Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:014/21.7BEALM
Data do Acordão:03/29/2023
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:EFICÁCIA
JUROS INDEMNIZATÓRIOS
TAXA DE OCUPAÇÃO DO SUBSOLO
Sumário:I – Nos termos do artigo 85.º, n.º 3 da Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2017), a taxa municipal de direitos de passagem e de ocupação do subsolo são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas, não podendo ser reflectidas na factura dos consumidores.
II – Sendo a citada norma eficaz desde 1 de Janeiro de 2017, é ilegal o acto de repercussão que, posteriormente à sua entrada em vigor, foi incluído em factura de consumo de gás e suportado pelo consumidor final.
III - A actividade ou prestação de um serviço público essencial não perde a sua natureza pública administrativa pela circunstância de ser desenvolvida por uma pessoa colectiva de direito privado (no caso constituída sob a forma de sociedade anónima), nem o acto de repercussão, realizado ao abrigo de um direito legalmente reconhecido, deixa de ser materialmente tributário apenas por ter sido praticado por uma concessionária (de serviço publico essencial), pelo que, os valores cobrados ao consumidor na parte que respeitam à contrapartida da utilização pela concessionária do bem de domínio público ainda possuem a natureza de créditos tributários.
IV – Não determinando a natureza privada da entidade que praticou o acto lesivo (repercussão ilegal) a sua exclusão do conceito de “ serviços” previsto no artigo 43.º da LGT e estando verificados os demais pressupostos para atribuição de juros indemnizatórios previstos no mesmo preceito, deve concluir-se que não existe qualquer obstáculo a que seja reconhecido à repercutida (consumidor final) o direito a reaver o que ilegalmente lhe foi exigido e pagou e, bem assim, o direito a receber o valor correspondente aos juros indemnizatórios, calculados à taxa de 4%, desde a data em que esse pagamento indevido se verificou até efectivo e integral pagamento.
Nº Convencional:JSTA000P30777
Nº do Documento:SA220230329014/21
Data de Entrada:10/03/2022
Recorrente:A..., S.A.
Recorrido 1:B..., S.A. – SUCURSAL PORTUGAL
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

1.1. “A..., S.A.”, notificada para proceder ao pagamento da factura n.° FT RN1908/03058, que inclui a título de Taxa Municipal de Ocupação do Subsolo (TOS) o valor de € 48.661,57, intentou, ao abrigo dos artigos 87.º, n.º 8 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e 99.º e seguintes do Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT), contra a “B... S.A. – SUCURSAL PORTUGAL” a presente Impugnação Judicial.

1.2. Como fundamente dos pedidos que formula - de anulação da repercussão da TOS incluída na factura ou, subsidiariamente, de reconhecimento da inconstitucionalidade dessa repercussão, e, bem assim, em qualquer dessas situações, de reembolso do valor àquele título pago acrescido de juros contados desde o pagamento até efectivo reembolso – alegou a Impugnante, em síntese, que a referida repercussão é ilegal uma vez que, com a entrada em vigor da Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, atento o disposto no seu artigo 85.º, n.º 3, o pagamento da TOS passou a ser da exclusiva responsabilidade das empresas operadoras das infraestruturas que ficaram proibidas de repercutir os valores a esse título pagos na factura dos consumidores, ou, mesmo que assim se não entenda, que a repercussão da TOS é inconstitucional, por violação do princípio da legalidade, porquanto procura atingir uma manifestação de capacidade contributiva específica (o consumo de gás natural), que não assenta nem na prestação concreta de um serviço público, nem utilização de um bem do domínio público nem na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares.

1.3. A B... S.A. – SUCURSAL PORTUGAL (doravante Recorrida), contestou, por excepção, suscitando a incompetência material do Tribunal, e por impugnação, defendendo a improcedência total das pretensões, aduzindo, em resumo, quanto à legalidade do acto de repercussão, que a norma que estabelece a sua inadmissibilidade ficou dependente da alteração do quadro legal em vigor, como resulta do artigo 70.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 25/2017, de 3-3, sendo que, até à presente data, esse quadro não foi alterado, encontrando-se, assim, legitimado o acto de repercussão materializado na factura apresentada a pagamento à Recorrente; relativamente à invocada desconformidade constitucional, constituindo a repercussão apenas um critério de imputação da taxa aos consumidores finais (e não uma contrapartida pelos consumos ou a tributação de qualquer capacidade contributiva), o facto de a taxa ser devida pelas concessionárias, tendo a sua repercussão no consumidor final sido legalmente autorizada, não há alteração da natureza do tributo.

1.4. Após instrução dos autos, foi proferida sentença, na qual, após se concluir pela competência material do Tribunal e que o acto de repercussão não padecia dos vícios de ilegalidade ou inconstitucionalidade que lhe vinham imputados, foi julgada integralmente improcedente a Impugnação Judicial.

1.5. Inconformada, interpôs a Recorrente recurso jurisdicional para este Supremo Tribunal Administrativo, finalizando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões:

«A. A partir de 1 de janeiro de 2017, a repercussão da TOS nos consumidores finais passou a ser expressamente proibida.

B. Com efeito, decorre do artigo 85.º, n.º 3, do OE para 2017 que a “taxa municipal de direitos de passagem e de ocupação do subsolo são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas, não podendo ser refletidas na fatura dos consumidores”.

C. Ainda assim, a Recorrente foi notificada da fatura n.º FT RN1908/03058, emitida a 17 de julho de 2019 pela B..., e na qual foi incluída a TOS no montante de € 48.661,57.

D. Neste contexto, a Recorrente procedeu, em 8 de agosto de 2019, ao pagamento da fatura e da TOS.

E. A Recorrente instaurou ação contra a comercializadora (a B...), requerendo a anulação da repercussão da TOS incluída naquela fatura, por violação do artigo 85.º, n.º 3, do OE 2017, procedendo-se ao seu reembolso acrescido de juros indemnizatórios até efetivo reembolso.

F. Entretanto, a Impugnante, ora Recorrente, foi notificada de sentença desfavorável no presente processo, no qual a Mma. Juíza a quo decidiu pela improcedência da impugnação judicial.

G. Considera, contudo, a Recorrente que a sentença a quo padece de ilegalidade por assentar numa errada interpretação do direito, uma vez que a LOE 2017 veio proibir expressamente a repercussão legal da TOS aos consumidores finais.

H. No essencial, e quanto a este segmento, a Mma. Juíza a quo pugna pela improcedência da impugnação judicial porquanto entende que o artigo 85.º, n.º 3, do OE 2017, não produziu efeitos jurídicos imediatos.

I. Com efeito, em particular aduz-se, na sentença sob recurso, que “[c]om efeito, nem o artigo 70.º do Decreto-Lei n.º 25/2017, de 3.03, disciplina a repercussão da taxa de ocupação do subsolo nem da sua conjugação com o artigo 85.º da Lei n.º 42/2016, de 28.12, resulta que o fim da repercussão da TOS opere sem a ponderação dos mesmos objetivos que estiveram na base da opção de repercussão conferida pelo legislador com a celebração dos atuais contratos de concessão, ou seja o equilíbrio económico-financeiro das empresas operadoras de infraestruturas.

Do exposto, resulta que a norma prevista no artigo 85.º, n.º 3 da LOE de 2017 não é automaticamente operacional, no sentido em que é necessária a mediação de outras normas jurídicas, que constituirão o quadro legal exigível a que a seja efetivamente alterado o regime legal de repercussão da TOS, de molde a que não seja refletida na fatura dos consumidores.”

J. Um raciocínio inaceitável, tendo em conta que a Lei do Orçamento do Estado para 2017 veio proibir expressamente a repercussão legal da TOS aos consumidores finais.

K. Com efeito, determina o artigo 85.º, n.º 3, da Lei do Orçamento do Estado para 2017 que a “taxa municipal de direitos de passagem e a taxa municipal de ocupação do subsolo são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas, não podendo ser refletidas na fatura dos consumidores” (negritos nossos).

L. Assim, a partir da entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado para 2017 – e sem necessidade de qualquer ato legislativo ou regulamentar adicional – a repercussão legal da TOS no consumidor final passou a ser ilegal.

M. Em todo o caso, sem prejuízo da ilegalidade da repercussão, esta continuou a ser efetuada à Recorrente, que é consumidora final, nos mesmos termos em que era efetuada antes da entrada em vigor do artigo 85.º, n.º 3, da Lei do Orçamento do Estado para 2017.

N. O que se discute na impugnação judicial é a lesão sofrida por força da repercussão de uma taxa municipal, repercussão essa que é ilegal e proibida, mas que continua a ser efetuada por força de um entendimento da lei que ignora os efeitos do disposto no artigo 85.º, n.º 3, do OE 2017.

O. O incómodo, injustiça ou ilegalidade da situação em que a ora Recorrida ou demais comercializadoras possam estar colocadas por força dessa proibição não é imputável à (nem repercutível sobre a) Recorrente, mas ao Estado.

P. Com efeito, se à entidade demandada, aqui Recorrida, se afigura que o Estado não estabeleceu os mecanismos de reequilíbrio contratual que devia ou não instituiu os meios necessários ao ressarcimento da Recorrida pelos custos que passou a ter por força da proibição de repercussão da TOS, deve a Recorrida insurgir-se e acionar o Estado como entender, designadamente em sede de responsabilidade civil.

Q. O que a Recorrida não pode é ignorar A LEI, fazer de conta que esta não existe, e continuar a onerar a Recorrida apenas porque a lei aumentou os seus custos de contexto sem qualquer contrapartida.

R. Entender de outro modo – como entendeu a Mma. Juíza a quo na douta sentença sob recurso – é limitar os poderes de conformação legislativa da Assembleia da República, condicionando a eficácia de diplomas aprovados pelo órgão legislativo soberano no sistema português ao facto de tais diplomas ou normas serem, ou não, convenientes à atividade dos sujeitos a quem essa legislação se dirige, ao arrepio do princípio do primado da Assembleia da República que se infere do nosso sistema constitucional de reserva de competências, consagrado em particular nos artigos 161.º, 164.º, 165.º e 198.º da Lei Fundamental!

S. Ou seja – refira-se com toda a transparência – a interpretação que logrou obter vencimento na sentença sob recurso não é uma interpretação conforme à Constituição, porque resulta da Constituição que um Decreto-Lei de Execução Orçamental não pode limitar a vigência de uma Lei do Orçamento.

T. No Despacho n.º 315/2021, de 11 de janeiro, do Ministro de Estado e das Finanças, Ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública e Ministro do Ambiente e da Ação Climática, o governo português reconhece (i) que a proibição de repercussão da TOS foi determinada pelo artigo 85.º, n.º 3, da LOE de 2017; (ii) que as entidades do setor não estão a cumprir com essa determinação (razão pela qual se almeja “o fim da repercussão”; e, (iii) que e é necessária uma alteração legislativa MAS – e esta é a parte relevante – tal alteração servirá para que a incidência passe a assentar na efetiva ocupação do subsolo, nada tendo a ver com a possibilidade de repercussão sobre os consumidores.

U. De resto, já na LOE de 2019 se havia previsto, no respetivo artigo 246.º, com a epígrafe “Quadro legal enquadrador das taxas de ocupação do subsolo”, que “1 — O Governo procede, até final do 1.º semestre de 2019, à revisão do quadro legal enquadrador da taxa de ocupação do subsolo em vigor, nomeadamente em matéria de repercussão das taxas na fatura dos consumidores [o que só pode interpretar-se como sendo uma abertura à revisão da proibição criada em 2017, por força dos resultados que a mesma tivesse tido no equilíbrio contratual dos operadores do setor]; 2 — A alteração legislativa prevista no número anterior deve [fazer] assentar a incidência [da TOS] na efetiva ocupação do subsolo […]”

V. Respondendo diretamente à questão colocada na sentença sobre o “sentido” que fazem estas sucessivas referências ao tema na legislação aprovada a partir de 2017, o sentido é este: estando ciente do incumprimento das operadoras/comercializadoras, o Governo pretendeu asseverar aos agentes económicos que o seu objetivo não seria alterado nem reduzido pelo ilegal comportamento destas entidades.

W. Não há dúvidas de que a necessidade de alterações e de revisão legislativas mencionadas no artigo 70.º do Decreto-Lei de execução orçamental relativo a 2017, na LOE de 2019, na LOE de 2021 e no Despacho n.º 315/2021, de 11 de janeiro, se relacionam com os operadores de energia e com o modo como a TOS recai sobre estes e é calculada.

X. Mas também é de cristalina evidência de que nada nessas normas e Despacho contende com a posição jurídica subjetiva em que o artigo 85.º, n.º 3, da LOE de 2017 envolveu a Recorrente e nos termos da qual a TOS deixou de poder ser-lhe exigida.

Y. In casu, a Recorrente é um consumidor final e a lei diz, expressamente, que “[a] taxa municipal de direitos de passagem e a taxa municipal de ocupação do subsolo são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas, não podendo ser refletidas na fatura dos consumidores” – cit., artigo 85.º, n.º 3, da LOE 2017 (destaques nossos).

Z. O segmento final da norma acabada de citar é imediatamente constitutivo de direitos para os consumidores, não carecendo, para ser eficaz, de qualquer densificação legislativa ou regulamentar adicional.

AA. Estes direitos são independentes do que suceda a montante, i.e., da solução dada à questão de saber sobre quem deva recair, entre Operadores e Comercializadores, o encargo da TOS, ou a jusante, i.e. da atitude que operadores e comercializadores queiram tomar relativamente ao Estado, que lhes exige um pagamento que não pode – e não pode por determinação legal - ser repercutido nos seus clientes.

BB. Por força dessa determinação legal o encargo não pode ser suportado pelo consumidor, máxime pela ora Recorrente, que é um terceiro face às relações estabelecidas entre o Estado, Operadoras e Comercializadoras.

CC. É esta clareza que deve assistir à tomada de decisão relativamente a este caso:

a. A LEI atribui um direito ao consumidor (v.g. à Recorrente), qual seja, o de não suportar a taxa de ocupação do subsolo;

b. Esse direito cria uma obrigação simétrica na esfera da Recorrida: a proibição de cobrar o montante da TOS à Recorrente.

c. A questão de saber quem deve suportar a TOS é irrelevante para o consumidor e deve ser dirimida em sede própria, se os visados assim entenderem;

DD. Tanto vale por dizer que, tendo a Recorrida ignorado a lei expressa, que proibia a cobrança de TOS à Recorrente, deve devolver os montantes que lhe foram entregues, INDEPENDENTEMENTE de poder ou não vir a recuperá-los junto de outras entidades.

EE. É que, ao contrário do que pretende a Mma. Juíza a quo, um Decreto-Lei de Execução Orçamental não pode afastar a aplicação de uma Lei do Orçamento do Estado.

FF. O artigo 85.º, n.º 3, do OE 2017 contém uma norma clara, precisa e incondicional, da qual resultam dois imperativos: (i) a TOS tem que ser paga pelas empresas operadoras de infraestruturas; e (ii) não pode ser refletida na fatura dos consumidores.

GG. Relativamente ao artigo 70.º do Decreto-Lei de Execução Orçamental – invocado na sentença sob recurso –, este determina que “[t]endo em conta a avaliação referida no número anterior, o Governo procede à alteração do quadro legal em vigor, nomeadamente em matéria de repercussão das taxas na fatura dos consumidores”.

HH. É esta norma que não é exequível por si mesma, e nem sequer programática.

II. O artigo 70.º, n.º 5, além de confirmar a proibição de repercussão da TOS nos consumidores finais, prevê um mecanismo adicional de avaliação para o futuro (cuja aplicação prática, aliás, se desconhece); não revoga a proibição da repercussão nem lhe retira a respetiva eficácia.

JJ. Não. Aquilo que o legislador fez foi determinar uma avaliação da situação para, só depois, com base nos resultados dessa avaliação, decidir revogar ou manter a norma do artigo 85.º, n.º 3, do OE 2017.

KK. O Decreto-Lei de Execução Orçamental “contém as regras que desenvolvem os princípios estabelecidos no Orçamento do Estado para 2017, assegurando, em paralelo, uma rigorosa execução orçamental” (negritos e sublinhados nossos), sendo de referir que o resultado interpretativo deverá ser aquele que não seja incompatível com a Lei do Orçamento do Estado para 2017.

LL. Com efeito, o Decreto-Lei de Execução Orçamental existe porque existe um Orçamento do Estado e destina-se a desenvolver os imperativos plasmados neste último, tal como resulta dos números 1 a 3 do artigo 53.º da Lei n.º 151/2015, de 11 de setembro, usualmente denominada como “Lei de Enquadramento Orçamental” ou “LEO”.

MM. Inexistindo quaisquer dúvidas quanto ao facto de o Decreto-Lei de Execução Orçamental, seja ele qual for, dever respeitar e desenvolver o Orçamento do Estado e não obstar à sua aplicação.

NN. Entendimento diverso permitiria considerar legítimo que o Governo pudesse, através de Decreto-Lei e sem qualquer autorização legislativa específica, alterar, ou obstaculizar, o decidido pela Assembleia da República em matéria orçamental.

OO. Uma interpretação do artigo 70.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 25/2017, de 3 de março, como a que se afigura transparecer da sentença sob recurso, segundo a qual tal norma tem o poder de impedir a aplicação imediata do n.º 3 do artigo 85.º da LOE 2017 torna aquela primeira norma inconstitucional, por violação do princípio da fixação de competência legislativa conexo com o princípio da separação de poderes, que deriva da conjugação dos artigos 111.º, 112.º n.º 3, 161.º, n.º 1, alínea g) e 198.º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que desde já se invoca para todos os legais efeitos.

PP. Passe a redundância, ignorar esta circunstância é atribuir ao Governo o poder de ignorar a Assembleia da República, bastando, para tal, que o Governo refira – como faz no decreto-lei em causa – agir no contexto de competência legislativa concorrencial, ao abrigo do artigo 198.º, n.º 1, alínea a) da Constituição.

QQ. Pelo que também por estas razões jurídico-constitucionais não deve tal interpretação colher, reconhecendo-se, ao invés, que não pode admitir-se que uma norma constante de um decreto-lei de execução orçamental impeça a aplicação de uma norma constante da lei de valor reforçado – a Lei do Orçamento do Estado – que sustenta e habilita a própria vigência do decreto de execução.

RR. Assim, tendo sido repercutida na Recorrente a TOS, torna-se claro que esta repercussão é ilegal, não podendo ser limitada pelo Decreto-Lei de Execução Orçamental.

SS. Interpretação que é a única conforme à Constituição da República Portuguesa.

TT. Acresce que, de acordo com o artigo 3.º, alínea g), do Decreto-Lei n.º 62/2020, de 28 de agosto, que estabelece as bases gerais de organização e de funcionamento do SNGN, entende-se por consumidor ou cliente final o “cliente que compra gás para consumo próprio”.

UU. A Recorrente desenvolve a atividade siderúrgica e de fabricação de ferro-ligas, não se dedicando, portanto, à produção, distribuição, comercialização ou revenda de gás natural, pelo que se impõe concluir que a cobrança da TOS à mesma contraria lei expressa.

VV. Pelo que não soçobram dúvidas de que, ao não reconhecer tal ilegalidade, a sentença sob recurso interpretou erradamente o direito aplicável in casu, de onde se encontra ela mesma ferida de ilegalidade, devendo ser, em consequência, anulada.

WW. Adicionalmente, quanto à alegada inconstitucionalidade da TOS, decidiu a Mma. Juíza a quo que “a consideração do “consumo de gás natural”, como base para o cálculo do valor da taxa a repercutir ao consumidor final, não determina a alteração da natureza da TOS, de taxa em imposto, pelo que as alegações da Impugnante quanto à invocada inconstitucionalidade também não podem proceder.”.

XX. Ora, a não conformidade constitucional da TOS foi colocada em evidência pela Impugnante, ora Recorrente, por violação do princípio da legalidade tributária, plasmado no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Lei Fundamental.

YY. Porquanto, por via do mecanismo de repercussão legal, a TOS procura atingir uma manifestação de capacidade contributiva específica (o consumo de gás natural), não assentando na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares, tratando-se, assim, materialmente, de um imposto.

ZZ. Assim, tratando-se materialmente de um imposto, a repercussão da TOS é inconstitucional ao não ter sido aprovada por Lei ou Decreto-Lei autorizado.

AAA. Além disso, frisa-se que a TOS consubstancia uma contrapartida pecuniária pela utilização e aproveitamento de um bem do domínio público e privado municipal que in casu não se verifica, pois, a Recorrente, além de não usufruir nem ocupar o subsolo, não dispõe igualmente de quaisquer pipelines.

BBB. De facto, no caso concreto não é possível identificar uma relação direta e efetiva entre o aproveitamento individualizado de uma utilidade e a exigência de pagamento.

CCC. O que, de resto, se reconhece expressamente na sentença recorrida, quando se refere, na p. 31 da mesma, que:

Com efeito, não obstante a TOS, repercutida na fatura emitida em nome da Impugnante, não corresponda, stricto sensu, ao preço do serviço concretamente prestado pela Entidade Impugnada, a mesma está diretamente relacionada com a prestação desse serviço, pois a ocupação do subsolo, que esta taxa visa remunerar, é indispensável ao fornecimento do gás natural, de que a atividade económica da Impugnante (também) beneficia.” (cit. destaques nossos).

DDD. O argumento acaba por provar de mais: frisa-se, por um lado, a não equivalência entre o preço pago à Entidade Demandada e o serviço por esta prestado e salienta-se, por outro, que a ocupação do subsolo é indispensável ao exercício da atividade económica da impugnante, descurando-se o facto de tal ocupação não ser efetuada pela impugnante, aqui Recorrente.

EEE. In casu nunca é demais repetir: a Recorrente não ocupa o subsolo pelo que, por definição, não deve ser seu o encargo de uma taxa de ocupação do mesmo (situação que em muito difere do quadro factual sobre o qual incide a larguíssima maioria da jurisprudência superior portuguesa relativa à TOS).

FFF. Pelo que carece de sentido defender-se, como se faz mais adiante na sentença em crise, que “o ato de repercussão da taxa municipal de ocupação de subsolo consubstancia o encargo suportado pela Impugnante, resultante de contrapartida pelo custo da utilização do domínio municipal, pela utilização de infraestruturas no subsolo para o fornecimento de gás aos consumidores, o que evidencia a natureza sinalagmática da TOS”.

GGG. Não é – repita-se – a impugnante e ora Recorrente quem utiliza o domínio municipal ou causa o desgaste ou cria o risco inerente à existência de infraestruturas de transporte de gás no subsolo.

HHH. Pelo que é manifesto que o ato (de repercussão) que faz incidir sobre a Recorrente o custo da utilização do domínio municipal que a TOS visa remunerar conduz à perda de quaisquer características de sinalagmaticidade inerentes ao conceito de taxa.

III. E sem sinalagma, a TOS transmuta-se em imposto.

JJJ. De facto, no que concerne à categoria de tributo denominada taxa, a prestação pública não pode ser presumida ou eventual, sob pena de o tributo ser caraterizado como uma contribuição ou como um imposto, respetivamente.

KKK. E encontrando-se sujeito, por isso, ao princípio da legalidade tributária, designadamente na vertente de reserva legislativa da Assembleia da República, plasmada na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa.

LLL. E esta é a pedra de toque que fere a repercussão da TOS de vício de violação de lei constitucional e que vem sendo arguido pela impugnante e aqui Recorrente ao longo do presente processo.

MMM. De facto, a inconstitucionalidade que se argui funda-se numa razão muito estrutural e intrínseca à delimitação conceptual das taxas e impostos: o sinalagma que, mais ou menos difuso, preside ao conceito de taxa (cujos elementos essenciais não estão sujeitos à reserva legislativa parlamentar) e que pode estar totalmente ausente nos impostos (cujos elementos essenciais têm de ser aprovados ou autorizados pelo parlamento) não se verifica in casu.

NNN. Pelo que manifesto se torna que a repercussão da TOS é organicamente inconstitucional, na medida em que, tendo transmutado este tributo em imposto (no que tange à impugnante e ora Recorrente e não no que concerne à sua estrutura genérica), não respeita a mesma o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição da República Portuguesa, posto que não foi aprovada pela Assembleia da República, como devia.

OOO. De onde deve a sentença sob recurso também por esta razão subsidiária ser anulada e substituída por outra que, mesmo não reconhecendo a apontada ilegalidade, reconheça a inconstitucionalidade orgânica da norma resultante da Resolução do Conselho de Ministros n.º 98/2008, de 23 de junho e da Portaria n.º 1213/2010, de 2 de dezembro, cláusula 11.º do Anexo III, que prevê e impõe a repercussão da TOS (e em consequência do próprio ato de repercussão), por violação da norma resultante das disposições conjugadas dos artigos 165.º, n.º 1, alínea i), e 103.º, n. º 2, da Lei Fundamental e, em consequência, ordene à Recorrida que devolva à Recorrente os montantes por esta pagos a título de TOS.

PPP. Discorda-se, igualmente, da douta Sentença na parte em que julgou improcedente o pedido de juros indemnizatórios deduzido pela impugnante, ora Recorrente.

QQQ. Atendendo ao caso em apreço, tendo a Recorrida, Entidade Demandada, repercutido ilegalmente a TOS na Recorrente, esta viu-se privada, ilicitamente, de uma quantia que lhe era devida pelo que deverá ser devidamente compensada.

RRR. Não obstante a B... não integrar a Administração Tributária e Aduaneira nem ser um ente público equiparado, para o efeito da discussão em causa nos presentes autos, é ela que indevidamente repercutiu o tributo à impugnante, ora Recorrente.

SSS. Ao cobrar a TOS à Recorrente em violação de lei expressa, a Recorrida cobra-lhe um tributo que não é devido, privando-a, deste modo, de uma quantia que era sua.

TTT. A repercussão da TOS traduz-se, assim, num empobrecimento real e efetivo da tesouraria da impugnante, ora Recorrente, e num enriquecimento da tesouraria da B....

UUU. Verificando-se a repercussão da TOS pela B..., em violação do artigo 85.º, n.º 3, do OE para 2017, existe fundamento legal para o pagamento de juros indemnizatórios à Recorrente, ao abrigo do artigo 43.º da LGT, na medida em que se verificou o pagamento indevido de um tributo, cujo erro não é (seguramente) imputável a esta.

VVV. Refira-se que, em tese, o direito a juros indemnizatórios devidos à Recorrente, A..., é independente e alheio ao eventual direito de regresso que a Recorrida possa ter sobre outras entidades.

WWW. Por todo o exposto, a decisão recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que declare procedente a impugnação judicial proposta pela Impugnante, ora Recorrente, por ser conforme ao Direito».

1.3. Contra-alegou a Recorrida tendo formulado as seguintes conclusões:

«1) O Tribunal recorrido julgou improcedente a impugnação judicial por entender que a repercussão da Taxa de Ocupação do Subsolo ao cliente final, por desrespeito à alteração que decorreu da Lei n.º 42/206 de 28.12 (LOE de 2017) não padece de ilegalidade.

2) Ora, tal norma, não obstante de fazer parte do Orçamento de Estado que entrou em vigor no dia 1/Janeiro/2017, nunca chegou a entrar em vigor, pois não é eficaz.

3) Aliás, a norma contida no OE de 2017 serve apenas como ponto de partida para uma alteração de um quadro legal.

4) E é isto que decorre do artigo 70.º da Lei de Execução Orçamental para 2017 (Decreto-Lei n.º 25/2017, de 3 de Março) que deve ser considerado como um acto de interpretação autêntica do art. 85.º, n.º 3 da LOE de 2017, já que, provindo ambas as normas de fontes equivalentes (lei e decreto-lei têm igual valor, nos termos do disposto no art. 112.º, n.º 2 da CRP), uma (a mais recente) permite perceber o alcance que a outra (a mais antiga) é suposto ter.

5) A norma da Lei de Execução Orçamental define as condições em que o art. 85.º poderá vir a ser executado (cumprindo, dessa forma, a função de uma lei de execução orçamental).

6) Impõe um cumprimento do dever de comunicação das empresas titulares das infraestruturas do cadastro das suas redes até ao final do mês de abril de 2017 à DGAL e decorrido esse prazo as entidades reguladoras sectoriais avaliariam a informação recolhida e as consequências económico-financeiro das empresas operadoras, para que, posteriormente, tendo em conta essa avaliação o Governo proceda à alteração do quadro legal em vigor.

7) Só assim se cumprirá a proibição da repercussão da TOS prevista na LOE para 2017.

8) Sendo claro que este artigo vem dar aplicação ao que se previa na LOE 2017.

9) Pelo que sem a aprovação deste regime jurídico por parte do Governo não se pode considerar que tenha existido uma alteração normativa eficaz, nomeadamente, não se pode dizer que está em vigor a proibição da repercussão da TOS no consumidor final.

10) Tal entendimento tem sido consensual em várias instituições.

11) Em especial, o Governo que volta a inscrever tal compromisso, para alterar o quadro legal enquadrador da taxa de ocupação do subsolo em vigor, no art. 246.º, n.º 1 da LOE de 2019 (Lei n.º 71/2018, de 31 de Dezembro), obrigação que deveria ser cumprida até ao final do 1º semestre de 2019 e, ainda, no art. 133.º da LOE de 2021 (Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro).

12) Admitindo por isso que não está em vigor a proibição da repercussão da TOS.

13) Acompanhando-se na íntegra a conclusão dos estudos da ERSE: “Concluímos, em suma, que a norma do n.º 3 do artigo 85.º da Lei n.º 42/2016 é parcialmente ineficaz, seja porque não reúne as condições necessárias para projectar os seus efeitos na realidade, seja porque o legislador expressamente explicitou o condicionamento da produção de efeitos até ao momento da entrada em vigor do novo regime jurídico sobre a repercussão da TOS.”

14) E foi assim que entendeu, e muito bem, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto na douta decisão recorrida e, também, nos processos 144/21.5BEPRT, 111/21.9BEPRT e 769/21.9BEPRT sobre questão igual à que aqui está em causa, decidindo, em todos, que enquanto não existir um novo quadro legal sobre a matéria, persiste a possibilidade legal de repercussão da TOS nos consumidores, pelo que a repercussão não padece de ilegalidade.

15) E, ainda, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, nos processos n.º 823/20.4BEALM, 4/21.0BEALM, 18/21.0BEALM, 58/21.9BEALM, 3/21.1BEALM, 20/21.1BEALM, 267/21.0BEALM, 706/20.8BEALM.

16) Face ao exposto, a sentença proferida nestes autos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto não merece qualquer reparo pois cumpriu a Lei e o Direito».

1.4. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso jurisdicional com fundamento em que se verifica o vício de ilegalidade suscitado pela Impugnante e mantida a sentença na parte relativa aos juros, os quais, em seu entender, terão que ser solicitados no âmbito de uma acção de responsabilidade civil atenta a natureza privada das partes nestes autos.

1.5. Colhidos os vistos dos Excelentíssimos Juízes Conselheiros Adjuntos, submetem-se agora os autos à Conferência para julgamento.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1 Como é sabido, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva oficiosamente conhecer, o âmbito de intervenção do tribunal de recurso é determinado pelo teor das conclusões com que a Recorrente finaliza as suas alegações [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, numa vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte da decisão de mérito proferida quanto a questões por si suscitadas, desta forma impedindo que essas questões voltem a ser reapreciadas pelo Tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC). Numa vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso directo para o Supremo Tribunal Administrativo, como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida nos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. No caso concreto, tendo por referência o que ficou dito, são três as questões a decidir.

A primeira prende-se com a eficácia da norma consagrada no n.º 3 do artigo 85.º da Lei do Orçamento de Estado para o ano de 2017 (Lei n.º 42/2016, de 28-12), de que decorrerá, em caso afirmativo, a ilegalidade do acto de repercussão impugnado por, desde 1 de Janeiro de 2017, não ser permitido às empresas operadoras de infraestruturas, que suportam a taxa municipal de direitos de passagem e a taxa municipal de ocupação do subsolo, reflectir (repercutir) na factura dos consumidores os valores por si pagos a esse título.

A segunda, sendo negativa a resposta à questão antecedente, é a de saber se, relativamente ao consumidor final, sobre quem recai, por via do acto de repercussão, o encargo financeiro de pagamento da TOS, é ou não possível identificar-se a contraprestação de utilização de um bem do domínio público que está subjacente a esta taxa e, não sendo, se o tributo em causa deve qualificar-se materialmente como um imposto, a julgar inconstitucional por violação dos artigos 165.º, n.º 1 al. i) e 103º, n.º 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Sendo afirmativa a resposta à primeira ou segunda das questões antecedentes, haverá ainda que decidir uma terceira questão, a saber, se o reconhecimento de qualquer um dos vícios que integram a causa de pedir constitui fundamento suficiente para, em sede de Impugnação Judicial e ao abrigo do preceituado no artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT) serem atribuídos à Recorrente juros indemnizatórios e, em caso afirmativo, desde quando e até quando esses juros são devidos.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

Em 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:

A) Pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 98/2008, de 3 de abril, foram aprovadas as minutas dos contratos de concessão de distribuição regional de gás natural, em regime de serviço público, a celebrar entre o Estado Português e as sociedades C..., S.A.; D..., S.A.; E..., S.A.; F..., S.A.; G..., S.A. e H..., S.A. (facto não controvertido - cf. artigo 58.º da petição inicial «p.i.» e Resolução do Conselho de Ministros n.º 98/2008, publicada em Diário da República, 1.ª série, n.º 119, de 23 de junho de 2008, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

B) O contrato de concessão da atividade de distribuição de gás natural entre o Estado Português e a concessionária G..., S.A., cuja minuta foi aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros a que se refere a alínea anterior, prevê, quanto aos «direitos e obrigações da concessionária», o seguinte:

«(…)

Cláusula 7.ª

Direitos e obrigações da concessionária

1 - (…)

2 - Assiste à concessionária o direito de repercutir sobre os utilizadores das suas infra-estruturas, quer se trate de entidades comercializadoras de gás ou de consumidores finais, o valor integral de quaisquer taxas, independentemente da sua designação, desde que não constituam impostos diretos, que lhe venham a ser cobrados por quaisquer entidades públicas, direta ou indiretamente atinentes à distribuição de gás, incluindo as taxas de ocupação do subsolo cobradas pelas autarquias locais.

3 - Na sequência do estabelecido no n.º 2 e no que respeita às taxas de ocupação do subsolo a liquidar pelas autarquias locais que integram a área da concessão, os valores pagos pela concessionária em cada ano civil serão repercutidos por município sobre as entidades comercializadoras utilizadoras das infra-estruturas ou sobre os consumidores finais servidos pelas mesmas nos termos a definir pela ERSE.» (facto não controvertido - cf. artigos 60.º e 61.º da p.i. e Resolução do Conselho de Ministros n.º 98/2008, publicada em Diário da República, 1.ª série, n.º 119, de 23 de junho de 2008, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

C) Em 12.6.2018, a Entidade Impugnada, na qualidade de entidade comercializadora de gás natural, e a Impugnante, na qualidade de cliente, outorgaram o denominado «CONTRATO DE FORNECIMENTO DE GÁS NATURAL / A..., S.A.», constando da cláusula 4.2 (ii) das respetivas «CONDIÇÕES GERAIS» o seguinte:

«(…)

4. PREÇO E REVISÃO DE PREÇOS

(…)

4.2 Ao preço final acrescerão ainda:

(i) (…)

(ii) (…) a Taxa de Ocupação do Subsolo (quando aplicável).

(…)» (cf. documento junto como doc. 1 da contestação de fls. 675 a 691 dos autos, que se dá por integralmente reproduzido);

D) Em 17.7.2019, a Entidade Impugnada emitiu, em nome da Impugnante, a fatura n.º FT RN1908/03058, referente ao período de 1.6.2019 a 30.6.2019, no montante total de € 863.977,63, na qual está incluído o valor de € 48.661,57 correspondente à «Taxa de Ocupação do Solo 201906» (cf. fatura junta como doc. 1 da p.i. de fls. 61 a 64 dos autos e como doc. 1.1 da contestação de fls. 692 a 695 dos autos, que se dá por integralmente reproduzida);

E) Em 8.8.2019, a Impugnante procedeu ao pagamento da fatura identificada na alínea anterior (cf. documento junto como doc. nº 2 da p.i. a fls. 65 dos autos, que se dá por integralmente reproduzido).

3.2. Fundamentação de direito

3.2.1. Dissemos já que a Recorrente não se conforma com a sentença recorrida que julgou improcedente a presente Impugnação Judicial, sustentando que o Meritíssimo Juiz a quo, ao julgar que o acto de repercussão da TOS não é ilegal nem afronta a Constituição, interpretou e aplicou mal o quadro jurídico que convocou como fundamento da sua decisão.

3.2.2. Concretizando, para a Recorrente o Tribunal interpretou e aplicou mal o disposto no artigo 85.º da Lei n.º 42/2016, de 28-12, porque resulta deste preceito que a partir da entrada em vigor da Lei do Orçamento de Estado para 2017, sem necessidade de qualquer acto legislativo ou regulamentar adicional, ficou proibida a repercussão da TOS no consumidor final; porque a interpretação e aplicação conjugada da Lei do Orçamento do Estado e do Decreto-Lei de Execução Orçamental (Decreto-Lei n.º 25/2017, de 3 de Março) não podem conduzir, como se decidiu, na sentença recorrida, à conclusão de que aquele diploma de execução pode limitar o estabelecido e a vigência do que está consagrado naquela primeira Lei e, por fim, porque, contrariamente ao também decidido, o acto de repercussão, nas concretas circunstâncias, constitui um verdadeiro imposto, e não uma taxa, já que através dele se procura atingir uma manifestação de capacidade contributiva específica, consumo de gás natural, sem qualquer contraprestação concreta para a Recorrente, que não beneficia da utilização do bem do domínio público que a TOS visa tributar, sendo as operadoras de infraestruturas o efectivo e único beneficiário da ocupação do subsolo, imprescindível para o exercício da sua actividade,

3.2.3. Vejamos, então, começando por enunciar os factos e argumentos jurídicos em que, de forma nuclear, se fundou o julgamento

No que respeita à factualidade pertinente, relevou, para o que nos importa apreciar e decidir face ao objecto do recurso, a circunstância de ter ficado provado que na factura emitida pela Recorrida à Recorrente, referente ao mês de Junho de 2019, no montante total de € 863.977,63, na qual está incluído o valor de 48.661,57a título de «Taxa de Ocupação de Subsolo». Ou seja, relevou para o julgamento ter ficado provado que na factura apresentada a pagamento à Recorrente e por esta efectivamente paga está incluída a TOS.

Quanto aos argumentos jurídicos que sustentaram de forma mais decisiva o não reconhecimento do pedido de ilegalidade do acto de repercussão, são, no essencial, os seguintes: (i) a norma prevista no n.º 3 do artigo 85.º da LOE de 2017 não é automaticamente operacional, ou seja, a sua eficácia está dependente da criação de um quadro jurídico que ainda não existe e, consequentemente, a obrigatoriedade de não repercussão da TOS na factura dos consumidores finais consagrada no n.º3 do artigo 85.º da LOE não é exequível; (ii) o n.º 3 do citado artigo e Lei não tem natureza imperativa, constituindo apenas um objectivo a concretizar legislativamente no futuro, como resulta do preceituado nos n.ºs 4 e 5 do artigo 70.º do Decreto-Lei n.º 25/2017 e da circunstância de o Governo ter vindo a desenvolver, desde então e até ao ano de 2021, várias iniciativas, de diversa natureza, que comprovam que o quadro legal de repercussão da TOS se mantém inalterado; (iii) a taxa de ocupação de subsolo paga pela Recorrente não constitui uma contrapartida pelo consumo nem visa “tributar” qualquer capacidade contributiva consubstanciando tão só um critério de imputação da taxa aos consumidores.

3.2.4. As questões que se colocam neste recurso jurisdicional foram já objecto de conhecimento e decisão no acórdão proferido a 23 de Fevereiro de 2023, no processo n.º 2/2021.3BEALM, integralmente disponível para consulta em www.dgsi.pt. Será, pois, tendo por referência esse aresto, particularmente tudo quanto ficou decidido no que respeita à eficácia da norma cuja exegese somos chamados a analisar, que iremos desenvolver a fundamentação do nosso julgamento.

Sem prejuízo da remissão efectuada, mas tendo presente as necessárias adaptações e para que o discurso fique mais perceptível prescindiremos das aspas que, com rigor, seriam devidas pela reprodução que iremos fazer.

Assim:

3.2.4.1. Da eficácia da norma contida no n.º 3 do artigo 85.º da Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2017 (LOE207)

O artigo 85.º, n.º 3 da Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para o ano de 2017 possui o seguinte teor: «A taxa municipal de direitos de passagem e a taxa municipal de ocupação do subsolo são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas, não podendo ser reflectidas na factura dos consumidores.».

Para bem compreendermos o teor desta norma (abstraímo-nos, por ora, de aludir aos seus eventuais efeitos), importa, antes de mais, que façamos uma breve densificação da taxa que aqui está em causa, onde encontra o seu fundamento jurídico, como é determinada ou quantificada e quem é ou, pelo menos, era até 1-1-2017 responsável pelo seu pagamento.

Começaremos, assim, por fazer uma excursão sobre os diplomas legais que nos permitirão esclarecer esses aspectos, absolutamente necessária para a contextualização da questão nevrálgica dos autos.

Nesse sentido, convoca-se, antes de mais, a Lei n.º 53-E/2006, de 29 de Dezembro, Lei que aprovou o Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais (RGTAL), que regula as relações jurídico-tributárias geradoras da obrigação de pagamento de taxas às autarquias locais (artigo 1.º), na qual se encontra estabelecido que os tributos nela previstos assentam na prestação concreta de um serviço público local, na utilização privada de bens do domínio público e privado das autarquias locais ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares (artigo 3.º), não devendo o seu valor, fixado de acordo com o princípio da proporcionalidade, ultrapassar o custo da actividade pública local ou o benefício auferido pelo particular (artigo 4.º).

Ainda nos termos deste diploma, a taxa incide, designadamente, sobre a utilização e aproveitamento de bens do domínio público e privado municipal, sendo seu sujeito activo a autarquia local, entidade titular do direito de exigir o tributo e sujeito passivo a pessoa, singular ou colectiva, e outras entidades legalmente equiparadas que, nos termos da presente Lei e dos Regulamentos aprovados pelas autarquias locais, esteja vinculado ao cumprimento da prestação tributária (artigos 6.º e 7.º).

Com a publicação e entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 30/2006 de 15 de Fevereiro (Entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 62/2020), de 28 de Agosto.) foram introduzidos na ordem jurídica nacional os princípios gerais relativos à organização e ao funcionamento do Sistema Nacional de Gás Natural (SNGN), bem como ao exercício das actividades de recepção, armazenamento, transporte, distribuição e comercialização de gás natural e à organização dos mercados de gás natural - em conformidade com as regras comuns consagradas na Directiva n.º 2003/55/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho (A Directiva n.º 2003/55/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho revogou a Directiva n.º 98/30/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Junho.) que tiveram por finalidade o incremento de um mercado livre e concorrencial.

Conforme consta do seu preâmbulo, visou-se com este diploma concretizar no plano normativo a linha estratégica da Resolução do Conselho de Ministros n.º 169/2005, de 24 de Outubro, definindo para o sector do gás natural um quadro legislativo coerente e articulado com a referida legislação comunitária e os principais objectivos estratégicos aprovados na referida resolução.

No que respeita à exploração das redes de distribuição de gás natural, resulta do artigo 27.º do identificado diploma que «A actividade de distribuição de gás natural é exercida em regime de concessão ou de licença de serviço público, mediante a exploração das respectivas infra-estruturas que, no seu conjunto, integram a exploração da RNDGN» (n.º 1) e que «As concessões da RNDGN são atribuídas mediante contratos outorgados pelo Ministro da Economia e da Inovação, em representação do Estado».

Posteriormente foi publicado o Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de Julho, que, desenvolvendo os princípios gerais relativos à organização e ao funcionamento do Sistema Nacional de Gás Natural, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 30/2006, de 15 de Fevereiro, instituiu o regime jurídico aplicável ao exercício das actividades de transporte, armazenamento subterrâneo, recepção, armazenamento e regaseificação de gás natural liquefeito, à distribuição e comercialização de gás natural e à organização dos mercados de gás natural - desta forma se completando a transposição da Directiva n.º 2003/55/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho.

Com particular relevo para o que nos autos nos importa decidir, ficou estabelecido no artigo 7.º do referido Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de Julho que a atribuição das concessões para o exercício desta actividade compete ao Conselho de Ministros, sendo os respectivos contratos de concessão outorgados pelo ministro responsável pela área da energia, em representação do Estado. E, no seu artigo 70.º, que os contratos de concessão de distribuição regional em vigor tinham que ser alterados de acordo com as bases estabelecidas no seu Anexo IV, assegurando-se nos novos contratos o direito das concessionárias à manutenção do equilíbrio económico e financeiro das respectivas concessões.

No Conselho de Ministros de 3 de Abril de 2008, foi aprovada a Resolução n.º 98/2008, de 3 de Abril de 2008 (publicada no Diário da República n.º 119/2008, Série I de 23 de Junho e doravante apenas designada por Resolução) que possui o seguinte teor:

«O Decreto-Lei 30/2006, de 15 de Fevereiro, ao estabelecer as bases gerais da organização e do funcionamento do Sistema Nacional de Gás Natural (SNGN) em Portugal, bem como as bases gerais aplicáveis ao exercício das várias actividades que integram o SNGN e à organização dos mercados de gás natural, prevê que a distribuição de gás natural é uma actividade exercida em regime de concessão de serviço público.

No desenvolvimento dos princípios acima referidos, o artigo 7.º do Decreto-Lei 140/2006, de 26 de Julho, dispõe que a atribuição das concessões para o exercício desta actividade compete ao Conselho de Ministros, sendo os respectivos contratos de concessão outorgados pelo ministro responsável pela área da energia, em representação do Estado.

O mesmo diploma estabelece ainda no n.º 1 do artigo 70.º que os actuais contratos de concessão de distribuição regional devem ser alterados de acordo com as bases estabelecidas no anexo iv do Decreto-Lei 140/2006, de 26 de Julho, assegurando-se nos novos contratos o direito das concessionárias à manutenção do equilíbrio económico e financeiro das respectivas concessões.

Obtido o acordo de cada uma das concessionárias sobre as alterações introduzidas nos respectivos contratos, encontram-se reunidas as condições para atribuir as concessões de distribuição regional de gás natural, em regime de serviço público, a celebrar entre o Estado Português e as sociedades C..., S. A., D..., S. A., E..., S. A., F..., S. A., G..., S. A., e H..., S. A.

Assim:

Ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 7.º do Decreto-Lei 140/2006, de 26 de Julho, e nos termos da alínea g) do artigo 199.º da Constituição, o Conselho de Ministros resolve:

1 - Aprovar, sob proposta do Ministro da Economia e da Inovação, as minutas dos contratos de concessão de serviço público de distribuição regional de gás natural a celebrar entre o Estado Português e as sociedades C..., S. A., D..., S. A., E..., S. A., F..., S. A., G..., S. A., e H..., S. A.

2 - Determinar que os originais dos contratos referidos no número anterior fiquem arquivados na Secretaria-Geral do Ministério da Economia e da Inovação.

3 - Determinar que a presente resolução produz efeitos a partir da data da sua aprovação.».

Em anexo à Resolução constam as minutas dos contratos de concessão, constando do texto da cláusula 7ª que «É reconhecido à concessionária o direito de repercutir, para as entidades comercializadoras de gás ou para os consumidores finais, o valor integral das taxas de ocupação do subsolo liquidado pelas autarquias locais que integram a área da concessão na vigência do anterior contrato de concessão mas ainda não pago ou impugnado judicialmente pela concessionária, caso tal pagamento venha a ser considerado obrigatório pelo órgão judicial competente, após trânsito em julgado da respectiva sentença, ou após consentimento prévio e expresso do concedente.”.

Direito este que igualmente se mostra reconhecido na cláusula 11.ª do Modelo de Licença para exploração de rede de distribuição local de gás natural (Previsto no anexo III da Portaria n.º 1213/2010, de 2-12, aprovada ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 24.° e n.º 3 do artigo 25.° do Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26-7, com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 65/2008, de 9-4.), da qual consta «Assiste também à Licenciada o direito de repercutir sobre os utilizadores das suas infra- estruturas, quer se trate de entidades comercializadoras de gás ou de consumidores finais, o valor integral de quaisquer taxas, independentemente da sua designação, desde que não constituam impostos directos, que lhe venham a ser cobrados por quaisquer entidades públicas, directa ou indirectamente atinentes à distribuição de gás, incluindo as taxas de ocupação do subsolo cobradas pelas autarquias locais» (n.º 3) e que «Na sequência do estabelecido no número anterior, os valores que vierem a ser pagos pela Licenciada em cada ano civil serão repercutidos sobre as entidades comercializadoras utilizadoras das infra-estruturas ou sobre os consumidores finais servidos pelas mesmas, durante os anos seguintes, nos termos a definir pela ERSE».

Em suma, até à emissão da Resolução, o pagamento da TOS, enquanto contrapartida pela utilização e aproveitamento de bens de domínio público e privado municipal pelas redes de distribuição de gás natural, era, por força do preceituado nos artigos 6.º, n.º 1 al. c) e 7.º, n.º 2 do RGTAL, da exclusiva responsabilidade das concessionárias. Após a Resolução, e por força da Resolução, o pagamento da TOS passou a ser passível de imputação ao consumidor final.

Em nota final deste enquadramento importa ainda registar que o Decreto-Lei n.º 140/2006 define como cliente final “ o cliente que compra gás natural para consumo próprio”[artigo 3.º, al. g)] (Definição mantida pelo Decreto-Lei n.º 62/20, de 28 de Agosto, que revogou o regime instituído no Decreto-Lei n.º 140/2006, conforme artigos 3.º, al. g) e 160.º, al. b) daquele primeiro diploma legal.) e que a metodologia de repercussão do valor da TOS que cada Município aplica, incluída nas facturas de gás natural, nos termos definidos pela ERSE, depende da extensão da rede de distribuição instalada em cada concelho e que o valor unitário da TOS repercutido é composto por uma componente variável que incide sobre o consumo de gás natural (kWh) e uma componente fixa aplicada sobre o número de dias do período de facturação (como ocorreu no caso, atenta a factualidade apurada).

Como se constata da leitura da sentença recorrida, e deixámos já consignado, o julgamento de improcedência da acção acompanhou a tese defendida pela Recorrida, louvando-se, nuclearmente, no entendimento de que a norma prevista no artigo 85.º, n.º 3 da LOE de 2017 não é automaticamente operacional, estando a sua eficácia dependente da criação de um quadro jurídico tendo em vista a alteração do regime legal de repercussão da TOS. Ou seja, o n.º 3 do artigo 85.º da LOE2017 é, para o Tribunal a quo, uma norma programática, substancia um mero objectivo a prosseguir e a concretizar no futuro, como, adianta, resulta do preceituado nos n.ºs 4 e 5 do artigo 70.º do Decreto-Lei n.º 25/2017, e da circunstância de o Governo ter vindo a desenvolver, desde então e até ao ano de 2021, várias iniciativas, de diversa natureza, que comprovam que o quadro legal de repercussão da TOS se mantém inalterado.

Não tendo sido nestes autos posta em causa a validade da norma nem a sua vocação intemporal, mas tão só a sua eficácia, passamos, agora, a adiantar as razões porque julgamos que esta norma é plenamente eficaz, isto é, porque entendemos que a norma é, per se, sem a intermediação ou complementação de quaisquer outras, apta a regular de forma directa e imediata a realidade nela contemplada. Dito de outro modo, enunciemos as razões que ditaram a conclusão que avançamos: a partir da publicação da Lei n.º 142/2016, que entrou em vigor a 1-1-2017, passou a ser legalmente inadmissível que as entidades concessionárias de fornecimento ou distribuição de gás natural repercutam nos seus clientes ou consumidores finais a TOS.

Desde logo, porque a norma assim o diz, de forma clara, directa e incondicional: «A taxa municipal de direitos de passagem e a taxa municipal de ocupação do subsolo são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas, não podendo ser reflectidas na factura dos consumidores».

E como nem neste normativo, nem em qualquer outro da mesma Lei, se faz depender a proibição consagrada no n.º 3 do transcrito normativo de quaisquer regulamentações, estudos ou alterações legais, nem existe norma a impor expressamente o deferimento no tempo da sua aplicação, há que concluir que a disposição em apreço tem que ser interpretada como uma proibição expressa e incondicional de repercussão da TOS nos consumidores a partir da entrada em vigor da Lei que a aprovou.

Da leitura da sentença, particularmente da recondução da norma a um mero objectivo que o Estado pretenderia prosseguir, depreende-se que para o Meritíssimo Juiz o n.º 3 do artigo 85.º da LOE não é uma norma exequível - nem à data em que foi consagrada na LOE/2017, nem posteriormente - por não ter ainda sido dada execução ao determinado no artigo 70.º do Decreto-Lei de Execução Orçamental, como o revelam as normas proibitivas que foram sendo sucessivamente consagradas nas Leis de Orçamento do Estado posteriores, a emissão de um Despacho emitido pelos Ministros de Estado e das Finanças, da Modernização do Estado e da Administração Pública e do Ambiente e da Acção Climática a 30 de Dezembro de 2020 e a constituição do grupo de trabalho nele previsto.

Não podemos acolher tal entendimento.

Como já dissemos, a proibição da TOS ser reflectida na factura dos consumidores consagrada no artigo 85.º, n.º 3 é clara e incondicional e nada impede que os seus efeitos, tal como está legalmente construída, se produzam de imediato. A inexequibilidade da norma ou a sua qualificação como norma inexequível implica necessariamente um juízo de incompletude. São normas não exequíveis as que " por motivos diversos de organização social, política e jurídica” se desdobram: por um lado, um comando que substancialmente fixa certo objectivo, atribui certo direito, prevê certo órgão; e, por outro lado, um segundo comando, implícito ou não, que exige do Estado a realização desse objectivo, a efectivação desse direito, a constituição desse órgão, mas que fica dependente de normas que disponham as vias ou os instrumentos adequados a tal efeito (Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria n.º 36/89, de 12-10-1989, publicado no Diário da República, II Série, de 25 de Maio de 1990, página 5596.)

Ora, é esse desdobramento que, salvo o devido respeito, não conseguimos identificar na norma em análise, já que a proibição (estatuição) que encerra se efectiva pela simples eliminação da repercussão da TOS na factura. Ou seja, resultando da Lei e dos contratos à sua luz celebrados e vigentes à data da aprovação da LOE2017, que o pagamento da TOS era da exclusiva responsabilidade das concessionárias, que, no entanto, posteriormente, a podiam repercutir sobre os utilizadores das infra-estruturas, quer se tratassem de entidades comercializadoras de gás ou de consumidores finais, o valor que a esse título tivessem pago, procedendo-se, para esse efeito, à sua inclusão na factura de facturas de gás natural, nenhum obstáculo se coloca à produção imediata dos efeitos que lhe são inerentes que se concretizam pela singela eliminação da repercussão na factura emitida.

E não se diga que a ser assim carece de sentido quer o preceituado no artigo 70.º, n.º 5 do Decreto-Lei de Execução Orçamental quer a necessidade de em posteriores Orçamentos se voltar a consagrar a mesma proibição, quer, por fim, o Despacho n.º 315/21, de 30-12-2020 e o grupo de trabalho que neste último está previsto, entretanto constituído.

Relativamente ao Decreto-Lei de Execução Orçamental, sublinhamos, antes de mais, que, por natureza e imposição legal, constitui o instrumento onde ficam estabelecidas as disposições necessárias à execução do Orçamento do Estado a que respeita.

Sendo esse o seu objecto, como decorre, no caso, do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 25/2017, de 3-3 [“O presente decreto-lei estabelece as disposições necessárias à execução do Orçamento do Estado para 2017, aprovado pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado”)], parece poder concluir-se que a LOE, no caso para o ano de 2017, constitui o quadro legal que simultaneamente legitima as normas que integram o Decreto de Execução Orçamental e limita o âmbito da sua aplicação, devendo as normas que integram este último ser interpretadas, primacialmente, em conformidade com os princípios e normas integradas naquela primeira, desta formas se assegurando que um diploma cuja exclusiva elaboração e execução está cometida ao Governo [artigo 53.º da Lei n.º 15172015, de 11-9 (Lei de Enquadramento Orçamental – LEO e 198.º, n.º 1 a) e 199.º b) da Constituição da Republica Portuguesa (CRP)], não altere, em matéria orçamental, o que ficou decidido pela Assembleia da República, a quem sob proposta do Governo, compete aprovar o Orçamento do Estado (artigo 161.º, g) da CRP).

Neste contexto, atentemos agora no teor do citado artigo 70.º do Decreto-Lei de Execução Orçamental – integrado no Capítulo III, “ Administração Regional e Local” - o qual, sob a epígrafe «Taxa Municipal de direitos de passagem e taxa municipal de ocupação do subsolo» dispõe o seguinte:

“1 - O cumprimento do dever de comunicação previsto no n.º 1 do artigo 85.° da Lei do Orçamento do Estado é assegurado, até 31 de março de 2017, pelas empresas titulares das infraestruturas junto de cada município e atualizado até ao final do ano, sem prejuízo do disposto no n.° 2 do mesmo artigo.

2 -No caso de o município ser detentor de informação do cadastro das redes de infraestruturas, ou tiver pleno acesso à mesma através de plataforma online, este dispensa a empresa titular das infraestruturas em questão, por solicitação desta, da prestação inicial da informação, devendo a mesma ser atualizada até ao final do ano, conforme o estatuído no referido artigo 85.°
3- Até ao final do mês de abril de 2017, os municípios dão conhecimento à DGAL da informação a que se referem os números anteriores, nos termos por ela definidos.

4-Decorrido o período previsto para a prestação de informação, as entidades reguladoras setoriais em razão da matéria avaliam a informação recolhida e as consequências no equilíbrio económico-financeiro das empresas operadoras de infraestruturas.
5- Tendo em conta a avaliação referida no número anterior, o Governo procede à alteração do quadro legal em vigor, nomeadamente em matéria de repercussão das taxas na fatura dos consumidores.».

Na sentença recorrida, ponderando-se a necessária articulação entre os citados artigos 85.º da LOE2017 e 70.º Decreto-Lei de Execução expendeu-se o seguinte:

«Resulta, assim, da análise conjunta do artigo 85.° da LOE de 2017 e do artigo 70.° do Decreto-Lei n.° 25/2017, de 3 de março, ser intenção do legislador dar início a um processo de alteração do quadro legal em vigor, designadamente em matéria de repercussão das taxas na fatura dos consumidores, assente quer na comunicação do cadastro das redes de infraestruturas existente em cada município, quer na subsequente avaliação, pela ERSE, do impacto no equilíbrio económico financeiro das empresas operadoras de infraestruturas.

(…)

Atendendo ao teor literal da norma contida no n.° 3 do artigo 85.° da LOE de 2017 - que prevê que «a taxa municipal de direitos de passagem e a taxa municipal de ocupação do subsolo são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas, não podendo ser refletidas na fatura dos consumidores» - é clara a intenção do legislador no sentido de que aquele tributo passe a constituir um encargo das empresas operadoras de infraestruturas, no caso, as empresas concessionárias das redes de distribuição de gás natural (como, de resto, já sucedia), não podendo, porém, a referida taxa ser repercutida na fatura emitida aos consumidores finais.

De relevar, neste particular, que, nem o artigo 70.° do Decreto-Lei n.° 25/2017, de 3 de março, disciplina a repercussão da taxa de ocupação do subsolo, nem, da sua conjugação com o artigo 85.° da LOE de 2017, resulta que o fim da repercussão da TOS na fatura dos consumidores opere sem a ponderação dos mesmos objetivos que estiveram na base da opção de repercussão conferida pelo legislador com a celebração dos novos contratos de concessão, ou seja, o equilíbrio económico-financeiro das empresas operadoras de infraestruturas.

Ao invés, do disposto no n.° 5 do artigo 70.° do Decreto-Lei n.° 25/2017, de 3 de março - quando aí se prevê que «o Governo procede à alteração do quadro legal em vigor, nomeadamente em matéria de repercussão das taxas nas faturas dos consumidores» -, resulta que a eficácia da norma contida no n.° 3 do artigo 85.° da LOE de 2017 se encontra dependente de uma modificação do respetivo quadro legal.

Com efeito, o n.° 5 do referido artigo 70.° do Decreto-Lei n.° 25/2017, de 3 de março, refere expressamente a necessidade de «alteração do quadro legal em vigor», o que enuncia a intenção do legislador de promover uma modificação do respetivo quadro legal, designadamente do regime geral das taxas das autarquias locais em matéria de taxas de ocupação do subsolo, cuja revisão, de resto, se mostra conforme com a autorização legislativa concedida pelo artigo 86.° da LOE de 2017 - o que, porém, até à presente data, ainda não se verificou.

Conclui-se, assim, que a norma em apreço - o artigo 85.°, n.° 3 da LOE de 2017 - não é apta a produzir efeitos imediatos, porquanto se encontra dependente da alteração do quadro legal em vigor, isto é, da mediação de outras normas jurídicas, para produzir os seus efeitos jurídicos.

Na verdade, não devendo a interpretação da lei cingir-se à sua letra (no caso concreto, à letra do artigo 85.°, n.° 3 da LOE de 2017), mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (onde assume particular relevância o disposto no citado artigo 70.° do Decreto-Lei n.° 25/2017, de 3 de março), as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, como dispõe o artigo 9.°, n.° 1 do Código Civil, forçoso será concluir que o disposto no artigo 85.°, n.° 3 da LOE de 2017 - que determina que a TOS não pode ser refletida na fatura dos consumidores -, carece da concretização de uma alteração do quadro legal vigente, que, reitera-se, não foi efetuada, porquanto só essa alteração tornará operativa a norma do n.° 3 do artigo 85.° da LOE de 2017.

Por outras palavras, e em síntese, estamos perante uma norma jurídica cuja efetiva produção de efeitos jurídicos demanda a criação de outras normas, ainda não existentes».

Concordamos com a Meritíssima Juíza na parte em que afirma que o artigo 70.º não disciplina a repercussão da taxa de ocupação do subsolo, o que bem se compreende por, como já deixámos explicitado, o nº 3 do artigo 85.º da LOE constitui uma norma auto -exequível, ou seja, apta, sem qualquer regulamentação complementar, a produzir todos os seus efeitos (também designada pela doutrina como “norma autónoma). (Neste sentido, José Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 4ª. Edição, Editorial Verbo, 1987, pág.474 e seguintes.)

Como linearmente resulta do artigo 70.º, o que aí se regulamenta ou desenvolve em termos de execução ou procedimentos são outras normas contidas no artigo 85.º da LOE, mais concretamente, o que ficou disposto nos seus n.º 1 e 2, como, de resto, o legislador não deixou margem para dúvidas ao, com precisão, remeter expressamente para tais disposições legais.

Note-se, o que é sobremaneira relevante, que não só do teor do artigo 85.º ou de qualquer outro contido em disposição da LOE2017 não resulta, como já dissemos, qualquer tipo de obstáculo à imediata produção de efeitos do n.º 3 do referido preceito, como o próprio artigo 70.º do Decreto de Execução confirma essa mesma eficácia plena e imediata ao excluir da sua regulamentação ou previsão qualquer referência ao aí determinado (proibido), o que seguramente o legislador teria feito, se fosse essa a sua vontade, bastando para tal ter introduzido um regra condicionando aos demais procedimentos aí regulamentados a proibição da repercussão da TOS.

Como muito bem aduz a Meritíssima Juíza, invocando o artigo 9.º do Código Civil, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei. E o intérprete deve reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico. Porém, a letra da lei constitui um limite, no sentido de que não pode o julgador alcançar um resultado interpretativo que nela não tenha um mínimo de respaldo, sendo que, a interpretação do artigo 85.º, n.º 3, por si ou conjugado com o artigo 70.º do Decreto de Execução, não permite concluir pela falta de eficácia da norma ou pela necessidade, que a sentença não explica, de um quadro legal regulamentador complementar.

Em bom rigor, se bem interpretamos a sentença, conclui-se que o fundamento para a exigibilidade do quadro complementar regulamentador radicará na necessidade de assegurar o cumprimento dos direitos consagrados na cláusula 7.º das minutas contratuais aprovadas pelo Conselho de Ministros que, por via da cláusula proibitiva (n.º 3 do artigo 85.º da LOE) ficou implicitamente revogada e, com ela, eventualmente comprometido o equilíbrio económico-financeiro do acordo celebrado entre o Estado e a Recorrida.

Porém, mais uma vez salvo o devido respeito, a Meritíssima Juíza confunde duas questões distintas, que são, por um lado, a questão de saber se a proibição do artigo 85.º, n.º 3 da LOE217, nos termos em que ficou consagrada, era susceptível de produzir efeitos imediatos à data da sua entrada em vigor e, por outro, a questão de saber quais as repercussões que dessa disposição, produzindo efeitos imediatos, resultam para as empresas operadoras de infraestruturas do ponto de vista financeiro.

Para que estas duas questões pudessem estar dependentes uma da outra era necessário que o legislador tivesse feito depender a dita proibição do apuramento dessas consequências. O que não fez, limitando-se ou comprometendo-se apenas, como resulta da conjugação dos nºs 1 e 2 do artigo 85.º da LOE e n.º 1 a 5 do artigo 70.º do Decreto de Execução Orçamental, a definir os novos pressupostos de determinação da TOS e a desenvolver os procedimentos necessários à avaliação ou determinação do impacto da proibição no referido equilíbrio económico-financeiro das empresas operadoras de infraestruturas e, em função do que viesse a ser apurado, alterar o quadro legal em vigor, nomeadamente em matéria de repercussão das taxas na fatura dos consumidores." (n.º 5, do artigo 70.º).

Sem deixarmos de sublinhar que o que está em causa nos autos é a interpretação do n.º 3 do artigo 85.º da LOE2017, mais concretamente a sua susceptibilidade de produzir efeitos imediatos na esfera jurídica dos consumidores finais, que, em primeira linha, terá sempre que resultar da interpretação desta norma em conformidade com os critérios interpretativos consagrados no artigo 9.º do Código Civil, o que, com o devido respeito, ficou já realizado, entendemos adequado, mesmo assim, pronunciarmo-nos sobre as objecções colocadas ao julgamento de eficácia plena da norma que vimos expondo, colocadas pela Recorrida na sua contestação e integralmente vertidas na sentença recorrida, fundadas no teor das sucessivas normas orçamentais, no Despacho n.º 315/2021 e na constituição do grupo de trabalho neste previsto.

Quanto ao que nesta matéria ficou consagrado em orçamentos subsequentes, contrariamente ao entendimento perfilhado na sentença recorrida, os contributos reforçam a interpretação por nós perfilhada de que o legislador apenas “cuidou da (futura) regulação da TOS” (nas palavras da sentença) mas não revogou a proibição de repercussão do seu valor.

Assim, na Lei de Orçamento de Estado para o ano de 2019 (Lei n.º 71/2018, de 31 de Dezembro – LOE2018) apenas ficou a constar, no artigo 246.º, sob a epígrafe «Quadro legal enquadrador das taxas de ocupação do subsolo» que «1 - O Governo procede, até final do 1.º semestre de 2019, à revisão do quadro legal enquadrador da taxa de ocupação do subsolo em vigor, nomeadamente em matéria de repercussão das taxas na fatura dos consumidores» (n.º 1). E que «A alteração legislativa prevista no número anterior deve assentar a incidência na efetiva ocupação do subsolo e assegurar a fixação de um limite mínimo e máximo indicativo do valor das taxas de ocupação do subsolo para os fornecimentos em BP (menor que) e para os fornecimentos em BP (maior que) e MP por parte dos municípios, atendendo aos princípios da objetividade, proporcionalidade e não discriminação» (n.º 2).

Ou seja, apenas ficou determinado que o Governo iria rever o quadro legal em vigor, integrado pela proibição de repercussão do n.º 3 do artigo 85.º determinada pela LOE2017, que não revogou, incluindo em matéria de repercussão e que, nesse quadro legal, o critério estrutural incidiria na efectiva ocupação do subsolo, devendo ser assegurar na conformação legal a emitir a fixação de um limite mínimo e máximo indicativo do valor das taxas de ocupação do subsolo.

Em suma, não resulta desta norma, nem de qualquer outra da LOE2019 ou do Decreto de Execução respectivo, a revogação, implícita ou explícita, da proibição consagrada no artigo 85.º, n.º 3 da LOE2017.

Por sua vez, na Lei do Orçamento de Estado para 2021 (LOE2021), no artigo 133.º, sob a epígrafe “Taxa municipal de direitos de passagem e taxa municipal de ocupação do subsolo”, ficou estabelecido o seguinte: «A taxa municipal de direitos de passagem e a taxa municipal de ocupação de subsolo são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas, não podendo ser cobradas aos consumidores (n.º1); «O presente artigo tem caráter imperativo sobrepondo-se a qualquer legislação, resolução ou regulamento em vigor que o contrarie» (n.º 2) e que «No primeiro semestre de 2021, o Governo procede às alterações legislativas necessárias à concretização do disposto no n.º 1» (n.º 3)

Ou seja, mais uma vez, o legislador de forma clara, directa e incondicional proibiu a repercussão da TOS na factura do consumidor, renovando a imposição de que o seu pagamento fosse suportado pelas empresas operadoras de infraestruturas, sublinhando a natureza imperativa dessa determinação e a sua sobreposição a qualquer outra. E embora seja certo que no n.º 3 do mesmo preceito o legislador condicionou o disposto no seu n.º 1 às alterações legislativas que visse a efectuar (no primeiro semestre de 2021), entendemos que essas alterações se reportam ao modo de determinação da TOS e do seu pagamento pelas operadoras de infraestruturas (designadamente tendo em consideração o equilíbrio económico que o Estado se comprometera a assegurar) e não a um condicionamento directo à proibição de repercussão, sob pena de carecer de sentido o que ficou estabelecido no n.º 2 da mesma norma e diploma.

Por fim, no que respeita ao despacho n.º 315/2021, de 11 de Janeiro, e sem deixarmos de sublinhar que não possui força legal para modificar as normas constantes da Lei do Orçamento do Estado, importa atentar, antes de mais, que nele se reconhece que no artigo 85.º da LOE2017 ficou determinado “que a taxa municipal de direitos de passagem e a taxa de ocupação do subsolo são pagas pelas empresas operadoras, não podendo ser reflectidas na factura dos consumidores» e reconhecido que no artigo 246.º da LOE2019 também já ficara estabelecido que o Governo procederia à revisão do quadro legal enquadrador da taxa de ocupação de subsolo em vigor, nomeadamente em matéria de repercussão das taxas na factura dos consumidores. Ou seja, se bem interpretamos o despacho em referência, é nele confirmada a leitura que fazemos de que o n.º 3 do artigo 85.º da LOE2017 encerra uma proibição efectiva e imediata da repercussão e confirmado que o Governo se comprometeu, na Lei Orçamento de Estado aprovada dois anos depois (LOE2019) a realizar uma revisão do quadro enquadrador da taxa de ocupação do subsolo em vigor (com as alterações determinadas pela LOE2017,), designadamente em matéria de repercussão da TOS na factura dos consumidores. E foi tendo pressente estas premissas que foi determinada a constituição de um grupo de trabalho com «o objectivo de alterar o quadro legal enquadrador da TOS atualmente em vigor nos termos estabelecidos pelo artigo 85.º da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, artigo 70.º do Decreto_lei n.º 25/17, de 3 de março, e artigo 246.º da lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro.»

Sem prejuízo de tudo quanto ficou exposto, não podemos deixar de adiantar ainda o seguinte: toda a argumentação aduzida na sentença recorrida – idêntica à que consta, em geral, em sentenças proferidas em múltiplos processos, nos quais estão igualmente incluídas alegações de conteúdo idêntico ou similar às que constam nos presentes autos e em que é defendido o não reconhecimento de plena eficácia da norma constante do n.º 3 do artigo 85.º, n.º 3 da LOE2017 - tem subjacente o entendimento de que a proibição só podia “ ganhar operatividade” ou ser exequível quando fosse alterado todo um quadro regulamentador capaz de assegurar o equilíbrio económico do contrato de concessão. Ou seja, tem subjacente o entendimento de que, sendo a imputação sob a forma de repercussão ao consumidor final uma parte do preço acordado, a sua eliminação, ou os termos em que a mesma se podia efectivar, dependiam de um quadro complementar que reporia o equilíbrio, assim se justificando que a norma consagrada no n.º 3 do artigo 85.º da LOE2017 não passasse de uma norma “ meramente programática”, um mero objectivo a concretizar.

Acontece, porém, que assim não é. Efectivamente, pelo Decreto – Lei n.º 140/2006, de 26 de Julho, expressamente convocado como fundamento da Resolução, foram estabelecidos os regimes jurídicos aplicáveis às actividades de transporte de gás natural, de armazenamento subterrâneo de gás natural, de recepção, armazenamento e regaseificação em terminais de gás natural liquefeito (GNL) e de distribuição de gás natural, incluindo as respectivas bases das concessões.

As Bases das concessões da actividade de distribuição de gás natural encontram-se plasmadas no ANEXO IV e, neste, no CAPÍTULO VII, que tem por epígrafe “Modificações objectivas e subjectivas da concessão”, consta que «O contrato de concessão pode ser alterado unilateralmente pelo concedente, sem prejuízo da reposição do respectivo equilíbrio económico e financeiro nos termos previstos na base XXXIV» (Base XXXI). Por sua vez, na Base XXXIV, que tem por epígrafe «Reposição do equilíbrio económico e financeiro» ficou estabelecido o seguinte: «1 - Tendo em atenção a distribuição de riscos estabelecida no contrato de concessão, a concessionária tem direito à reposição do equilíbrio financeiro da concessão, nos seguintes casos: a) Modificação unilateral, imposta pelo concedente, das condições de exploração da concessão, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 da base IV, desde que, em resultado directo da mesma, se verifique, para a concessionária, um determinado aumento de custos ou uma determinada perda de receitas e esta não possa legitimamente proceder a tal reposição por recurso aos meios resultantes de uma correcta e prudente gestão; b) Alterações legislativas que tenham um impacte directo sobre as receitas ou custos respeitantes às actividades integradas na concessão. 2 - Os parâmetros, termos e critérios da reposição do equilíbrio económico e financeiro da concessão são fixados no contrato de concessão. 3 - Sempre que haja lugar à reposição do equilíbrio económico e financeiro da concessão, tal reposição pode ter lugar através de uma das seguintes modalidades: a) Prorrogação do prazo da concessão; b) Revisão do cronograma ou redução das obrigações de investimento previamente aprovadas; c) Atribuição de compensação directa pelo concedente; d) Combinação das modalidades anteriores ou qualquer outra forma que seja acordada

Resulta, pois, deste diploma, e das referidas bases, convocado na Resolução, que a Lei, antes da emissão da própria Resolução, consagrou o direito do concedente, por via legislativa, alterar unilateralmente o contrato de concessão, consagrando, ainda, os meios ou modalidades através dos quais a reposição do equilíbrio económico e financeiro da concessão se deve efectuar se e quando estejam verificadas as condições para que essa reposição tenha lugar. O que significa, pois, que tendo o Governo (Estado), por via da LOE2017, alterado unilateralmente o quadro legal conformador do contrato de concessão e a possibilidade de repercussão neste acolhido, proibindo a repercussão no cliente final da TOS, havia que apurar se dessa modificação unilateralmente imposta tinha efectivamente resultado um desequilíbrio financeiro no contrato e, em caso afirmativo, qual a sua amplitude para que fossem adoptadas uma das modalidades de reposição legalmente previstas, sendo neste contexto, a nosso ver, que deve ser interpretado o preceituado no n.º 1 do artigo 85.º da LOE2017 e os desenvolvimentos contidos no artigo 70.º do seu Decreto-Lei de Execução.

Em síntese: considerando que o artigo 85.º, n.º 3 da LOE2017 proíbe expressamente, de forma directa, clara e incondicional a repercussão da TOS na factura dos consumidores há que reconhecer que esta norma é plenamente eficaz desde 1-1-2017, ou seja, há que concluir que a norma cuja eficácia avalizamos produziu efeitos a partir de 1-1-2017.

Pelo que, tendo o acto de repercussão impugnado sido praticado em data posterior à entrada em vigor da referida norma, e estando essa proibição em vigor à data que em que o acto de repercussão foi efectuado, há que o julgar ilegal, o que, a final, se declarará.


3.2.4.2. Julga-se, em conformidade, prejudicada a apreciação da questão enunciada em segundo lugar na delimitação do objecto do litígio (ponto 2. supra), que, aliás, como resulta das alegações e conclusões de recurso, a Recorrente apenas suscitou a título subsidiário [vide, em particular, conclusão OOO) das alegações de recurso].


3.2.4.2. Enfrentemos, agora, a questão dos juros indemnizatórios.


Na petição inicial, a Recorrente pediu a devolução do valor que, na factura impugnada, foi pago a título de TOS e a condenação da Recorrida no pagamento de juros indemnizatórios, contados à taxa de 4%, desde a data do pagamento até efectiva e integral devolução


Fundamentou tal pedido no regime constante dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, 35.º, n.º 10 da LGT, 559.º do Código Civil (CC) e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.


Na sentença recorrida a Meritíssima Juíza conheceu este pedido, julgando-o improcedente por, não tendo sido dado provimento a qualquer dos vícios invocados, não estarem verificados os pressupostos previstos no artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT).


Vejamos.


Como é sabido, o direito à reparação dos danos causados pela Administração tem há muito assento constitucional.


Com efeito, o artigo 22.º da CRP consagra “o princípio da responsabilidade patrimonial directa das entidades públicas por danos causados aos cidadãos”, um dos princípios estruturantes do Estado de Direito Democrático, ao estabelecer que «O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.»


Debruçando-se sobre este preceito, o Tribunal Constitucional vem admitindo «a sua qualificação como norma de garantia institucional, dirigindo-se ao legislador tendo em vista garantir o estatuto e implicando limites à sua conformação pela lei ordinária» referindo que se trata de uma «constitucionalização do princípio da responsabilidade civil do Estado em particular no que respeita à responsabilidade da Administração.” Esta constitucionalização garantiu o instituto e condicionou o legislador ordinário a não retroceder”, o que significa, a nosso ver, que a interpretação de todas as normas que concretizam aquele dever constitucionalmente consagrado deve ser realizada em conformidade com o prescrito no citado artigo 22.º da CRP, qualquer que seja a tese que se acolha [quer se entenda que constitui um direito a integrar no catálogo de direitos, liberdades e garantias e sujeito ao seu regime, particularmente às regras consagradas nos artigos 17.º e 18.º da Lei Fundamental (tese subjectivista) quer se perfilhe a tese de que é “apenas” um princípio objectivo como outros constitucionalmente consagrados (tese objectivista)].


Atendendo à função primordial de protecção dos cidadãos em caso de lesões provocadas pelas entidades públicas que a citada norma constitucional prossegue, a doutrina vem entendendo que o preceito é apto a responsabilizar quer as entidade públicas quer as entidades privadas que, em substituição do Estado, estão incumbidas do exercício de funções públicas ou desempenham por força de lei poderes públicos, sob pena de subversão do referido princípio constitucional. Ou seja, não há que excluir da responsabilidade consagrada no artigo 22.º da CRP as entidade privadas nas situações em que os actos por si praticados ainda o são na prossecução do interesse público e no exercício de poderes públicos, isto é, sempre que exista uma conexão entre o acto lesivo e a concreta função ou serviço público legalmente cometido a essa entidade privada.


Aliás, constituindo a actividade tributária um domínio particularmente invasivo dos direitos dos cidadãos, não podem subsistir dúvidas que é também neste domínio que a garantia constitucional da reparação da lesão resultante de ato materialmente tributário assume acentuado relevo.


Terá sido este, indubitavelmente, o propósito que conduziu o legislador ordinário a concretizar, definir, os pressupostos e medida do dever de reparação plasmado no artigo 43.º da LGT, o qual foi recentemente objecto de revisão tendo precisamente em vista um alargamento das situações ou hipóteses em que essa reparação deve ocorrer.


Em conformidade com o regime estabelecido no citado artigo 43.º, para o que ora releva, são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços, de que resultou um pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (n.º 1), sendo aplicável, na sua contagem, a taxa prevista para os juros compensatórios (n.º 4).


Por sua vez, por força do preceituado no artigo 35.º, n.º 10 da LGT, a taxa dos juros compensatórios é equivalente à taxa dos juros legais fixados nos termos do n.º 1 do artigo 559.º do Código Civil, resultando deste preceito que os juros legais e os estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo são os fixados em portaria conjunta dos Ministros da Justiça, das Finanças e do Plano, os quais devem ser calculados à taxa de 4%, por força do artigo 1.º, da Portaria 291/2003, em vigor.


Na presente Impugnação Judicial ficou já decidido que o acto de repercussão é ilegal por violação do artigo 85.º, n.º 3 da LOE2017 e que desse acto ilegal resultou um pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, pelo que não temos dúvidas em afirmar que se verificam estes particulares requisitos de atribuição de juros indemnizatórios.


A única questão que se pode colocar será a de saber se a Recorrente, enquanto pessoa colectiva de direito privado (no caso constituída sob a forma de sociedade anónima), ainda poderá considerar-se abrangida pelo artigo 43.º da LGT. Ou seja, se a concessionária de um serviço público, no que respeita a lesões patrimoniais decorrentes de um acto de repercussão de tributo por si praticado ao abrigo do poder que para esse efeito lhe foi legalmente conferido, deve integrar o conceito de “serviços” para efeito de atribuição dos juros indemnizatórios previstos no citado normativo.


Do recorte legal, doutrinário e jurisprudencial efectuado, resulta já fortemente indiciado que, para nós, a resposta a esta questão deve ser afirmativa.


Com efeito, acompanhamos a doutrina que considera que ainda é de abranger no conceito de serviços as empresas privadas concessionárias de serviço público que, nesta condição, substituem a Administração nas relações com o público e actuam como se fossem entidades públicas. Acresce que o Estado ao conceder legalmente à concessionária Recorrida a possibilidade de repercutir um tributo, a investiu de um poder tributário que a mesma exerce perante os seus clientes, o que “configura ainda uma competência tributária derivada ou de segundo grau”. A TOS continua, assim, a consubstanciar “uma contraprestação à prestação estadual constituída pela utilização privativa do domínio público do Estado, nada se alterando, sob o ponto de vista da substância das coisas, pela circunstância de essa utilização ocorrer no quadro de uma concessão de exploração desse mesmo domínio público.».


Assim, a circunstância da entidade que praticou o acto lesivo (repercussão ilegal) ser uma entidade privada, uma sociedade anónima, não determina a sua exclusão do âmbito de aplicação do artigo 43.º da LGT, interpretado em conformidade com o artigo 22.º da CRP, porque o poder de repercutir a TOS (acto materialmente tributário praticado no exercício de uma actividade de serviço público), que legalmente lhe foi atribuído, corresponde ao exercício de um poder de autoridade típico do Estado. Mais se deve entender que a actividade desenvolvida pela concessionária não perde a sua natureza pública administrativa apenas por ser desenvolvida sob a forma de sociedade anónima, nem o acto de repercussão, praticado no contexto legal definido deixa de ser materialmente tributário por ser praticado pela concessionária, devendo entender-se que os valores cobrados ao consumidor na parte que respeitam à contrapartida da utilização pela Recorrida do bem de domínio público possuem ainda tendencialmente a natureza de créditos tributários.


Em suma, o pagamento da TOS, por via do acto de repercussão, representa ainda a cobrança de uma receita coactiva e não a mera satisfação, por parte do cliente final, de uma obrigação privada assumida no âmbito de um contrato sinalagmático que tem como contraparte a Recorrida.


Interpretação que, se bem vemos, encontra respaldo no artigo 18.º, n.º 1 da LGT, uma vez que aí se define amplamente que o sujeito activo da relação tributária é a entidade de direito público titular do direito de exigir o cumprimento das obrigações tributárias, quer directamente quer através de representante, entendendo-se ser nesta última figura que se integra o “concessionário do serviço público de gás natural, a funcionar na arrecadação da TOS como um substituto ex lege, promovendo a cobrança do tributo por meio da respectiva repercussão.” Em síntese, e como nos ensina a doutrina, no âmbito do direito tributário, o sujeito activo da relação jurídica tanto pode ser uma entidade de direito público como uma entidade privada “actuando no exercício de determinados poderes públicos, como será o caso das concessionárias (…) que efectuem directa ou indirectamente a cobrança de receitas tributárias.


Concluímos pois que, no contexto de facto e de direito que emerge dos autos, é de considerar a ora Recorrida integrada no conceito de serviços no artigo 43.º da LGT. Em consequência, entendemos que não existe qualquer obstáculo em reconhecer à Recorrente o direito de reaver o que ilegalmente lhe foi exigido e pagou e, bem assim, o direito a receber o valor correspondente aos juros indemnizatórios, calculados à taxa de 4% desde a data em que esse pagamento indevido se verificou (8-8-2019) até efectivo e integral reembolso.

3.3. A responsabilidade pelas custas da acção, em 1ª instância e neste Supremo Tribunal Administrativo, serão imputadas à Recorrida, integralmente vencida (artigo 527.º, n.º 1 e 2 do CPC).

4- DECISÃO

Face a tudo quanto ficou exposto, acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

A) Revogar a sentença recorrida;

B) Julgar ilegal e anular o acto de repercussão impugnado, integrado na factura n.º FT RN1908/03058, no valor de € 48.661,57;

C) Condenar a Recorrida a devolver à Recorrente o valor referido em B), acrescido de juros, contados à taxa de 4%, desde a data do pagamento indevido (8-8-2019) até à data da integral e efectiva devolução da referida importância.

Custas pela Recorrida em 1ª instância e neste Supremo Tribunal Administrativo.

Registe e notifique.

Lisboa, 29 de Março de 2023. - Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) – José Gomes Correia – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz.