Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0847/12
Data do Acordão:10/17/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PEDRO DELGADO
Descritores:RECLAMAÇÃO DE ACTO PRATICADO PELO ÓRGÃO DA EXECUÇÃO FISCAL
FIEL DEPOSITÁRIO
RECLAMAÇÃO
LEGITIMIDADE
QUESTÃO NOVA
Sumário:I - O princípio genérico de que o recurso visa a impugnação da decisão recorrida, mediante o reexame do que nela se tiver discutido e apreciado, e não a apreciação de questões novas, não abrange as questões novas de conhecimento oficioso e não decididas com trânsito em julgado.
II - A decisão do órgão de execução fiscal que indefere um pedido de dispensa de entrega e apreensão dos documentos de identificação dos veículos penhorados contende com os interesses da executada mas não com os interesses da requerente, fiel depositária.
III - Por isso tal decisão não constitui acto lesivo, com repercussão negativa imediata na esfera jurídica da depositária.
IV - Neste contexto não tem a depositária legitimidade para reclamar de tal decisão nos termos e para os efeitos do disposto no artº 276º do Código de Procedimento e Processo Tributário.
Nº Convencional:JSTA000P14709
Nº do Documento:SA2201210170847
Data de Entrada:07/23/2012
Recorrente:A....
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1 – Vem, A……, na qualidade de fiel depositária, com os demais sinais dos autos, recorrer para este Supremo Tribunal da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel de 22 de Maio de 2012, que indeferiu liminarmente a reclamação por si deduzida contra o despacho que lhe indeferiu o pedido de dispensa de apresentação de documentos dos veículos automóveis penhorados.

Termina as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:

«1ª— A sentença recorrida considera que, face ao disposto no nº 2 do artigo 851° do Código de Processo Civil, não pode admitir-se, também em processos executivos de natureza fiscal, a dispensa da apreensão dos documentos de veículos automóveis penhorados;
Sucede,

2ª— Que a citada norma do processo civil remete para dispositivos do Código da Estrada cuja previsão é, efectivamente, a da apreensão de documentos de veículos, salvaguardando embora as necessárias adaptações”;

Por outro lado,

3ª — O regime legal da penhora de automóveis em processo civil padece duma lacuna resultante da falta de publicação da portaria, do membro do Governo responsável pela área da Justiça, prevista na parte final do artigo 851°, nº 2, do Código de Processo Civil;

4ª — Adaptações e lacuna que devem ser interpretadas e integradas, na situação dos presentes, à luz dos princípios do procedimento tributário e garantias dos contribuintes previstos, nomeadamente, no artigo 55º da Lei Geral Tributária;

Acresce,

5ª - Que não se justifica a aplicação subsidiária do regime do processo civil à penhora de automóveis e outros bens móveis sujeitos a registo, uma vez que não se trata de casos omissos, verificando-se antes a existência de previsão legal aplicável, qual seja a do artigo 230º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

6ª — Assim não entendendo, a douta sentença recorrida, de indeferimento liminar do pedido de revogação do despacho reclamado, violou, para além das supra. citadas normas legais, o artigo 234° - A, nº 1, do Código de Processo Civil uma vez que a questão jurídica em referência não dispõe da simplicidade e evidência impostas para a aplicação deste dispositivo;»

2 – A Fazenda Pública não apresentou contra alegações.
3 – O Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu o douto parecer, com o seguinte conteúdo:

«A recorrente à margem identificada vem, na qualidade de fiel depositária, sindicar a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, de 22 de Maio de 2012, exarada a fls. 189/190.

A decisão recorrida indeferiu liminarmente a PI de RAOEF, no entendimento de que o pedido de anulação do acto do OEF que indeferiu pedido de dispensa da entrega e apreensão dos documentos dos veículos automóveis penhorados nos autos é manifestamente improcedente.

A recorrente termina as suas alegações com as conclusões de fls. 198/199, que, como é sabido, delimitam o objecto do recurso, nos termos do estatuído nos artigos 684.°/3 e 685°-A/1 do CPC, e que aqui se dão por inteiramente reproduzidas para todos os efeitos legais.

Não houve contra-alegações.

A nosso ver o recurso não merece provimento.

A recorrente pretende que se revogue a decisão que inferiu liminarmente reclamação deduzida do despacho do OEF que indeferiu pedido de dispensa de entrega e apreensão dos documentos dos veículos automóveis penhorados nos autos para garantia de pagamento da obrigação exequenda.

Os veículos em causa foram penhorados ao abrigo do estatuído no artigo 230. ° do CPPT.

Como refere o Juiz Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (Código de Procedimento e de Processo tributário, anotado e comentado, 6ª edição 2011, III volume, pagina 636), “No art. 851º do CPC incluem-se normais especiais relativas à penhora de veículos automóveis, navios despachados e aeronaves, em que se prevê, além do mais a apreensão dos respectivos documentos e medidas para obstar a que os bens penhorados sejam utilizados.

Não há no CPPT, nem no art. 221º nem no art. 230º, remissão para estas normas, mas na alínea a) do art. 221º, para a penhora da generalidade de bens móveis, prevê-se que eles sejam «efectivamente apreendidos e entregues a um fiel depositário idóneo» o que supõe, para que ela seja «efectiva» que se tomem as providências necessárias para os bens penhorados não serem utilizados, o que abre a porta à aplicação subsidiária das medidas previstas nos nºs 2 a 4 daquele art. 851º”

Portanto, o estatuído no artigo 851°/2/3 do CPC aplica-se, subsidiariamente, à penhora de veículos feita em processo de execução fiscal.

Assim, a penhora do veículo é seguida da sua imobilização, nomeadamente, através da apreensão dos documentos de identificação respectivos, só assim se tornando efectiva a penhora.

A alegada falta de publicação da Portaria a que se refere o artigo 851°/2 do CPC e a expressão “com as necessárias adaptações», a nosso ver, em nada contendem com o que se referiu. Ou seja, a penhora efectiva do veículo pressupõe, logicamente, a apreensão dos respectivos documentos de identificação.

O acto sindicado do OEF, que indeferiu o pedido de dispensa da entrega e apreensão dos documentos dos veículos penhorados não é, manifestamente, impugnável por falta de lesividade, nos termos do estatuído no artigo 276° do CPPT e 268°/4 da CRP.

Efectivamente, como resulta dos pontos A e B do probatório, no PEF foram penhorados os veículos ali referidos através de comunicação electrónica à competente conservatória.

Ora, este acto de penhora é que é, na verdade, o acto lesivo do qual poderia a executada reclamar judicialmente sendo certo que conforme resulta dos autos e do probatório aquela não o fez.

Portanto, o acto de penhora “transitou”, ou, melhor dizendo, faz caso decido ou resolvido.

O acto, ora sindicado mais não é do que um acto subsequente ao acto lesivo da efectivação da penhora, imposto pelo artigo 851°/2 do CPC e que a AT, sujeita ao princípio da legalidade, não podia deixar de cumprir.

De facto, nos termos do citado normativo, e como já se referiu, a ordenada penhora dos veículos implica a sua imobilização, designadamente mediante a apreensão dos respectivos documentos.

É exactamente esta ordem de entrega dos documentos atinentes aos veículos penhorados que a recorrente sindica e que, como já se disse não é autonomamente sindicável, uma vez que o acto lesivo se consubstanciou na penhora efectiva dos veículos, e dado que a executada não a sindicou sibi imputet.

E, pois, manifesta a improcedência da pretensão deduzida, o que constitui fundamento de indeferimento liminar da PI.

Acresce que, em nosso entendimento, a recorrente é, ainda, parte ilegítima, nos termos e para os efeitos do estatuído no artigo 276° do CPPT, o que constitui, também, fundamento de indeferimento liminar (artigos 89°/l/d) do CPTA e 234º -A e 494º do CPC).

É certo que das decisões do OEF relativas ao fiel depositário cabe reclamação para o juiz do tribunal tributário competente, nos termos do estatuído nos artigos 276.° a 278.° do CPPT, para cuja dedução tem legitimidade, desde que a decisão contenda como os seus interesses. Será o caso, por exemplo, do depositário que tenha sido removido do cargo pelo OEF.
Ora, no caso em análise a decisão do OEF não contende com os interesses da recorrente, enquanto tal, mas sim com os interesses da executada.

De facto, a recorrente/fiel depositária requereu a dispensa da entrega e apreensão dos documentos de identificação dos veículos penhorados, com o fundamento de que tal apreensão implica a paragem da actividade comercial da executada.

Ora, como parece claro, a decisão do OEF que indefere tal pretensão contende com os interesses da executada e não da recorrente, enquanto fiel depositária.

Portanto, também por esta via a pretensão da recorrente não poderia deixar de ser liminarmente indeferida.
Termos em que, pelas razões apontadas, deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida na ordem jurídica.

4 – Notificadas as partes para se pronunciarem, querendo, sobre esta questão da ilegitimidade da recorrente, suscitada pelo MP no seu parecer a fls. 219/221, nada vieram dizer.

5 – Sem vistos, dada a natureza urgente do processo, vêem os autos à conferência.

6- Em sede factual apurou-se em primeira instância a seguinte matéria de facto:
A) No PEF foram penhorados, entre outros, os veículos com as matriculas ……, ……, ……, ……, ……, ……, ……, …… e ……, tendo a reclamante sido nomeada fiel depositária (fls.130 a 141 e 156 e verso).

B) A penhora dos referidos veículos foi realizada por comunicação electrónica à conservatória competente (fls. 130 a 145, 148 e 164).

C) Em 3/4/2012 a reclamante requereu a dispensa da entrega dos documentos desse veiculo, pelo requerimento de fls. 157 e 158, cujo teor aqui se dá por reproduzido (fls. 157 a 160).

D) Com base na informação constante de fls. e verso, cujo teor aqui se dá por reproduzido, o órgão de execução fiscal, por despacho de 24/4/2012, constante de fls. 165, cujo teor aqui se dá por reproduzido, indeferiu o pedido da reclamante (fls. 164 a 165).

7. Do mérito do recurso.

Tanto quanto se apura das conclusões das alegações de recurso são as seguintes as questões trazidas à apreciação deste tribunal:

- saber se a decisão recorrida incorre em erro de direito ao julgar que o disposto no nº2 e 3 do artigo 851º do Código de Processo Civil é subsidiariamente aplicável à penhora efectuada em processo de execução fiscal;
- saber se o despacho de indeferimento liminar recorrido violou também o artigo 234° - A, nº 1, do Código de Processo Civil, uma vez que, segundo alega a recorrente, a questão jurídica em referência não dispõe da simplicidade e evidência impostas para a aplicação deste dispositivo.

7.1 Cumpre porém, previamente, apreciar uma questão suscitada pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu parecer a fls. 219/221, questão esta relativa à ilegitimidade da recorrente nos termos estatuídos no artº 276º do CPPT.

Sustenta o Ministério Público, neste tribunal que, nos termos do estatuído nos artigos 276.° a 278.° do Código de Procedimento e Processo Tributário, o fiel depositário tem legitimidade para deduzir reclamação das decisões do OEF para o juiz do tribunal tributário competente, desde que a decisão contenda como os seus interesses. Será o caso, por exemplo, do depositário que tenha sido removido do cargo pelo OEF.
E conclui que, no caso em análise a decisão do OEF não contende com os interesses da recorrente, enquanto tal, mas sim com os interesses da executada, pelo que também por esta via a pretensão da recorrente não poderia deixar de ser liminarmente indeferida.

Notificadas as partes para se pronunciarem sobre a aludida questão da ilegitimidade da recorrente nos termos estatuídos no artº 276º do Código de Procedimento e Processo Tributário, nada vieram dizer.

Vejamos então a questão suscitada pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto.
Importa desde logo notar que se trata de uma questão nova que não foi apreciada pelo tribunal recorrido, por lá não ter sido suscitada, pese embora de conhecimento oficioso.

Ora, como é sabido, e é jurisprudência uniforme, os recursos são específicos meios de impugnação de decisões judiciais, que visam modificar as decisões recorridas, e não criar decisões sobre matéria nova. (Cf. entre outros, os Acórdãos deste Supremo Tribunal Administrativo de 04.12.2008, rec. 840/08 e de 30.10.08, rec.112/07, e do Supremo Tribunal de Justiça, recurso 259/06.0TBMAC.E1.S1, todos in www.dgsi.pt.)

Por isso, e em principio, não se pode neles tratar de questões que não tenham sido apreciadas pela decisão impugnada.

Contudo, como é também jurisprudência uniforme, o princípio genérico de que o recurso visa a impugnação da decisão recorrida, mediante o reexame do que nela se tiver discutido e apreciado, e não a apreciação de questões novas, não abrange, as questões novas de conhecimento oficioso e não decididas com trânsito em julgado.

São questões oficiosamente cognoscíveis, por exemplo, o abuso do direito, os pressupostos processuais, gerais ou especiais, a inconstitucionalidade de uma norma aplicável ao litígio ou caducidade de direito indisponível (Ver neste sentido Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pág. 81.).

Por outro lado, embora nos recursos jurisdicionais se deva mover no âmbito definido ao recurso nas alegações pelo recorrente, o Ministério Público tem legitimidade para suscitar outras questões de legalidade (para além das suscitadas pelas partes no processo) nos termos das suas competências legais – cfr. o artigo 51.º do ETAF e artigo 279.º do Código de Procedimento e Processo Tributário.

No caso o Ministério Público suscitou a questão da legitimidade do fiel depositário para deduzir reclamação para o juiz do tribunal tributário competente de decisão do órgão de execução fiscal.

Ora a ilegitimidade de alguma das partes constitui excepção dilatória de conhecimento oficioso nos termos dos arts. 494º, al. e) e 495º do Código de Processo Civil.

Daí que se entenda que este Tribunal dela deva conhecer em sede do presente recurso.

7.2 E conhecendo diremos, desde já, que assiste razão ao Exmº Procurador-Geral Adjunto.

Com efeito nos termos do artº276º do Código de Procedimento e Processo Tributário as decisões proferidas pelo órgão da execução fiscal e outras autoridades da administração tributária que no processo afectem os direitos e interesses legítimos do executado são susceptíveis de reclamação para o tribunal tributário de l.ª instância.

A doutrina vem entendendo que embora neste art. 276.° se faça referência apenas ao executado como reclamante, a L.G.T. assegura tal direito a qualquer interessado (art. . 103.°, n.° 2, desta Lei) pelo que, em face da supremacia da normas da L.G .T . sobre as deste Código (art . l .° deste e alínea c), do n.° 1 do art. 51.° da Lei n.° 87-B/98, de 31 de Dezembro), deverá interpretar-se aquele art. 276.° em consonância com este n.° 2 do art. 103º (cf. Jorge Lopes de Sousa, no seu Código de Procedimento e Processo Tributário anotado, vol. III, pag. 645).

Também é esse o nosso entendimento no que respeita às decisões do órgão de execução fiscal relativas ao depositário.

Ponto é que tais decisões contendam com os seus interesses ou direitos legítimos e nomeadamente que tenham repercussão negativa imediata na sua esfera jurídica. (Vide, também neste sentido, Jorge Lopes de Sousa, ob. citada, vol. III, pag. 269.)

Ora a recorrente/fiel depositária requereu a dispensa da entrega e apreensão dos documentos de identificação dos veículos penhorados, com o fundamento de que «a efectiva apreensão acarretará profundos danos e avultados encargos à sociedade «B……, Ldª, que assim se verá impedida de pode cumprir as suas responsabilidades e os seus compromissos comerciais e, consequentemente, de regularizar, entre outras, as suas obrigações tributárias»- cf. requerimento de fls. 173 e segs..

Como é evidente, e bem nota o Exmº Procurador-Geral Adjunto no parecer supra referido, esta decisão do órgão de execução fiscal que indefere tal pretensão contende com os interesses da executada «B……, Ldª», mas não com os interesses da recorrente, enquanto fiel depositária.

Por isso se entende que tal decisão não constitui acto lesivo, com repercussão negativa imediata na esfera jurídica da depositária, e que, consequentemente, a mesma é parte ilegítima nos termos e para os efeitos do disposto no artº 276º do Código de Procedimento e Processo Tributário, o que, para todos os efeitos, constitui também fundamento de indeferimento liminar (arts. 234º.A e 484º do Código de Processo Civil).

Neste contexto, e pese embora com fundamentação diversa, não pode ter-se como merecedor de censura o despacho recorrido, ficando, desta forma, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas, nomeadamente a questão da aplicação subsidiária do no nº2 e 3 do artigo 851º do Código de Processo Civil ao processo de execução fiscal e a questão da eventual violação do artigo 234° - A, nº 1, do Código de Processo Civil.

8. Decisão

Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso e confirmar, com esta fundamentação, o despacho recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 17 de Outubro de 2012. - Pedro Delgado (relator) - Valente Torrão - Ascensão Lopes.