Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:063/11
Data do Acordão:09/21/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:VALENTE TORRÃO
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
PRAZO
ACTO TRIBUTÁRIO
NULIDADE
ANULABILIDADE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário:I - O prazo referido no artº 102º, nº 3 do CPPT aplica-se no caso de actos nulos.
II - O vício de falta de fundamentação do acto tributário não se enquadra no disposto nos artºs 133º e 135º do CPA, não constituindo direito fundamental ou direito de natureza análoga, pelo que conduz apenas à anulação do acto e não à sua nulidade.
III - Tendo o Mmº Juiz recorrido considerado intempestiva a impugnação e absolvido a Fazenda Pública da instância, não tinha de apreciar o mérito da impugnação, pelo que ao omitir essa apreciação não incorreu em vício da sentença por omissão de pronúncia.
Nº Convencional:JSTA000P13243
Nº do Documento:SA220110921063
Recorrente:A...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A…, com os demais sinais nos autos, veio recorrer da decisão do Mmº Juiz do TAF de Sintra que julgou procedente a excepção peremptória da caducidade do direito de acção, absolvendo a Fazenda Pública da instância, na presente impugnação judicial por si instaurada contra o indeferimento tácito de reclamação graciosa de liquidação de IRS, relativa ao ano de 2000, apresentando, para o efeito, alegações nas quais conclui:
A) - A sentença é nula por aplicação directa do nº 1 do artigo 125.° do CPPT.
B) - A sentença está em oposição e violação directa das seguintes normas legais:
a) N.° 2 do artigo 660.° do CPC;
b) N.° 3 do artigo 268.° do CRP;
c) Alínea d) do n.° 2 do artigo 133.° do CPA.
d) N.° 3 do artigo 102.° do CPPT.
C) - A sentença julgou intempestiva a acção de impugnação apresentada pelo Recorrente.
D) - Contudo, a acção tinha por fundamento a falta de fundamentação do acto impugnado o que é gerador de nulidade.
E) - A nulidade é por si invocável a todo o tempo, sendo portanto tempestiva a acção.
F) - O n.° 2 do artigo 133.° do CPA determina que são nulos todos os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental.
G) - O direito à fundamentação do acto é um direito fundamental e se ofendido, inquina o acto a que respeita, com nulidade.
H) - A exigência de fundamentação do acto assume de facto uma dimensão jus-fundamental, não só por se encontrar consagrada na CRP, no seu n.° 3 do artigo 268.°, mas por ser um mecanismo jurídico intrínseco ao funcionamento de qualquer Estado de Direito Democrático.
I) - Um acto que não é acompanhado da sua fundamentação está a violar o princípio da dignidade humana e o principio do Estado de Direito Democrático, sendo ele próprio um direito fundamental.
J) - A fundamentação é intrínseca ao acto que influi nos direitos do contribuinte, aqui recorrente.
L) - Ninguém se conforma em pagar algo (ou ser obrigado a tomar ou omitir uma conduta, por ex.) sem saber o porquê.
M) - O n.° 3 do artigo 102.° do CPPT dispõe que a Impugnação Judicial pode ser deduzida a todo o tempo se o fundamento for nulidade, sendo a presente acção tempestiva.
N)- Por outro lado, a sentença recorrida não apreciou, como estava obrigada pelo nº 2 artigo 660.° do CPC e nº 1 do artigo 125º do CPPT, a questão da falta de fundamentação do seu desvalor, não obstante a mesma ter sido invocada nos autos pelo ora Recorrente.
O) - O vício de falta de fundamentação (e o seu desvalor, a nulidade) é uma questão essencial à apreciação das restantes questões, por dela depender a tempestividade da acção.
P) - A questão da falta de fundamentação e da sua nulidade tem influência directa na decisão tomada, pois a apreciação da nulidade poderia ter conduzido a uma sentença em sentido oposto.
Q) - Como a questão não foi apreciada, nem alvo de pronúncia, a sentença enferma assim de vício de nulidade, nos termos do nº 1 do artigo 125º do CPPT.
Nestes termos e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência, ser a sentença revogada, julgando-se improcedente a excepção da caducidade, com todas as consequências legais.
2.O MºPº emitiu o parecer que consta de fls. 114/115 no qual defende a improcedência do recurso.
3. Colhidos os vistos legais cabe agora decidir.
4. Com interesse para a decisão foram dados como provados em 1ª instância os seguintes factos:
A) O Impugnante foi notificado da liquidação adicional de IRS nº 5130070307, relativa ao ano de 2000, com valor a pagar de € 89 388,50, com data limite de pagamento: 09/07/2003 - cfr. fls. 11;
B) Em 05/04/2004, o Impugnante apresentou reclamação graciosa da liquidação referida em A com a seguinte conclusão:"O reclamante pretende em primeiro lugar ser devidamente esclarecido quanto ao valor da dívida e porque razão teve que pagar o valor de £ 90 887,30. Sendo que ainda hoje desconhece qual a fundamentação para a cobrança de tal valor.
Depois, porque entende que o pagamento que efectuou, superou em € 10 598,89 o valor da sua dívida, pretende que seja anulada tal liquidação e que lhe seja reembolsado o respectivo montante ou em alternativa que seja admitida a compensação desse crédito. Pretende ainda que seja declarado erro imputável aos serviços e que sobre o montante referido no artigo anterior lhe sejam reconhecidos juros indemnizatórios". - cfr. fls. 2 a 8 do processo administrativo tributário apenso;
C) Em 05/01/2005, o Impugnante apresentou os presentes autos de impugnação pedindo a anulação do valor que superou a liquidação referida em A - cfr. carimbo, a fls. 2.
4. Conforme resulta da decisão recorrida, a impugnação foi julgada intempestiva porque apresentada para além do prazo estipulado no artº 102º, nº 1, alínea d) do CPPT.
O recorrente, por sua vez, entende que a apresentação da impugnação é tempestiva já que está em causa o vício de nulidade resultante da falta de fundamentação do acto tributário, pelo que a mesma é invocável a todo o tempo.
Vejamos então.
4.1.O recorrente imputa à decisão recorrida os vícios de nulidade da sentença por omissão de pronúncia e de violação de lei por ofensa do disposto no artº 102º, nº 3 do CPPT.
Ora, quanto ao primeiro vício, o mesmo não ocorre pois que, concluindo a sentença pela intempestividade da impugnação, nada mais teria de apreciar, nomeadamente os vícios imputados ao acto tributário.
Isto mesmo se concluiu no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 03.12.2008 – Processo nº 803/08, onde ficou consignado que “Uma vez considerada extemporânea a petição da impugnação judicial, está vedada ao tribunal o conhecimento de qualquer questão atinente ao mérito da causa, ainda que de conhecimento oficioso “
Poderia era colocar-se a questão de o Mmº Juiz não ter apreciado se estamos em face de nulidade ou mera anulabilidade do acto tributário. Porém, tal como se refere no despacho de sustentação de fls. 108 e no parecer do MºPº, o recorrente não suscitou a questão da nulidade do acto impugnado. Pelo contrário, e tal como resulta do intróito da sentença onde se transcreveu parcialmente parte da petição, o recorrente refere-se sempre a anulação do acto tributário. Sendo assim, não cabia ao Mmº Juiz debruçar-se sobre a natureza do vício, mas apenas tomar em conta o alegado pelo recorrente para fundamentar a sua decisão de intempestividade.
Improcedem, pelo exposto, as conclusões das alíneas A), B), alínea a), N) e Q).
4.2. Quanto ao vício de violação de lei - artº 102º, nº 3 do CPPT -, também o mesmo não ocorre, pelas razões que se adiantarão.
Com efeito, o vício imputado ao acto tributário pelo recorrente foi o de falta de fundamentação.
Ora, conforme jurisprudência reiterada e uniforme deste Supremo Tribunal, “Em regra, os vícios dos actos tributários são fundamento da sua anulabilidade, só implicando a sua nulidade quando se verifique a falta de qualquer dos elementos essenciais do acto ou quando houver lei que expressamente preveja esta forma de invalidade (artigos 133.º e 135.º do CPA) - neste sentido, entre outros, v. o Acórdão deste Supremo Tribunal e Secção de 21.05.2008 –Processo nº 220/08.
E, dentro deste entendimento, tem-se considerado que vícios como a violação do direito de audição prévia (Acórdão de 16.12.2010 – Processo nº 623/10), violação do direito à fundamentação (Acórdão de 21.05.2008 – Processo nº 220/08), conduzem a mera anulabilidade do acto tributário e não à sua anulação.
4.3. Vem o recorrente agora invocar, no entanto, que o n.° 2 do artigo 133.° do CPA determina que são nulos todos os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental.
E que o direito à fundamentação do acto é um direito fundamental e se ofendido, inquina o acto a que respeita, com nulidade, pelo que a exigência de fundamentação do acto assume de facto uma dimensão jus-fundamental, não só por se encontrar consagrada na CRP, no seu n.° 3 do artigo 268.°, mas por ser um mecanismo jurídico intrínseco ao funcionamento de qualquer Estado de Direito Democrático.
Invoca ainda que um acto que não é acompanhado da sua fundamentação está a violar o princípio da dignidade humana e o principio do Estado de Direito Democrático, sendo ele próprio um direito fundamental.
Ora, em primeiro lugar, não compreendemos se o que o recorrente pretende invocar como direito fundamental é o direito à fundamentação ou o direito à notificação da fundamentação (V. conclusões G) e H), respectivamente).
No entanto, sempre se dirá que, em qualquer dos casos, não estamos perante o invocado direito fundamental constitucionalmente consagrado.
A este propósito é bem esclarecedor o que ficou escrito no recente Acórdão deste Tribunal e Secção, de 20.05.2011 -Recurso nº 091/11, que passamos a transcrever:
“No domínio do direito administrativo, do qual o direito tributário constitui área especial, rege o princípio geral da anulabilidade, sendo anuláveis todos os «os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis para cuja violação se não preveja outra sanção» (artigo 135.º do CPA), isto é, todos os actos a que falte qualquer requisito de validade.
E só estão feridos de nulidade os actos previstos no n.º 1 do artigo 133.º do CPA, isto é, «os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade», e que o n.º 2 exemplifica com situações que se têm por mais ocorrentes, designadamente, com os «actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental» - alínea d) do n.º 2.
Referindo-se a esta alínea d), FREITAS DO AMARAL (No “Curso de Direito Administrativo”, II vol. pág. 412.) explica que “a expressão direitos fundamentais só abrange, neste artigo, os direitos, liberdades e garantias e direitos de natureza análoga, excluindo os direitos económicos, sociais e culturais que não tenham tal natureza”. E, como refere GOMES CANOTILHO (in"Direito Constitucional”, pág. 536.), os direitos, liberdades e garantias são aqueles “cujo conteúdo é essencialmente determinado [ou determinável] ao nível das opções constitucionais; não são direitos, liberdades e garantias aqueles que só se tornam «líquidos e certos» no plano da legislação ordinária, isto é, aqueles cujo conteúdo é essencialmente determinado por opções do legislador ordinário”. No mesmo sentido podem ver-se diversos arestos do Supremo Tribunal Administrativo, designadamente nos acórdãos proferidos em 13/01/1994, no recurso n.º 032425, em 30/01/1996, no recurso n.º 35752, e em 05/06/2007, no recurso n.º 0275/07.
Deste modo, e em regra, os vícios dos actos administrativos e tributários implicam a sua mera anulabilidade, só ocorrendo nulidade quando falte qualquer elemento essencial (a inidentificabilidade orgânica e material mínima, nas palavras de MARCELO REBELO DE SOUSA) (in “Inexistência Jurídica” DJAP, volume V, página 242.), quando a lei expressamente o determine, ou quando se verifiquem as circunstâncias expressamente referidas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 133.º do CPA, designadamente quando ocorra ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental.
E, assim sendo, nem todos os actos que ferem princípios constitucionais são nulos, só o sendo aqueles que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental, isto é, que brigam com direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, e já não aqueles que brigam com o principio da legalidade tributária. Os actos violadores do princípio da legalidade tributária são anuláveis, e não nulos.
Relativamente ao dever de fundamentação dos actos administrativos e tributários constitui linha jurisprudencial dominante que, não obstante se tratar de uma imposição constitucional, não constitui um direito de natureza fundamental cuja ofensa possa determinar a nulidade do acto. Aliás, a falta de fundamentação nem sequer põe em causa a identificabilidade orgânica ou a identificabilidade material do acto, repercutindo-se, apenas, e em princípio, na sua inteligibilidade e justificação perante os interessados (por estar em causa essencialmente a sua compreensibilidade), pelo que também não implica a falta de qualquer elemento essencial do acto, não podendo, assim, gerar a sua nulidade”.
Neste mesmo sentido, já o Acórdão n.º 594/08 do Tribunal Constitucional havia concluído que a fundamentação dos actos administrativos não constitui um direito fundamental, ou, sequer, um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias (por não constituir, sequer, garantia do direito fundamental de recurso contencioso contra actos administrativos lesivos dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados), embora possa vir a ser permeado com as exigências dos direitos fundamentais nos casos, pontuais e específicos, em que a fundamentação do acto seja condição indispensável da realização de direitos fundamentais. (Negando também essa natureza de direito fundamental ou de direito de natureza análoga v. os Acórdãos nºs 63/84, 86/84, 89/84, 51/85, 150/85, 32/86 e 266/87, do mesmo Tribunal, publicados no DR II série, respectivamente, de 02.08.1984, 02.02.1985, 05.02.1985, 13.04.1985, 19.12.1985, 09.05.1986 e DR I Série, de 28.08.1987).
4.4. Não existem razões para se seguir agora entendimento diverso
Então, não estando em causa nos autos um acto que a lei declare como nulo, mas meramente anulável, o prazo para a dedução da impugnação era o previsto na decisão recorrida – artº 102º, nº 1, alínea d) do CPPT, o qual foi ultrapassado.
Improcedem, pelo exposto, as restantes conclusões das alegações e, em consequência, o recurso.
5. Nestes termos e pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 21 de Setembro de 2011. - Valente Torrão (relator) – Dulce Neto - Casimiro Gonçalves.