Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0576/10
Data do Acordão:09/13/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:NULIDADE DE ACÓRDÃO
REFORMA DE ACÓRDÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P23578
Nº do Documento:SA1201809130576
Data de Entrada:07/02/2010
Recorrente:A... E ESPOSA E CENTRO HOSPITALAR DO MÉDIO AVE, EPE
Recorrido 1:OS MESMOS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
I – Relatório

1. A…………… e B………….., por si e na qualidade de herdeiros da sua filha menor C……………, intentaram no então Tribunal Administrativo do Círculo do Porto (TAC Porto), contra o Hospital S. João de Deus (actualmente Centro Hospitalar do Médio Ave, EPE), acção de indemnização para efectivação de responsabilidade civil extracontratual, pedindo a condenação do R. no pagamento da quantia de Esc. 80.000.000$00 a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos durante e após o parto da sua filha naquele estabelecimento hospitalar.

Por sentença daquele Tribunal, a acção foi julgada parcialmente procedente e o R. condenado a pagar-lhes as quantias de € 147.957,72, acrescida de juros à taxa legal, e ainda das que se viessem a liquidar em execução de sentença quanto às despesas em medicamentos, consultas, leite especial, sondas, seringas e, ainda, em relação aos gastos com visitas durante o internamento da A. mulher.

Inconformado, o R. recorreu para este Supremo Tribunal, e, por sua parte, os AA. interpuseram recurso subordinado restrito à questão dos montantes indemnizatórios. O Acórdão de 24.05.12 deste STA concedeu provimento ao recurso principal e, revogando a sentença recorrida, julgou a acção totalmente improcedente e negou provimento ao recurso subordinado.

O aresto em questão foi objecto de recurso por oposição de julgados, a qual, tendo sido considerada verificada por Acórdão interlocutório, determinou o prosseguimento dos autos com a notificação das partes para alegar. Só os Autores exerceram esse direito.

Foi, depois, proferido o Acórdão de fls. 1973 e ss. (datado de 19.05.16), que, mantendo a decisão relativa à oposição de julgados, concedeu provimento ao recurso e ordenou a baixa dos autos à Secção para que se conhecesse do recurso subordinado.

Inconformado, o Centro Hospitalar do Médio Ave, EPE, veio arguir a nulidade desse aresto argumentando, por um lado, que o mesmo alterou a decisão de facto e, nessa medida, ofendeu o caso julgado, e, por outro, operou uma inversão do ónus da prova e alterou as regras da sua repartição, e, finalmente, contrariou a sua fundamentação. Na hipótese dessa arguição vir a ser considerada improcedente, veio requerer a reforma do aresto em apreço por o mesmo ter operado uma inversão do ónus da prova e ter julgado verificada a oposição de julgados quando esta não existia. Em última análise, e na eventualidade de não ser atendida nenhuma das invocadas irregularidades, veio interpor recurso para o Plenário ou para o Pleno.

Por acórdão deste STA de 26.01.17 foi acordado “indeferir o peticionado pelo Requerente”.

Ulteriormente, o Centro Hospitalar do Médio Ave, EPE, recorreria para o Tribunal Constitucional, o qual, por decisão sumária de 18.08.17 (Decisão Sumária n.º 471/2017), decidiu “não conhecer do objeto do presente recurso”.

Já neste STA, e por acórdão desta Secção de 08.03.18, foi decidido “conceder parcial provimento ao recurso subordinado formulado nos autos, e, consequentemente:

a) Revogar a sentença recorrida na parte em que fixou a indemnização de € 60.000,00 relativamente aos danos patrimoniais e não patrimoniais próprios da menor C……….., alterando-se a mesma para € 225.000,00.

b) Manter em tudo o mais a sentença recorrida”.

Novamente inconformado, vem o recorrido interpor recurso para o Pleno deste STA, e, entre outras coisas, vem arguir nulidade da decisão por insuficiente fundamentação, por fundar a fundamentação em remissão para outro acórdão, e por contradição entre a decisão e os fundamentos.

Conclui do seguinte modo as suas alegações de recurso:

“1 - O douto acórdão recorrido, na parte em que procedeu à apreciação e decisão do recurso subordinado dos AA., não cumpre o dever de fundamentação, limitando-se a fazer referência, de forma genérica e vaga, a alguns critérios que devem presidir à obtenção de um cálculo de um montante indemnizatório.

2 - MAIS, conforme o douto acórdão recorrido diz, verifica-se, no caso vertente, que há mera culpa, o que é factor de atenuação e nunca de agravamento de responsabilidade, conforme impõe o art. 494 CC, invocado, de resto, no douto acórdão recorrido.

3 - Ocorre, pois, nulidade, quer por falta de fundamentação, quer por flagrante contradição entre a decisão e os (escassos e genéricos) fundamentos.

4 - Há também nulidade do douto acórdão recorrido pelo facto de se pretender alegadamente fundamentar por mera remissão para o douto acórdão proferido no proc. nº 812/13, em que o recorrente não é parte, nem foi notificado do que quer que seja, não lhe sendo, pois, exigível que conhecesse o conteúdo de tal aresto, não se afigurando, ademais, lícito e aceitável a fundamentação por mera remissão.

5 - Ao contrário do que é afirmado no douto acórdão recorrido, o acórdão proferido no proc. nº 812/13 (a que o recorrente se viu obrigado a aceder em momento posterior ao da prolacção do douto acórdão recorrido, em função da remissão que este contém) não permite encontrar similitudes com os presentes autos.

6 - Naquele acórdão, a indemnização em causa já tinha sido arbitrada em primeira instância (que, aí sim, tinha considerado provada factualidade suficiente para sustentar esse quantum indemnizatório), e não, como ora sucede, apenas nesta fase processual e por este Alto Tribunal.

7 - Naquele processo, ao invés do que sucede nos presentes autos, há factualidade suficiente para que o montante fosse arbitrado de forma elevada logo na primeira instância, como decorre das passagens que se transcrevem e citam no presente articulado e que qualificam, de forma inequívoca, a conduta do lesante como altamente censurável.

8 - Ao invés, nos presentes autos, a decisão sobre a matéria de facto quanto aos quesitos 30, 32, 34 e 85, bem como o relatório pericial junto aos autos em 24/5/2007 contribuem para retirar censurabilidade à conduta do recorrente e não qualificam essa conduta como violação ou incumprimento das leges artis.

9 - Desta forma, verifica-se reforçada e renovada nulidade, por manifesta oposição entre os fundamentos e a decisão e por oposição entre o douto acórdão recorrido e aquele que alegadamente serve para o fundamentar, porquanto aplicam a mesma medida e o mesmo silogismo para chegar ao quantum indemnizatório, quando, na verdade e como resulta do que já se citou, o enquadramento factual e as actuações médicas que foram apreciadas e sancionadas em ambos os processos são totalmente distintas e não permitem, de modo algum, chegar à mesma conclusão a que o douto acórdão recorrido, estribando-se no aludido acórdão proferido em 2014, chegou.

10 - O douto acórdão recorrido arbitrou uma compensação, que, por um lado, é claramente excessiva e desproporcionada face aos danos existentes e à contribuição da recorrente para a produção de tais danos, e que, por outro lado, exorbita, de forma manifestamente insustentada e carecida de base legal, da função eminentemente compensatória, para assumir um objectivo punitivo e sancionatório.

11 - Tal opção contida no douto acórdão recorrido contraria, de forma evidente, a douta e vasta jurisprudência na matéria e que, de forma meramente exemplificativa, se cita e transcreve supra.

12 - O tribunal recorrido (sobre)valorou e considerou como existentes os danos que o próprio relatório pericial excluiu (danos cuja existência esse relatório negou, conforme resulta dos autos). Pelo que também por este motivo se comprova quer o exagero e o carácter insustentado da indemnização arbitrada pelo tribunal recorrido, quer ainda a total falta de base para que tal indemnização ainda sofra algum aumento, que não encontra qualquer reflexo ou apoio na prova produzida nos autos, nem sequer na jurisprudência sobre a matéria.

13 - As respostas aos quesitos 30 e 34, nomeadamente, esclarecem o Tribunal sobre não ter havido prova de que deveria ter-se adoptado, pela via abdominal ou cesariana como meio idóneo a prevenir a produção dos danos dos autos.

14 - Essa circunstância, conjugada com a mera culpa do recorrente levam a concluir que o douto acórdão recorrido desconsiderou a matéria de facto apurada e, MAIS, a tendência jurisprudencial uniforme supra-citada que sempre afirmou o que se tem vindo a defender no presente articulado, no sentido do ónus de prova do nexo de causalidade caber aos AA. e no sentido de um critério prudente e não inflacionado no arbitramento das indemnizações peticionadas.

15 - A circunstância da fundamentação da decisão recorrida se cingir a considerações vagas e genéricas e, sobretudo, à mera remissão para um (UM) único acórdão que arbitrou uma indemnização similar à dos autos (apesar de, como já se disse, versar sobre quadro factual bem distinto), não pode deixar de significar, como efectivamente significa, a inexistência de qualquer outro argumento que pudesse apoiar concreta e consolidadamente a douta decisão recorrida,

16 - Há, pois, fundamento para que o douto acórdão recorrido seja objecto de reforma, porquanto constam do processo documentos e elementos e Lei que impõem decisão diversa da proferida e que, só por manifesto lapso, não foram tidos em conta no douto acórdão em apreço, com vista à aplicação dos critérios supra-mencionados ao cômputo da indemnização, considerando a mera culpa do recorrente e a ausência de factos que impliquem qualquer aumento da indemnização.

17 - Para além das invocadas nulidades, ocorre ainda inconstitucionalidade, por violação

• dos artigos 3, 12, 13, 20, 27, 28, 32, 202 e 205 todos da CRP,

• e dos princípios constitucionais da igualdade, da legalidade, da razoabilidade, da adequação, da proporcionalidade, da garantia e efectivação dos direitos fundamentais.

Nestes Termos e, no mais que for Doutamente suprido.

Conclui pela procedência da reforma requerida, pelo provimento das nulidades e inconstitucionalidades arguidas devem merecer provimento e pela procedência do recurso, SEMPRE no sentido da revogação do douto acórdão recorrido e pela improcedência do recurso subordinado dos AA., mantendo-se a indemnização anteriormente arbitrada.

Assim se fazendo

JUSTIÇA”.

2. Devidamente notificados, vieram os ora recorridos responder às questões que se colocam previamente à subida dos autos ao Pleno desta Secção argumentando que o acórdão recorrido não padece de quaisquer nulidades ou inconstitucionalidades (cfr. fls. 2299 a 2230v.).

3. Por despacho da relatora de fls. 2305-6 foi decidido não admitir o recurso para o Pleno, uma vez que o mesmo não é possível à luz do regime jurídico constante da LPTA. Com efeito, e como aí se disse, apenas seria possível o recurso com fundamento em oposição de julgados, sendo certo que não foi esse o fundamento utilizado pelo recorrente para justificar o recurso para o Pleno. Notificados do mencionado despacho, as partes nada disseram.

Não obstante, e como o recurso foi interposto quando ainda estava em tempo, convola-se o mesmo em reclamação para efeitos de apreciação das nulidades que lhe foram imputadas pelo recorrente.

4. Sem necessidade de vistos, cumpre conhecer das nulidades arguidas.


II – Apreciação e Decisão da Questão

4. Antes de mais, é importante sublinhar que no acórdão recorrido apenas se julgou o recurso subordinado, em que se discutiam os montantes indemnizatórios devidos pelo recorrido, pelo que não cabe agora, nesta sede, em que se apreciam as nulidades invocadas, tratar de questões como, v.g., a alegada incorrecta decisão de inversão do ónus da prova relativamente ao nexo de causalidade.

Além disso, cumpre sublinhar que, justamente porque se limitou a tratar a questão do montante da indemnização, há-de ser lido conjugadamente com o acórdão desta Secção, de 19.05.16, no qual, entre outras coisas se afirmou:

“Por ser assim – como se afirmou, e bem, no Acórdão fundamento de 20/04/2004 - é legítimo, partindo dos factos provados e do resultado a que eles conduziram, fazer ilações presuntivas e concluir que os danos imputados ao Réu são a consequência lógica, natural e directa da circunstância do mesmo ter agido de uma maneira não conforme com as normas legais ou regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração (art.º 6.º do DL 48.051, de 21/11/67)”.

e,

“Nesta conformidade, e encontrando-se provado que a actuação do Réu, por ter feito uma errada opção quanto à via como o parto veio a ser executado, foi ilícita e culposa e que a mesma tinha, no plano naturalístico, aptidão para originar os peticionados danos, dado não ser, pela sua natureza e em abstracto, indiferente à sua produção, e que se não provou que tais danos só se produziram em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, é forçoso concluir que se verifica o nexo causal entre o modo como o parto foi realizado e as consequências que dele decorreram visto tais danos se localizarem no âmbito dos perigos que poderão ocorrer se a conduta tiver violado as “leges artis”.
O que nos leva a considerar que a conduta do Réu foi, em concreto, condição directa e imediata do dano (cfr. art.ºs 2.º, 3.º e 6.º do DL n.º 48.051, 483.º e 563.º do CC)”.

5. Dito isto, passemos, agora, a apreciar as alegadas nulidades imputadas à decisão recorrida pelo ora recorrente Hospital S. João de Deus (actualmente Centro Hospitalar do Médio Ave, EPE).

5.1. A alegada nulidade por fundamentação manifestamente insuficiente

O n.º 1 do artigo 205.º da CRP determina que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. Por sua vez, o n.º 1 do artigo 158.º, actual artigo 154.º do CPC (com redacção algo distinta do n.º 2, mas sem incidência para a decisão a proferir no caso vertente), aplicável ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA, determina que “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas” (n.º 1); e que “A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição” (n.º 2). Finalmente, o artigo 668.º, n.º 1, al. b), actual artigo 615.º, n.º 1, al. b), dispõe no sentido de que é nula a sentença quando “Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.

Quanto ao que deva considerar-se como fundamentação, ela consiste no conjunto de razões de facto e/ou de direito em que assenta a decisão, vale por dizer, os motivos de facto e de direito que a sustentam. No que concerne especificamente à fundamentação de direito, a mesma consiste na indicação das razões jurídicas que subjazem à solução adoptada pelo julgador, sendo de toda a conveniência a indicação dos dispositivos legais que interessam, apesar de não ser indispensável essa indicação.

Resta dizer que vem sendo unanimemente entendido que apenas a falta absoluta de fundamentação de facto ou de direito constitui a nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do dito art. 668º (actual artigo 615.º).

No caso dos autos, o ora recorrente sustenta, em síntese, que o acórdão recorrido limita-se “a fazer referência, de forma genérica e vaga, a alguns critérios que devem presidir à obtenção de um cálculo de um montante indemnizatório”. A isto haverá a acrescentar, embora pareça vir invocada de forma autónoma, a circunstância de o acórdão recorrido remeter para o Acórdão deste STA de 10.09.14, Proc. n.º 812/13, invocando a semelhança de situações.
Vejamos se assiste razão ao ora recorrente.

Diga-se, em primeiro lugar, que a fundamentação, admite-se, é concisa. Mas, como é sabido, concisão não significa incompletude. E, claramente, no acórdão recorrido estão todos os elementos necessários à fundamentação que deveriam estar, designadamente aqueles relacionados com os pressupostos da responsabilidade civil que para o arbitramento da indemnização mais interessavam.
Assim, o dano indemnizável está devidamente identificado, qual seja, a “vida com deficiência, in casu, deficiência profunda”, estando a mesma descrita na matéria de facto que consta do acórdão recorrido. A citação – e não remissão – do acórdão de 10.09.14 e a transcrição de um trecho deste aresto também são aptas a elucidar o raciocínio seguido pelo julgador, dada a similitude da condição médica das duas crianças envolvidas. Em ambos os casos, trata-se de vidas com deficiência profunda e vegetativas em virtude de partos mal sucedidos que tiveram lugar em hospitais públicos. Por via das mencionadas citação e transcrição, que significa a adesão do julgador aos argumentos daquele outro julgador, fica também a saber-se que no caso dos autos a indemnização foi fixada com recurso à equidade, que deve atender aos danos, grau da culpa, situação económica do lesado e do agente e demais circunstâncias do caso – cfr. art. 494º, por força do art. 496º, n.º 4, do C. Civil. Ainda por via da mencionada citação do acórdão de 10.09.14, constata-se que também nesse outro o caso se verificou a mera culpa do lesante e que o principal lesado era uma criança que, à data da sua morte, tinha 10 anos, sabendo-se que o dano é tanto maior quanto maior for a esperança de vida normal, o que se reflecte na fixação do montante indemnizatório, tal como assinalado no acórdão recorrido. Onde, à primeira vista, a fundamentação parece ter sido mais parcimoniosa foi na parte relativa ao grau de culpa do ora recorrente. Mas isto deve-se ao facto de, ao contrário do que o ora recorrente sustenta, apenas se ter em conta a mera culpa da instituição (estabelecimento hospitalar), que entendermos existir em idênticos moldes à que se considerou existir no acórdão para o qual se remeteu. Se estivesse em causa o apuramento da responsabilidades dos concretos agentes por actuação dolosa dos agentes concretos, aí sim, se poderia sustentar a insuficiente fundamentação, pois seria incontornável a referência à conduta de um médico que coloca razões pessoais à frente da vida dos pacientes e de uma médica que, tendo constatado que, em face do desenrolar do parto, haveria que recorrer à cesariana, não soube impor a sua razão e vontade sustentadas em razões e conhecimentos médicos.
No que se refere especificamente ao argumento da utilização da técnica da remissão para outro acórdão deste STA em que se tratou de questão semelhante, não se vê como possa ser considerada causadora da alegada nulidade pois, contrariamente ao sustentado, ela não foi, pura e simplesmente, empregue no caso dos autos. Antes se citou e transcreveu um trecho do acórdão de 10.09.14 onde são autonomizados determinados aspectos que interessavam para o caso dos autos: o tipo de dano sofrido pela criança e a descrição sumária do seu sofrimento; o recurso à equidade; a mera culpa do lesante. Uma vez que não houve qualquer remissão para o acórdão em apreço, fica prejudicado o conhecimento de outros argumentos convocados pelo recorrente e que pressupõem a verificação de uma remissão. São elas, e desde logo, a ideia, que sobressai da argumentação do ora recorrente, de que a remissão para outros arestos só é possível quando as partes sejam as mesmas (ou, pelo menos, uma dela) ou, em todo o caso, quando as partes (ou, pelo menos, uma dela) seja dele notificado. E, ainda, a ideia desenvolvida pelo ora recorrente de que não existe similitude entre o caso tratado nos presentes autos e o caso tratado no acórdão de 10.09.14 porque neste último o montante elevado de indemnização foi arbitrado logo na primeira instância.

Em síntese: i) o ora recorrente não afirma carecer o acórdão recorrido de fundamentação, antes afirma ser a mesma manifestamente insuficiente por ser vaga, genérica e remeter para outro acórdão deste STA; ii) o acórdão recorrido, embora conciso na sua fundamentação, trata dos elementos fundamentais relacionados com a fixação do montante da indemnização devida pelo ora recorrente (única questão que lhe competia apreciar e tratar), e, além disso, e também em termos de fundamentação, cita e transcreve um trecho de um acórdão desta Secção do STA; iii) apenas a falta absoluta de fundamentação de facto ou de direito constitui a nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do dito art. 668º (actual artigo 615.º). Em face do exposto, deve improceder este fundamento de nulidade.

5.2. A alegada nulidade por contradição entre a decisão e os fundamentos

Conforme sustenta o ora recorrente, a alegada contradição entre a decisão e os fundamentos tem que ver com a circunstância de no acórdão recorrido se ter tomado em consideração a mera culpa do lesante, não como factor de atenuação da responsabilidade, mas como factor de agravamento. E isto porque, o montante de indemnização arbitrado incluiria uma função ressarcitória ou compensatória, “que deve ficar reservada para casos em que estejam presentes factores de agravamento da responsabilidade. O que não é o caso dos autos”. E não o é, “porque não estão demandados os agentes concretos, mas tão somente o R. enquanto instituição”.

Como facilmente se percebe, a alegada contradição entre a decisão e a fundamentação assenta numa mera suposição efectuada pelo ora recorrente que não encontra nenhum arrimo na fundamentação do acórdão recorrido, baseando-se, tão somente, na circunstância de o ora recorrente considerar o montante da indemnização demasiado elevado ou excessivo tendo em conta a ‘mera culpa’ da instituição. Com efeito, não é feita no acórdão recorrido qualquer referência à culpa específica dos dois médicos envolvidos, a responsabilidade solidária e/ou a qualquer direito de regresso a favor do Estado, o que, efectivamente, poderia ‘denunciar’ a tal alegada responsabilidade dos agentes. Pelo contrário, é mencionada a ‘mera culpa’, o que significa que estamos em face de uma responsabilidade exclusiva da Administração (in casu, do Centro Hospitalar do Médio Ave, EPE) nos termos dos artigos 2.º, 3.º, 4.º e 6.º do DL n.º 48.051, de 21.11, questão que ficou subentendida com, como se disse, a referência à ‘mera culpa’. Aliás, se nos tivéssemos pronunciado sobre a conduta dos agentes do R., ora recorrente, em concreto para efeitos da sua responsabilização – o que não fizemos nem poderíamos fazer –, teria sido certamente posta em relevo a conduta dos dois médicos que assistiram a ora recorrida mãe no parto.

Em face de todo o exposto, e porque a invocação de uma alegada contradição entre a decisão e a respectiva fundamentação não pode sustentar-se em simples suposição ou conjectura, deve improceder também esta pretensa nulidade imputada ao acórdão recorrido.

6. O pedido de reforma do acórdão

Antes de tudo, é conveniente salientar, relativamente à inconstitucionalidade suscitada, que a sustentação de uma inconstitucionalidade de nada vale se for efectuada por mera remissão para preceitos da constituição ou princípios nela contidos, sem mais. Com efeito, com base nesta mera indicação de preceitos e princípios, nem o recorrente demonstra a evidência de qualquer erro, nem é possível ao julgador apreciar se a decisão recorrida incorre em manifesto erro, pressuposto para a sua reforma. Não há, pois, que reformar o acórdão recorrido com base na suscitada inconstitucionalidade.

Feito este esclarecimento, e no que respeita ao pedido de reforma, o ora recorrente sustenta, em síntese, que “assiste ao recorrente o direito e o fundamento de requerer, como efectivamente requer, a reforma do douto acórdão dos autos, porquanto constam do processo documentos e elementos e Lei que impõem decisão diversa da proferida”. Vejamos.

De acordo com o disposto no artigo 616º do novo CPC (art. 669º do CPC de 1961), a reforma da decisão judicial só é possível quando “por manifesto lapso do juiz”: “a) tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos; b) constem do processo documentos ou outros meios de prova que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa”. Como resulta do teor do n.º 2 do dispositivo em causa, só é possível reformar a decisão quando as ocorrências referidas nas alíneas a) e b) tenham ocorrido por “manifesto lapso do juiz”. Vale por dizer, manifesto lapso na determinação da norma aplicável, na qualificação jurídica dos factos, ou, ainda, manifesto lapso por não se ter considerado ou sequer constatado que constavam do processo documentos ou outros meios de prova que, só por si, implicavam decisão diversa da que foi tomada.
O ora recorrente menciona, de facto, uma série de decisões judiciais deste STA de distintas datas e relativos a distintas situações de facto e de direito em que foram arbitradas indemnizações mais baixas do que aquela que foi fixada pelo acórdão recorrido. No acórdão recorrido foi citado um acórdão deste STA, temporalmente próximo do acórdão dos autos, e versando sobre uma situação muito similar à dos autos. Não se vê, pois, como sustentar que a decisão recorrida tenha incorrido em lapso manifesto por desconsideração de todos esses arestos.
Também não padece o julgamento realizado de manifesto lapso quer na determinação da norma aplicável quer na qualificação jurídica dos factos, porque, por um lado, não procedeu à qualificação jurídica dos factos, e, por outro, fundou o arbitramento da indemnização, baseada em mera culpa do estabelecimento hospitalar, na equidade nos termos do artigo 494.º do CC, e em parte alguma deu a entender que o montante fixado tinha por função punir os agentes do R., ora recorrente, em concreto.

Nestes termos, e não se verificando os pressupostos do mencionado art. 616.°, n.° 2, terá de se indeferir o pedido.

7. Em face do exposto, e sem necessidade de mais considerações, cabe concluir que não foram cometidas as nulidades invocadas, não havendo lugar a qualquer reparação ou supressão, e, de igual modo, não existem fundamentos para a pretendida reforma do acórdão.

Custas do incidente pelo recorrente.

Lisboa, 13 de Setembro de 2018. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – António Bento São Pedro – Jorge Artur Madeira dos Santos.