Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:016/23.9BELSB
Data do Acordão:02/21/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CLÁUDIO RAMOS MONTEIRO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P31925
Nº do Documento:SA120240221016/23
Recorrente:AA
Recorrido 1:CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA (MUNICÍPIO DE LISBOA)
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
I. Relatório

1. AA - identificado nos autos - recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo 150.° do CPTA, do Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), de 25 de agosto de 2023, que julgou improcedente o recurso por si interposto da sentença do Tribunal do Círculo (TAC) de Lisboa, de 30 de março de 2023, que negou provimento ao pedido de INTIMAÇÃO PARA PROTEÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS que requereu contra a CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA, em que pedia a condenação da entidade demandada a atribuir-lhe uma habitação, no âmbito do seu direito à habitação.

Nas suas alegações formulou as seguintes conclusões:

«1°. O ora Recorrente, requereu junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa Intimação para proteção de direitos liberdades e garantias, com vista à condenação da Câmara Municipal de Lisboa a atribuir uma habitação ao Recorrente, no âmbito do seu direito constitucionalmente consagrado à habitação.

2°. Malogradamente, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa julgou improcedente a Intimação e, em consequência, absolveu a Entidade demandada do pedido, relativamente ao pedido formulado nos autos.

3º. Não se conformando com a decisão, o Recorrente recorreu da mesma.

4°. O douto Tribunal Central Administrativo do Sul negou provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.

5º. A pretensão do Recorrente tem acolhimento à luz do artigo 65.° da CRP, que consagra o direito à habitação, bem como na Declaração Universal dos Direitos Humanos que consagrou no artigo 25.°, n.° 1 o direito à habitação como um direito humano universalmente reconhecido.

6°. Releva ainda o artigo 10.° n.° 1, alínea a) do RMDH estabelece o seguinte:

“1. Podem ser excecionados, do procedimento de atribuição previsto no Artigo 9.° do presente Regulamento, os seguintes casos: a) Agregados familiares que se encontrem em situação de necessidade habitacional urgente e/ou temporária, designadamente decorrente de desastres naturais e calamidades ou de outras situações de vulnerabilidade, emergência social e/ou perigo físico ou moral para as pessoas, incluindo as relativas a violência doméstica”.

7°. Com interesse para o presente recurso, o douto TAC de Lisboa deu como provados, nomeadamente, os seguintes factos:

"B) Em 06.06.2018 a psicóloga clínica que acompanha o requerente no Centro Hospitalar de Lisboa remeteu à entidade requerida, com caráter urgente, pedido em relação ao requerente, no sentido de "(...) apelo a Vossa Exma. o maior empenho pessoal e institucional para que se possa encontrar uma solução a partir da Câmara Municipal de Lisboa em eventual articulação com outra estrutura da cidade no Plano do Apoio Social e Habitacional (...)", cujo teor se dá por integralmente reproduzido cfr. doc. n° 3 junto com o requerimento inicial; C) Em 12.06.2018 o requerente apresentou candidatura junto da entidade requerida nos termos do Regulamento do Regime de Acesso à Habitação Municipal, publicado no 1o Suplemento ao Boletim Municipal n° 992, de 21 de fevereiro de 2013 - cfr. fls. 1 e seguintes do processo administrativo;

F) A psicóloga clínica referenciada na alínea B) reiterou o pedido aí elencado em 11.02.2019, 11.09.2020 e 29.10.2021 - cfr. doc. n°s 4 e 5 junto com o requerimento inicial e fls. 10 e seguintes do processo administrativo;

N) Do relatório médico datado de 03.05.2022 emitido pela Unidade de Saúde ..., extrai-se o seguinte:

O) Do relatório médico datado de 05.05.2022, do Serviço Hospitalar e Medicina Interna do Hospital da Luz em Lisboa, extrai-se o seguinte:

8°. Sucede que, não obstante resultar da factualidade apurada, a situação de emergência social do Recorrente, de onde se concluí pela aplicação exceção prevalecente no artigo 10.° n.° 1 alínea a) do RMDH, não sendo exigida a sua participação nos concursos para acesso aos programas de rendas acessíveis da mesma forma que aos restantes candidatos, por não se encontrar numa situação igualitária aos demais, mas sim de maior urgência e vulnerabilidade, o douto TAC de Lisboa, corroborado pelo douto TCA Sul julgou em sentido contrário à pretensão do Recorrente, invocando os princípios da separação de poderes, da universalidade, da igualdade e da imparcialidade.

9º. O ponto fulcral do presente recurso é, assim, a interpretação dos supra citados princípios, em concreto se, face à situação social demonstrada e provada do Recorrente, o recurso ao regime previsto no artigo 10.° n.° 1 alínea a) do RMDH traduzir-se-á na violação daqueles princípios.

10°. No entendimento do Recorrente o douto TCA Sul incorre em erro de julgamento no sentido de que interpretou e aplicou erradamente os princípios em causa à Intimação.

11º. Antes de adentrar na questão da alegada violação do princípio da separação de poderes, cumpre atentar na natureza e características do direito à habitação, tal como decorre do artigo 65.°, n.° 1 da CRP.

12°. A CRP atribuiu ao Estado um direito positivo a uma ação positiva, e para além da natureza prestacional imposta ao Estado por via constitucional, o direito à habitação e os direitos económicos sociais e culturais assumem uma natureza negativa, ou seja, o direito de não ser arbitrariamente privado de habitação ou de não conseguir uma habitação.

13°. O papel do Estado é o de garantir a realização do direito à habitação, facto que é exequível através das políticas de habitação, já os particulares cumprem a responsabilidade atribuída pela CRP ao Estado de garantir uma habitação para cada família considerando o valor dos encargos que cada uma possa suportar.

14°. A relevância do direito à habitação dá-se em função da sua complementaridade com outros direitos básicos.

15°. O direito à habitação adequada não deve ser interpretado de forma restritiva, mas sim considerado em conjunto com os demais direitos humanos contidos no PIDCP, PIDESC e outros instrumentos internacionais aplicáveis.

16°, Neste contexto deve estar associado a conceitos como segurança, paz, dignidade e não discriminação. Este direito é condicionante ao gozo pleno de muitos outros direitos, tais como: o direito à liberdade de expressão, liberdade de associação, liberdade de residência e participação na tomada de decisões públicas, o direito a não estar sujeito a interferência arbitrária ou ilegal na sua privacidade, família, lar ou correspondência.

17°. Em suma, as leis nacionais devem buscar garantir aos cidadãos um lugar seguro em que se viva com dignidade com vista a assegurar a saúde física e mental, bem como a qualidade de vida em geral.

18°. Todavia, o conteúdo programático do princípio vertido no artigo 65,°, n.° 1 da CRP implica a adoção de medidas legislativas associadas a políticas adequadas por parte dos Estados para que as pessoas possam ver o direito à habitação concretizado.

19°. De facto, a CRP esclarece que os cidadãos só têm acesso à habitação através da delegação do Estado de programar e executar políticas de habitação em cooperação com as regiões autónomas, autarquias e comunidades locais. Compete ao legislador escolher os meios que considera mais adequados, com vista a concretizar de forma progressiva os objetivos constitucionais à medida das circunstâncias de facto.

20°. Compete ao legislador escolher os meios que considera mais adequados, com vista a concretizar de forma progressiva os objetivos constitucionais à medida das circunstâncias de facto.

21°. Ora, no caso essa opção do legislador encontra-se concretizada no artigo 10.° n.° 1 alínea a) do RMDH que consagra um regime de exceção que determina as circunstâncias excecionais do procedimento de atribuição por concurso, seja por inscrição, seja por classificação, os agregados familiares que se encontrem em situação de necessidade habitacional urgente e/ou temporária originada por necessidade ou vulnerabilidade social.

22°. Assim, a decisão judicial terá de consistir na prática pelo Recorrido dos atos de operações materiais necessários à aplicação do disposto no artigo 10.° n.° 1 alínea a) do RMDH.

23°. Para que não restem dúvidas, o douto Tribunal nunca foi chamado a pronunciar-se acerca da adequação ou justeza das medidas municipais destinadas à promoção do direito à habitação e muito menos irá impor injunções no sentido de assegurar a construção de uma habitação exclusivamente destinada ao Recorrente.

24°. Estando em causa a aferição do cabal cumprimento dos procedimentos legalmente estabelecidos, e constatando-se que o Recorrente preenche as condições de acesso à exceção prevista no artigo 10.° n.° 1 alínea a) do RMDH, o Recorrido na sua atuação de reposição da legalidade, não se encontra no domínio da discricionariedade administrativa, impondo-se-lhe o total e estrito acatamento da decisão judicial na sua integralidade e alcance, inexistindo como tal, qualquer infração do princípio da separação e interdependência de poderes.

25°. O princípio da separação de poderes impede o poder judicial de sindicar o que respeita à conveniência ou oportunidade da decisão administrativa, mas um direito cujo alcance e conteúdo encontra-se perfeitamente delimitado através de procedimentos pré-determinados legalmente, pode e deve ser alvo de sindicância jurisdicional.

26°. Se a questão, como é aqui o caso, se reduzir à interpretação e aplicação do RMDH, em concreto se estão verificadas as condições aí elencadas que permitem ao Recorrente o pleno acesso a uma habitação adequada e condigna, o douto Tribunal não só pode como o deverá fazer.

27°. A argumentação do douto Tribunal é, aliás, inconsistente na medida em que, se por um lado pretende limitar a sua atuação ao princípio da separação de poderes, por outro lado, extravasa esses mesmos limites fazendo juízos acerca da conveniência da pretensão do Recorrente, nomeadamente ao afirmar que a “boa gestão do interesse público na disponibilização de habitação social às famílias mais carenciadas, justifica plenamente, que a atuação do Município se paute por critérios objetivos e imparciais, através de uma atividade instrutória, de forma a que as exceções ao procedimento de atribuição sejam afetas às situações mais prementes”.

28°. Ora, verdadeiramente apenas agora o Recorrido foi chamado, em sede judicial, a dar cumprimento ao disposto no RMDH, por conseguinte, qualquer juízo que envolva a ponderação de critérios objetivos e imparciais, apenas poderá ser feita pelo Recorrido, em momento algum pelo douto Tribunal que desconhece, e nem tem de conhecer se existe uma habitação municipal que poderá ser atribuída ao Recorrente.

29º.Veja-se bem que aquilo que se pretende é o reconhecimento da existência de uma situação verdadeiramente excecional, cujo âmbito de aplicação encontra-se perfeitamente delimitado, e não qualquer exercício de graduação de uma candidatura anteriormente apresentada.

30°. Portanto, se no limite inexiste uma habitação que possa ser atribuída ao Recorrente, apenas o Recorrido poderia alegar e demonstrar, jamais o douto Tribunal que nem sequer determinou que o Recorrido fizesse essa prova.

31°. Alega ainda o douto TAC de Lisboa, corroborado pelo TCA Sul que “De qualquer modo, consideramos que a questão central no âmbito da análise que nos ocupa, prende-se com o facto de que a ser deferida a pretensão do requerente constante da presente intimação violar-se-ia, de forma inadmissível os princípios da universalidade, da igualdade e da imparcialidade, previstos nos artigos 12° e 13° da CRP e 6.°, 8.° e 9.° do CPA, impondo-se aos inúmeros interessados que se apresentam em situação social idêntica ou pior, um sacrifício intolerável dos seus direitos”.

32°. Salvo o respeito que é muito, não podemos concordar com o entendimento do douto TCA Sul.

33°. Sem descurar as preocupações de justiça social subjacentes à interpretação do douto Tribunal cumpre atentar que o princípio da igualdade proíbe, na sua face negativa, comportamentos discriminatórios e, em termos positivos, obriga a tratar igualmente situações idênticas.

34°. Ao contrário do que pugna o douto TCA Sul, trata-se de um princípio de conteúdo pluridimensional, que postula várias exigências, designadamente a de obrigar a um tratamento igual de situações de facto iguais e a um tratamento desigual de situações de facto desiguais, não autorizando o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual de situações desiguais.

35°. No fundo, o que se pretende evitar é o arbítrio legislativo, mediante uma diferenciação de tratamento irrazoável, a que falte inequivocamente apoio material objetivo.

36°. Sucede que é manifesto o contexto socio económico e a situação complexa e difícil que atravessa o Recorrente, como tal, estes são os elementos de facto de que dispõe o douto Tribunal e não a existência de outras situações que hipoteticamente justificam um tratamento “preferencial”.

37º. Como tal, é ilegal a não aplicação do corpo normativo, aprovado pela própria Assembleia Municipal que tem como fim último o auxílio dos munícipes de Lisboa que se encontram em circunstâncias mais precárias e no limiar da indignidade humana.

38°. De todo o modo, não se antecipa a violação dos princípios da universalidade e da imparcialidade porquanto os demais interessados mantêm a sua condição de “sujeitos constitucionais”, podendo os seus direitos constitucionalmente garantidos serem exercitados através do uso dos meios próprios».

2. A CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA contra-alegou, concluindo, quanto ao mérito, que:

«(...)

8. O douto acórdão recorrido não padece de qualquer erro na interpretação e aplicação do direito, devendo, nessa conformidade, ser confirmado, com as devidas consequências legais;

9. Como não poderia deixar de ser na atribuição das habitações sociais, quer seja por via dos procedimentos concorrenciais previstos na lei, designadamente para o que importa no Regulamento Municipal do Direito à Habitação do Município de Lisboa, quer seja por via de outros procedimentos, como seja para o que importa o previsto no artigo 10.° do aludido regulamento, a autarquia deve pautar a sua atuação pelo rigoroso cumprimento da legislação aplicável e dos princípios gerais da atividade administrativa;

10. Não assiste razão ao Recorrente quando insinua que o Digno Tribunal pode condenar a edilidade a atribuir ao Recorrente uma habitação social ao abrigo do artigo 10.° do mencionado regulamento desconsiderando os princípios basilares da atuação administrativa;

11. A habitação social é um bem escasso, que visa acudir à satisfação das necessidades básicas da população mais carenciada, pelo que a ocupação da mesma deve ser atribuída após uma ponderação concreta das necessidades dos indivíduos e famílias de modo a que se possa proceder a uma distribuição correta das habitações existentes com base em critérios objetivos e imparciais;

12. Tal ponderação é feita pelas entidades públicas vocacionadas para a resolução destes problemas graves de emergência social, como é o caso do Recorrido;

13. O poder judicial fiscaliza a legalidade da atuação administrativa mas não se pode substituir às entidades públicas na sua função administrativa sob pena de violação do princípio da separação de poderes previsto nos artigos 110.° e 111.° da Constituição da República Portuguesa e no n.° 1 do artigo 3.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos;

14. A atribuição de uma habitação social ao Recorrente envolve valorações próprias do exercício da função administrativa no âmbito das atribuições que a lei comete ao Recorrido, pelo que, sob pena de violação do princípio da separação de poderes, não pode o Digno Tribunal substituir-se ao Recorrido no exercício daquela função, não assistindo razão ao Autor, Recorrente, quando propugna o inverso nas suas alegações de recurso;

15. Partindo, assim, de premissas incorretas as conclusões do Recorrente são também elas erradas;

16. Acresce que, conforme resulta do processo administrativo, por via do ofício ...1, de 03.12.2021, subscrito pelo Exma. Senhora Vereadora BB, foi o Recorrente notificado de que não se encontravam reunidos os pressupostos para a atribuição a seu favor de uma habitação ao abrigo do artigo 10.º do Regulamento Municipal do Direito à Habitação, o que foi reiterado por via do ofício ...2, de 01.06.2022 (cfr. fls. 60, 151 e 152 do processo administrativo e ponto L) e ponto R) dos factos assentes);

17. À data o Recorrente poderia, se assim o tivesse entendido, ter lançado mão dos meios legais ao seu dispor para impugnar tal decisão, o que o mesmo não fez, encontrando-se ultrapassado o prazo de impugnação previsto na alínea b), do n.° 1, do artigo 58.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos;

18. Embora este meio processual não esteja sujeito a um prazo de caducidade, conforme referem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha “(…) não faz, a nosso ver, sentido que o processo de intimação possa ser utilizado (...) quando tenham entretanto transcorrido os prazos de que o interessado dispunha para reagir pela via processual normal (designadamente, através do pedido de impugnação de ato administrativo (....)” (cfr. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª edição, 2022, página 932);

19. Bem andou, assim, o colendo Tribunal Central Administrativo Sul no acórdão recorrido quando julgou improcedente o recurso do Recorrente e confirmou a douta sentença recorrida;

20. O recurso de revista deverá improceder mantendo-se o douto acórdão proferido pelo colendo Tribunal Central Administrativo Sul, com as devidas consequências legais, assim se fazendo a desejada JUSTIÇA!»

3. O recurso de revista foi admitido por Acórdão da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo, em formação de apreciação preliminar, de 20 de dezembro de 2023, considerando que «pese embora as instâncias terem decidido de forma consonante e o decidido pelo acórdão recorrido quanto à improcedência do recurso, se mostrar plausível, assentando em jurisprudência deste STA que indica, não há dúvida que a questão que se pretende discutir na revista se reveste de inegável relevância social, e de alguma complexidade com vista a proceder à concatenação do direito constitucional à habitação previsto no art. 65°da CRP e, nomeadamente, do regime excepcional contemplado no art. 10°, n°1, alinea a) do RMDH, face à situação de vulnerabilidade que se comprovou ser a que o Recorrente se encontra».

4. Notificado nos termos e para os efeitos do n.° 1 do artigo 146.° do CPTA, a Digna Magistrada do Ministério Público pronunciou-se pela improcedência do recurso, por entender que «a decisão proferida pelo TCA-SUL, que confirmou a improcedência do pedido do recorrente decidida pelo Tribunal de 1ª Instância, deve ser mantida, não com o fundamento na impossibilidade de sindicar um ato discricionário da administração, mas com fundamento na não verificação dos pressupostos de facto para a resolução de carência habitacional do recorrente».

5. Sem vistos, dada a natureza urgente do processo, nos termos da alínea e) do n.° 1 e do n.° 2 do artigo 36.° do CPTA.

II. Matéria de facto

6. As instâncias deram como provados os seguintes factos:

«A) O requerente nasceu em ../../1961 - cfr. doc. nº 1 junto com o requerimento inicial e fls. 1 do processo administrativo;

B) Em 06.06.2018 a psicóloga clínica que acompanha o requerente no Centro Hospitalar de Lisboa remeteu à entidade requerida, com caráter urgente, pedido em relação ao requerente, no sentido de “(...) apelo a Vossa Exma. o maior empenho pessoal e institucional para que se possa encontrar uma solução a partir da Câmara Municipal de Lisboa em eventual articulação com outra estrutura da cidade no Plano do Apoio Social e Habitacional (...)”, cujo teor se dá por integralmente reproduzido - cfr. doc. n° 3 junto com o requerimento inicial;

C) Em 12.06.2018 o requerente apresentou candidatura junto da entidade requerida nos termos do Regulamento do Regime de Acesso à Habitação Municipal, publicado no 1° Suplemento ao Boletim Municipal n° 992, de 21 de fevereiro de 2013 - cfr. fls. 1 e seguintes do processo administrativo;

D) A candidatura referenciada na alínea precedente deu origem ao processo de candidatura nº ...79/DMHDL/2018 – cfr. fls. 1 e seguintes do processo administrativo;

E) A candidatura referenciada na alínea precedente obteve a pontuação de 53,4 para a Tipologia T1 - cfr. fls. 5 do processo administrativo;

F) A psicóloga clínica referenciada na alínea B) reiterou o pedido aí elencado em 11.02.2019,11.09.2020 e 29.10.2021 - cfr. doc. n°s 4 e 5 junto com o requerimento inicial e fls. 10 e seguintes do processo administrativo;

G) Em 26.10.2021 o requerente submeteu junto da entidade requerida uma candidatura para obtenção de uma habitação acessível, em regime de arrendamento apoiado - cfr. fls. 6 do processo administrativo;

H) A candidatura referenciada na alínea precedente deu origem ao PA/10080/1/2021 - cfr. fls. 6 do processo administrativo;

I) No âmbito da candidatura mencionada em G) a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa elaborou informação social, sob o assunto “Processo de Candidatura de atribuição de Habitação no âmbito da Renda Apoiada”, datada de 10.11.2021, cujo conteúdo se dá nesta sede por integralmente reproduzida, a qual foi remetida à entidade requerida - cfr. doc. n° 8 junto com o requerimento inicial e fls. 53 e 54 do processo administrativo;

J) A candidatura referenciada na alínea precedente obteve a pontuação de 12,70697 para uma habitação de Tipologia T0/T1 - cfr. fls. 8 do processo administrativo;

(…)

K) Em 16.11.2021 foi elaborada pela Técnica Superior de Serviço Social da Direção Municipal de Habitação e Desenvolvimento Local a Informação n° INF/.../DPGH/DMHDL/CML/21, sob o assunto “Candidatura a programa de habitação municipal” da qual se extrai, entre o mais, o seguinte:

No seguimento do atendimento efectuado ao Sr. AA em 03/11/2021, e de acordo com as informações prestadas pelo próprio e da documentação apresentada, informa-se que:
- Até 31/10/2021 o munícipe esteve alojado num estúdio, pelo qual pagava um valor mensal de €549. O contrato não foi renovado, pelo que desde essa data se encontra em situação de sem abrigo, a pernoitar em casa de pessoas amigas.
- O munícipe encontra-se desempregado, auferindo uma baixa médica no valor de €655 mensais, cuja atribuição está suspensa há três meses, por motivos que desconhece.
- O Sr. AA tem diversos problemas de saúde, é insulinodependente, tem apneia com indicação de utilização de CPAP, terapia para reabilitação do segundo AVC sofrido em 2020 e risco cardiovascular. Para além destes problemas, apresentou ainda relatório do médico psiquiatra que refere "ideação suicida''.
- - Devido à sua situação frágil de saúde, tem recomendação médica para não partilhar quarto nem casa de banho.

(…)

- Em 26/10/2021 o Sr. AA submeteu candidatura ...21, onde obteve a pontuação de 12,71 para uma habitação de tipologia T0/T1. Registe-se que até à presente data a pontuação mais baixa com fogo afeto para esta tipologia foi de 44,37.

Verifica-se que o munícipe se encontrava numa situação de emergência social, e apesar de ter efetuado candidatura ao PAA, com a pontuação obtida não se prevê a atribuição de fogo a curto prazo. Refira-se ainda que, não tendo apresentado IRS relativo a 2020, o munícipe não se pode candidatar ao PRA.

Em 11/11/2021 através do Habitar Lisboa, a SCML remeteu informação completar sobre a situação atual do munícipe, que é a seguinte:

- O munícipe encontra-se a residir num quarto em hostel temporariamente, tendo a SCML pago a estadia de 8 dias.

- A prestação por doença de que beneficia esteve suspensa por três meses, mas já está processada para o presente mês: o valor desta prestação é igual ao valor que já recebia - 655,00€.

- A Assistente Social informou que a SCML apenas paga a estadia no Hostel, não estando a dar mais nenhum apoio monetário ao utente.

Mais se informa que no âmbito do RRAHM a munícipe efectuou três candidaturas em 2018. Em 12/06/2018, no atendimento mensal RRAHM, foi atendido pela técnica signatária, tendo declarado que se encontrava em risco de ficar na situação de sem abrigo, solicitando apoio da CML e de outras entidades. Dado que a sua situação estava a ser acompanhada pela SCML-UDIP ..., nessa data foi efectuado o encaminhamento para a Rede Social - DDS.

Refira-se que o n.°1, alínea a) do Artigo 10.° do RMDH prevê que se podem excecionar do procedimento de atribuição os casos de "agregados familiares que se encontrem em situação de necessidade habitacional urgente e/ou temporária, designadamente decorrente de (...) situações de vulnerabilidade, emergência social e/ou perigo físico ou moral para as pessoas...".

- cfr. doc. n° 9 junto com o requerimento inicial e fls. 57 e seguintes do processo administrativo;

L) Através do Ofício com a referência ...1, de 03.12.2021, sob o assunto “Candidatura ao programa do Arrendamento Apoiado”, o Gabinete da Vereadora BB informou o requerente do seguinte:

No seguimento das diversas exposições efetuadas por V. Exa. através de email e dos atendimentos realizados nos serviços da Direção Municipal da Habitação e Desenvolvimento Local, os quais são do meu conhecimento, tendo merecido a melhor atenção, informo, uma vez mais que as habitações municipais são afetas às candidaturas mais pontuadas, por tipologia, nos termos do Regulamento Municipal do Direito à Habitação (RMDH).

Não obstante a gravidade da sua situação de carência habitacional, como já é do seu conhecimento, a pontuação referente à sua candidatura ...21 é de 12,71 para uma habitação de tipologia T0/T1, sendo que o último pontuado com habitação afeta foi de 44,37.

Assim, tendo em conta esta pontuação, o elevado número de candidatos com pontuações mais elevadas e a escassez de casas para atribuição, não é previsível que lhe venha a ser afeta uma habitação municipal, no âmbito do concurso do Programa de Arrendamento Apoiado.

Os serviços pautam-se escrupulosamente pelos critérios de equidade e justiça social contudo, não é possível atribuir habitações municipais a situações que não se enquadram no disposto no RMDH.

No que respeita à questão por si levantada de se proceder à atribuição de uma habitação ao abrigo do artigo 10.º do RMDH, esclarece-se que, por se tratar de uma exceção, a mesma aplica-se apenas a situações com pontuações elevadas. Infelizmente, verifica-se a existência de muitos agregados familiares com grave carência socio económica e habitacional similares ou mais graves do que a de V. Exa., os quais também não conseguem aceder à atribuição de uma habitação municipal, continuando em situação de emergência social.

Mais se informa que, face à sua situação de grande vulnerabilidade socio habitacional a que somos sensíveis, estamos, em conjunto com o Pelouro dos Direitos Sociais e com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a providenciar no sentido de encontrar uma resposta que seja a mais adequada à sua situação.

Estando ciente que urge dar resposta a esta e outras situações idênticas na cidade de Lisboa, de tudo farei para que as mesmas consigam ser colmatadas com a maior brevidade possível.

(…)”

-cfr. doc. nº 10 junto com o requerimento inicial e fls. 59 e seguintes do processo administrativo instrutor;

M) Do relatório médico datado de 26.04.2022 emitido pela Unidade de Saúde ..., extrai-se o seguinte:

Para os devidos efeitos declara-se que o utente AA, com 60 anos de idade, apresenta diagnóstico de diabetes mellitus tipo 2 sobre insulinoterapia, com frequentes descompensações, beneficiando para um melhor controlo metabólico, de dieta polifraccionada e adequada a utente diabético.

- cfr. doc. n° 2 junto com o requerimento inicial;

N) Do relatório médico datado de 03.05.2022 emitido pela Unidade de Saúde ..., extrai-se o seguinte:

CC, médica portadora da cédula profissional nº ...16, declara para os devidos efeitos que o utente AA apresenta diversas co-morbilidades agravadas pela situação social que actualmente vive. Beneficiará de manutenção da sua incapacidade para o trabalho e da manutenção do seguimento pelas diversas especialidades e cumprimento da sua terapêutica para melhoria da sua situação clínica.

Por ser verdade e lhe ter sido pedido passa a presente declaração que data e assina.

- cfr. doc. n° 2 junto com o requerimento inicial;

O) Do relatório médico datado de 05.05.2022, do Serviço Hospitalar e Medicina Interna do Hospital da Luz em Lisboa, extrai-se o seguinte:

Para os devidos efeitos eu DD, Assistente Hospitalar de Medicina interna e Intensiva, Médica Assistente do Sr. AA, declaro que o mesmo tem múltiplas patologias crónicas com risco cardio e cererovascular importante.
Na sequência de indeferimento de Subsídio de Doença em fevereiro de 2022 o doente não tem capacidade de manter terapêutica e vigilância clínica adequadas com importante deterioração das patologias referidas. Igualmente tem-se verificado uma condição social grave, sem alojamento e sem condições económicas para subsistir.
(...)” - cfr. doc. n° 2 junto com o requerimento inicial;

P) Em 06.05.2022 compareceu no Gabinete do Munícipe do Departamento de Gestão da Habitação Municipal da entidade requerida o requerente, cujo auto de declarações se dá nesta sede por integralmente reproduzido - cfr. doc. n° 7 junto com o requerimento inicial e fls. 148 e seguintes do processo administrativo;

Q) Do auto de declarações referido na alínea precedente pode ler-se, entre o mais: “(...) Neste momento a sua situação de saúde agravou-se, conforme documentação médica apresentada, estando a tomar diariamente 16 medicamentos (...) O declarante mantém o interesse e a emergência na atribuição de uma habitação municipal (…)” - cfr. fls. 148 e seguintes do processo administrativo;

R) Através do Ofício com a referência ...2, de 01.06.2022, sob o assunto “Resposta ao email de 2 de maio de 2022”, o Gabinete da Vereadora BB informou o requerente, entre o mais, do seguinte: “(...) Verifica-se a existência de muitos agregados familiares com grave carência socio económica e habitacional similares ou mais graves do que a de V. Exa., os quais também não conseguem aceder à atribuição de uma habitação municipal, continuando em situação de emergência social, pelo que a observância aos princípios da equidade e justiça social, não são atribuídas habitações municipais ao abrigo da exceção prevista no Art.° 10.° do RMDH. (...)” - cfr. fls. 151 e seguintes do processo administrativo;

S) A candidatura mencionada na alínea G) encontra-se no Estado “Caducada”, cuja data se reporta a 26.10.2022
- cfr. fls. 6 do processo administrativo;

T) Em 20.12.2022 os Vereadores do PCP dirigiram ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa requerimento no sentido de lhes ser “prestado cabal esclarecimento sobre o tratamento” da situação atinente ao requerente, cujo teor se dá por integralmente reproduzido – cfr. doc. junto aos autos pelo requerente a 08.03.2023;

U) Através de ofício de resposta ...3, datado de 14.02.2023, o Gabinete da Vereadora BB prestou os esclarecimentos solicitados no requerimento do PCP referenciado na alínea precedente, cujo teor se dá por integralmente reproduzido - cfr. doc. junto aos autos pelo requerente a 08.03.2023;

V) Extrai-se da declaração da Segurança Social Direta, datada de 3.01.2023 que o requerente apresenta, entre o mais, a seguinte situação:

“Está a ser concedido o Subsídio Doença desde 2022-12-24, no valor diário de 33,54€ (trinta e três euros e cinquenta e quatro cêntimos)

Foi concedido o Subsídio Doença no(s) período(s) de 2022-01-16 a 2022-02-07, no valor diário de 33,54€ (trinta e três euros e cinquenta e quatro cêntimos)

Foi concedido o Subsídio Doença no(s) período(s) de 2022-02-08 a 2022-02-26, no valor diário de 33,54€ (trinta e três euros e cinquenta e quatro cêntimos)

Foi concedido o Subsídio Doença no(s) período(s) de 2022-02-27 a 2022-03-10, no valor diário de 33,54€ (trinta e três euros e cinquenta e quatro cêntimos)

Foi concedido o Subsídio Doença no(s) período(s) de 2022-03-11 a 2022-04-07, no valor diário de 33,54€ (trinta e três euros e cinquenta e quatro cêntimos)

Foi concedido o Subsídio Doença no(s) período(s) de 2022-04-08 a 2022-04-28, no valor diário de 33,54€ (trinta e três euros e cinquenta e quatro cêntimos)

Foi concedido o Subsídio Doença no(s) período(s) de 2022-04-29 a 2022-05-30, no valor diário de 33,54€ (trinta e três euros e cinquenta e quatro cêntimos)

Foi concedido o Subsídio Doença no(s) período(s) de 2022-05-31 a 2022-06-09, no valor diário de 33,54€ (trinta e três euros e cinquenta e quatro cêntimos)”

W) A intimação para proteção de direitos liberdades e garantias deu entrada no presente Tribunal Administrativo em 03.01.2023 - cfr. comprovativo de entrega a fls. 1 a 3 do SITAF.»

III. Matéria de Direito

7. A questão essencial de direito que se discute no presente recurso é a de saber se o Recorrente pode exigir da Câmara Municipal de Lisboa, ora Recorrida, a atribuição de uma casa de renda acessível para satisfação das suas concretas necessidades habitacionais.
Em causa está, nomeadamente, a questão de saber se o artigo 10.° do Regulamento Municipal do Direito à Habitação (RMDH) do Município de Lisboa densifica o conteúdo do seu direito fundamental à habitação em termos tais que, a recusa da Câmara em atribuir-lhe uma casa, nas condições pretendidas, possa ser configurada como uma lesão do mesmo direito, merecedora de proteção no âmbito do presente processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias.
As instâncias decidiram de forma unânime no sentido da improcedência da ação, por entenderem, como se escreveu na sentença do TAF de Lisboa, que «o direito social à habitação, previsto no artigo 65.°, n.° 1, da CRP, não confere um direito imediato a uma prestação efetiva dos poderes públicos mediante a disponibilização de uma habitação, antes rege na garantia de critérios objetivos e imparciais no acesso dos interessados às habitações oferecidas pelo sector público».
Naquela sentença, que o acórdão recorrido confirmou, considerou-se, além do mais, que o artigo 10.° do RMDH, ao limitar-se a prever exceções ao regime de atribuição de casas de renda acessível em situações de vulnerabilidade, emergência social ou perigo físico ou moral para as pessoas, que cabe à Câmara Municipal de Lisboa avaliar, «não apresenta um conteúdo normativo precisamente determinado que permita a intervenção do Juiz administrativo sem perda ou afetação da separação dos poderes próprios do Estado de Direito».
O Recorrente contrapõe, no entanto, que «constatando-se que o Recorrente preenche as condições de acesso à exceção prevista no artigo 10.° n.° 1 alínea a) do RMDH, o Recorrido na sua atuação de reposição da legalidade, não se encontra no domínio da discricionariedade administrativa, impondo-se-lhe o total e estrito acatamento da decisão judicial na sua integralidade e alcance, inexistindo como tal, qualquer infração do princípio da separação e interdependência de poderes».
Vejamos.

8. Embora as instâncias tenham julgado o mérito da ação, a verdade é que se podem suscitar - e o acórdão recorrido suscitou, como reforço de argumentação - questões que obstam à própria admissibilidade do pedido de intimação que vem formulado nos autos.
Desde logo, a questão de saber se este meio processual é idóneo a proteger um direito que, pelo menos no plano sistemático, vem qualificado pela Constituição como um direito económico, social e cultural, e não como um direito, liberdade ou garantia.
Mesmo que se reconheça a irrelevância jurídica desta distinção no âmbito da justiça administrativa, na linha da posição defendida por Jorge Reis Novais -cfr. “Direito, liberdade ou garantia”: uma noção imprestável na Justiça Administrativa?”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 73, 2009, pp. 44 ss., a verdade é que o direito à habitação, tal como consagrado no número 1 do artigo 65.° da CRP, não preenche todos os critérios necessários para operacionalizar o conceito constitucional de direito, liberdade ou garantia, nomeadamente no que diz respeito à determinabilidade do seu conteúdo.
Na verdade, o direito à habitação, na dimensão que o Recorrente pretende fazer valer na presente ação, de direito à atribuição de uma casa de morada, é um direito social típico, de natureza prestacional, que pressupõe, por isso mesmo, uma atuação positiva da Administração, tendo em vista a sua satisfação.
Nesta dimensão prestacional, não se pode falar em direito análogo a direitos liberdades e garantias, característica de que este direito goza, principalmente, em situações de privação de uma habitação já existente, nomeadamente em casos desocupação ou demolição de edifícios habitacionais.

9. É certo que nos situamos num plano infraconstitucional, e que o grau de concretização do direito à habitação tem de ser aferido à luz das disposições legais e regulamentares concretamente aplicáveis à pretensão do Recorrente, que, por essa razão, convoca em favor da sua posição o disposto no artigo 10.° do RMDH da Cidade de Lisboa.
Aquele artigo dispõe na alínea a) do seu número 1, entre outros, que «podem ser excecionados, do procedimento de atribuição previsto no Artigo 9.°» - nomeadamente dos procedimentos de concurso por inscrição ou por classificação - os «agregados familiares que se encontrem em situação de necessidade habitacional urgente e/ou temporária, designadamente decorrente de desastres naturais e calamidades ou de outras situações de vulnerabilidade, emergência social e/ou perigo físico ou moral para as pessoas, incluindo as relativas a violência doméstica».
Ora, independentemente da questão de saber se a prova produzida nos autos é suficiente para subsumir o Recorrente naquela previsão normativa, e se do preenchimento da mesma decorre, automaticamente, o direito à atribuição de uma casa, nos termos por ele pretendidos, o recurso à referida disposição suscita uma questão prévia, que o acórdão recorrido, aliás, não ignorou.

10. Resulta da matéria de facto provada nos autos, nomeadamente dos factos fixados em C) a L), que o Recorrente se submeteu a um procedimento de concurso, nos termos do Regulamento do Regime de Acesso à Habitação Municipal, e que não logrou posicionar-se numa posição que lhe garantisse o direito à atribuição de uma habitação acessível, em regime de arrendamento apoiado.

Resulta também dos mesmos factos, em especial do fixado em L), que em face do insucesso obtido no referido procedimento de concurso, o Recorrente solicitou expressamente que lhe fosse atribuída uma habitação acessível ao abrigo do regime de exceção previsto no artigo 10° do RMDH, o que lhe foi, também forma expressa, negado por despacho da Vereadora Municipal da Habitação, que lhe foi notificado em 3 de dezembro de 2021.

Ou seja, a posição jurídica do Recorrente já foi definida pelo referido despacho, que ele não impugnou dentro dos prazos legalmente estabelecidos para o efeito.

O que o Recorrente pretende obter com o presente pedido de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias é, pois, a condenação à prática de um ato que ele não pediu oportunamente, através do meio processual adequado, o que deveria conduzir à sua inadmissibilidade.

11. Admitamos, contudo, que não tendo o seu direito à habitação sido extinto pelo referido despacho, o facto de ele não ter oportunamente lançado mão de uma ação de condenação à prática de ato legalmente devido não impede que ele lance agora mão da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, que apenas exige, como seu pressuposto, a lesão ou ameaça de lesão do direito fundamental em questão, sem dependência de qualquer prazo.
Foi, aliás, o que fizeram as instâncias, que julgaram o fundo da causa.
Regressamos, assim, agora numa outra perspetiva, à questão inicial, que é a de saber se o artigo 10.° do RMDH densifica o conteúdo daquele direito em termos que confiram ao Recorrente o poder de exigir da Recorrida a atribuição de uma casa de morada.
E é manifesto que não.

11. O artigo 10.° do RMDH não define as condições de acesso das pessoas em situação de vulnerabilidade a uma habitação acessível, limitando-se a permitir que a Câmara Municipal de Lisboa, em situações extremas, possa afastar os procedimentos normalmente aplicáveis para satisfazer as necessidades das pessoas que careçam de uma resposta prioritária.
Aquela disposição regulamentar não confere, por isso, um direito subjetivo público a exigir a atribuição de uma casa acessível a todas as pessoas em situação de vulnerabilidade, nem nas demais situações nela previstas.
O que aquela disposição confere - à própria Administração, e não aos particulares - é um poder discricionário derrogatório do regime legal normalmente aplicável, poder esse que deve ser entendido no sentido com que a expressão discricionariedade derrogatória é utilizada por Martin Bullinger, como um "espaço livre para a adaptação da lei às circunstâncias do caso concreto” -cfr. "Landsbericht Budesrepublik Deutschland", In Verwaltungsermessen im Modernen Staat, 1985, pp. 150-151.
Significa isso, portanto, que o poder conferido por aquela disposição legal não é um poder vinculado, em cujo exercício o Tribunal se possa substituir à Administração sem invadir a sua esfera de competência reservada. É a Câmara Municipal de Lisboa, ponderando as circunstâncias das pessoas que se subsumem na previsão do artigo 10.°, e de todas as demais que carecem de uma habitação acessível, que avalia se e quando fazer uso daquele poder. O que, no caso dos autos, ela efetivamente fez, com base em juízos valorativos de equidade e justiça social que apenas ela está em condições de - e pode - realizar.
Este Tribunal, e os tribunais administrativos em geral, não só não podem, como ainda que pudessem, não estariam em condições de o fazer, por não disporem nos autos de matéria de facto suficiente para realizar todas as ponderações necessárias, nomeadamente o conhecimento detalhado do parque habitacional da Câmara Municipal de Lisboa, e o recenseamento de todas as pretensões de acesso a uma habitação, o que só a autarquia dispõe.
Não procede, aliás, a argumentação do Recorrente, quando nega que a Recorrida tenha que fazer ponderações de justiça relativa, por forma a assegurar a igualdade de tratamento entre todos os munícipes, porque, ao contrário do que afirma, os respetivos direitos não estão garantidos com independência uns dos outros. Neste domínio, como em outros domínios da Administração prestacional, a realização dos direitos económicos, sociais e culturais está, necessariamente, sujeita à designada “reserva do possível”, que obriga a Câmara Municipal de Lisboa a definir prioridades e a fazer escolhas, no quadro das suas orientações gerais de política local de habitação.

12.Têm, por isso, razão as instâncias, quando decidiram que o número 1 do artigo 65.° da Constituição «não confere um direito imediato a uma prestação efetiva dos poderes públicos mediante a disponibilização de uma habitação», e que o juiz administrativo não pode intervir «sem perda ou afetação da separação dos poderes próprios do Estado de Direito».
Numa visão mais exigente, o referido entendimento poderia, inclusive, ter conduzido à não admissão do pedido, por não se encontrarem verificados os pressupostos estabelecidos no artigo 109.° do CPTA, que exige, nomeadamente, que exista uma lesão, ou ameaça de lesão, de um direito, liberdade e garantia.
Não obstante, o certo é que, não se encontram verificadas as condições previstas no Regulamento Municipal do Direito à Habitação para que o Recorrente possa exigir da Câmara Municipal de Lisboa a atribuição de uma concreta habitação, não podendo o juiz administrativo substituir-se àquela entidade na ponderação das circunstâncias que podem justificar a aplicação do regime de exceção previsto no artigo 10.° do referido regulamento.
Este Supremo Tribunal Administrativo, aliás, já se pronunciou anteriormente, no seu Acórdão de 13 de abril de 2023, proferido no Processo n.° 044/22.6BELLE, no sentido de que «o art° 65° da CRP, não se pode considerar violado, nem quando o legislador ordinário estabelece regras e critérios para o acesso à habitação pública que pretendem salvaguardar a igualdade de tratamento de todos os cidadãos atendendo às suas circunstâncias e carências, nem tão pouco, quando a ora recorrida dá cumprimento à legislação ordinária vigente e aplicável ao caso sub judice».
Assim, e sem necessidade de mais considerações, conclui-se que o acórdão recorrido não merece qualquer censura, devendo o presente recurso improceder.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, reunidos em conferência, em negar provimento ao recurso e, em consequência, em confirmar o acórdão recorrido.

Sem custas, nos termos do número 2 do artigo 4° do RCP. Notifique-se

Lisboa, 21 de fevereiro de 2024. – Cláudio Ramos Monteiro (relator) – Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva – Ana Celeste Catarrilhas da Silva Evans de Carvalho.