Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0696/16.1BELLE
Data do Acordão:06/03/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P25981
Nº do Documento:SA2202006030696/16
Data de Entrada:01/28/2020
Recorrente:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
Recorrido 1:A............, LDA.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (AT), vem interpor para este Supremo Tribunal, recurso de revista excepcional do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 16 de Setembro de 2019, que concedeu provimento parcial ao recurso deduzido da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé (TAF de Loulé) que havia julgado parcialmente procedente a Impugnação Judicial, deduzida por A………, Lda, contra as quatro liquidações trimestrais de IVA, e respectivos juros compensatórios, relativas ao ano de 2012, no montante total de € 115.523,12.
O TCA Sul, - revogou a sentença na medida em que condenou em custas a ora recorrida na parte em que a mesma logrou vencimento na impugnação judicial;
- em substituição do anteriormente decidido, condenou a Fazenda Pública em custas, na proporção do decaimento na impugnação judicial;
- manteve a sentença recorrida quanto ao mais.

Concluiu as suas alegações do seguinte modo:
A) A Fazenda Publica não se conforma com o decidido, mas apenas no que diz respeito à parte em que foi condenada em custas, porque, na nossa opinião, verifica-se um erro grave na aplicação do direito à situação aqui em causa que urge corrigir, não só pelas consequências internas ao presente processo, mas poder constituir um caso-tipo para o futuro.
B) Até porque a questão nos parece particularmente controversa, basta constatar a diferença de posições assumidas pelas duas instâncias judiciais e o Ministério Público nos presentes autos, constituindo-se através do presente recurso uma oportunidade de esclarecimento definitivo desta matéria.
C) Encontram-se, por isso, reunidos os requisitos previstos no artigo 150.º do CPTA, ao abrigo do qual se apresenta o presente recurso de revista, nos termos já desenvolvidos nas presentes alegações.
D) Da factualidade estabelecida, atrás também desenvolvida e para onde remetemos, agora em síntese, terá de se concluir que a actuação da AT, tanto no procedimento inspectivo como na presente impugnação no que diz respeito às correcções técnicas que depois foram anuladas na sentença, foi absolutamente conforme ao princípio da legalidade a que está adstrita em toda a sua actuação, e que, nessa medida, não poderia ter agido de outro modo pelo que não pode ter dado causa ao presente litígio.
Senão, vejamos:
1. As correcções técnicas que não procederam têm origem na impossibilidade legal de aceitar as deduções de IVA por facturas que não foram apresentadas pela Impugnante no procedimento inspectivo, apesar de instada a fazê-lo por várias vezes conforme manda o artigo 19.º, n.º 2 do CIVA;
2. A disponibilidade para a sua apresentação apenas foi anunciada pela Impugnante depois de concluído o procedimento inspectivo e até já emitidas as liquidações de imposto;
3. A aqui Impugnante poderia interposto uma reclamação graciosa, procedimento mais simples e gratuito onde poderia ser reapreciada toda a situação, mas entendeu passar imediatamente para o contencioso judicial, impugnando directamente.
4. Na sentença concluiu-se:
Nos termos do artigo 527.º, n.º 1, primeira parte, do Código de Processo Civil, a decisão que julgue a acção condena em custas a parte que a elas houver dado causa.
No caso dos autos, as liquidações impugnadas tiveram origem na falta de apresentação dos originais das facturas à Inspecção Tributária, tendo sido anuladas parcialmente exclusivamente porque tais originais foram juntos apenas em sede da presente Impugnação Judicial.
Deste modo, impõe-se concluir que a Impugnante deu causa à acção – por não ter apresentado diligentemente os originais das facturas – como era mister -, mas apenas cópias, antes da emissão das liquidações -, motivo pelo qual deve ser condenada em custas” (pág. 22 da sentença).
5. A AT conformou-se com a sentença em primeira instância, não tendo sequer apresentado contra-alegações ao recurso interposto pela Impugnante;
6. Já em sede de recurso, a posição do MP sobre as custas processais foi lapidar:
No que se refere à condenação em custas, parece-nos também ser totalmente absurdo a argumentação apresentada pela Recorrente. Na verdade quem deu causa a ação foi a atuação omissiva da Impugnante, pelo que é de todo ininteligível a argumentação apresentada.
7. A decisão do TCA Sul, com a qual não nos conformamos, ao contrário, considerou:
A verdade é que, independentemente disso, inexiste norma legal que permita, no caso, o afastamento do critério do vencimento, substituindo-o por um juízo (quase) sancionatório de um comportamento de uma das partes. De resto, e como já havíamos referido, a presente situação não encontra acolhimento nos pressupostos cumulativos do artigo 535.º do CPC.
A condenação em custas deve ser consentânea com o julgamento da acção, revelando o nexo de causalidade existente entre as despesas do litígio e o comportamento do litigante. A parte vencida suportará as custas precisamente porque deu causa a elas, na proporção em que o for - cfr. artigo 527.°, n.° 2 do Código de Processo Civil.
No caso, estamos perante uma procedência parcial da impugnação judicial, em primeira instância, o que leva à condenação em custas na proporção do decaimento.
Assim, quanto ao segmento da sentença que deu razão à Impugnante e que não foi posto em crise pela Recorrida, devem as custas recair sobre a Fazenda Pública.
E) No nosso entendimento, partindo do princípio, sucessivamente reafirmado ao longo de todo o processo, que na origem da presente impugnação está a demora na apresentação dos elementos indispensáveis por parte da Impugnante que lhe permitissem exercer efectivamente o direito à dedução de IVA, é esta a causa do litígio.
F) Por consequência, segundo a nossa interpretação do artigo 527.º do CPC, que partilhamos com a primeira instância e o M.P., as custas processuais, incluindo a parte em que a sua posição mereceu vencimento, deverão ser da responsabilidade da Impugnante.
G) Como diz Salvador da Costa (Regulamento de Custas Processuais Anotado, Almedina, 5.ª edição, 2013) na sua anotação relativa à norma referida (pág. 50 e seg.):
“Prevê o n.º 1 a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos, e estatui que condenará em custas a parte que a ela houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito.
É motivado pelo princípio da causalidade a título principal e pelo princípio do proveito resultante do processo a título subsidiário.
(…)
Imputa-se legalmente a lide a quem aciona ou a quem é acionado, ou a ambos, se por acção ou omissão própria a poderiam ter evitado, sendo que não deve a parte que agiu em conformidade com o direito ser responsabilizada pelo custo do litígio.
H) Parece-nos, portanto, claro que antes de se aplicar o critério do vencimento da acção, como se decidiu, haverá previamente que estabelecer se houve ou não quem tivesse dado causa à acção (princípio da causalidade a título principal) e se da aplicação deste nada resultar, utilizar então o critério subsidiário, quem teve proveito do litígio.
I) Ou seja, neste caso concreto, salvo melhor opinião, resulta claro que a causa da acção foi da responsabilidade da Impugnante, ao desrespeitar o princípio da colaboração (não disponibilizando a documentação que suportava os seus registos contabilísticos, violando o artigo 59.º, n.º 4 da LGT) e que era condição sine qua non para poder exercer o seu direito à dedução do IVA, comportamento até ilegal, punível pela contravenção prevista no artigo 113.º do RGIT, em caso de dolo.
J) Lembramos que a primeira vez que a AT teve acesso à documentação já referida foi apenas na fase judicial, na impugnação interposta e que se conformou com a decisão desfavorável da sentença, não tendo recorrido dessa decisão.
K) Assim sendo, e tendo as custas processuais uma natureza de taxa pela utilização dos serviços judiciais, e, na nossa opinião, sem qualquer carácter sancionatório, responsabilizar a entidade que teve um comportamento totalmente conforme ao Direito pela sua utilização, acrescendo ainda ter de suportar eventualmente os encargos com as custas de parte, não nos parece nem legal, nem equilibrado, e completamente desconforme ao espírito do sistema.
L) Pelo que pedimos a revista desta decisão, com as inerentes consequências legais ao caso aplicáveis.

Não foram produzidas contra-alegações.

O Ministério Público pronunciou-se no sentido da não admissão da revista.

Cumpre decidir.

Dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto levada ao probatório da decisão recorrida.

Há, então, que apreciar se o recurso dos autos é admissível face aos pressupostos de admissibilidade contidos no próprio art. 150º do CPTA, ao abrigo do qual foi interposto, em cujos nºs. 1 e 5 se estabelece:
«1 - Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
(…)
5 - A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do nº 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objecto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da Secção de Contencioso Administrativo».
Interpretando este nº 1, o STA tem vindo a acentuar (e disso, aliás, dão conta os recorrentes) a excepcionalidade deste recurso (cfr., por exemplo o ac. de 29/6/2011, rec. nº 0569/11) no sentido de que o mesmo «quer pela sua estrutura, quer pelos requisitos que condicionam a sua admissibilidade quer, ainda e principalmente, pela nota de excepcionalidade expressamente estabelecida na lei, não deve ser entendido como um recurso generalizado de revista mas como um recurso que apenas poderá ser admitido num número limitado de casos previstos naquele preceito interpretado a uma luz fortemente restritiva», reconduzindo-se como o próprio legislador sublinha na Exposição de Motivos das Propostas de Lei nº 92/VII e 93/VIII, a uma “válvula de segurança do sistema” a utilizar apenas e só nos estritos pressupostos que definiu: quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para a melhor aplicação do direito.
Na mesma linha de orientação Mário Aroso de Almeida pondera que «não se pretende generalizar o recurso de revista, com o óbvio inconveniente de dar causa a uma acrescida morosidade na resolução final dos litígios», cabendo ao STA «dosear a sua intervenção, por forma a permitir que esta via funcione como uma válvula de segurança do sistema». (Cfr. O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª ed., p. 323 e Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, p. 150 e ss..)
E no preenchimento dos conceitos indeterminados acolhidos no normativo em causa (relevância jurídica ou social de importância fundamental da questão suscitada e a clara necessidade da admissão do recurso para uma melhor aplicação do direito (Sobre esta matéria, cfr. Miguel Ângelo Oliveira Crespo, O Recurso de Revista no Contencioso Administrativo, Almedina, 2007, pp. 248 a 296.), também a jurisprudência deste STA vem sublinhando que «…constitui questão jurídica de importância fundamental aquela – que tanto pode incidir sobre direito substantivo como adjectivo – que apresente especial complexidade, seja porque a sua solução envolva a aplicação e concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, seja porque o seu tratamento tenha suscitado dúvidas sérias, ao nível da jurisprudência, ou da doutrina.
E, tem-se considerado de relevância social fundamental questão que apresente contornos indiciadores de que a solução pode corresponder a um paradigma ou contribuir para a elaboração de um padrão de apreciação de casos similares, ou que tenha particular repercussão na comunidade.
A admissão para uma melhor aplicação do direito justifica-se quando questões relevantes sejam tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória, com recurso a interpretações insólitas, ou por aplicação de critérios que aparentem erro ostensivo, de tal modo que seja manifesto que a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa é reclamada para dissipar dúvidas acerca da determinação, interpretação ou aplicação do quadro legal que regula certa situação.» (ac. do STA - Secção do Contencioso Administrativo - de 9/10/2014, proc. nº 01013/14).
Ou seja,
- (i) só se verifica a dita relevância jurídica ou social quando a questão a apreciar for de complexidade superior ao comum em razão da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de enquadramento normativo especialmente complexo, ou da necessidade de compatibilizar diferentes regimes potencialmente aplicáveis, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio.
- e (ii) só ocorre clara necessidade da admissão deste recurso para a melhor aplicação do direito quando se verifique capacidade de expansão da controvérsia de modo a ultrapassar os limites da situação singular, designadamente quando o caso concreto revele seguramente a possibilidade de ser visto como um tipo, contendo uma questão bem caracterizada, passível de se repetir em casos futuros e cuja decisão nas instâncias seja ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, ou suscite fundadas dúvidas, nomeadamente por se verificar divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais, gerando incerteza e instabilidade na resolução dos litígios.
Não se trata, portanto, de uma relevância teórica medida pelo exercício intelectual, mais ou menos complexo, que seja possível praticar sobre as normas discutidas, mas de uma relevância prática que deve ter como ponto obrigatório de referência, o interesse objectivo, isto é, a utilidade jurídica da revista e esta, em termos de capacidade de expansão da controvérsia de modo a ultrapassar os limites da situação singular (a «melhor aplicação do direito» deva resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros, em termos de garantia de uniformização do direito: «o que em primeira linha está em causa no recurso excepcional de revista não é a solução concreta do caso subjacente, não é a eliminação da nulidade ou do erro de julgamento em que porventura caíram as instâncias, de modo a que o direito ou interesse do recorrente obtenha adequada tutela jurisdicional. Para isso existem os demais recursos, ditos ordinários. Aqui, estamos no campo de um recurso excepcional, que só mediatamente serve para melhor tutelar os referidos direitos e interesses») - cfr. o ac. desta Secção do STA, de 16/6/2010, rec. nº 296/10, bem como, entre muitos outros, os acs. de 30/5/2007, rec. nº 0357/07; de 20/5/09, rec. nº 295/09, de 29/6/2011, rec. nº 0568/11, de 7/3/2012, rec. nº 1108/11, de 14/3/12, rec. nº 1110/11, de 21/3/12, rec. nº 84/12, e de 26/4/12, recs. nºs. 1140/11, 237/12 e 284/12.
E igualmente se vem entendendo que cabe ao recorrente alegar e intentar demonstrar a verificação dos ditos requisitos legais de admissibilidade da revista, alegação e demonstração a levar necessariamente ao requerimento inicial ou de interposição – cfr. arts. 627º, nº 2, 635º, nºs. 1 e 2, e 639º, nºs. 1 e 2 do novo CPC (Correspondentes aos arts. 676º, nº 2, 684º, nºs. 1 e 2, e 685º-A, nºs. 1 e 2, do anterior CPC.) - neste sentido, entre outros, os acórdãos do STA de 2/3/2006, 27/4/2006 e 30/4/2013, proferidos, respectivamente, nos processos nºs. 183/06, 333/06 e 0309/13.

A questão sobre a qual a recorrente se debruça no presente recurso prende-se essencialmente com a questão da condenação em custas e a sua repartição entre impugnante e a agora recorrente, pretendendo ver reapreciado o princípio da causalidade a título principal – ver conclusão H, além do mais.
A jurisprudência reiterada deste STA tem entendido que “relevância jurídica fundamental”, ínsita no disposto no artigo 150º do CPTA, só se verifica quando a questão de direito pela sua complexidade ou originalidade, possa gerar controvérsia na doutrina ou dar origem a decisões contraditórias e o erro notório ou grosseiro tem que ser liminarmente detectável.
Sucede que, a questão em controvérsia nos autos, não preenche tais requisitos.
Desde logo, a questão em si não reveste uma complexidade ou originalidade de tal modo relevante que justifique um duplo grau de jurisdição, como também não se verifica “relevância social”, e não se vislumbra e muito menos se mostra “claramente necessária para uma melhor aplicação do direito” a admissão do presente recurso de revista ao abrigo do disposto no artigo 150º do CPTA.
Antes, a recorrente mostra-se inconformada com a decisão por entender que não deveria ter sido condenada em custas na proporção do decaimento, como o foi e, por isso, pretende ver reapreciada a questão, o que não é suficiente para que a revista possa ser admitida.

Termos em que, face ao exposto, acorda-se em não admitir o presente recurso excepcional de revista.
Custas do incidente pela recorrente.
D.n.

Lisboa, 3 de Junho de 2020. – Aragão Seia (relator) - Isabel Marques da Silva – Francisco Rothes.