Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0165/18
Data do Acordão:06/27/2018
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:OPOSIÇÃO DE JULGADOS
MESMA QUESTÃO DE DIREITO
Sumário:I - O recurso para o Supremo Tribunal Administrativo de decisão arbitral pressupõe que se verifique, entre a decisão arbitral recorrida e o acórdão invocado como fundamento, oposição quanto à mesma questão fundamental de direito (cfr. o n.º 2 do art. 25.º RJAT), não devendo, ainda, o recurso ser admitido se, não obstante a existência de oposição, a orientação perfilhada no acórdão impugnado estiver de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo (cfr. o n.º 3 do art. 152.º do CPTA, aplicável ex vi do disposto no n.º 3 do art. 25.º do RJAT).
II - Não havendo entre o acórdão arbitral recorrido e o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo apresentado como fundamento contradição sobre a mesma questão fundamental de direito, não deve tomar-se conhecimento do mérito do recurso.
Nº Convencional:JSTA000P23459
Nº do Documento:SAP201806270165
Data de Entrada:02/21/2018
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A... S.A
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso para uniformização de jurisprudência da decisão arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem Administrativa - CAAD no processo n.º 408/2017-T

1. RELATÓRIO

1.1 A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT, adiante também Recorrente) veio, ao abrigo do disposto no art. 25.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, interpor recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de decisão arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), tendo apresentado alegações do seguinte teor (Aqui como adiante, porque usaremos o itálico nas transcrições, os excertos que estavam em itálico no original surgirão em tipo normal.):

«1. Vem o presente Recurso por Oposição de interposto da decisão arbitral proferida pelo Tribunal Arbitral Colectivo, constituído sob a égide do CAAD no âmbito do processo n.º 408/2017-T, a qual julgou procedente o pedido de pronúncia arbitral, entendendo que as facturas por si só são suficientes a ilidir a presunção de propriedade estabelecida no artigo 3.º do CIUC e, por esse facto, aptas a demonstrar a efectiva transmissão de propriedade dos veículos automóveis

2. A decisão arbitral recorrida colide frontalmente com acórdão transitado em julgado, proferido pelo TCAS, a 2015-03-19, no âmbito do processo n.º 08300/14 (“acórdão fundamento”), encontrando-se irremediavelmente inquinado, do ponto de vista jurídico, por errada interpretação do artigo 3.º da CIUC;

3. Assim, enquanto Tribunal Arbitral Colectivo entendeu que as facturas, por si só, são suficientes a ilidir a presunção estabelecida no artigo 3.º do CIUC e, por esse facto, aptas a demonstrar a efectiva transmissão de propriedade dos veículos, em sentido totalmente oposto se pronunciou o “acórdão fundamento”, no qual estava igualmente em causa a elisão da presunção de propriedade através de facturas, tendo considerado que estas últimas são manifestamente insuficientes para ilidir a presunção do artigo 3.º do CIUC, porquanto, quer as facturas quer as notas de débito, consubstanciam documentos particulares e unilaterais com valor insuficiente para, à luz do probatório material, negar a validade dos factos – a propriedade dos veículos – sobre os quais existe uma prova legal – presunção legal – que isenta a Recorrente de qualquer ónus probatório e que não é contrariável através de uma mera contraprova;

4. Verifica-se uma contradição entre o “acórdão fundamento” quanto ao valor probatório das facturas e a elisão da presunção estabelecida no artigo 3.º do CIUC, isto é, existe uma manifesta, contradição sobre a mesma questão fundamental de direito que importa dirimir, mediante a admissão do presente recurso e consequente anulação da decisão recorrida, com substituição da mesma por novo acórdão que, definitivamente, decida a questão controvertida;

5. A infracção a que se refere o artigo 152.º n.º 2 do CPTA consiste num erro julgamento expresso na decisão recorrida, na medida em que o Tribunal Arbitral Colectivo adoptou uma interpretação da referida norma do CIUC em patente desconformidade com o quadro jurídico vigente.

6. Todavia, ficou devidamente demonstrado que a linha de raciocínio adoptada pelo Tribunal Arbitral Colectivo é ilegal, na medida que as facturas são manifestamente insuficientes para ilidir a presunção estabelecida no artigo 3.º do CIUC, porquanto, quer as facturas quer as notas de débito, consubstanciam documentos particulares e unilaterais com valor insuficiente para, à luz do probatório material, negar a tal dos factos – a propriedade dos veículos – sobre os quais existe uma prova legal – presunção legal – que isenta a Recorrente de qualquer ónus probatório e que não e contrariável através de uma mera contraprova;

7. Nesse sentido, aponta o “acórdão fundamento”, bem como diversa jurisprudência supra citada do CAAD (cfr. decisões arbitrais n.º 63/2014-T, n.º 150/2014-T e n.º 220/2014-T), ao Considerar que «tanto a factura como a nota de débito constituem documentos contabilísticos elaborados no seio da empresa e que se destinam ao exterior. A factura deve visualizar-se como o documento contabilístico através do qual o vendedor envia ao comprador as condições gerais da transacção realizada. Por sua vez, a nota de débito consiste no documento em que o emitente comunica ao destinatário que este lhe deve determinado montante pecuniário. Ambos os documentos surgem na fase de liquidação da importância a pagar pelo comprador assim não fazendo prova do pagamento do preço pelo mesmo comprador e, por consequência, prova de que se concluiu a compra e venda (somente a emissão de factura/recibo ou de recibo faz prova do pagamento e quitação – cfr. art. 787.º, do C.Civil, António Borges e Outros, Elementos de contabilidade Geral, 14.ª edição, Editora Rei dos Livros, pág. 62 e seg.). Assim sendo, deve concluir-se que a sociedade recorrida nem sequer produziu prova relativa à alegada venda dos veículos sendo que teria que provar que não era proprietária das viaturas à data a que dizem respeito a liquidações, o que implicaria, no caso concreto, provar quem era o actual proprietário. E recorde-se que esta prova seria fácil de fazer, bastando à recorrida actualizar o registo, para o que tem a legitimidade como vendedor e de forma unilateral, promovendo, o registo dos veículos em nome dos compradores, através de um simples e requerimento, nos termos do art. 25.º, n.º 1, al. d), do Regulamento do Registo Automóvel, tudo conforme já mencionado acima. Resumindo, a prova apresentada pela recorrida é constituída, exclusivamente, por documentos particulares e unilaterais, com um valor insuficiente para, à luz do direito probatório material, negar a validade de factos – a propriedade de veículos – sobre os quais existe uma prova legal – presunção legal – que isenta a A. Fiscal de qualquer ónus probatório, e que não é contrariável através de mera contraprova que lance dúvida sobre os factos provados pela presunção»;

8. Do resumo jurisprudencial citado podemos retirar com razoável certeza que, quer os tribunais arbitrais quer o “acórdão fundamento”, concluem inevitavelmente, em face das razões apontadas, para que as facturas não sejam, por si só, susceptíveis para ilidir a presunção estabelecida no artigo 3.º do CIUC, na medida em que consubstanciam meros documentos particulares e unilaterais, com valor insuficiente à luz do direito probatório para ilidir uma presunção legal, como aquela que goza a Recorrente no caso vertente.

Nestes termos nos mais de direitos e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente Recurso por Oposição de Acórdão ser aceite e posteriormente julgado procedente por provado, devendo em consequência e nos termos e com os fundamentos acima indicados, se proferido acórdão que decida no sentido preconizado: no “acórdão fundamento”».

1.2 O recurso foi admitido.

1.3 A Recorrida contra-alegou, resumindo a sua posição em conclusões do seguinte teor:

«A. Vem o presente recurso interposto do Acórdão Arbitral que julgou procedente a impugnação da liquidação de IUC à ora Recorrida, então Requerente, concluindo que “a proprietária dos veículos, à data do facto tributário, não era a Requerente considerando as vendas realizadas no âmbito dos contratos de concessão e rent-a-car e respectivas facturas, i.e., não era a Requerente o sujeito passivo do imposto, não estão verificados os requisitos do artigo 3.º n.º 1 do CIUC, o que determina a anulação dos correspondentes actos de liquidação” (cf. conclusão 1.ª);

B. Porém, para assim decidir, o que o douto acórdão arbitral recorrido deu como provado, nomeadamente, foi: que a Requerente é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio de veículos automóveis, sendo que os 332 veículos em causa foram todos comercializados pela Requerente no âmbito da sua actividade normal de venda de automóveis novos; e em cumprimento dos referidos contratos de concessão ou acordos de fornecimento, que a Requerente apenas procedeu à matrícula dos veículos que encomenda, em execução dos referidos contratos e acordos de fornecimento, quando já se encontram concretizadas as vendas e concluídos os negócios de acordo com o plano de entregas estipulado, nas condições de entrega requeridas pelas empresas de rent-a-car a fim de proceder à entrega dos veículos já matriculados, e que nenhum dos veículos aqui em causa, cuja liquidação do IUC do ano da matrícula se contesta, foi adquirido pela Requerente para si própria ou com intuito de deter a propriedade ou o uso do veículo após obtenção da matrícula em Portugal.

C. A fundamentação de direito, assente conclui o acórdão recorrido, limitando-se a aplicar o direito aos factos: Por isto, atendendo a que a proprietária dos veículos, à data do facto tributário, não era a Requerente considerando as vendas realizadas no âmbito dos contratos de concessão e rent-a-car e respectivas facturas, i.e., não era a Requerente o sujeito passivo do imposto, não estão verificados os requisitos do artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, o que determina a anulação dos correspondentes actos de liquidação.

D. Assim, e ao contrário do que alega a Recorrente AT, é falso que o acórdão tenha entendido que “as facturas por si só são suficientes a ilidir a presunção de propriedade estabelecida no artigo 3.º do CIUC” – forjando uma suposta identidade – falsa – ao racional subjacente ao acórdão fundamento, e que não se verifica no caso dos autos –, tanto bastando para que o presente recurso deva ser imediatamente rejeitado.

E. Verdadeiramente idêntica à dos presentes autos é a situação do recurso decidido pelo Pleno da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo em acórdão proferido a 6 de Julho de 2016 (processo 063/16) que, em análise a uma situação em tudo semelhante à que ora se encontra em discussão, considerou não se verificar oposição de julgados quanto à mesma questão fundamental de direito, determinado o não prosseguimento do recurso;

F. O mesmo julgamento foi confirmado e decidido – igualmente numa situação em tudo semelhante à que ora se encontra em discussão – pelo Pleno da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão proferido em 16 de Novembro de 2016, no recurso 0815/16;

G. Em qualquer caso, atentas as conclusões do recurso formuladas pela Recorrente AT – as quais limitam o seu objecto – e constatando-se que em nenhuma delas é apontada qualquer censura concreta à sentença recorrida, esta deve em consequência manter-se integralmente na ordem jurídica, devendo determinar o não conhecimento do recurso ou a sua rejeição liminar, por falta de objecto;

H. Efectivamente, restringindo-se o recurso a uma suposta questão oposição de julgados, em parte alguma do seu recurso, logo aqui se incluindo as respectivas conclusões, a Recorrente demonstra tal oposição, senão numa ficção sobre exclusividade das facturas como meio de prova, a qual, verdadeiramente, nada tem a ver com o caso dos autos;

I. No caso concreto, admitir a reapreciação da decisão recorrida nestas condições implicaria uma interpretação contra legem do artigo 25.º do RJAT e totalmente contrária aos mais elementares princípios constitucionais, nomeadamente o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito, do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva de direitos e garantias dos administrados em violação de princípios e normativos constitucionais (cfr. artigos 2.º, 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP);

J. A Recorrente AT, com o seu recurso, mais não vem do que discordar da decisão, mas não concretiza as razões da sua discordância no caso concreto, nem quaisquer normas supostamente violadas, mais nem sequer esboça qual o sentido em que deveria ter sido proferida a decisão recorrida, no seu entender, ou propõe qualquer solução diferente, que devesse ter sido adoptada pelo tribunal a quo;

K. Efectivamente, no presente recurso limita-se a Recorrente a discorrer sobre um hipotético meio de prova exclusivo, em abstracto, que nada tem a ver com o caso concreto, de forma a justificar a admissibilidade do recurso ao abrigo do artigo 25.º, n.º 2 do RJAT;

L. Ora, sendo da Recorrente o ónus de concluir – cfr. artigo 639.º do CPC – e não o tendo feito como se demonstrou, nem concretizando a razão da discordância da decisão do Tribunal a quo – esta constituiu caso julgado, não podendo a mesma ser (re)apreciada neste recurso por se encontrar fora do objecto do mesmo;

M. Ao contrário do que parece tentar fazer crer a Recorrente, a decisão recorrida aplicou correctamente a lei na sua letra e no seu espírito, de forma amplamente sustentada nos meios de prova produzidos, bem como na jurisprudência relevante para fundamentar a decisão Recorrida;

N. E se a sentença recorrida se limitou a aplicar a lei, como aplicou – aderindo não só às normas aplicáveis como à jurisprudência relevante sobre a matéria – sem que tal aplicação tenha aliás merecido o mínimo reparo da parte da Recorrente – deve a decisão manter-se in totum na ordem jurídica.

Termos em que deve o presente recurso ser rejeitado, ou caso assim não seja desde logo entendido, decidir-se, pelas razões expostas, não tomar conhecimento do recurso, ou em qualquer caso ser-lhe negado provimento, devendo o douto acórdão recorrido manter-se integralmente na ordem jurídica, por nenhuma censura lhe ter sido ou poder ser-lhe apontada nos termos da lei».

1.4 Dada vista ao Ministério Público, o Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal não emitiu parecer.

1.5 Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir em conferência no Pleno desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.


* * *
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO

2.1.1 A decisão arbitral recorrida efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«Consideram-se como provados os seguintes factos, com relevância para a decisão, com base na prova documental junta aos autos:

(i) A Requerente foi notificada dos 332 actos de liquidação de IUC referente ao ano de 2012 em apreço nos autos – conforme notificações juntas como Docs. N.ºs 2 juntos com a petição inicial.

(ii) A Requerente apresentou reclamação, graciosa contra a liquidação de IUC das 332 liquidações em apreço, no valor global de € 62.097,37, respeitante a 332 veículos, todos novos, tendo sido indeferida a 3 de Abril de 2017 – Docs. N.ºs 10 e 1 juntos com a petição inicial.

(iii) A Requerente procedeu ao pagamento do IUC de cada um dos veículos em apreço – conforme Doc. N.º 11 junto com a petição.

(iv) A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio de veículos automóveis, representando diversas marcas, nomeadamente Volkswagen, Audi, Bentley, Lamborghini, Skoda e Volkswagen Veículos Comerciais sendo que os 332 veículos em causa foram todos comercializados pela Requerente no âmbito da sua actividade normal de venda de automóveis novos e em cumprimento dos referidos contratos de concessão ou acordos de fornecimento – conforme Docs. N.ºs 3 e 4 juntos com a petição.

(v) A Requerente apenas procedeu à matrícula dos veículos que encomenda, em execução dos referidos contratos e acordos de fornecimento quando já se encontram concretizadas as vendas e concluídos os negócios de acordo com o plano de entregas estipulado, nas condições de entrega requeridas pelas empresas de rent-a-car a fim de proceder à entrega dos veículos já matriculados.

(vi) Nenhum dos veículos aqui em causa, cuja liquidação do IUC do ano da matrícula se contesta, foi adquirido pela Requerente para si própria ou com intuito de deter a propriedade ou o uso do veículo após obtenção da matrícula em Portugal.

(vii) Em todos os 332 casos a Requerente procedeu à emissão da factura de venda até à data de atribuição da matrícula ao veículo em Portugal, conforme facturas juntas como anexo ao Doc. N.º 10 da petição.

(viii) No caso das vendas da Requerente a concessionários, a emissão da factura ocorre anteriormente à data da matrícula (sendo neste caso os veículos identificados na factura pelo número de “chassis”, e objecto de posterior nota de débito do ISV, já com matrícula); e no caso das empresas de rent-a-car, a data da factura coincide com a data da matrícula – Docs. N.ºs 10 juntos com a petição.

(ix) O registo inicial de propriedade foi feito a favor da Requerente.

Os factos dados por provados resultam da convicção do tribunal fundada no exame dos documentos juntos ao processo e na ausência de controvérsia sobre eles.

Não há factos não provados com interesse para a decisão da causa, considerando as possíveis soluções de direito».

2.1.2 No acórdão fundamento, efectuou-se o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«A decisão recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.113 a 115 dos autos):

1- A firma impugnante é uma sociedade que tem por objecto o aluguer de veículos automóveis, no âmbito da qual celebrou vários contratos de aluguer com os respectivos locatários, tendo estes últimos adquirido as viaturas ao abrigo do direito de opção de compra, no termo final dos respectivos contratos (cfr. documentos de facturação aos clientes juntos a folhas não numeradas do processo de reclamação graciosa apenso);

2- As viaturas em causa encontravam-se registadas no registo automóvel, à data do respectivo aniversário da data de matrícula relativo ao ano de 2008, em nome da impugnante (cfr. factualidade admitida pela impugnante no art. 51.º da p.i.; informação da A. Fiscal constante de fls. 65 e 66 dos presentes autos; projecto de decisão junto a fls. 16 e 17 do processo de reclamação graciosa apenso);

3- Foi efectuada a liquidação oficiosa do imposto pelos serviços competentes da DGI por falta de liquidação do mesmo por parte do s.p., da qual foi deduzida reclamação graciosa que mereceu decisão de indeferimento de 28/02/2013, com fundamento na informação dimanada dos serviços, tudo conforme consta de fls. 20 e 21 do processo de reclamação graciosa apenso (cfr. relação dos actos tributários relativos ao ano de 2008 constante de fls. 14 e 15 do processo de reclamação graciosa apenso);

4- A reclamação graciosa referida supra foi fundamentada na caducidade do direito de liquidação do imposto, o qual mereceu projecto de decisão de indeferimento, tendo o reclamante apresentado requerimento no exercício do direito de audição em que sustenta que já não era o s.p. do tributo em relação às viaturas aí identificadas, por já não ser proprietário dos veículos a que a mesma dizia respeito no ano a que se reporta a exigibilidade do imposto e por força dos contratos de aluguer que havia celebrado com os locatários e em cujo termo foi exercido a opção de compra das viaturas, assim como da declaração de perda de dois veículos por sinistro e furto (cfr. requerimentos apresentados pela reclamante constantes do processo de reclamação graciosa apenso).

A sentença recorrida considerou como factualidade não provada a seguinte: “… Dos factos com interesse para a decisão da causa e constantes da impugnação, todos objecto de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade supra descrita…”.

Por sua vez, a fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: “… A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais, não impugnados, que dos autos constam, tudo conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório …”.

Levando em consideração que a decisão da matéria de facto em 1ª. Instância se baseou em prova documental constante dos presentes autos e apenso e que a mesma foi impugnada parcialmente pelo recorrente este Tribunal considera não escrito o n.º 1 da factualidade provada e supra exarada, mais aditando ao probatório os seguintes factos, tudo nos termos do art. 662.º, n.º 1, do C.P.Civil (“ex vi” do art. 281.º, do C.P.P. Tributário):

5- A impugnante, “..........................., Lda.”, é uma sociedade que tem por objecto o aluguer de veículos automóveis e a prestação de serviços conexos (cfr. factualidade admitida no art. 47.º da p.i.);

6- A impugnante emitiu facturas relativas à venda dos veículos a que dizem respeito as liquidações de I.U.C. impugnadas (cfr. documentos de facturação aos clientes juntos a folhas não numeradas do processo de reclamação graciosa apenso);

7- A impugnante registou na sua contabilidade o montante do preço relativo às facturas emitidas e em dívida pelos adquirentes (cfr. notas de débito juntas a folhas não numeradas do processo de reclamação graciosa apenso).

Alicerçou-se a convicção do Tribunal, no que diz respeito à matéria de facto aditada, no teor dos documentos identificados na factualidade aditada e na análise dos mecanismos de admissão de factualidade por parte da impugnante/recorrida, enquanto espécie de prova admitida no âmbito da relação jurídico-fiscal, embora de livre apreciação pelo Tribunal (cfr. art. 361.º do C.Civil)».


*

2.2 DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

A AT veio, ao abrigo do disposto no art. 25.º, n.º 2, do RJAT, interpor recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo da decisão arbitral proferida pelo CAAD em 17 de Janeiro de 2018 no processo n.º 408/2017-T (Disponível em
https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?listPageSize=100&listPage=31&id=3161.), invocando contradição entre essa decisão e o acórdão (fundamento) da Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul de 19 de Março de 2015, proferido no processo n.º 8300/14 (Disponível em
http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/1a0e2c714d17cfbf80257e1300433b0f.), relativamente à questão que, se bem interpretamos as conclusões de recurso e as respectivas conclusões (nestas não se enunciou claramente qual a questão fundamental relativamente à qual haveria decisões contraditórias), será a de saber se a presunção constante do art. 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC), na redacção aplicável (Que é a da Lei n.º 82-B/2004, de 31 de Dezembro. A norma foi alterada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto.) – «São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados» – pode ou não considerar-se ilidida em face dos documentos apresentados nos autos.
Nos termos do n.º 2 do referido art. 25.º do RJAT, «[a] decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é […] susceptível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo»; dispõe o n.º 3 do mesmo artigo que a esse recurso «é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime do recurso para uniformização de jurisprudência regulado no art. 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, contando-se o prazo para o recurso a partir da notificação da decisão arbitral».
Assim, o regime de interposição do recurso da decisão arbitral para o Supremo Tribunal Administrativo difere do regime do recurso previsto no art. 152.º do CPTA, na medida em que aquele tem de ser apresentado no prazo de 30 dias contado da notificação da decisão arbitral, enquanto neste o prazo se conta do trânsito em julgado do acórdão recorrido, como decorre da alínea a) do n.º 2 do referido art. 152.º (Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, pág. 230.).
Já quanto ao acórdão fundamento, o recurso para uniformização de jurisprudência pressupõe o seu trânsito em julgado, como tem vindo a afirmar este Supremo Tribunal Administrativo (Vide os seguintes acórdãos do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 3 de Julho de 2013, proferido no processo n.º 1136/12, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/5de4971b1ddd0a7580257ba400383aad;
- de 18 de Setembro de 2013, proferido no processo n.º 1158/12, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/295e8f40a7270b6480257bf600347ab3;
- de 26 de Fevereiro de 2014, proferido no processo n.º 1470/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/8e637a116db5400680257c94005c11e8.), condição verificada no caso sub judice.
Assim, e não havendo dúvidas quanto aos demais requisitos formais (legitimidade da Recorrente e tempestividade do recurso), há que passar a averiguar se estão verificados os requisitos substanciais da admissibilidade do recurso.
Só depois, se for caso disso, passaremos a conhecer do mérito do recurso.

2.2.2 DOS REQUISITOS SUBSTANCIAIS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA

2.2.2.1 Nos termos do referido art. 25.º, n.º 2, do RJAT, que remete, com as devidas adaptações, para o art. 152.º do CPTA, os requisitos de admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão arbitral que tenha conhecido do mérito da pretensão deduzida para uniformização de jurisprudência são os seguintes: i) que exista contradição entre essa decisão e um acórdão proferido por algum dos tribunais centrais administrativos ou pelo Supremo Tribunal Administrativo, relativamente à mesma questão fundamental de direito, ii) que a orientação perfilhada pelo acórdão impugnado não esteja de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo.
No que ao primeiro requisito respeita, como tem sido inúmeras vezes explicitado pelo Pleno desta Secção relativamente à caracterização da questão fundamental sobre a qual deve existir contradição de julgados, devem adoptar-se os critérios já firmados no domínio do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) de 1984 e da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, para detectar a existência de uma contradição, quais sejam:

i. identidade da questão de direito sobre que recaíram os acórdãos em confronto, o que pressupõe uma identidade substancial das situações fácticas, entendida esta não como uma total identidade dos factos mas apenas como a sua subsunção às mesmas normas legais;
ii. que não tenha havido alteração substancial na regulamentação jurídica, a qual se verifica sempre que as eventuais modificações legislativas possam servir de base diferentes argumentos que possam ser valorados para determinação da solução jurídica;
iii. que se tenha perfilhado, nos dois arestos, solução oposta e esta oposição decorra de decisões expressas, não bastando a simples oposição entre razões ou argumentos enformadores das decisões finais ou a invocação de decisões implícitas ou a pronúncia implícita ou consideração colateral tecida no âmbito da apreciação de questão distinta.

2.2.2.2 Começaremos por apreciar se estão verificados os requisitos da alegada contradição de julgados à luz dos supra referidos princípios, já que a sua inexistência obstará, lógica e necessariamente, ao conhecimento do mérito do recurso.
Cumpre ter presente que a AT tem vindo a recorrer de idênticas decisões do CAAD com fundamento em oposição de acórdãos, invocando sempre como fundamento o mesmo acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, sendo que esta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a pronunciar-se sempre no mesmo sentido e por unanimidade (Vide os seguintes acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 6 de Julho de 2016, proferido no processo n.º 63/16, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/5f655516593123ba80257fee00520065;
- de 16 de Novembro de 2016, proferido no processo n.º 815/16, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/8ca0f3fa4ee9248780258073005bd903;
- de 14 de Dezembro de 2016, proferido no processo n.º 535/16, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/fff715925e1bf4c28025808e00564228;
- de 25 de Janeiro de 2017, proferido no processo n.º 589/16, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/ae2f1ade63b2a53e802580c1003eb4bd.).
Assim, vamos reproduzir o texto do primeiro dos referidos acórdãos do Pleno desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 6 de Julho de 2016 no processo n.º 63/16, onde a situação sub judice era em tudo semelhante à dos presentes autos. Aí ficou dito:

«A decisão arbitral recorrida julgou procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando os actos de liquidação de IUC respeitantes a todos os veículos identificados nos autos referentes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012 [2012, no nosso caso], anulando-os e condenando a AT ao reembolso do imposto pago e ao pagamento de juros indemnizatórios, no entendimento de que o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, consagra uma presunção ilidível de que os proprietários dos veículos – sujeitos passivos do imposto – são as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados, presunção esta que foi julgada ilidida pelos meios de prova apresentados pela Requerente, julgados adequados e capazes de ilidir a presunção decorrente do registo, julgando provado – com base nas facturas de venda e nos termos de responsabilidade, nos quais os adquirentes dos veículos confirmam a compra –, que os veículos haviam sido vendidos pela Requerente em momento anterior ao da exigibilidade do imposto, razão pela qual entendeu que as liquidações de IUC efectuadas à Requerente enfermavam de vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito.
O Acórdão fundamento, por seu turno, concedeu provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública de sentença que julgara procedente impugnação de IUC, revogando a sentença na parte em que julgara procedente a impugnação e anulara as liquidações sindicadas, julgando, ao invés, improcedente a impugnação. Consignando, embora, que o art. 3.º, n.º 1, do C.I.U.C., consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível, por força do art. 73.º, da L.G.T., entendeu igualmente que a ilisão da presunção obedece à regra constante do art. 347.º, do C.Civil, nos termos do qual a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto, não bastando à parte contrária opor a mera contraprova (…), antes lhe cabendo provar que não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas, o que não logrou fazer através dos meios de prova que apresentou – facturas e notas de débito –, dado tratar-se de meros documentos particulares e unilaterais, cuja emissão não supõe a intervenção da contraparte no alegado acordo, assim tendo um reduzido valor para provar a existência de um contrato sinalagmático, como é a compra e venda.
Os arestos em confronto consignam, ambos, que o artigo 3.º, n.º 1 do Código do Imposto Único de Circulação, consagra uma presunção legal, ilidível, de que é proprietário do veículo quem como tal figure no registo, mas deram resposta divergente à questão de saber se, nos autos respectivos, fora ou não ilidida tal presunção, resposta esta afirmativa, no caso da decisão arbitral recorrida, e negativa, no caso do acórdão fundamento, sendo o diverso juízo afirmado num e noutro baseado na diversa apreciação dos parcialmente diversos meios de prova apresentados pelos requerentes/impugnantes nos respectivos juízos.
É certo que o acórdão fundamento consigna que a presunção estabelecida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, porque decorrente do registo, apenas poderia ser afastada por prova em contrário, nada tendo consignado a decisão arbitral recorrida a tal respeito, sendo certo que, contrariamente ao alegado, os meios de prova que apreciou não se consubstanciam apenas nas facturas de venda, mas também nos termos de responsabilidade emitidos pelos adquirentes dos veículos, razão pela qual não é sério dizer que os elementos de prova eram, também neste caso, unilaterais, no sentido de que emitidos pelo próprio alienante.
Não há, por isso, quanto à prova requerida para ilidir a presunção, divergência, ao menos expressa, sobre a questão.
Daí que, como bem assinalado pelo Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, se entenda que o que está em causa é uma diferente avaliação e valoração da prova, tendo em vista a elisão da presunção do artigo 3.º/1 do CIUC e não uma contradição sobre a mesma questão fundamental de direito.
Conclui-se, pois, não haver entre a decisão arbitral recorrida e o Acórdão invocado como fundamento oposição quanto à mesma questão fundamental de direito, razão pela qual não deve o presente recurso prosseguir».
Subscrevemos esse entendimento, de que as questões de valoração da prova não podem servir de fundamento ao recurso para uniformização de jurisprudência.
A oposição entre os arestos situa-se num plano simplesmente de facto: o acórdão recorrido julgou que a prova produzida lhe permitia afastar a referida presunção, ou seja, que os elementos de prova juntos aos autos foram suficientes para que o tribunal arbitral formasse a sua convicção quanto à transmissão da propriedade dos veículos automóveis, enquanto o acórdão fundamento entendeu, com base em meios de prova parcialmente idênticos, que a prova produzida não era bastante para ilidir a presunção.
Essa discrepância verifica-se em sede de julgamento de facto, pelo que não afirmar-se que as decisões em confronto tenham decidido a mesma questão fundamental de direito em sentido divergente, divergência essa poderia servir de fundamento ao presente recurso para uniformização de jurisprudência.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - O recurso para o Supremo Tribunal Administrativo de decisão arbitral pressupõe que se verifique, entre a decisão arbitral recorrida e o acórdão invocado como fundamento, oposição quanto à mesma questão fundamental de direito (cfr. o n.º 2 do art. 25.º RJAT), não devendo, ainda, o recurso ser admitido se, não obstante a existência de oposição, a orientação perfilhada no acórdão impugnado estiver de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo (cfr. o n.º 3 do art. 152.º do CPTA, aplicável ex vi do disposto no n.º 3 do art. 25.º do RJAT).

II - Não havendo entre o acórdão arbitral recorrido e o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo apresentado como fundamento contradição sobre a mesma questão fundamental de direito, não deve tomar-se conhecimento do mérito do recurso.


* * *

3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes do Pleno da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam em não tomar conhecimento do mérito do recurso.

Custas pela Recorrente.

Comunique-se ao CAAD.

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Lisboa, 27 de Junho de 2018. – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) – Pedro Manuel Dias Delgado – Ana Paula da Fonseca Lobo – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia – Isabel Cristina Mota Marques da Silva – António José Pimpão – Dulce Manuel da Conceição Neto – José da Ascensão Nunes Lopes.