Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02063/21.6BELSB
Data do Acordão:03/10/2022
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PASSAGEM DE CERTIDÃO
DOCUMENTO ADMINISTRATIVO
INQUÉRITO
FUNÇÃO POLÍTICA
Sumário:I – Da exclusão constante da 1.ª parte da al. b) do n.º 2 do art.º 3.º da Lei n.º 26/2016, de 22/8, resulta que é de exigir uma ligação funcional entre o documento cujo acesso é pretendido e a actividade administrativa, pelo que apenas são abrangidos por essa lei os documentos que são produzidos ou recolhidos no exercício da função administrativa.
II – As comissões parlamentares de inquérito, quando actuam no exercício da função parlamentar de fiscalização e controlo da actividade governativa, levam a cabo uma actividade de fiscalização política.
III – Assim, se o documento cuja cópia é peticionada se encontra na posse da Assembleia da República na sequência da realização de uma comissão parlamentar de inquérito, não foi recolhido no exercício da função administrativa, não estando, por isso, o seu acesso garantido pelo art.º 268.º, nºs. 1 e 2, da CRP, concretizado no plano substantivo pelo CPA e pela Lei n.º 26/2016 e, no plano processual, pelos artºs. 104.º e segs. do CPTA.
Nº Convencional:JSTA00071422
Nº do Documento:SA12022031002063/21
Data de Entrada:01/05/2022
Recorrente:A.........
Recorrido 1:PRESIDÊNCIA DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:Intimação para a prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões,
Objecto:AUSÊNCIA DE RESPOSTA A PEDIDO FORMULADO À Presidência da Assembleia da República
Decisão:Declara a incompetência material do tribunal
Legislação Nacional:Artigo 104.º, do CPTA. Artigos 161.º, 162.º, 178.º, n.º 1, 212.º, n.º 3 e 268.º, nºs. 1 e 2, todos da CRP.
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:

1. A……….., Deputado da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, com domicílio profissional na Rua ……………., no Funchal, intentou, ao abrigo dos artºs. 104.° e segs. do CPTA, contra a “Presidência da Assembleia da República”, intimação para a prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões, alegando em síntese, o seguinte:
Em 2/11/2021, através de carta registada com A/R, enviou um requerimento, dirigido ao Presidente da Assembleia da República, onde solicitava que lhe fosse enviada “uma cópia das atas da administração requeridas pela Comissão de Inquérito o Conselho de Administração do B…………., onde consta o nome do membro do Governo Regional com o qual o antigo C………… detinha uma avença”.
Apesar de esse requerimento ter sido recepcionado em 5/11/2021, a entidade demandada não lhe respondeu, nem deu cumprimento a nenhuma das alíneas do n.º 1 do art.º 15.°, da Lei n.º 26/2016, de 22/8.
Concluiu, pedindo que o Presidente da Assembleia da República fosse intimado “a prestar as informações solicitadas, facultando-lhe fotocópias integrais do solicitado em prazo não superior a 10 dias e condenado, a título de sanção pecuniária compulsória, a pagar a quantia de € 50,50”, por cada dia de atraso em relação ao prazo fixado para o cumprimento da sentença.
O TAC de Lisboa, por decisão de 25/11/2021, declarou-se incompetente, em razão da hierarquia, para apreciar a acção, determinando a remessa dos autos a este STA.
Após ter sido citada, a Assembleia da República contestou, invocando as excepções da incompetência do tribunal em razão da matéria - por as questões relativas ao acesso a documentos inseridos num inquérito parlamentar estarem excluídas do âmbito da jurisdição administrativa, nos termos do art.º 4.º, n.º 3, al. a), do ETAF - e da ilegitimidade passiva do Presidente da AR - por a intimação dever ser dirigida contra a pessoa colectiva pública a que pertence o órgão competente para facultar a informação ou consulta, devendo, por isso, nos termos do art.º 10.º, n.º 4, do CPTA, considerar-se a acção proposta contra a AR - e referindo que a intimação não poderia proceder, por, segundo o regime traçado na LADA, o requerente não poder aceder através do presente meio processual à informação que é recolhida no âmbito das competências de fiscalização política por parte da AR, por a documentação em causa revestir natureza reservada nos termos do n.º 3 do art.º 15.° do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares, introduzido pela Lei n.º 126/97, de 10/12 e as actas terem sido remetidas à Comissão com a indicação de confidenciais.
Pronunciando-se sobre as excepções, o requerente alegou, fundamentalmente, que para um documento ser considerado administrativo basta que esteja na posse de alguma das entidades indicadas no art.º 4.º, da LADA, não se exigindo que ele esteja conexionado com alguma actividade administrativa e, quanto ao pagamento das custas, invocou que, independentemente do resultado da intimação, sempre ele deveria recair sobre a entidade demandada por não ter dado cumprimento ao disposto no art.º 15.º daquele diploma.
2.1. Com relevância para a decisão, consideramos provados os seguintes factos:
a) O requerente, através de requerimento que foi recebido pelos serviços da AR em 5/11/2021, solicitou, ao Presidente da AR, o seguinte:
Considerando que, a 16 de dezembro de 2020 foi constituída a Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar às perdas registadas pelo B……….. e imputadas ao Fundo de Resolução e que, entre 09 de outubro de 2014 e 08 de maio de 2015 esteve em funcionamento a Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar à Gestão do C………. e do Grupo …………;
Considerando que, em ambas as Comissões Eventuais de Inquérito Parlamentar, entre as várias individualidades auscultadas, a presença do Dr. D…………, Ex-Presidente do Conselho de Administração do B……….., foi comum;
Considerando que, declarações do Dr. D…………. referem que existiu uma avença paga pelo C……….. a alguém do Governo Regional da Madeira sendo que essas afirmações motivaram um levantamento de todos os pagamentos pagos a pessoas ou entidades com vínculo com a instituição bancária;
Inclusive, foi notícia num órgão de comunicação social nacional que E…………, atual Presidente do Governo Regional da Madeira enviou uma carta ao Dr. D………… a aludir para uma avença paga pelo C……….. a um antigo membro do Governo Regional da Madeira (sendo o Presidente do Governo Regional, na altura F………..) sem uma aparente contrapartida;
Considerando que, a ser verdade esta situação, poderemos estar perante um crime de corrupção e de um crime de recebimento indevido de vantagem;
Considerando a representação do Juntos pelo Povo na Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, e considerando aquilo que são as funções e competências, quer deste órgão de governo próprio, quer dos próprios deputados.
Vimos, pelo presente, requerer a V. Exª que nos envie uma cópia das atas da administração requeridas pela Comissão de Inquérito o Conselho de Administração do B…………., onde consta o nome do membro do Governo Regional com o qual o antigo C……… detinha uma avença (documentos juntos pelo requerente com o requerimento inicial);
b) Sobre esse requerimento não foi proferida qualquer decisão (art.º 5.º do requerimento inicial não impugnado).
2.2. Para a decisão não existem quaisquer factos relevantes que importe dar por não provados.
3. A Lei n.º 26/2016, de 22/8 - que aprova o regime de acesso à informação administrativa e ambiental e de reutilização de documentos administrativos, transpondo a Directiva 2003/4/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Janeiro e a Directiva 2003/98/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Novembro -, define documento administrativo como qualquer suporte de informação sob a forma escrita, visual, sonora, electrónica ou outra forma material, na posse dos órgãos e entidades referidos no art.º 4.º, n.º 1, onde se incluem os órgãos de soberania, ou detidos em seu nome [cf. art.º 3.º, n.º 1, al. a)].
Porém, o n.º 2 deste art.º 3.º contém três exclusões do conceito de documento administrativo, sendo uma delas a dos “documentos cuja elaboração não releve da actividade administrativa” [cf. al. b), 1.ª parte].
Face a esta exclusão, entendemos ser de exigir uma ligação funcional entre o documento e a actividade administrativa, considerando abrangidos pela lei em questão apenas os documentos que são produzidos ou recolhidos no exercício da função administrativa (cf., neste sentido, João Caupers, “Sobre o conceito de documento administrativo” in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 75, págs. 3-10).
É certo que, como nota o requerente quando refere o Ac. do STA de 31/8/2011 - Proc. n.° 0758/11, esta definição material de documento administrativo nem sempre tem sido adoptada neste Supremo.
Cremos, contudo, que o legislador, com as exclusões que estabeleceu no n.º 2 do citado art.º 3.º, procurou restringir o conceito de documento administrativo, pelo que será de adoptar a posição que se perfilhou no Ac. deste STA de 30/5/2012 - Proc. n.º 263/12, onde se escreveu:
" (…).
Já sabemos que a LADA erigiu, como critério determinante do que sejam «documentos administrativos», a identidade institucional do seu possuidor. Partiu, pois, da ideia de que, cabendo ele no elenco do art.º 4.º [da LADA - Lei n.º 46/2007, de 24/8] os documentos que possuísse ou detivesse «nomine sue» seriam, em princípio, administrativos. Contudo, porque a LADA também explicitou que «não se consideram documentos administrativos para o efeito da presente lei os documentos cuja elaboração não releve da actividade administrativa («vide» o art.º 3.º, n.º 2, al. b), temos que a referência às várias entidades elencadas no art.º 4.º e a afirmação de que são administrativos os documentos que elas possuam arranca de uma espécie de presunção: a de que tais entidades desempenham uma actividade administrativa material, ao menos «lato sensu»”.
Assim, importa averiguar se, na situação em apreço, o documento cuja cópia é peticionada, que se encontra na posse da Assembleia da República na sequência da realização de uma comissão parlamentar de inquérito não foi recolhido no exercício da função administrativa.
Vejamos então.
Conforme resulta do n.º 1 do art.º 178.º da CRP, a Assembleia da República - que tem funções políticas e legislativas (art.º 161.º, da CRP) e de fiscalização do Governo e da Administração (art.º 162.º, da CRP) - pode constituir comissões eventuais de inquérito que têm carácter “ad hoc”, durando até ao desempenho das tarefas para que foram constituídas.
Os inquéritos parlamentares, realizados por essas comissões, são um instrumento de fiscalização que a Assembleia da República possui, os quais têm “por função vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração” (art.º 1.º, n.º 1, do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares, aprovado pela Lei n.º 5/93, de 1/3, alterada pelas Leis nºs. 126/97, de 10/12, 15/2007, de 3/4 e 29/2019, de 23/4), e podem “ter por objecto qualquer matéria de interesse público relevante para o exercício das atribuições pela AR” (citado art.º 1.º, n.º 2).
As comissões parlamentares de inquérito, tendo a natureza de órgão auxiliar da Assembleia da República, estão, obviamente, enquadradas dentro dos poderes desta, fazendo a recolha de informação necessária para o adequado exercício das suas funções legislativa e de fiscalização, exercendo, assim, uma função materialmente parlamentar, de controlo político, que não pode, em caso algum, transmutar-se num poder materialmente administrativo ou jurisdicional - cf. Jónatas Machado e Sérgio Mota: “As Comissões Parlamentares de Inquérito (CPl's)” in BFDUC (“Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares”), 2001, págs. 896 e 910.
Nestes termos, porque as comissões parlamentares de inquérito, quando actuam no exercício da função parlamentar de fiscalização e controlo da actividade governativa, levam a cabo uma actividade de fiscalização política, os documentos por elas recolhidos não relevam da actividade administrativa, não sendo, consequentemente documentos administrativos com o acesso garantido pelo artº. 268º, nºs. 1 e 2, da CRP, concretizado no plano substantivo pelo CPA e pela Lei nº. 26/2016 e, no plano processual, pela intimação prevista nos artºs. 104° e segs. do CPTA. E, ao contrário do que alega o requerente, não infirma a posição que se adopta o facto de o artº. 15°, do RJIP, admitir que, em determinadas circunstâncias, as actas das CPI possam ser consultadas e de o art°. 21°., do mesmo diploma, estabelecer que, observado aquele preceito, o Plenário pode deliberar sobre a publicação das actas, uma vez que não se afirma que estes documentos são reservados, mas sim que, sendo relativos ao exercício da função política, não se enquadram no contexto da actividade administrativa, estando sujeitos a um regime específico de acesso constantes do Regime da AR e do RJIP.
Portanto, porque o documento cujo acesso é pedido foi recolhido no exercício da função política da Assembleia da República, procede a suscitada excepção da incompetência, por o litígio não se inserir no âmbito da jurisdição administrativa (cf. art°s. 212.º, n.º 3, da CRP e 1.º, n.º 1 e 4.º, n.º 1, ambos do ETAF).
Quanto às custas da presente intimação, deverão elas ser suportadas pelo requerente, como parte vencida (art.º 527.°, n.º 2, do CPC), não se podendo entender, como ele pretende, que foi a entidade requerida, ao não cumprir o disposto no art.º 15.º da Lei n.º 26/2016, que deu causa à acção, uma vez que, não estando em causa o acesso a um documento administrativo, este preceito não é aplicável ao caso.

4. Pelo exposto, acordam em declarar a incompetência material do tribunal, absolvendo a entidade demandada da instância.

Custas pelo requerente.

Lisboa, 10 de março de 2022. – José Francisco Fonseca da Paz (relator) - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva - Carlos Luís Medeiros de Carvalho.