Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01005/10
Data do Acordão:03/30/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:MIRANDA DE PACHECO
Descritores:FUNDAMENTAÇÃO
IRS
AJUDAS DE CUSTO
Sumário:I - O direito à fundamentação do acto tributário, ou em matéria tributária, constitui uma garantia específica dos contribuintes e, como tal, visa responder às necessidades do seu esclarecimento, procurando-se informá-lo do itinerário cognoscitivo e valorativo do acto por forma a permitir-lhe conhecer as razões de facto e de direito que determinaram a sua prática e porque motivo se decidiu num sentido e não noutro.
II - Está suficientemente fundamentada a liquidação adicional de IRS que permite ao contribuinte um perfeito conhecimento das razões que levaram a AT a considerar certo percebimento como vencimento, logo, passível de tributação, e não como ajudas de custo.
Nº Convencional:JSTA000P12777
Nº do Documento:SA22011033001005
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1 – A Fazenda Pública vem recorrer da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que julgou procedente a impugnação deduzida por A…, melhor identificado nos autos, contra o acto de liquidação adicional de IRS e juros compensatórios, referente ao ano de 1993, no valor global de 645.625$00, formulando as seguintes conclusões:
1) Como resulta da matéria de facto dada como provada pela douta sentença, ao impugnante foi dado a conhecer que a sua entidade patronal «B…, SA» (adiante designada B…), NIPC …, com sede na Av. …, freguesia de S. Jorge de Arroios, concelho de Lisboa, área do 4° Bairro Fiscal de Lisboa, foi objecto de uma acção de fiscalização.
II) No âmbito daquela acção de fiscalização consideraram os serviços de inspecção da DGCI que determinados montante pagos pela B…, identificados por esta sociedade como “ajudas de custo” assumiam “a natureza de complemento de remuneração”.
III) Essas “ajudas de custo” que foram consideradas pelos serviços de inspecção como “complemento de remuneração’ eram no montante de 1.371.580$00 no que concerne ao ora impugnante.
IV) Tudo isto foi dado a conhecer ao impugnante que, assim, sabe que o montante objecto de correcção 1.371.580$00 é o correspondente às importâncias que lhe foram pagas pela B… no ano em causa, identificadas pela B… como “ajudas de custo.”
V) Encontrando-se, deste modo perfeitamente individualizada a situação do impugnante.
VI) As ajudas de custo visam compensar o trabalhador por despesas efectuadas ao serviço e em favor da entidade patronal e que, por razões de conveniência, foram suportadas por aquele.
VII) Ora, a Administração Tributária, como consta do relatório que serve de fundamento à liquidação impugnada, entendeu individualizando a situação concreta que o montante de 1.371.580$00 recebido pelo impugnante da sua entidade patronal, não obstante haver sido pago por esta como referente a pagamento de ajudas de custo, na realidade se refere a pagamentos de natureza remuneratória,
VIII) Corolariamente, conclui-se que tais rendimentos se enquadram na categoria A/IRS, por força do disposto no Art.º 2° do respectivo Código.
IX) Com efeito, nos termos do artigo 82° n.º 3 do DL n.º 49.408, de 24/11/69 (LCT), “Até prova em contrário, presume-se constituir retribuição toda e qualquer prestação da entidade patronal do trabalhador.”
X) E não obstante não serem considerados remuneração os montantes pagos como ajudas de custo, estabelece o art. 87° do LCT que terão carácter retributivo os abonos que excedam as despesas normais.
XI) Em consonância com este regime, estabelece o art. 2° do CIRS que incide imposto sobre qualquer tipo de rendimentos de trabalho, excluindo as ajudas de custo que não excedam os limites legais.
XII) Deste modo, para ficar afastada a incidência do imposto sobre aquele montante, seria necessário que, o mesmo, não só fosse “qualificado” como ajudas de custo pela entidade patronal, como também que preenchesse os requisitos legais indispensáveis a ser considerado como ajuda de custo, de molde a sair do campo de incidência previsto no art. 2° do CIRS.
XIII) Prova essa que incumbiria ao impugnante (ao qual a fundamentação do acto deu a conhecer as razões que lhe permitiam reagir contra o mesmo) caso com ele não se conformasse, uma vez que a inspecção tributária indicou que o montante omitido correspondia efectivamente a remuneração, com indicação dos correspondentes preceitos legais ao abrigo dos quais deveriam aquelas importâncias ser tributadas, cumprindo as exigências de fundamentação do art. 268° n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP), e os requisitos previstos no artº. 82° do Código de Processo Tributário.
XIV) Como referido no relatório de inspecção, aqueles pagamentos assumem um carácter remuneratório.
XV) De facto, como sucede para a generalidade dos trabalhadores da B…, não são pagos apenas de forma ocasional como sucederia no caso de reembolsos de despesas, mas têm características que indicam um carácter de remuneração permanente e de compensação pela prestação de trabalho na empresa: são permanentes; são pagos ao longo dos 12 meses do ano; constam dos recibos; têm um valor elevado face ao valor da remuneração base.
XVI) Adicionalmente não mostra comprovado que aqueles valores, nomeadamente quanto ao que respeita ao impugnante, constituem efectivamente o reembolso de despesas efectuadas ao serviço e em favor da entidade patronal e que, por razões de conveniência, foram suportadas por aquele, porque, como consta do supra mencionado relatório, não são apresentadas discriminações dos percursos, dias em que são efectuados e serviços realizados.
XVII) Ou seja, não obstante serem qualificados/contabilizados pela B… como “ajudas de custo” nenhum elemento de conexão existe entre aqueles pagamentos e verdadeiras ajudas de custo.
XVIII) Devendo concluir-se, contrariamente ao decidido pela douta sentença recorda, que a exigência legal de fundamentação se encontra cumprida, tendo sido dado a conhecer o modo e as razões porque decidiu nos termos em que se decidiu proceder à correcção ora em crise.
XIX) Sendo que a fundamentação do acto de liquidação é clara, pois permite que se apreendam com precisão os factos e o direito com base nos quais se decidiu, é suficiente, pois possibilita ao seu destinatário um conhecimento concreto da motivação do acto, isto é, as razões de facto e de direito que determinaram a Administração Tributária a actuar como actuou, e é congruente, pois constitui a conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação.
XX) Assim encontra-se detalhadamente demonstrado o iter valorativo e cognoscitivo que levou a Administração Fiscal a decidir da forma como decidiu, não podendo deixar de se considerar que se encontra a decisão fundamentada, pelo menos no aspecto formal.
XXI) Questão diversa, seria se a douta sentença entendesse que a fundamentação substancial era incorrecta, isto é que os motivos indicados pela Administração Tributária não permitiam considerar que o valor corrigido respeitava a remunerações e não a ajudas de custo.
XXII) E designadamente se fosse apreciada a discordância do impugnante relativa às correcções preconizadas, e produzida prova que o impugnante recebeu aquelas “ajudas de custo” por despesas efectivamente efectuadas no interesse da empresa e não a título remuneratório.
XXIII) Porém, essa apreciação material não foi objecto da sentença.
XXIV) Nestes termos, a sentença recorrida, que apenas considerou não existir fundamentação formal, decidindo que não existia, não deve ser confirmada.
XXV) A sentença recorrida, ao assim não entender, apresenta-se ilegal por desconformidade com os preceitos acima assinalados, não merecendo por isso ser confirmada.
2 – Não foram apresentadas contra-alegações.
3 – O Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer nos seguintes termos:
“Objecto do recurso: sentença declaratória da procedência de impugnação judicial deduzida contra liquidação de IRS (ano 1993) no montante de Esc. 645 625$00.
FUNDAMENTAÇÃO
1. O princípio constitucional da fundamentação dos actos administrativos (art. 268° n°3 CRP) foi densificado nos arts. 124° e 125° CPA e no art. 77° n°s 1 e 2 LGT (acto administrativo tributário)
O dever legal de fundamentação do acto administrativo cumpre uma dupla função:
-endógena, ao exigir ao decisor a expressão dos motivos e critérios determinantes da decisão, assim contribuindo para a sua ponderação e transparência
-exógena, ao permitir ao destinatário do acto uma opção esclarecida entre a conformação e a impugnação graciosa ou contenciosa
Segundo ensinamento pacífico da doutrina e da jurisprudência a fundamentação do acto administrativo há-de ser:
-expressa, traduzida na exposição sucinta dos fundamentos de facto e de direito da decisão
-clara, permitindo que pela leitura do seu teor se apreendam com precisão os factos e as normas jurídicas conducentes à decisão
-suficiente, permitindo um conhecimento concreto da motivação da decisão
-congruente, por forma a que a decisão seja a conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação
As características enunciadas são exigência da fundamentação formal do acto tributário; sendo distintas da chamada fundamentação substancial, a qual deve exprimir a real verificação dos pressupostos de facto invocados e a correcta interpretação e aplicação das normas indicadas como fundamento jurídico.
2. No caso sob análise:
a) a fundamentação do acto tributário observou as características legais e cumpriu a sua dupla função endógena/exógena, nos termos supra enunciados.
b) o discurso jurídico da sentença, ao apreciar a questão da falta de fundamentação formal do acto tributário, efectua remissão para excerto de acórdão do TCA - Sul o qual, apesar de discorrer sobre aquele vício de forma, questiona a ausência de comprovação dos pressupostos de facto invocados pela administração tributária para o acto tributário, por isso apreciando obliquamente um vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto (cf designadamente 11 fls. 152)
3. O probatório da sentença é insuficiente para pronúncia do STA sobre a questão prejudicada do vício de violação de lei, eventualmente por falta de inquirição das testemunhas arroladas (despacho fls. 116; art. 715º n°2 CPC)
CONCLUSÃO
O recurso merece provimento.
A sentença impugnada deve ser revogada e substituída por acórdão com o seguinte dispositivo:
-declaração de inexistência de vício de forma do acto tributário (por falta de fundamentação)
-devolução do processo ao TF Sintra para apreciação do vício de violação de lei.”
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
4-A sentença recorrida fixou a seguinte matéria de facto:
A) O Impugnante foi notificado da liquidação adicional de IRS n.º 4323362511, relativa ao ano de 1993, no total a pagar: 645 625$00, com data limite de pagamento: 08/02/1999 - cfr. fls. 18;
B) A liquidação, referida em A, foi efectuada na sequência e com base numa fiscalização ao Impugnante, no termo da qual foi elaborada, em 28/10/1998, a seguinte informação:
“No decurso da fiscalização efectuada ao contribuinte «B…, SA», NIPC …, com sede na Av. …, freguesia de S.. Jorge de Arroios, concelho de Lisboa, área do 4.° Bairro Fiscal de Lisboa, determinada pelas Ordens de Serviço n.º 68877 a 68880, de 23/05/96, foram detectadas algumas situações anómalas relativas a IRS, acerca das quais me cumpre informar o seguinte:
1. A referida empresa pagou no ano de 1993 aos seus funcionários remunerações constituídas por diversas componentes de cuja análise se concluiu apenas não terem sido sujeitas a tributação por retenção na fonte as «ajudas de custo».
2. No entanto, depois de analisadas as condições de atribuição das referidas «ajudas de custo», concluiu-se de forma inequívoca que estas assumem a natureza de complemento de remuneração, pelos diversos motivos que se passam a expor:
a) têm carácter permanente
b) são pagas pela totalidade dos dias de calendário ao longo dos 12 meses do ano (Assim poderá verificar-se o absurdo de uma pessoa estar em ajudas de custo de 1/Jan.° a 31/Dez.°)
c) encontram-se incluídas nos recibos de ordenados
d) não são apresentadas discriminações dos percursos, dias em que são efectuados e serviços realizados
e) aparecem sob duas ou mais designações («aj.custo» + «aj. custo suplementar»), de forma a que, numa primeira abordagem se conclua não terem sido excedidos os limites máximos permitidos para efeitos de exclusão de tributação
f) em termos globais, têm um valor muito elevado face ao montante da remuneração-base
Trata-se, com efeito, de rendimentos da categoria A, enquadráveis na al. e) do n.º 3 do Art.. 2.° do CIRS, pelo que esses valores devem ser acrescidos às restantes verbas sujeitas a retenção na fonte, atribuídas a cada empregado.
1. Mais se informa que a entidade pagadora, para além de não ter efectuado retenção na fonte sobre essas importâncias, não fez constar a referida verba na declaração a que se refere a al.c) do n.º 1 do art. 114.º do CIRS (modelo 10), uma vez que não a entregou.
2. Relativamente ao empregado supra identificado, e face aos valores declarados, verifica-se que terão de ser acrescidas as seguintes importâncias:
«ajudas de custo)> (complemento de remuneração) - a tributar: 1 371 580$00
Pelo facto de, nos termos do n.º 2 do art. 96.” do CIRS, com a redacção que lhe foi dada pelo Dec-Lei 267/91, de 6 de Agosto, caber ao titular dos rendimentos a responsabilidade originária do pagamento do imposto não retido, foi elaborado o respectivo mapa D C-1/D C-2
..28 de Outubro de 1998
A.P.F.T. de 2.” classe (N.° 11029)
M…”— cfr. informação a fls. 19;
C) A liquidação, referida em A, foi paga - cfr. informação de fls. 57 do processo administrativo tributário apenso;
D) Em 07/05/1999, foram apresentados os presentes autos de impugnação - cfr. carimbo, a fls. 2.
5- A sentença sob recurso, com fundamento em vício de forma por falta de fundamentação, anulou a liquidação adicional de IRS e juros compensatórios referente ao ano de 1993, em consequência do que, por se entender prejudicado, não foram objecto de conhecimento os vícios de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito, errónea qualificação e quantificação dos rendimentos que também lhe vinham assacados.
Para tanto, ponderou-se na decisão que a fundamentação que fora aduzida em suporte dessa liquidação adicional era manifestamente insuficiente, obscura e contraditória, uma vez que não indicava com clareza e congruência os seus elementos de facto e de direito, assentando em meros juízos conclusivos.
Contra o assim decidido se insurge a recorrente Fazenda Pública, sustentando, no essencial, que a fundamentação indicada pela Administração Tributária revelava o iter valorativo e cognoscitivo que conduziu ao entendimento que o valor corrigido respeitava a remunerações e não a ajudas de custo.
Vejamos.
O direito à fundamentação do acto tributário, ou em matéria tributária, constitui uma garantia específica dos contribuintes e, como tal, visa responder às necessidades do seu esclarecimento, procurando-se informá-lo do itinerário cognoscitivo e valorativo do acto por forma a permitir-lhe conhecer as razões de facto e de direito que determinaram a sua prática e porque motivo se decidiu num sentido e não noutro.
Tem, aliás,"o dever legal de fundamentação, a par de uma função exógena- dar conhecimento ao administrado das razões da decisão, permitindo-lhe optar pela aceitação do acto ou pela sua impugnação-, uma função endógena consistente na própria ponderação do ente administrador, de forma cuidada e séria" (acórdão de 02-02-06, recurso n.º 1114/05-30).
Neste sentido, a fundamentação deve externar, de forma sucinta, os elementos e critérios de facto e de direito que serviram de suporte à decisão tomada, por forma a possibilitar aos interessados uma opção consciente entre a aceitação da legalidade do acto e a sua impugnação contenciosa (artigo 77.º n.º 1 da LGT).
Fundamentação essa que tem de ser contextual, ou seja contemporânea e integrada no próprio acto, ainda que sob forma remissiva, na perspectiva da respectiva sindicabilidade na via contenciosa.
Ora, no caso que nos ocupa, ao invés do que se entendeu na sentença recorrida, a fundamentação produzida revela com clareza e de forma circunstanciada as razões que permitiram a AT a considerar certas importâncias recebidas pelo ora recorrido não como ajudas de custo mas sim como vencimento, logo, passível de tributação.
De facto, como se alcança do probatório, o que vem elencado sob as alínea a) a f) da fundamentação produzida não permite quaisquer dúvidas quanto às razões que levaram a AT a considerar certo percebimento como complemento remuneratório e não como ajudas de custo e tanto assim é que o ora recorrido na impugnação judicial que deduziu atribui à liquidação adicional em causa vícios de violação de lei que denotam um perfeito e cabal conhecimento dos motivos que conduziram às correcções efectuadas.
Questão diversa, mas que não foi enfrentada na sentença, é saber-se do eventual acerto do entendimento perfilhado pela AT.
Impõe-se, portanto, concluir que a liquidação adicional impugnada se mostra fundamentada com suficiência bastante.
Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso, revogando-se, em consequência, a sentença recorrida, baixando os autos ao TAF de Sintra para conhecimento dos vícios de violação de lei atribuídos à liquidação, se a tal nada mais obstar.
Sem custas.
Lisboa, 30 de Março de 2011. – Miranda de Pacheco (relator) – Dulce Neto – António Calhau.