.

Relativamente aos demais danos, o Ex.mo Procurador - Geral Adjunto, neste STA, tem razão, quando diz que não devem autonomizar-se os danos precedentes e contemporâneos à morte, dos demais danos morais sofridos pelo autor. Na verdade, o autor não teve morte imediata e, portanto, o sofrimento a ter em conta para apurar a devida compensação abarca todo o período em que viveu e sofreu. Não há, assim, qualquer razão para somar a essa compensação a quantia de 40.000,00 a título de danos precedentes ou contemporâneos da morte, até porque no presente caso, nem sequer está demonstrado que o autor tenha tido pré-ciência da morte, (dado o estado vegativo em que sempre viveu) e, por outro lado, a quantia acima fixada (250.000,00 euros) mostra-se adequada a compensar também o sofrimento neste último período de tempo de vida do autor.

Também não há que indemnizar, no presente caso, o “dano morte”. O dano morte é efectivamente um dano autónomo ressarcível e o montante de 70.000,00 euros está dentro dos limites que a jurisprudência actual o tem fixado – cfr., entre muitos outros o acórdão do Supremo Tribunal de justiça de 31-5-2012, proferido no processo n.º 14143/07.6TBVNG.P1.S1, que fixou o dano morte no montante de 80.000,00 (oitenta mil euros) “(…) Recorda-se no já citado acórdão de 31 de Janeiro de 2012 que “a compensação atribuída tem oscilado nos últimos anos entre os 50 e os 80 mil €, com ligeiras e raras oscilações para menos ou para mais (cfr, a título de mero exemplo, os acórdãos do STJ de 10/1/08 (Revª 3716/07-6ª) e 24/6/08 (Revª 1185/08 - 6ª), ambos desta conferência de juízes, de 8/9/11 (Revª 2336/04.2TVLSB.L1.S1-2ª) e de 27/9/11 (Revª 425/04.2TBCTB.C1.S1-6ª).”.
Contudo, no presente caso, não está provado que a morte tenha sido consequência da paralisia cerebral e, portanto, do facto ilícito (demora na extracção do feto) imputado ao réu.
Como refere a sentença, a morte foi causada por “problemas respiratórios, muito frequentes na parte final da sua vida” tendo ocorrido, por outro lado, mais de dez anos após tal lesão (facto n.º 53). Não está demonstrado – como decorre de toda a matéria de facto dada como provada - que a morte tenha surgido por causa das lesões sofridas durante o parto, sendo que o ónus da prova do nexo de causalidade, relativamente a todos os danos alegados é do lesado – cfr. art. 342º, 1 do C. Civil, acórdão deste STA de 15-5-2014, proferido no recurso 01504/13 e ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, Código Civil anotado, Coimbra, 1982, pág. 303: “são factos constitutivos do direito invocado pelo autor, por exemplo, os pressupostos da responsabilidade civil: o facto, a ilicitude do facto, a culpa, o dano e o nexo de causalidade.
Assim, relativamente ao dano morte, por falta de nexo de causalidade adequada, não deve o mesmo ser imputado ao réu e, portanto, não há que atribuir qualquer indemnização a esse título.


3. Decisão
Face ao exposto, os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo acordam em conceder parcial provimento ao recurso e consequentemente:

a) Revogar a sentença recorrida na parte em que fixou a indemnização de 70.000,00 euros, relativamente ao “dano morte” e de 40.000,00 euros a título de danos morais relativos aos danos imediatamente precedentes e contemporâneos à morte do “autor”;

b) Manter em tudo o mais a sentença recorrida.

Custas pelos autores (herdeiros habilitados) e réu na proporção do respectivo decaimento.
Lisboa, 10 de Setembro de 2014. – António Bento São Pedro (relator) – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – Vítor Manuel Gonçalves Gomes.