Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0984/18.2BEAVR
Data do Acordão:09/11/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:ERRO DE CÁLCULO
ERRO DE ESCRITA
ERRO MANIFESTO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24870
Nº do Documento:SA1201909110984/18
Data de Entrada:07/17/2019
Recorrente:DIRECÇÃO GERAL DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA
Recorrido 1:A..........,SA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
1. RELATÓRIO

O Ministério da Justiça, inconformado com a decisão proferida no TCA Norte, em 01.02.2019 [e em 19.11.2019, relativa à sustentação das nulidades] que lhe negou provimento ao recurso interposto da decisão de 1ª instância, que no âmbito da presente acção de contencioso pré-contratual, relativo ao concurso público para aquisição de equipamentos informáticos ao abrigo do Acordo Quadro para Aquisição e Aluguer Operacional de Equipamento Informático intentada pelas ora recorridas B…….. S.A. e A……., S.A, [em consórcio] contra a C………., Ldª, julgou a acção procedente e, nesta procedência, considerando verificar-se uma situação de impossibilidade absoluta da satisfação dos interesses das autoras, convidou as partes, nos termos do disposto no artº 45º, nº 1, al. d) do CPTA, a acordarem, no prazo de 30 dias, no montante da indemnização devida, interpôs o presente recurso.

Apresentou, para o efeito, as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:

«Quanto à matéria de direito, entende o Recorrente, nos termos da alínea b) do nº 2 do artigo 639º do CPC ex vi do nº 3 do artigo 140º e do artigo 1º do CPTA, que:

a. Mal andou o tribunal a quo ao considerar que, nos termos do nº 1 do artigo 12º do Decreto-Lei nº 111-B/2017, de 31 de agosto, era aplicável ao caso dos autos o Código dos Contratos Públicos, na redação anterior à entrada em vigor desse diploma;

b. Nos termos do citado artigo, ao contrário do decidido no douto acórdão recorrido, é aplicável ao caso sub judice o Código dos Contratos Públicos na redação dada pelo Decreto-Lei nº 111-B/2017, de 31 de agosto, uma vez que a decisão de contratar foi tomada em 16 de abril de 2018;

c. A errada aplicação da sobredita norma transitória aos factos do caso consubstancia fundamento de revista, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 674º do CPC aplicável “ex vi” do nº 3 do artigo 140º do CPTA;

d. Pelo mesmo motivo é nulo o douto Acórdão recorrido, na medida em que a lei processual, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 615º, do nº 1 do artigo 666º e da alínea c) do nº 1 do artigo 674º, todos do CPC, aplicáveis “ex vi” do nº 3 do artigo 140º do CPTA, lhe atribui esse desvalor quando os respetivos fundamentos estão em oposição com a decisão;

e. A errada determinação das normas aplicáveis – quando se cerceou ao caso dos autos a aplicação das normas corretas e se concluiu ser de aplicar o “antigo” CCP constitui também fundamento da revista, nos termos do que vem previsto na parte final da alínea a) do nº 1 do artigo 674º do CPC, aplicável “ex vi” do nº 3 do artigo 140º do CPTA;

f. O erro de escrita, ou lapsus calami, pressupõe a existência de um erro ostensivo na declaração negocial, de tal maneira evidente e notório para qualquer declaratário de boa-fé, que seria ilegal não permitir ao declarante a sua retificação;

g. A invocação de um lapsus calami num documento onde se menciona um prazo de assistência técnica de 36 meses ao invés dos 48 meses exigidos para assistência técnica aos bens fornecidos, não colhe. Além de não haver identidade entre os algarismos, como seria o caso de se indicar um prazo, por exemplo, de “84 meses”, “44 meses” ou de “480 meses”, há a evidência de que são indicados dois prazos que correspondem a períodos de tempo muito concretos – a 48 meses correspondem 4 anos e a 36 meses correspondem 3 anos;

h. Termos em que não seria objetivamente exigível ao júri do procedimento a obrigação de reconhecer um manifesto erro de escrita;

i. A aceitação de tal tese – a que aderiu o douto aresto recorrido – consubstancia uma leitura errada da figura do manifesto erro de escrita e a fixação de jurisprudência nesse sentido pode ter efeitos particularmente graves em sede de contratação pública, e levar a um uso abusivo daquela figura;

j. Não basta uma invocação de manifesto erro de escrita ante uma divergência entre dois documentos, qualquer que ela seja, para se considerar que o mesmo existe. Forçoso será demonstrar que o erro é ostensivo e manifesto;

k. A haver algum erro, seria o da própria declaração negocial previsto no artigo 247.º do CC, cujo regime só seria aplicável caso se demonstrasse a essencialidade do erro e a cognoscibilidade do mesmo pelo declaratário. É a própria argumentação das recorridas que nos permite aferir que, caso conhecessem o erro, concluiriam ainda assim o negócio – inexistindo assim a essencialidade necessária para a aplicação do regime previsto no artigo 247.º do CC;

l. Como reconhecido pela jurisprudência e pela doutrina, a declaração elaborada em conformidade ao anexo I ao CCP, obrigatória em todos os procedimentos de contratação nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 57º do mesmo código, não tem o efeito de sanar eventuais divergências entre todos os restantes documentos da proposta. Tal entendimento esvaziaria de sentido o disposto na alínea b) do nº 2 do artigo 70º do CCP, interpretação que é vedada ao intérprete e aplicador por força do nº 2 do artigo 9º do CC;

m. O mero preenchimento das células dos preços de cada item constitutivo do valor da proposta num ficheiro onde todas as restantes estão bloqueadas para edição, incluindo a que continha a menção a 48 meses de assistência técnica, não será idóneo para se justificar um erro de escrita, se no caso se apresentou voluntariamente outro documento divergente com aquele. Não é por isso que um erro se torna mais ou menos ostensivo, mais ou menos evidente;

n. Só haveria essa relação de contexto se existisse um nexo de causalidade razoável e adequado entre o documento errado e o documento certo;

o. Efetivamente, o animus negocial subjacente à elaboração de um documento ex novo, deliberada e voluntariamente entregue, será superior ao animus negocial inerente ao mero preenchimento do valor unitário de um item constitutivo do preço de uma proposta;

p. Inexiste assim, nos presentes autos, matéria de facto que justifique o preenchimento da previsão normativa contida no artigo 249º do CC, o que acabou por determinar uma errada aplicação do direito ao caso vertente;

q. O que atesta e fundamenta assim a pertinência da presente revista, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 674.º do CPC, aplicável ex vi do nº 3 do artigo 140º do CPTA;

r. Mal andou o honorável tribunal a quo ao entender que a factualidade assente nos presentes autos era subsumível à previsão do artigo 72º do CCP, daí retirando que ao incumprir o dever de pedir esclarecimentos, o júri do procedimento e o ato de homologação do relatório final violaram os princípios da boa-fé, confiança, proporcionalidade e inquisitório;

s. Toda esta questão vem prejudicada, está claro, pelo facto de não existir qualquer erro manifesto de escrita, como antedito;

t. E se existisse, seria aplicável o nº 4 do artigo 72º do CCP, que o legislador – e bem – passou a prever em 2017, estatuindo que nesses casos é oficioso o suprimento do erro. Porque o erro teria de ser ostensivo e de tal maneira evidente para qualquer declaratário de boa-fé, que a sua correção oficiosa não ofenderia os princípios basilares da contratação pública, como a concorrência, igualdade de tratamento, comparabilidade e intangibilidade das propostas.

u. Consubstancia, portanto, errada aplicação do direito, defender-se que existe um dever de pedido de esclarecimentos perante um manifesto erro de escrita – o suprimento desse tipo de erros deve ser oficioso.

v. Ainda assim, o que se equaciona por dever de ofício, nem o suprimento oficioso (n.º 4 do artigo 72.º do CCP), nem o dever de esclarecimentos (nº 3 do artigo 72º do CCP) se aplicaria ao caso vertente por não se verificarem as previsões normativas dos aludidos preceitos;

w. Ademais, e perante a evidência de não haver sequer erro manifesto de escrita, a utilização dessas figuras não passariam o crivo do nº 2 do artigo 70º do CCP – a alteração contrariaria os elementos constantes da proposta original;

x. Como é bom de ver, na vasta jurisprudência que admite a existência de lapsus calami de uma proposta e a conota com o suprimento do mesmo em sede de contratação pública, há sempre um nexo de causalidade razoável e adequado entre a declaração originária e a retificação do erro – nexo esse que não existe no caso vertente;

y. Ao contrário do julgado pela douta decisão recorrida, o documento que originou a divergência na proposta não era de apresentação obrigatória, inabilitando a utilização da douta jurisprudência no mesmo citada;

z. Ainda para mais, porque a redação da norma debatida em juízo – artigo 72º do CCP - sofreu importantes alterações com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 111-B/2017, de 31 de agosto;

aa. Atualmente, de iure condito (parte final do nº 2 do artigo 72º do CCP), se um concorrente não apresentar um documento obrigatório que o vincule a um termo ou condição – por exemplo, 48 meses para assistência técnica – verá a sua proposta excluída, estando vedado qualquer pedido de esclarecimentos;

bb. Já se, nessa hipótese, um concorrente apresentar um documento divergente – 36 meses – bastaria a invocação de manifesto erro de escrita para que, na tese da douta decisão recorrida, lhe assistisse o direito a ser consultado em sede de esclarecimentos;

cc. Ainda mais grave será a aplicação de tal regra à situação sub judice onde se verifica que, não sendo a entrega de tal documento obrigatório, foi esclarecida e livremente apresentado um documento assinado pelo chefe do consórcio concorrente que, legitimamente e imbuído de um animus negocial acrescido, entendeu se vincular aos termos da execução do contrato com que se propunha a celebrar um contrato no futuro;

dd. Esta solução é, a nosso ver e com o devido respeito, que é muito, altamente questionável na ótica da coerência e unidade do nosso ordenamento jurídico, aspeto que deve ser atendido em qualquer exercício de interpretação jurídica nos termos do nº 1 do artigo 9º do CC;

ee. Pelo que, também relativamente à censura que fez do comportamento do júri, mal andou o douto Acórdão recorrido, o qual deverá ser anulado por erro de julgamento originado por uma errada aplicação do direito ao caso dos autos, nos termos da alínea a) do nº 1, do artigo 674º do CPC, aplicável ex vi do nº 3 do artigo 140º e do artigo 1º do CPTA».


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Notificadas as recorridos, vieram as mesmas [B……S.A. e A…….., S.A.] contra alegar, no sentido da improcedência do recurso, formulando apenas as seguintes conclusões:

«i) A motivação e conclusões invocadas pelo recorrente não asseguram os pressupostos necessários à admissão do recurso excepcional de revista, pelo que não deve ser admitido.

Sem conceder,

ii) O douto acórdão recorrido decidiu de forma justa, fazendo boa aplicação do direito, concluindo em alcançando decisão que deve ser mantida na íntegra».


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O «recurso de revista» foi admitido por acórdão deste STA [formação a que alude o nº 5 do artigo 150º do CPTA], proferido a 26 de Junho de 2019.

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O Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146º, nº 1 do CPTA, emitiu o parecer no sentido da procedência do recurso, parecer este que notificado aos sujeitos processuais, mereceu resposta discordante por parte das recorridas.

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Sem vistos, cumpre decidir.

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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. MATÉRIA DE FACTO

Remete-se a matéria de facto para os termos da decisão recorrida, nos termos do disposto no artº 663º, nº 6 do CPC.


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2.2. O DIREITO

As autoras, ora recorridas, B………. S.A. e A………, S.A., intentaram, no TAF de Aveiro, contra o Ministério da Justiça, a presente acção de contencioso pré contratual, pedindo a “anulação dos actos de homologação do relatório final, de adjudicação e, ainda, do contrato entretanto celebrado, uma vez que o acto de exclusão da proposta por si apresentada padece de ilegalidade, por violação de lei”.

O TAF julgou a acção procedente mas, considerando verificar-se uma situação de impossibilidade absoluta de satisfação dos interesses das autoras, convidou as partes, nos termos do disposto no artº 45º/1/d) do CPTA, a acordarem, no prazo de 30 dias, no montante da indemnização devida.

E o TCA Norte, para onde o Réu apelou, confirmou essa decisão, sendo deste acórdão que o Ministério da Justiça ora recorre.

Vejamos, fazendo um breve enquadramento, tendo em consideração o feito constar no Acórdão que admitiu a revista:

O Ministério da Justiça, no âmbito do “Acordo Quadro para aquisição e aluguer operacional de equipamento informático”, convidou os interessados a apresentarem propostas para a aquisição de 153 computadores de secretária, tendo o respectivo Caderno de Encargos estabelecido que a proposta deveria conter uma Declaração de aceitação do conteúdo do convite e de um ficheiro - apelidado “PAQ_146_2018_Computadores_T+_Lote 2_AQ_ Proposta.xls” - donde constasse o preço unitário proposto para cada item identificado, a sua marca e modelo e o prazo de entrega proposto. Fixando, também, que o critério de adjudicação seria o da proposta economicamente mais vantajosa.

As Autoras apresentaram uma proposta onde, sob compromisso de honra, declararam (1) que se obrigavam “a executar o referido contrato em conformidade com o conteúdo do mencionado caderno de encargos, relativamente ao qual declara aceitar, sem reservas, todas as suas cláusulas” - dele constando uma cláusula que obrigava à prestação de um serviço de assistência técnica por 48 meses – e (2) que asseguravam um “serviço de assistência técnica pelo período de 36 meses, sendo o período de garantia contado a partir da data de entrega dos produtos.” – negrito nosso.

O júri do concurso, face à desconformidade entre o período de assistência técnica exigido no Caderno de Encargos - 48 meses – e o período que a proposta das Autoras asseguravam – 36 meses – e, portanto, tendo em conta a apontada divergência, propôs a exclusão da proposta das Autoras e a adjudicação à proposta da contra-interessada C………., Ldª. o que, tendo sido aceite, determinou a prática do acto impugnado e a celebração do correspondente contrato, o qual já se encontra executado.

Inconformadas, as Autoras instauraram esta acção alegando que a sua proposta padecia de “manifesto e evidente erro de escrita” já que dela constava que o prazo de assistência técnica que asseguraria era de 36 meses, quando pretendia dizer que esse prazo era de 48 meses por ele ser o imposto pelo CE e ter declarado, sob compromisso de honra, que o iria cumprir. E que, sendo assim, impunha-se desvalorizar esse erro ou solicitar os esclarecimentos permitidos pelo art.º 72º do CCP e classificar a sua proposta como se ele não existisse.

Ao não o fazer, o réu violou o disposto no art.º 146º/2/o) daquele Código já que excluiu a sua proposta sem qualquer fundamento legal.

O TAF julgou a acção procedente pelas razões que se destacam:

“Na situação em apreço, como vimos, a proposta apresentada pelas AA. contém um prazo de garantia/assistência técnica de 36 meses ... mas, como a tal estava obrigada, também declara aceitar, sem reservas, todas as cláusulas do caderno de encargos; e, no documento .... inclui a proposta de preço unitário e total para o item “Serviços adicionais (Assistência Técnica) // Assistência técnica - 48 meses .....

Ora, da factualidade assente e tendo presente o enquadramento jurídico exposto, o Tribunal julga que a menção a 36 meses constante do documento ... se trata, de um evidente e manifesto erro de escrita.

Com efeito, se considerarmos todos os documentos que compõem a proposta das AA. como um todo, a verdade é que só o documento com a referência Proposta nº JV.01-180424 é que apresenta essa desconformidade com o caderno de encargos. E, se é certo que apenas este é da total autoria das AA., é, também, evidente que não era obrigatório; também não é despiciendo constatar que no preenchimento do documento ...... onde se mencionam os 48 meses - pese embora, a alegação de que este campo estivesse pré-preenchido e não fosse editável – a verdade é que essa premissa estava presente quando as AA. ali apuseram o seu preço unitário/total para a prestação de tal serviço, dessa forma acordando – declarando, ainda que implicitamente – com o prazo ali consignado.

Destarte, tendo presente que os erros de escrita são os que se detectem e se identifiquem como tais pelo e no seu contexto e que respeitem à expressão material da vontade do declarante, considerando os documentos que integram a proposta das AA. como um todo, o Tribunal conclui que o prazo incluído no documento com a referência Proposta nº JV.01-180424 se trata de um evidente lapso de escrita, cuja rectificação deveria ter sido, a esta luz, admitida.

........”.


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O Ministério da Justiça apelou para o TCA mas este confirmou a sentença recorrida pelas razões seguintes:

“......

No caso presente, a proposta apresentada pela B……… integrava, entre os demais, dois documentos que não deixavam margem para qualquer dúvida de que, em face do seu teor, a mesma se obrigava a prestar a assistência técnica por 48 meses

O que se retira, sem margem para qualquer dúvida intrínseca, de dois dos documentos que deviam integrar, e integravam, a proposta e relembra-se: (i) A declaração de aceitação dos termos do caderno de encargos e a obrigação de executar o contrato em conformidade com tal peça do procedimento, ou seja, obrigou-se a prestar assistência técnica por 48 meses; e (ii) Um documento em Excel, denominado “PAQ_146/2018.Computadores_T+Lote2:proposta”, pelo qual apresenta para a assistência técnica o prazo de 48 meses.

O júri do concurso, todavia, ignorando tais documentos integrados na proposta, entendeu haver uma desconformidade, porque a concorrente apresentou “... no ficheiro Excel que acompanha a proposta um prazo de 36 meses, violando, assim, o princípio da comparabilidade das propostas, nos termos unanimemente considerados pela Jurisprudência.”

Trata-se, como bem julgou o Tribunal a quo, de evidente lapso de escrita exarado naquele complementar documento, não obrigatório, uma vez que, em face dos restantes documentos que integram a proposta, designadamente os dois acima identificados, tal erro se mostra facilmente detectável e identificável como tal, pelo contexto da declaração negocial consubstanciada na proposta integrada por tais documentos, sem os quais não existe, sequer, proposta completa.

......

Para o preenchimento daquela permissão de correcção consideram-se como lapsos de escrita os que sejam ostensivos, facilmente detectáveis e identificáveis como tais pelo contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita e que respeitem à expressão material da vontade (já não os que possam ter influenciado a formação dessa vontade).

..........

Analisando a conduta do R. à luz do enquadramento doutrinário exposto, o Tribunal conclui que, face à posição do R. de considerar não existir um evidente erro de escrita - e consequentemente, não admitir a sua rectificação - e, ainda assim, perante uma divergência nos elementos que compõem a proposta (que, no seu entender, não é motivada por erro de escrita manifesto), decide não solicitar quaisquer esclarecimentos às AA. ao abrigo do disposto no artigo 72° do CCP, este violou, os princípios da boa-fé e confiança, da proporcionalidade e inquisitório.”


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O recorrente, Ministério da Justiça, não se conforma com esse julgamento alegando em suma:

- A errada determinação das normas aplicáveis – quando se cerceou ao caso dos autos a aplicação das normas corretas e se concluiu ser de aplicar o “antigo” CCP constitui também fundamento da revista, nos termos do que vem previsto na parte final da alínea a) do nº 1 do artigo 674º do CPC, aplicável “ex vi” do nº 3 do artigo 140º do CPTA;

- O erro de escrita, ou lapsus calami, pressupõe a existência de um erro ostensivo na declaração negocial, de tal maneira evidente e notório para qualquer declaratário de boa-fé, que seria ilegal não permitir ao declarante a sua retificação;

- A invocação de um lapsus calami num documento onde se menciona um prazo de assistência técnica de 36 meses ao invés dos 48 meses exigidos para assistência técnica aos bens fornecidos, não colhe. Além de não haver identidade entre os algarismos, como seria o caso de se indicar um prazo, por exemplo, de “84 meses”, “44 meses” ou de “480 meses”, há a evidência de que são indicados dois prazos que correspondem a períodos de tempo muito concretos – a 48 meses correspondem 4 anos e a 36 meses correspondem 3 anos;

Termos em que não seria objetivamente exigível ao júri do procedimento a obrigação de reconhecer um manifesto erro de escrita.


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Ressuma do exposto que a questão que se coloca neste recurso é a de saber se uma proposta deve ser excluída se dela constarem documentos de onde constam prazos diferentes destinados a assegurar a assistência técnica aos bens fornecidos. Foi esta desconformidade que determinou a exclusão da proposta do consórcio formado pelas Autoras já que, por um lado, assinou uma declaração e preencheu um ficheiro onde garantia que asseguraria por um período de 48 meses a assistência técnica dos computadores fornecidos e, por outro, fez constar dessa proposta que essa garantia só abrangia um período de 36 meses.

As instâncias, como se viu, entenderam que não se justificava a referida exclusão por ser evidente que a indicação do prazo de 36 meses constituía um lapso manifesto de escrita e que, por ser assim, o disposto no artº 249° do CC autorizava a que o mesmo pudesse ser oficiosamente rectificado.

Importa, pois, decidir se se justifica este entendimento, tanto mais quanto é certo que a classificação de um determinado erro como grosseiro ou manifesto nem sempre é fácil e, muitas vezes, está envolta em considerações de natureza subjectiva.


*

Vejamos, no entanto, e antes de mais, se o acórdão recorrido padece da nulidade que o recorrente lhe assaca, designadamente por oposição entre os fundamentos de facto e a decisão, nos termos previstos na al. c), do nº 1, do artº 615 do CPC, nulidade esta que o acórdão recorrido negou existir em termos de sustentação.

Verifica-se esta nulidade sempre que os fundamentos de facto e de direito invocados conduzirem logicamente ao resultado oposto àquele que integra o respectivo segmento decisório; ou seja, sempre que os fundamentos de facto e de direito não estejam numa relação lógica em termos de silogismo judiciário, com a decisão; questão diferente e que não se confunde com a referida nulidade, sucede quando existe erro de interpretação dos factos ou do direito aplicado.

Ora, no caso em apreço pode ocorrer erro de julgamento, quer de facto, quer de direito, mas não se verifica a ocorrência da nulidade assacada ao acórdão recorrido, uma vez existe o silogismo lógico entre a factualidade apurada e a decisão final proferida, assim improcedendo a excepção invocada pelo recorrente.


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Quanto ao erro de julgamento:

Invoca o recorrente que o tribunal a quo errou ao considerar que, nos termos do disposto no nº 1 do artº 12º do Dec. Lei nº 111/-B/2017 de 31 de agosto, era aplicável ao caso dos autos, o Código dos Contratos Públicos [CCP], na redacção anterior à entrada em vigor deste diploma, bem como, errou ao aplicar ao caso sub judice o disposto no artº 249º do Código Civil [CC].

Segundo o alegado pelo recorrente, o procedimento contratual em apreço teve o seu início com a autorização de despesa e decisão de contratar mediante despacho de abertura datado de 16.04.2018.

Tal facto, contrariamente ao alegado pelas recorridas, encontra-se dado por provado na alínea B) da factualidade provada, uma vez que ali se dá por integralmente reproduzido o teor do documento correspondente ao “Convite” e do mesmo resulta que a decisão de contratar foi tomada em 16.04.2018.

O artº 12º do DL nº 111-B/2017 de 31 de Agosto, sob a epígrafe “Aplicação no tempo”, dispõe o seguinte: 1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, o presente decreto-lei só é aplicável aos procedimentos de formação de contratos públicos iniciados após a sua data de entrada em vigor, bem como aos contratos que resultem desses procedimentos».

E face ao disposto no artº 13º o referido diploma entra em vigor em 01.01.2018.

Face ao exposto, assiste razão ao recorrido quanto à aplicação ao presente procedimento concursal da versão do CCP na redacção que lhe foi dada pelo DL nº 111-B/2017 de 31 de Agosto, dado que tal facto é referido no “Convite” dirigido para a celebração do contrato, que é quanto basta para concluirmos pela aplicação na nova redacção do CCP.

Porém, no caso dos autos, mais relevante do que apurar qual a versão do CCP a aplicar, o que desde logo importa, é apurar se o acórdão recorrido decidiu bem quando considerou que não se justificava a exclusão da proposta das autoras, ora recorridas, fundamentando para tal “ser evidente que a indicação do prazo de 36 meses constituía um lapso manifesto de escrita e que, por ser assim, o disposto no artº 249º do CC autorizava a que o mesmo pudesse ser oficiosamente rectificado, ou pelo menos solicitada a sua rectificação.

Dispõe o artº 249º do Código Civil, sob a epígrafe “Erro de cálculo ou de escrita”:

“O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta”.

O erro de cálculo ou de escrita distingue-se do erro na declaração uma vez que este constitui uma figura que consubstancia divergência entre a vontade real e a vontade declarada, e a que se chama correspondentemente erro obstativo ou erro-obstáculo.

E este erro na declaração ou erro obstáculo só existe quando, não intencionalmente – v.g., por inadvertência, engano ou equívoco -, a vontade declarada não corresponde a uma vontade real do autor; existente, mas de sentido diverso.

Porém, no artº 249º do CC, supra referido, acolhe-se um princípio geral de direito que se mostra aplicável a todos os erros de cálculo ou de escrita juridicamente relevantes.

Mas, para o preenchimento legítimo daquela premissa importa que, como é entendimento uniforme, se considerem apenas como lapsos de escrita os que sejam ostensivos, aqueles que facilmente se detectem e se identifiquem como tais pelo e no seu contexto e que respeitem à expressão material da vontade e já não os que possam ter influenciado a formação dessa vontade – cfr. entre muitos outros, Acórdão do STA, de 26/06/2014, proferido no âmbito do processo nº 0586/14.

Ou seja, os erros dizem-se, de escrita quando se escreve ou representa, por lapso, coisa diversa da que se queria escrever ou representar, sendo que se consideram manifestos os erros quando estes são de fácil detecção, isto é, quando a própria declaração ou as circunstâncias em que ela é feita permitem a sua imediata identificação – lapsus calami - cfr. artigo 249.º do Código Civil.

O simples erro mecânico, lapso evidente de escrita, é revelado através das circunstâncias em que a declaração é feita. Se as circunstâncias em que a declaração foi efectuada não revelam a evidência do erro e, pelo contrário, permitem a dúvida, não há lugar a rectificação do mesmo, como veremos suceder no caso em apreço.

Feito este enquadramento, será que podemos concluir, como fizeram as instâncias que as autoras, enquanto concorrentes em consórcio, ao proporem no documento apenas elaborado por elas próprias, um período de assistência técnica de 36 meses, queriam afinal propor um período de assistência técnica de 48 meses, sendo que como supra enunciamos, a rectificação apenas é permitida nas situações de lapsus calami?

Conforme se constata do PA, nos termos do nº 1 da cláusula 5ª do Convite à apresentação de propostas, constavam os documentos obrigatórios que cada interessado deveria submeter com a sua proposta:

· Declaração de aceitação do conteúdo do convite, elaborada em conformidade com o modelo do Anexo I do CCP

· Ficheiro excel “PAQ_146_2018_Computadores_T+Lote 2_AQ Propostas.xls”, devidamente preenchido, no qual deve indicar obrigatoriamente o preço unitário para cada item identificado.

Mas as recorridas apresentaram a sua proposta constituída por aqueles dois documentos obrigatórios e ainda por um terceiro documento que foi elaborado e aprovado pelo consórcio.

E foi neste terceiro documento que constava um prazo de assistência técnica de 36 meses, prazo este diferente do prazo obrigatório de 48 meses, fixado pelo CE para a assistência técnica, tal como definido no Anexo A do Convite.

Tal facto determinou a exclusão da proposta apresentado pelas autoras, ora recorridas.

Cumprido o dever de audiência prévia, alegaram as autoras que tal se tinha devido a um lapso de escrita, o que não acolheu fundamento junto do júri do concurso, nos seguintes termos:

«Efectivamente, assiste-se a uma desconformidade quanto ao prazo da assistência técnica proposto pelo 1º classificado, em virtude de apresentar na sua propostas um prazo de 36 meses para o serviço de assistência técnica – em contradição, portanto, com os termos e condições do caderno de encargos, sendo que este era um aspecto da execução do contrato a celebrar não submetido à concorrência – e no ficheiro Excel que acompanha a proposta um prazo de 48 meses, violando assim, o princípio da comparalidade das propostas, nos termos unanimemente considerados pela jurisprudência».

Decorre do exposto que, efectivamente, não se pode considerar que o documento apresentado por iniciativa das recorridas juntamente com a sua proposta, em que consideraram o prazo de 36 meses em termos de assistência técnica, preenche os requisitos do lapso de escrita enunciado no artº 249º do CPC; com efeito, a aplicação desta norma, pressupõe a existência de um erro ostensivo, evidente para qualquer destinatário de boa-fé, de tal forma, que se permita que o erro seja rectificado.

E o facto de haver outros dois documentos apresentados pelas recorridas, onde consta o prazo de 48 meses, não é suficiente, para que se possa concluir pelo lapso manifesto, não só porque nesta análise não está em causa uma questão aritmética ou contabilística, como verdadeiramente, o que se verifica é que este terceiro documento foi unicamente preenchido pelas próprias, sem campos pré-definidos, dele tendo feito constar expressamente o prazo de 36 meses de assistência técnica.

Por outro lado, não se trata de um mero lapso nos algarismos escolhidos [vg. 38, 84, ou até um número que, de tão díspar, levaria de imediato à conclusão de que teria havido um lapso manifesto]. Trata-se de uma afirmação na declaração, assinada pelas autoras, com um prazo de assistência técnica diferente dos demais que se encontravam pré-definidos, que não se revela por si, no contexto da proposta e das circunstâncias em que a mesma foi apresentada.

Acresce que o referido documento é o único da total autoria das recorridas, uma vez que os outros dois se encontravam pré-preenchidos, independentemente dos campos neles contantes poderem ou não ser editáveis.

Concluímos, pois, que inexiste lapso de escrita e que tal erro não é ostensivo ou manifesto, não sendo objectivamente apreensível ou comprovável no contexto da proposta apresentada, assim assistindo razão ao recorrente quanto à violação do disposto no artº 249º do Código Civil.

Deste modo, não era exigível ao júri do concurso que tivesse pedido quaisquer esclarecimentos, dado que o disposto no artº 72º, nº 2 do CCP, na versão aos autos aplicável, não o permite.

Com efeito, dispõe-se nesta norma, o seguinte:

«1. O júri do procedimento pode pedir aos concorrentes quaisquer esclarecimentos sobre as propostas apresentadas que considere necessários para efeito da análise e da avaliação das mesmas.

2. Os esclarecimentos prestados pelos respetivos concorrentes fazem parte integrante das mesmas, desde que não contrariem os elementos constantes dos documentos que as constituem, não alterem ou completem os respetivos atributos, nem visem suprir omissões que determinam a sua exclusão nos termos do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 70º».

Ora, se o júri do concurso tivesse procedido a este pedido de esclarecimentos, estaria não só a violar o disposto no artº 249º do CC, bem como, o nº 2 do artº 72º do CCP, uma vez que se produziria no suprimento de um erro [que não existiu como se viu], uma alteração dos elementos da proposta, que a norma não permite.

Ou seja, o artº 72º do CCP não tem por fito, suprir erros, omissões ou insuficiências das propostas, mas apenas e tão só, aclarar ou fixar o sentido de algum elemento menos apreensível, desde que não altere o conteúdo da proposta ou os elementos que com ela tenham sido juntos e dela façam parte integrante, que não foi o que sucedeu com o referido documento apresentado pelas recorridas.

Atento o exposto, impõe-se revogar o acórdão recorrido e desta forma conceder provimento ao recurso interposto pelo recorrente.

3. DECISÃO

Atento o exposto, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida, e consequentemente julga-se a acção totalmente improcedente.

Custas a cargo das recorridas.

Lisboa, 11 de Setembro de 2019. – Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.