Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0652/20.5BELSB-C
Data do Acordão:01/25/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:APRECIAÇÃO PRELIMINAR
PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO
Sumário:É de admitir a revista interposta de acórdão que, revogando decisão do TAC, deferiu o incidente de prestação de caução, quando está em causa matéria social e juridicamente relevante e dotada de alguma complexidade, sobretudo no que concerne à questão da sua compatibilização com a decisão cautelar e respectiva execução, suscitando-se legítimas dúvidas sobre o acerto da posição que veio a ser adoptada pelo TCA.
Nº Convencional:JSTA000P31849
Nº do Documento:SA1202401250652/20
Recorrente:AA (E OUTROS)
Recorrido 1:MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACORDAM NA FORMAÇÃO DE APRECIAÇÃO PRELIMINAR DA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:


1. Ministério dos Negócios Estrangeiros (doravante MNE), entidade demandada no processo nº 652/20.5BELSB intentou, no TAC, contra os AA. nesse processo, AA, BB e CC, incidente de prestação de caução relativamente à quantia de € 416.624,90, a qual deveria ser dividida por estes da seguinte forma: € 169.596,88 por CC, € 124.049,32 por BB e € 122.978,64 por AA.
Foi proferida sentença que indeferiu o incidente.
O requerente apelou para o TCA-Sul, o qual, por acórdão de 09/11/2023, concedeu provimento ao recurso, revogou a decisão recorrida e julgou procedente o pedido de prestação de caução, no montante de € 416.624,90, a suportar pelos requeridos “na proporção das quotas que a cada um deles incumbirá pagar, enquanto trabalhadores do MNE, mais se ordenando a baixa dos autos ao TAC de Lisboa, a fim de aí ser proferido o despacho a que alude o nº 2 do artigo 908º do C.P.Civil, seguindo-se os ulteriores termos previstos para o incidente de prestação de caução”.
É deste acórdão que os requeridos pedem a admissão do recurso de revista.

2. Tem-se em atenção a matéria de facto considerada pelo acórdão recorrido.

3. O art.º 150.º, n.º 1, do CPTA, prevê que das decisões proferidas em 2.ª instância pelos tribunais centrais administrativos possa haver excepcionalmente revista para o STA “quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental” ou “quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.
Como decorre do texto legal e tem sido reiteradamente sublinhado pela jurisprudência deste STA, está-se perante um recurso excepcional, só admissível nos estritos limites fixados pelo citado art.º 150.º, n.º 1, que, conforme realçou o legislador na Exposição de Motivos das Propostas de Lei nºs. 92/VIII e 93/VIII, corresponde a uma “válvula de segurança do sistema” que apenas pode ser accionada naqueles precisos termos.
A sentença indeferiu o incidente de prestação de caução por considerar que não existia qualquer disposição legal ou estipulação contratual de onde resultasse a obrigação dos requeridos “de garantir o crédito que o MNE possa vir a ter sobre aqueles” e porque o requerente não juntara qualquer prova dos fundamentos da sua pretensão, designadamente quanto à existência de um risco sério daqueles nunca o ressarcirem dos montantes em causa “por serem pessoas modestas e de poucas posses”.
Entendimento contrário foi sustentado pelo acórdão recorrido que, para tanto, referiu o seguinte:
“(...).
10. Como decorre dos autos, por força da sentença proferida no processo cautelar e da sentença proferida nos autos de execução da sentença cautelar – cfr. apenso B –, foi a entidade demandada obrigada a pagar a totalidade da quantia exequenda, no montante de € 772.518,29, isto sem prejuízo do recurso daquela sentença cautelar, que ainda não teve decisão deste TCA Sul.
11. Porém, como decorre do requerimento inicial apresentado nos presentes autos, o MNE nunca deixou de distinguir as quantias que são da sua responsabilidade, correspondentes às contribuições devidas enquanto entidade patronal dos recorridos, e as quantias que são da responsabilidade daqueles, relativamente às quais continua a entender que deve ser prestada caução, a qual, em seu entender, se afigura essencial nos presentes autos, pois de outra forma a decisão cautelar que deveria ser provisória passa a ser uma decisão definitiva, perdendo a entidade demandada qualquer garantia de que o montante que é da responsabilidade dos autores lhe venha a ser devolvido. Acresce que, na perspectiva do MNE, a prestação de caução é uma forma de garantir que a condenação dos autores – e aqui recorridos – no pedido reconvencional de € 416.624,90, apresentado na acção principal, terá um cumprimento efectivo por parte destes, sendo por conseguinte a caução necessária para prevenir o cumprimento das obrigações que virão a ser assumidas pelos autores – e aqui recorridos – quando o pedido reconvencional for julgado procedente e essa decisão transitar em julgado.
(...).
14. Como é sabido, a caução é uma forma de assegurar o cumprimento duma obrigação, constituindo uma garantia especial das obrigações. Em termos processuais, a caução serve para obter ou suspender um efeito imediato, no âmbito de uma dada situação jurídica, que se encontra sob litígio (cfr., a este propósito, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7ª edição, Almedina, 2001, a págs. 471-476), constituindo uma das formas processualmente mais relevantes para a obtenção ou suspensão de um efeito imediato relativamente a uma determinada situação jurídica, ou seja, ela existe para obstar ao efeito imediato que decorre da execução da decisão cautelar.
15. No plano processual, determina o artigo 906º do CPCivil que “aquele que pretenda exigir a prestação de caução indica, além dos fundamentos da pretensão, o valor que deve ser caucionado, oferecendo logo as provas”, sendo que relativamente à prova dos fundamentos do pedido, a decisão recorrida concluiu que o MNE não juntou qualquer prova dos fundamentos da sua pretensão, tal como é exigido pelo artigo 906º, do CPC, designadamente, quanto ao risco sério de os autores nunca a ressarcirem destes montantes por serem pessoas modestas e de poucas posses.
16. Porém, tal como resulta do acórdão proferido no apenso B, a decisão cautelar determinou a condenação do MNE ao pagamento à CGA da quantia total que era devida por aquele Ministério e relativa às quotas dos ora exequentes (cfr. alínea p) do probatório). Mas nessa decisão também se deixou consignado que esses mesmos exequentes estarão, necessariamente, obrigados ao reembolso ao MNE dos montantes das quotas que lhe incumbiriam pagar enquanto trabalhadores do MNE. E, pese embora os exequentes tivessem invocado no processo cautelar a sua insuficiência económica para pagarem a sua parte das quotas devidas e a proximidade da data em que teriam direito a começar a usufruir da aposentação, concluiu-se no aludido acórdão ser manifesto que o MNE terá um interesse legítimo em que os exequentes prestem caução pelo valor que lhes cabe reembolsar ao MNE. Ora, tanto bastará para considerar demonstrados os fundamentos que sustentam o pedido de prestação de caução, sem necessidade da produção de outras provas, pelo que mal andou a decisão recorrida ao ter indeferido o pedido de prestação de caução formulado pelo MNE.
17. Por conseguinte, e visto o disposto no artigo 908º, nº 1 do CPCivil, nada obsta a que seja prestada caução por parte dos autores, no valor de € 416.624,90, devendo cada um deles prestá-la na proporção das quotas que a cada um deles incumbirá pagar, enquanto trabalhadores do MNE, seguindo-se os demais termos previstos nos artigos 908º, nº 2 e segs. do CPCivil.
Os recorrentes justificam a admissão da revista com a relevância jurídica e social das questões a decidir – por estar em causa o direito à protecção social dos trabalhadores dos serviços periféricos externos do MNE, relativamente aos quais não foram cumpridos, perante a CGA, os deveres de declaração, retenção e entrega atempada de contribuições, sendo certo que, existindo outros trabalhadores desses serviços em igual situação, a mesma discussão de direito virá provavelmente a repetir-se – e com a necessidade de uma melhor aplicação do direito, imputando ao acórdão recorrido erros de julgamento resultantes de o MNE não ter demonstrado o risco de insatisfação do seu direito de regresso e consequente necessidade de ser prestada caução, por o deferimento do incidente desvirtuar o sentido da providência cautelar que foi decretada, repondo o “periculum in mora” que esta afastara e porque o MNE, a quem é imputável a situação actual causada por uma reiterada e prolongada omissão de deveres legais que lhes negou o acesso à protecção social, ter agido em claro abuso de direito.
A revista incide sobre matéria social e juridicamente relevante e dotada de alguma complexidade, sobretudo no que concerne à questão da compatibilização da decisão do incidente com a decisão cautelar e respectiva execução, suscitando-se legítimas dúvidas sobre o acerto da posição que veio a ser adoptada pelo TCA-Sul.
Justifica-se, pois, a intervenção do Supremo para uma melhor indagação e, eventualmente, uma melhor decisão num assunto que suscita interrogações jurídicas e que, tendo potencialidade de repetição, reclama uma clarificação de directrizes.

4. Pelo exposto, acordam em admitir a revista.
Sem custas.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2024. – Fonseca da Paz (relator) – Teresa de Sousa – José Veloso.