Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0215/11
Data do Acordão:09/14/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
PROVA TESTEMUNHAL
DISPENSA
DESPACHO INTERLOCUTÓRIO
Sumário:I - No processo de impugnação judicial compete ao juiz examinar se é legalmente permitida a produção da prova testemunhal oferecida pelas partes em face das normas que disciplinam a admissibilidade desse meio de prova, e, no caso afirmativo, aferir da relevância da factualidade alegada perante as várias soluções plausíveis para as questões de direito colocadas, só podendo dispensar essa prova no caso de concluir que ela é manifestamente impertinente, inútil ou desnecessária.
II - A demonstração da inactividade de uma empresa e da ausência de rendimentos pode ser feita por todos os meios de prova admissíveis, designadamente através de prova testemunhal.
III - Alegando a impugnante a sua inactividade e ausência de rendimentos no exercício económico a que diz respeito a liquidação de IRC impugnada, daí pretendendo retirar relevantes efeitos jurídicos na medida em que defende a tese, com apoio na jurisprudência, de que sem actividade comercial, industrial ou agrícola, isto é, sem facto tributário, não pode haver tributação, não pode ser-lhe recusada a possibilidade de demonstração dessa factualidade através da prova testemunhal oferecida.
Nº Convencional:JSTA00067143
Nº do Documento:SA2201109140215
Data de Entrada:03/11/2011
Recorrente:A..., LDA
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF VISEU PER SALTUM
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - IMPUGN JUDICIAL
Legislação Nacional:CPPTRIB99 ART113 ART114 ART115 N1 ART119
CCIV66 ART392 ART393 ART394 ART395
LGT98 ART73
CONST76 ART103 N2 ART104 N2
CPC96 ART511
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC997/10 DE 2011/03/02; AC STA PROC988/10 DE 2011/03/22
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
A…, LDA, com os demais sinais dos autos, recorre da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu que julgou improcedente a impugnação judicial que deduziu contra o acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Colectivas (IRC) referente ao exercício de 2004, Derrama e Juros Compensatórios.
Terminou a sua alegação enunciando as seguintes conclusões:
1. A recorrente deve ter direito a ser tributada pelo regime da contabilidade organizada, em substituição da tributação pelo regime simplificado, apesar de não ter exercido a respectiva opção, por resultar da tributação do regime simplificado em manifesto excesso, cfr. Art. 103°, n.º 2, 104°, nº. 2, ambos da CRP, Art. 73º da LGT e Art. 3°, n.º 1, a), e Art. 17°, n.º 1, a), ambos do CIRC.
2. Ademais, a recorrente não exerceu qualquer actividade comercial, industrial ou agrícola.
3. Logo, não pode ter quaisquer rendimentos tributáveis.
4. Sendo certo, que todas as normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, cf. Art. 73° da LGT.
5. A aplicação do regime simplificado, do Art. 53°, n.º 4, do CIRC, só se aplica havendo rendimentos, pois que só havendo rendimentos, ou seja, só verificado que seja o pressuposto do imposto, nasce a respectiva relação jurídica - cf. Acórdão do STA-2ª Secção, no Processo n.º 0553/09, de 04-11-2009.
6. Não tendo existido actividade, não pode existir imposto, cf. Art. 104°, n.º 2, da CRP.
7. Existe vício de forma ou ausência de fundamentação na aplicação da taxa da derrama.
Nestes termos, deve a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue procedente a impugnação judicial, com efeitos na anulação da liquidação impugnada e com todas as consequências legais, para que assim se faça JUSTIÇA.
Juntamente com esse recurso, subiu aquele que o impugnante havia interposto do despacho proferido a fls. 29, de dispensa de produção da prova testemunhal arrolada, recurso que foi admitido a subir com o primeiro que, depois dele, houvesse de subir imediatamente.
As alegações deste recurso mostram-se rematadas com o seguinte quadro conclusivo:
1. O objecto da inquirição de testemunhas é pertinente e fundamental na apreciação do acto impugnado.
2. A inquirição das testemunhas é o meio de prova na descoberta da verdade material.
3. A prova testemunhal deve ser considerada aos autos, cfr. art.º 392° do C.Civil.
4. Foram assim violadas as normas constantes dos artigos 108°, n.º 3 e 118°, n.º 2.
5. O indeferimento da inquirição das testemunhas dificulta a recorrente de fazer prova sobre a errónea quantificação e excesso da capacidade contributiva.
6. A recorrente, face à douta decisão proferida pelo Meritíssimo Juiz a quo, fica coarctada na sua posição processual em clara violação do princípio da igualdade das partes na sua acepção substancial, violando-se desta forma também o art.° 3°-A do CPC.
Nestes termos, deve a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que admita a produção da prova testemunhal oportunamente requerida pela recorrente, assim se fazendo JUSTIÇA.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer apenas sobre o recurso interposto da sentença, defendendo que devia ser-lhe dado provimento, por considerar que «A aplicação do regime simplificado tem como pressuposto necessário a existência de base tributável, consubstanciada no lucro resultante do exercício da actividade da sociedade comercial (art.3° n°1 al. a) e 53° n°1 CIRC). A tese expressa na sentença, exprimindo a aplicação do regime simplificado segundo um critério forfetário (independentemente do apuramento de rendimento positivo, nulo ou negativo) deve ser recusada, porquanto:
a) constitui violação do princípio constitucional segundo o qual a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real; admitindo-se a tributação do rendimento normal por aplicação de métodos indirectos, mas nunca a tributação de um rendimento inexistente, equiparado a confisco fiscal (art. 104° n°2 CRP/ IRC/ 97).
b) constitui violação do princípio constitucional da igualdade (na sua vertente de tratamento diferenciado de situações diferentes), ao tributar identicamente empresas em actividade que geram lucro e empresas inactivas, sem fundamento material bastante (art.13° CRP)
c) radica em interpretação ilegítima da norma sobre o pressuposto do imposto que ficciona um rendimento inexistente para o submeter a tributação.»
Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre decidir ambos os recursos, sendo essencial que se comece pela apreciação do recurso do despacho interlocutório que dispensou a produção da prova testemunhal arrolada, já que a sua eventual ilegalidade é susceptível de afectar/alterar a decisão de mérito proferida na sentença recorrida, na medida em que a admissão dessa prova pode, eventualmente, permitir à impugnante provar a factualidade por si alegada quanto à ausência de actividade e inexistência de rendimentos tributáveis no ano a que se reporta a liquidação de IRC impugnada, com natural repercussão na solução de direito relativa aos vícios de violação de lei que imputa a esse acto e que a sentença recorrida não deu como verificados.
Esse despacho interlocutório, proferido a fls. 29, tem o seguinte teor:
«Analisando os articulados que as Partes apresentaram, mormente a petição inicial, não vislumbro que dela conste a alegação de factos concretos e historicamente situados que careçam de prova testemunhal: as versões apresentadas têm o seu pilar probatório assente nos documentos; as questões a decidir são fundamentalmente de direito e de apreciação dos aludidos documentos.
Consequentemente, nos termos dos artigos 113° e 120° do Código de Procedimento e de Processo Tributário, dispenso a produção de prova testemunhal e entendo não se justificar a notificação das Partes para alegações.»
Como se sabe, processo judicial tributário é, pelo menos desde a Lei Geral Tributária, um processo de partes, pautado pelo princípio da legalidade, do contraditório e da igualdade de partes, devendo o tribunal decidir conforme os factos e as provas que lhe são apresentados dentro das regras processuais. E, por isso, o juiz só pode dispensar a fase de instrução dos autos «se a questão for apenas de direito ou, sendo também de facto, o processo fornecer os elementos necessários» (artigo 113.º do CPPT), devendo, caso contrário, ordenar as diligências de prova necessárias, nomeadamente a testemunhal, em conformidade com o disposto nos artigos 114.º, 115, n.º 1 e 119.º do CPPT.
Assim, embora o tribunal tenha, em princípio, de admitir todos os meios de prova que as partes ofereçam – posto que em processo tributário de impugnação são, em regra, admitidos todos os meios gerais de prova (artigo 115.º do CPPT) – pode recusar a sua produção caso exista norma legal que limite ou proíba determinado meio de prova ou julgue que as provas oferecidas são manifestamente impertinentes, inúteis ou desnecessárias.
O direito à prova no procedimento e no processo tributário existe e é objecto de uma tutela muito forte, mas não constitui um direito absoluto, pois que o legislador ordinário estabeleceu limites e indicou critérios precisos de restrição do uso de meios de prova em relação a factos determinados, como acontece com o artigo 392.º do Código Civil, onde se estabelece que “A prova por testemunhas é admitida em todos os casos em que não seja directa ou indirectamente afastada”, e com o disposto nos artigos 393.º, 394.º e 395.º desse Código, que prevêem as situações em que é inadmissível a prova testemunhal.
Em suma, compete ao juiz examinar, em cada processo judicial, se é legalmente permitida a produção dos meios de prova oferecidos pelas partes, e, no caso afirmativo, aferir da necessidade da sua produção em face das questões colocadas, sabido que instrução tem por objecto os factos controvertidos e relevantes para o exame e decisão da causa tendo em conta as várias soluções plausíveis da questão de direito.
No caso vertente, o Mmº Juiz do Tribunal “a quo” decidiu que em face da natureza da matéria invocada não havia necessidade de produção da prova testemunhal, expressando, assim, a sua opção pelo imediato conhecimento do pedido. Todavia, da leitura da petição inicial resulta que a Impugnante imputou ao acto de liquidação impugnado vários vícios, designadamente o vício de violação de lei por erro nos pressupostos para a aplicação do regime simplificado contido no artigo 53º do CIRC, consubstanciado na alegação de uma total inactividade e inexistência de quaisquer rendimentos no exercício económico em questão.
Com efeito, na perspectiva da impugnante, não se verificam os pressupostos para a aplicação do regime simplificado de tributação em sede de IRC, já que este regime tem por base e pressuposto o exercício efectivo de uma actividade (comercial, industrial ou agrícola) e a obtenção de rendimentos, o que, no seu caso, não terá acontecido (cfr. matéria alegada nos artigos 5.º a 34.º da p.i.). Para além disso, invoca que o rendimento mínimo que resulta da aplicação do regime simplificado deve ser entendido como mera presunção de rendimento, ilidível por força do artigo 73.º da LGT, pelo que uma vez provada a sua inactividade e ausência de proveitos deve ser anulada a liquidação por inexistência de facto tributário e violação dos princípios da capacidade contributiva, da proporcionalidade e do rendimento real, previstos nos artigos 103.º, n.º 2, 104.º, n.º 2, da CRP.
O que significa que a impugnante pretende retirar relevantes efeitos jurídicos dessa alegada factualidade, na medida em que defende a tese – que se apoia, aliás, na jurisprudência deste Supremo Tribunal (Cfr, entre outros, os Acórdãos proferidos em 4/11/2009, em 17/11/2010, em 2/03/2011, e em 22/03/2011, nos recursos n.º 0553/09, n.º 0609/10, n.º 0997/10 e n.º 0988/10). – de que sem actividade comercial, industrial ou agrícola, isto é, sem facto tributário, não pode haver tributação.
Torna-se, assim, patente que as questões colocadas nesta impugnação não são apenas de direito, mas, também, de facto. E uma vez que a demonstração da inactividade e ausência de rendimentos pode ser feita por todos os meios de prova admissíveis, torna-se evidente a necessidade de inquirição das testemunhas arroladas, de forma a possibilitar à impugnante a prova dessa factualidade (a qual, por ausência de prova, não foi dada como provada na sentença recorrida).. Além de que a selecção da matéria de facto relevante para a decisão da causa deve ser feita segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito (artigo 511.º do CPC) e, como vimos, a tese sufragada pela impugnante é juridicamente sustentável e plausível à luz da jurisprudência sobre a matéria.
Não se podendo, pois, afirmar, como se afirmou no despacho impugnado, que as questões a decidir são fundamentalmente de direito e de análise da prova documental produzida, nem se podendo afiançar que a inquirição das testemunhas não tem interesse para a boa decisão da causa, impõe-se revogar esse despacho, o qual terá de ser substituído por outro que admita a produção da prova testemunhal oferecida, com a consequente anulação de todo o processado posterior à fase de instrução (que cumpre completar), seguindo-se, depois, os posteriores trâmites processuais e a prolação de sentença.
Termos em que importa conceder provimento ao recurso interlocutório, ficando, assim, prejudicado o conhecimento do recurso interposto da sentença.
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em:
conceder provimento ao recurso do despacho interlocutório constante de fls. 29, que se revoga para que se proceda à instrução dos autos com a produção da prova testemunhal oferecida seguida da legal tramitação processual e oportuna prolação de sentença;
anular, em consequência, todo o processado posterior ao mesmo despacho;
não tomar conhecimento do objecto do recurso interposto da sentença.
Sem custas.
Lisboa, 14 de Setembro de 2011. - Dulce Manuel Neto (relatora) - Casimiro Gonçalves - António Calhau.