Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0765/16.8BELRS 0240/18
Data do Acordão:10/14/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOAQUIM CONDESSO
Descritores:UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
MELHOR APLICAÇÃO DO DIREITO
PROCESSO
CONTRA-ORDENAÇÃO
PENA DE ADMOESTAÇÃO
COMPETÊNCIA
Sumário:I - Os dois fundamentos possíveis do recurso previsto no artº.73, nº.2, do R.G.C.O., são, nos termos da norma, a promoção da uniformidade da jurisprudência e a melhoria da aplicação do direito. Portanto, o recurso previsto no artº.73, nº.2, do R.G.C.O., somente pode ter por fundamento questões de direito.
II - A "melhoria da aplicação do direito" está em causa quando se trate de uma questão jurídica que preencha os seguintes três requisitos:
a-Ser relevante para a decisão da causa;
b-Ser uma questão necessitada de esclarecimento e;
c-Ser passível de abstracção, isto é, ser uma questão que permite o isolamento de uma ou mais regras gerais aplicáveis a outros casos práticos similares.
III - Por outras palavras, a citada expressão, "melhoria da aplicação do direito", deve interpretar-se como abrangendo todas as situações em que existem erros claros na decisão judicial, situações essas em que, à face de entendimento jurisprudencial amplamente adoptado, repugne manter na ordem jurídica a decisão recorrida, por ela constituir uma afronta ao direito.
IV - Já a "promoção da uniformidade da jurisprudência" está em causa quando a sentença recorrida consagra uma solução jurídica que introduza, mantenha ou agrave diferenças dificilmente suportáveis na jurisprudência. O simples erro de direito não é bastante, sendo necessário que o erro tenha inerente um perigo de repetição. Este perigo de repetição verifica-se, designadamente, quando se aplicam sanções muito diferenciadas a situações de facto similares ou quando se violam princípios elementares do direito processual.
V - No caso "sub judice", deve o presente salvatério ser admitido ao abrigo do examinado artº.73, nº.2, do R.G.C.O., dado que nos encontramos perante situação em que o Tribunal "a quo" violou jurisprudência uniforme dos Tribunais Superiores, nomeadamente, do Supremo Tribunal Administrativo, em sede de exame dos pressupostos de aplicação do regime de dispensa da coima consagrado no artº.32, nº.1, do R.G.I.T.
VI - Em sede contra-ordenacional a admoestação encontra-se prevista no artº.51, do R.G.C.O., aplicável "ex vi" do artº.3, al.b), do R.G.I.T., às contra-ordenações tributárias. Estamos face a pena/sanção alternativa à coima, assente numa reduzida gravidade da contra-ordenação e sempre que a culpa do agente o justifique.
VII. O exame dos aludidos pressupostos da sanção admonitória (reduzida gravidade da contra-ordenação e da culpa do agente) reconduz-se à apreciação de questões de facto, na medida em que têm de ser inferidos de factos materiais, segundo a livre convicção do julgador e em conjugação com as regras da experiência comum. Ora, a estruturação desses juízos de facto está excluída do âmbito da competência deste Supremo Tribunal Administrativo.
(sumário da exclusiva responsabilidade do relator)
Nº Convencional:JSTA000P26487
Nº do Documento:SA2202010140765/16
Data de Entrada:03/07/2018
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............, LDA.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACÓRDÃO
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RELATÓRIO
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O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA deduziu recurso dirigido a este Tribunal tendo por objecto decisão proferida pelo Mº. Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa, exarada a fls.103 a 105 do presente processo de recurso de contra-ordenação, através da qual julgou procedente o salvatério deduzido pela sociedade ora recorrida, dado se encontrarem reunidos os pressupostos de aplicação do regime de dispensa de coima previsto no artº.32, do R.G.I.T., em virtude do que revogou o despacho de aplicação de coima, tudo no âmbito do processo de contra-ordenação nº.1597-2015/60000114636, o qual corre seus termos no 1º. Serviço de Finanças de Vila Franca de Xira.
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O recorrente termina as alegações do recurso (cfr.fls.112 a 122 do processo físico) formulando as seguintes Conclusões:
A-Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença que julgou procedente o recurso de contraordenação apresentado nos termos do disposto no art. 80º do RGIT e revogou a decisão de aplicação da coima à recorrente no processo de contraordenação n.º 15972015060000114636, através do qual lhe foi aplicada a coima de € 6.420,59, acrescida de custas, no valor de € 76,50, pela prática da infracção prevista e punida pelos arts. 27.º, n.º1 e 41.º, n.º1, al.a) do CIVA – Falta de pagamento do imposto e 114.º, n.º2, n.º5, al.a) e 26.º, n.º4, do RGIT – Falta de entrega da prestação tributária dentro do prazo;
B-Atenta a aplicação do art.º 73.º, n.º 2, do Ilícito de Mera Ordenação Social, aqui subsidiariamente aplicável ex vi do disposto no art.º 3.º, al. b), do Regime Geral das Infrações Tributárias, entende-se que se afigura manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência;
C-A douta decisão recorrida decidiu em sentido contrário à jurisprudência consolidada, ou seja, a falta de entrega da prestação tributária nos cofres do Estado no prazo legal ocasiona prejuízo efectivo para a receita tributária, que preclude a possibilidade de dispensa da aplicação da coima, nos termos do art.32.º n.º1 do RGIT, independentemente da regularização da situação tributária, ou do grau diminuto de culpa;
D-O Ilustre Tribunal “a quo” considerou provado que a ora Recorrida, por lapso, entregou à Segurança Social o montante devido para cumprimento da obrigação da entrega do IVA, referente ao período 2015/15. Por outro lado, e quanto ao mérito da causa, considerou o Tribunal “a quo” que estão preenchidos os requisitos para a dispensa de pagamento da coima por não ter ocorrido prejuízo efectivo para a receita tributária, não ser controvertida a responsabilidade no incumprimento e ter sido efectuado o pagamento do imposto;
E-A decisão ora recorrida, não perfilhou, com o devido respeito, e salvo sempre melhor entendimento, a acertada solução jurídica no caso sub-judice, porquanto, não aplicou corretamente o conceito de prejuízo efectivo à receita tributária à atuação da Recorrida;
F-O n.º 1 do art. 32.º do RGIT, exprime literalmente não poder haver um prejuízo efectivo à receita tributária. A apreciação do prejuízo efectivo à receita tributária não aporta a regularização do pagamento, mas antes a outras circunstâncias anteriores à regularização do imposto em falta;
G-A jurisprudência e a doutrina há muito tempo que têm vindo a debruçar-se sobre o conceito de prejuízo efectivo à receita tributária, pelo que importa atentar ao que vem sendo aclarado, nomeadamente por este tribunal: Acórdão do STA de 06-02-2002, Proc. 26216, Acórdão do TCA Sul de 21-12-2005, Proc.806/05, Acórdão do TCA Sul de 14-02-2006, Proc.941/05, Acórdão do STA de 16-04-2008, Proc.044/08, Acórdão do STA de 01-10-2014, Proc.01665/13;
H-Em suma, é jurisprudência consolidada que, ao contrário do vertido na douta decisão recorrida, que, a falta de entrega da prestação tributária nos cofres do Estado no prazo legal ocasiona prejuízo efectivo para a receita tributária, que preclude a possibilidade de dispensa da aplicação da coima, independentemente do eventual diminuto grau de culpa evidenciado pelo comportamento do arguido;
I-Ou seja, não é valorizado para efeitos prejuízo efectivo, que o pagamento tenha sido efectuado a efectuado a outra instituição por lapso, que tenha regularizado a situação quando foi notificado para pagamento dos juros e que não seja controvertida a sua responsabilidade no incumprimento da obrigação;
J-O Acórdão 356/2010, de 07-07-2010, referido na douta decisão recorrida, vai no sentido do que se vem acalentando, pelo que, com o devido respeito que é muito, não se compreende, ou alcança, a apreciação jurisdicional gizada na douta decisão recorrida;
K-Ou seja, o Acórdão 356/2010 citado na douta decisão recorrida, vai no sentido que vimos defendendo, e na esteira dos Acórdãos supra referidos;
L-Assim sendo, é entendimento da Representação da Fazenda Pública que o Tribunal “a quo”, com a decisão ora em crise, violou o disposto no artigo 32.º n.º1 do RGIT ao considerar que no caso, não se controvertendo nos autos o reconhecimento, por parte da recorrente, da sua responsabilidade no incumprimento da obrigação de entrega do imposto no prazo e, tendo a Recorrida procedido, por outro lado, ao pagamento da quantia em dívida, na apontada data, e apenas por lapso efectuou o pagamento à Segurança Social, concluiu que se encontram preenchidos os requisitos para a dispensa de pagamento da coima;
M-Antes o artigo 32.º n.º1 do RGIT, deveria ter sido interpretado no sentido de que a falta de entrega da prestação tributária nos cofres do Estado no prazo legal ocasiona prejuízo efectivo para a receita tributária, que preclude a possibilidade de dispensa da aplicação da coima previsto no n.º1 do art.32.º do RGIT, independentemente do eventual diminuto grau de culpa evidenciado pelo comportamento do arguido.
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A sociedade arguida produziu contra-alegações no âmbito da instância de recurso (cfr.fls.125 a 130 do processo físico), as quais encerra com o seguinte quadro Conclusivo:
A-A Recorrente fundamenta o seu recurso no facto de, no seu entendimento, a Douta Sentença não ter perfilhado a acertada solução jurídica no caso sub-judice, porquanto não aplicou correctamente o conceito de prejuízo efectivo à receita tributária à actuação da Recorrida;
B-Compulsados os autos e as doutas alegações apresentadas pela Recorrente, é forçoso concluir que o presente recurso deve improceder;
C-Resulta da matéria provada que a Recorrida não entregou o montante devido a título de IVA referente ao período de 2015/15 por mero lapso, uma vez que o entregou à Segurança Social;
D-E que, mesmo antes de ter sido notificada do processo de contra-ordenação e para exercer o seu direito de defesa, liquidou o imposto em falta, acrescido de juros de mora;
E-Perante os factos em concreto, não se alcança como pode ter existido prejuízo efectivo para a receita tributária;
F-A própria Recorrente não indica o valor em que, em concreto, a receita tributária ficou prejudicada, limitando-se a afirmar que a actuação da Recorrida causou prejuízo efectivo apenas porque o imposto foi, por lapso, entregue fora de prazo;
G-O artigo 32.º do RGIT é aplicável a todas as coimas, independentemente da norma que as preveja;
H-Para se apurar a existência de prejuízo efectivo para a receita tributária há que atender às circunstâncias do caso em concreto, designadamente à data da entrega do imposto, ao tempo decorrido entre o termo do prazo para o cumprimento da obrigação e a efectiva entrega do imposto e também à liquidação dos juros e das custas, para além de outros aspectos relevantes;
I-A noção de prejuízo efectivo exige que o mesmo se determine e se apure em concreto, atendendo às circunstâncias próprias de cada caso, pois de outro modo existiria sempre prejuízo, em abstracto;
J-O que implicaria não admitir em caso algum a dispensa de coima, mesmo tratando-se da entrega tardia do imposto motivada por lapso compreensível e justificável, como foi o caso, acompanhada do pagamento imediato de juros que repararam o atraso, bem como das custas processuais;
K-Estamos em crer que quis o legislador que assim não fosse, e que o prejuízo tem que ser concreto, real, verdadeiro, como o próprio nome indica, efectivo;
L-Ou seja, o prejuízo efectivo não pode ser um mero conceito abstracto e de aplicação automática, proveniente apenas e tão só da constatação da entrega do imposto fora de prazo;
M-Ora, tendo sido entregue o imposto devido 16 dias depois do termo do prazo e liquidados os juros antes mesmo de lhe ter sido instaurado processo de contra-ordenação e aplicada a coima a Recorrida não causou prejuízo efectivo à receita tributária;
N-Pelo exposto, é forçoso concluir que se encontram preenchidos os requisitos para a dispensa da coima, devendo manter-se a decisão proferida do Tribunal "a quo", que determinou a revogação da decisão de aplicação da coima à Recorrida;
O-Não prescindindo do supra alegado, mas por cautela, dir-se-á ainda o seguinte;
P-A coima aplicada à Recorrida afigura-se manifestamente desproporcional e desadequada atendendo aos factos que ficaram provados e que de modo algum foram contestados pela Recorrente;
Q-Pelo que, ainda que alguma coima deva ser aplicada à Recorrida, o que apenas por mera hipótese se admite, deverá a mesma ser especialmente atenuada e convertida em admoestação, hipótese que também foi equacionada pela Recorrida em sede de recurso de contra-ordenação, porquanto a culpa é reconhecidamente diminuta, o imposto foi entregue e os juros pagos, bem como posteriormente, as custas (cfr.artigo 32.º, nº. 2 do RGIT e 18, n.º3 e 51.º do RGCO).
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O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer no qual termina pugnando pelo provimento do recurso (cfr.fls.137 a 139 do processo físico).
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Corridos os vistos legais (cfr.fls.140 e verso do processo físico), vêm os autos à conferência para deliberação.
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FUNDAMENTAÇÃO
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DE FACTO
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A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.103 e 104 do processo físico):
1-A decisão recorrida, proferida pelo Serviço de Finanças de Vila Franca de Xira a 10.12.2015, consta dos presente recurso de contraordenação, cujo teor aqui se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais;
2-O prazo para o cumprimento da obrigação da entrega do IVA, referente ao período 2015/09 ((erro de escrita rectificado por este Tribunal - cfr.artº.249, do C.Civil).) terminou a 10 de novembro de 2015 - cf. resulta dos docs. ínsitos no presente recurso de contraordenação;
3-A ora recorrente, por lapso, entregou o montante devido a esse título à Segurança Social - cf. resulta dos docs. ínsitos no presente recurso de contraordenação, cujo teor aqui se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais;
4-Em 26.11.2015 a ora recorrente foi notificada, para pagamento de juros de mora, referentes ao IVA do período 2015/09 - cf. resulta dos docs. ínsitos no presente recurso de contraordenação, cujo teor aqui se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais;
5-Nesse dia a recorrente liquidou o imposto em falta, no valor de € 21.401,97 e os juros de mora, no valor de € 44,95 - cf. resulta dos docs. ínsitos no presente recurso de contraordenação, cujo teor aqui se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais;
6-No dia 27.11.2015, a ora recorrente procedeu ao pagamento da quantia de € 146,31, respeitante a custos processuais - cf. resulta dos docs. ínsitos no presente recurso de contraordenação, cujo teor aqui se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais.
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A sentença recorrida considerou como factualidade não provada a seguinte: “…Com relevância para a decisão da causa inexiste matéria de facto julgada não provada…”.
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Por sua vez, a fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: “…A matéria de facto provada resultou da convicção do Tribunal fundada na análise crítica e conjugada de todos os elementos constantes dos autos, nomeadamente dos documentos referidos na matéria de facto julgada provada…”.
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO
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Em sede de aplicação do direito, a decisão recorrida julgou procedente o salvatério deduzido pela sociedade ora recorrida, dado se encontrarem reunidos os pressupostos de aplicação do regime de dispensa de coima previsto no artº.32, do R.G.I.T., em virtude do que revogou o despacho de aplicação de coima no montante de € 6.420,59, acrescido de custas na quantia de € 76,50 (cfr.documentos juntos a fls.31 a 33 do processo físico).
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Desde logo, diremos que as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal “ad quem”, ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (cfr.artº.412, nº.1, do C.P.Penal, “ex vi” do artº.3, al.b), do R.G.I.T., e do artº.74, nº.4, do R.G.C.O.).
Deve, antes de mais, resolver-se a questão prévia que se consubstancia na possibilidade de dedução do presente recurso ao abrigo da norma constante do artº.73, nº.2, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (R.G.C.O.), aprovado pelo dec.lei 433/82, de 27/10, conforme pede o apelante.
Recorde-se que este Tribunal não se encontra vinculado à decisão proferida pelo Juiz "a quo" que admita o recurso, fixe a sua espécie e determine o seu efeito, atento o preceituado no artº.414, nº.3, do C.P.P. (aplicável "ex vi" dos artºs.3, al.b), do R.G.I.T., e 41, nº.1, do R.G.C.O. - cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 19/11/2008, rec.833/08; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 25/09/2019, rec.1188/18.0BELRS; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 8/01/2020, rec.287/16.7BEMDL).
A lei admite que, em casos legalmente justificados, se deduza o recurso ao abrigo do artº.73, nº.2, do R.G.C.O. (aplicável "ex vi" do artº.3, al.b), do R.G.I.T.), quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
Examinemos se, no caso concreto, se verifica o requisito de admissibilidade da apelação.
Os dois fundamentos possíveis deste recurso são, nos termos da norma, a promoção da uniformidade da jurisprudência e/ou a melhoria da aplicação do direito. Portanto, o recurso previsto no artº.73, nº.2, do R.G.C.O., somente pode ter por fundamento questões de direito.
A "melhoria da aplicação do direito" está em causa quando se trate de uma questão jurídica que preencha os seguintes três requisitos:
1-Ser relevante para a decisão da causa;
2-Ser uma questão necessitada de esclarecimento e;
3-Ser passível de abstracção, isto é, ser uma questão que permite o isolamento de uma ou mais regras gerais aplicáveis a outros casos práticos similares.
Por outras palavras, a citada expressão "melhoria da aplicação do direito" deve interpretar-se como abrangendo todas as situações em que existem erros claros na decisão judicial, situações essas em que, à face de entendimento jurisprudencial amplamente adoptado, repugne manter na ordem jurídica a decisão recorrida, por ela constituir uma afronta ao direito.
Já a "promoção da uniformidade da jurisprudência" está em causa quando a sentença recorrida consagra uma solução jurídica que introduza, mantenha ou agrave diferenças dificilmente suportáveis na jurisprudência. O simples erro de direito não é bastante, sendo necessário que o erro tenha inerente um perigo de repetição. Este perigo de repetição verifica-se, designadamente, quando se aplicam sanções muito diferenciadas a situações de facto similares ou quando se violam princípios elementares do direito processual (cfr. ac.S.T.A.-2ª.Secção, 25/09/2019, rec.1188/18.0BELRS; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 8/01/2020, rec.287/16.7BEMDL; Paulo Sérgio Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, pág.303 e seg.; Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contra-ordenações, Anotações ao Regime Geral, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.538).
Revertendo ao caso dos autos, defende o recorrente que a decisão objecto da apelação decidiu em sentido contrário à jurisprudência consolidada, a qual defende que a falta de entrega da prestação tributária nos cofres do Estado, no prazo legal, ocasiona prejuízo efectivo para a receita tributária, o que preclude a possibilidade de dispensa da aplicação da coima, nos termos do artº.32, nº.1, do R.G.I.T., independentemente da regularização da situação tributária.
E assim é.
De acordo com a doutrina, no exame do requisito constante do artº.32, nº.1 ((norma que consagra, nas suas diversas alíneas, requisitos de aplicação cumulativa).), al.a), do R.G.I.T. (a prática da infracção não ocasione prejuízo efectivo à receita tributária), o legislador não teve em vista referenciar os casos em que a regularização veio a ocorrer, com pagamento integral da quantia em dívida, mas sim, reportar-se às situações em que não chegou a produzir-se prejuízo, antes de ocorrer a regularização. Por outras palavras, é condição da dispensa de coima que não tenha sido ocasionado prejuízo, não sendo relevante para preenchimento desta circunstância o eventual ressarcimento do prejuízo provocado pela conduta que constitui a concreta contra-ordenação. Nestes termos, o requisito sob exame teve em vista, primacialmente, contra-ordenações cujo tipo não está directamente conexionado com o pagamento de prestações tributárias, como sejam, nomeadamente, os tipos de ilícito contra-ordenacional previstos nos artºs.115, 116, 117 e 122, todos do R.G.I.T. (cfr.Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, 4ª. Edição, 2010, Áreas Editora, pág.320; João Ricardo Catarino e Nuno Victorino, Direito Sancionatório Tributário, Anotações ao Regime Geral, Almedina, 2020, pág.316, anotação 10 ao artº.32).
Também a jurisprudência deste Tribunal, de forma uniforme, tem defendido esta perspectiva doutrinária, a qual vai no sentido, em termos práticos, da não possibilidade de aplicação do instituto da dispensa de coima, previsto no artº.32, nº.1, do R.G.I.T., aos tipos-de-ilícito contra-ordenacional conexos com o pagamento de prestações tributárias, como seja o consagrado no artº.114, do R.G.I.T., e objecto dos presentes autos (cfr.v.g. ac.S.T.A.-2ª. Secção, 6/02/2002, rec.26216; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 16/04/2008, rec.44/08; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 1/10/2014, rec.1665/13).
Com estes pressupostos, deve o presente salvatério ser admitido ao abrigo do examinado artº.73, nº.2, do R.G.C.O., dado que nos encontramos perante situação em que o Tribunal "a quo" decidiu contra jurisprudência uniforme dos Tribunais Superiores, nomeadamente, do Supremo Tribunal Administrativo.
Sem mais delongas, conclui-se que se encontram reunidos os pressupostos da admissão do presente recurso, tendo guarida no examinado artº.73, nº.2, do R.G.C.O., desde logo, na vertente da "promoção da uniformidade da jurisprudência".
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Passemos ao exame do mérito do recurso apresentado.
O recorrente dissente do julgado alegando, em sinopse e como supra se alude, que é jurisprudência consolidada, ao contrário do vertido na decisão recorrida, que a falta de entrega da prestação tributária nos cofres do Estado, no respectivo prazo legal, ocasiona prejuízo efectivo para a receita tributária, o que preclude a possibilidade de aplicação do regime de dispensa da aplicação da coima, independentemente do eventual diminuto grau de culpa evidenciado pelo comportamento do arguido. Que o Tribunal "a quo", ao exarar a decisão objecto da presente apelação, violou o regime de dispensa da coima consagrado no artº.32, nº.1, do R.G.I.T. (cfr.conclusões D) a M) do recurso) com base em tal argumentação pretendendo concretizar um erro de julgamento de direito do despacho recorrido.
Analisemos se a decisão objecto do presente recurso padece de tal pecha.
Nesta sede, conforme o exarado supra, ao concluir pela aplicação do regime de dispensa de coima ao caso dos autos, a decisão recorrida padece de erro de julgamento de direito, atento o tipo-de-ilícito contra-ordenacional em causa (o previsto no artº.114, do R.G.I.T.), dado que conexo com o pagamento de prestações tributárias, assim não se podendo considerar verificado um dos requisitos, de natureza cumulativa, do identificado regime (a prática da infracção não ocasione prejuízo efectivo à receita tributária), tudo conforme defende a doutrina e a jurisprudência uniforme deste Tribunal.
Haverá, portanto, que conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, neste segmento.
Em consequência, deve este Tribunal deliberar se mantém a decisão administrativa de aplicação de coima no montante de € 6.420,59 (cfr.nº.1 do probatório). Em alternativa, se é aplicável ao caso dos autos o regime da pena de admoestação, conforme defende a sociedade arguida, a título subsidiário e no requerimento de interposição de recurso dirigido ao Tribunal Tributário de Lisboa (cfr.fls.44 a 50 do processo físico).
Para tanto, antes de mais, abordemos o regime da pena de admoestação.
Em sede contra-ordenacional a admoestação encontra-se prevista no artº.51, do R.G.C.O., aplicável "ex vi" do artº.3, al.b), do R.G.I.T., às contra-ordenações tributárias. Estamos face a pena/sanção alternativa à coima, assente numa reduzida gravidade da contra-ordenação e sempre que a culpa do agente o justifique (cfr.Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, 4ª. edição, 2010, Áreas Editora, pág.394 e seg.; Paulo Sérgio Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, pág.222 e seg.).
Mais se dirá que, de acordo com a perspectiva jurisprudencial consolidada neste Tribunal, a gravidade da infracção a considerar para efeitos de indagar da possibilidade de aplicar a sanção admonitória deve ser aferida pela conjugação de todas as circunstâncias concretas do comportamento ilícito, não podendo considerar-se essa possibilidade inelutavelmente arredada pela classificação como contra-ordenação grave prevista no artº.23, do R.G.I.T., a qual terá como único efeito autorizar a aplicação de sanções acessórias, atento o disposto no artº.28, nº.1, do mesmo diploma (cfr.v.g. ac.S.T.A.-2ª.Secção, 13/10/2010, rec.670/10; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 3/04/2013, rec.5/13; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 25/10/2017, rec.371/17; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 12/07/2018, rec. 497/18; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 10/10/2018, rec.800/14.4BEVIS).
Recorde-se que o artº.23, nº.3, do R.G.I.T., qualifica como contra-ordenações graves as puníveis com coima cujo limite máximo abstractamente aplicável seja superior a € 15.000,00.
Revertendo ao caso dos autos, a contra-ordenação sob exame, a qual é imputada a título negligente (cfr.artºs.24 e 114, nºs.2 e 5, al.a), do R.G.I.T.), a pessoa colectiva (cfr.artº.26, nºs.1 e 4, do R.G.I.T.), tem como limite máximo abstractamente aplicável o valor do tributo em falta (€ 21.401,97), assim se devendo considerar uma contra-ordenação grave, embora tal não impedindo, conforme mencionado supra, o exame dos pressupostos de aplicação da pena alternativa de admoestação.
Aqui chegados, deve constatar-se que o exame dos aludidos pressupostos da sanção admonitória (reduzida gravidade da contra-ordenação e da culpa do agente) se reconduz à apreciação de questões de facto, na medida em que têm de ser inferidos de factos materiais, segundo a livre convicção do julgador e em conjugação com as regras da experiência comum. Ora, a estruturação desses juízos de facto está excluída do âmbito da competência deste Supremo Tribunal Administrativo (cfr.artº.26, al.b), do E.T.A.F.; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 4/03/2020, rec.3408/15.3BESNT; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 17/06/2020, rec.432/18.8BELRA), pelo que, se deve ordenar a baixa do presente processo ao Tribunal "a quo", para que reformule a decisão recorrida de acordo com o supra deliberado.
Sem necessidade de mais amplas considerações, concede-se provimento ao presente recurso, ao que se provirá na parte dispositiva do acórdão.
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DISPOSITIVO
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Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO em:
1-Julgar verificados os pressupostos da admissão do presente recurso, tendo guarida no artº.73, nº.2, do R.G.C.O.;
2-Conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, mais devendo os autos, após trânsito, ser remetidos ao Tribunal Tributário de Lisboa para os efeitos supra definidos.
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Condena-se a sociedade recorrida em custas, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal.
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Registe.
Notifique.
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Lisboa, 14 de Outubro de 2020. - Joaquim Condesso (relator) - Paulo Antunes - Pedro Vergueiro.