Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0541/02.5BTLRS
Data do Acordão:04/10/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
Sumário:I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPTT não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.
II - Por expressa disposição legal, «[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova» (cf. art. 285.º, n.º 4, do CPPT).
Nº Convencional:JSTA000P32111
Nº do Documento:SA2202404100541/02
Recorrente:A..., S.A.
Recorrido 1:AT- AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Apreciação preliminar da admissibilidade do recurso excepcional de revista interposto no processo n.º 541/02.5BTLRS

1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade acima identificada, inconformada com o acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul em 16 de Novembro de 2023 (Disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/-/562fba6ce5dafeef80258a70005d33d8.) – que, negando provimento ao recurso por ela interposto, manteve a sentença por que o Tribunal Tributário de Lisboa julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra as liquidações adicionais de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), referentes aos exercícios de 1997 e 1998 e respectivos juros compensatórios –, dele interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no art. 285.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), apresentando as alegações de recurso, com conclusões do seguinte teor:

«A) A questão de direito que se suscita com vista a uma melhor aplicação do direito tem por objecto os limites da livre apreciação da perícia tributária pelo tribunal, nomeadamente por aplicação dos artigos 116 do CPPT e 388 e 389 do Código Civil.

B) Trata-se de saber, se o tribunal tem um direito absoluto e totalmente discricionário de apreciação dos resultados da perícia, ou se está limitado pelo juízo de insuficiência técnica que previamente aceitou quando deferiu o pedido de realização da perícia.

C) Caso esteja vinculado pelo seu juízo prévio de insuficiência técnica, o tribunal está obrigado a aceitar o juízo científico da perícia. Ou, em alternativa o acto de recusa dos resultados da perícia terá de ser fundamentado cientificamente.

D) A decisão que se pretende obter tem também uma relevância jurídica e social fundamental e nessa medida é também fundamento do recurso de revista.

I. Jurídica porque define os limites da força probatória da perícia no direito tributário no âmbito do princípio do processo equitativo.

II. Social porque a assunção de liberdade absoluta do julgador na avaliação da perícia tem impacto nos destinatários do direito, porque acentua a subjectividade da decisão e diminui a certeza e o rigor, até porque o juiz ao deferir a perícia confessa previamente a sua incapacidade técnica naquele assunto.

E) Como resulta dos autos, no caso concreto a questão tem ainda relevância específica porque o Tribunal Central Administrativo do Sul anulou duas decisões de 1.ª instância precisamente porque não tinha sido realizada a perícia.

I. Em 2 de Outubro de 2017 no acórdão proferido no processo 06512/13 diz-se: “... a prova pericial requerida afigura-se com pertinência para apurar, o valor das acções não cotadas.....por isso....devem os autos baixar ao tribunal “a quo” para que aí seja realizada a produção de prova pericial ...” – 4.º parágrafo, p. 21

II. Em 15 de Janeiro de 2018 no acórdão proferido no processo n.º 09891/16 diz-se: “… vale o que vimos dizendo que se justifica que o Tribunal proceda ....à realização de uma perícia através do qual seja apurado qual o valor de mercado das acções ...” – 3.º parágrafo p. 34.

F) O tribunal recorrido não aplicou os resultados da perícia com os seguintes fundamentos:

I. Relativamente à questão essencial: “....- Qual é o valor dado à A... e da B... SA e das respectivas acções, aferido a partir da situação económico financeira retratada nos balanços e nas respectivas demonstrações financeiras , na data em que foram transmitidas as acções – exercícios de 1997 e 1998?“, o Tribunal recorrido diz:“... Releva aqui a resposta dada à questão: -- “A resposta dada pela perícia, consoante se adopte a óptica patrimonial ou se aplique o método da equivalência patrimonial evidencia uma evidente discrepância: o valor das acções da A... oscila no ano de 1997 entre € 12,785 e € 0,572 e no ano de 1998 entre € 13,151 e € -2,506 o valor das acções da B... oscila no ano de 1997 entre € 3,931 e € -0,409 e no ano de 1998 entre € 1,851 e € -2,467..”; ­– último parágrafo p.45.

II. “ ... Contudo, há ainda a considerar, como evidencia o relatório pericial, que a perícia foi realizada – em 2022 – num contexto de desfasamento temporal significativo em relação à data da realização das operações – 1997 e 1998 – situação que implica um risco adicional e uma limitação acrescida para as conclusões ...” – 4.º parágrafo p.45;

III. “... É também realçado que a avaliação de uma empresa é sempre um processo subjectivo que depende de vários factores...

IV. “... Não foi assim apurado pela perícia, um valor certo e isento de dúvida quanto ao valor das acções ...

VEJAMOS

G) 1.ª QUESTÃO - O facto dos peritos atribuírem às acções da A... e da B... valores diferentes, consoante apliquem o método na equivalência patrimonial ou a óptica patrimonial significa que não foi apurado pela perícia um valor certo e isento de dúvida quanto ao valor das acções?

I. O tribunal confunde incerteza quanto ao valor acção, com o resultado da aplicação de dois métodos contabilísticos. O da “óptica patrimonial” e o da “equivalência patrimonial”.

II. O método contabilístico utilizado é que conduz a resultados diferentes sobre o valor da acção. Isso não é sinal de dúvida. É prova de rigor.

III. Quando se efectuou a inspecção tributária à A... estava em vigor o Plano Oficial de Contabilidade (POC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 489/89, de 21 de Novembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 238/91, de 2 de Julho (que estabelece as normas relativas à consolidação de contas) e Decreto-Lei n.º 29/93, de 12 de Fevereiro (tratamento da locação financeira).

IV. De acordo com os critérios de valorimetria estabelecidos, os investimentos financeiros representados por partes de capital em empresas filiais (empresas em que há controlo) e associadas (empresas em que há apenas influência significativa, presumindo-se que tal acontece nas situações em que a participação seja igual ou superior a 20%, mas não superior a 50%), serão registados de acordo com um dos seguintes critérios (Ponto 5.4.3.1 do POC):

· Pelo seu custo de aquisição, sem quaisquer alterações;

· Pelo método da equivalência patrimonial, sendo as participações inicialmente contabilizadas pelo custo de aquisição, o qual deve ser acrescido ou reduzido do valor correspondente à proporção nos acrescido ou reduzido do valor correspondente à proporção nos resultados líquidos da empresa filial ou associada e do valor correspondente à proporção noutras variações nos capitais próprios que possam existir. Por este método, o valor do investimento é igualmente reduzido por via dos lucros distribuídos à participação e aumentado por efeito da cobertura de prejuízos que tenha sido deliberada.

V. “... Na óptica patrimonial (método contabilístico utilizado pela impugnante) o valor da A... à data de 31/12/1997 dado pelo valor do respectivo capital próprio é de 954.420 euros, o que dividindo pelo número de acções representativas do capital social (100.000) deduzido do número de acções próprias (...50) corresponde a um valor acção de 12,785 euros;

VI. A A... com a aplicação do método da equivalência patrimonial, o valor do capital próprio ajustado é de 42.725 euros, o que dividindo pelo número de acções representativas do capital social (100.000) deduzido do número de acções próprias (...50) corresponde a um valor acção de 0,572 euros;

VII. Na óptica patrimonial o valor da B... à data de 31/12/1997 dado pelo valor do respectivo capital próprio é de 982.744 euros, o que dividindo pelo número de acções representativas do capital social (250.000) corresponde a um valor acção de 3,911 euros;

VIII. A B... .com a aplicação do método da equivalência patrimonial, o valor do capital próprio ajustado é negativo, no valor de – 102.354 euros, o que dividindo pelo número de acções representativas do capital social (250.000) corresponde a um valor acção de 0,409 euros...” p. 7 e 8 do relatório da perícia.

H) RESPOSTA À 1.ª QUESTÃO: A perícia é conclusiva quanto ao valor das acções da A... e da B.... O valor acção apresentado pela perícia varia em função do método contabilístico utilizado, pelo que o tribunal recorrido está vinculado ao juízo técnico dos peritos quanto ao valor das acções.

I) RESPOSTA À 2.ª QUESTÃO: o desfasamento temporal entre a data da transmissão das acções – 1998 – e a da realização da perícia – 9/Set/2022:

I. Não obstou a que os peritos tivessem apurado o valor concreto das acções. Não obstou a que os peritos tivessem apurado o valor concreto das acções.

II. Não tem qualquer relevância já que o valor das acções foi apurado com base documentos idóneos contemporâneos da data da transmissão das acções.

III. Não é aceitável penalizar o recorrente por esse desfasamento temporal, quando isso resultou de factos atinentes à marcha do processo que não lhe são imputáveis.

IV. Não é fundamento suficiente para afastar o juízo técnico da perícia, já que os peritos consideraram ter obtido informação relevante “... para suportar as respostas ao para suportar as respostas ao questionário que consta no questionário que consta no processo” – 3.º parágrafo de p. 2 da perícia.

J) 3.ª QUESTÃO: “... É também realçado que a avaliação de uma empresa é sempre um processo subjectivo que depende de vários factores...” – 4.º parágrafo p.45

I. Levada à letra, se a subjectividade inerente à avaliação de qualquer meio de prova for fundamento idóneo para a afastar, teremos no limite um direito sem provas e nesse caso até a função de julgar pela carga subjectiva que lhe é inerente está em crise.

II. Mesmo que se entenda que o juiz tem inteira liberdade para não considerar a perícia, a verdade é que está obrigado a fundamentar a sua opção.

III. O fundamento invocado para afastar a perícia não tem qualquer razoabilidade, é em si mesmo a negação do direito à prova e ao princípio constitucional do processo equitativo – n.º 4 do artigo 20 da CRP – pelo que não é de considerar.

K) 4.ª QUESTÃO: “... Não foi assim apurado pela perícia, um valor certo e isento de dúvida quanto ao valor das acções ...” – p. 46

I. A perícia refere: “... Consoante se adopte a óptica patrimonial ou se aplique o método da equivalência patrimonial...... o valor das acções da A... oscila no ano de 1997 entre € 12.785 e € 0.572 e no ano de 1998 entre € 13,151 e €-2,506 o valor das acções da B... oscila no ano de 1997 entre € 3.931 e € -0,409 e no ano de 1998 entre € 1,851 e € -2,467..”

II. A divergência de valores não significa que não se tenha apurado um valor certo por ação. Pelo contrário a perícia chega ao valor certo por ação por duas vias, através da aplicação de dois métodos contabilísticos previstos na lei em vigor à data da transmissão das ações.

III. Assim ao contrário do que o tribunal concluiu a perícia apurou um valor certo das ações.

IV. Cabe ao tribunal que está vinculado ao juízo científico da perícia optar por um dos valores apurados pelo perito, no intervalo conferido pelo método contabilístico utilizado.

L) O Tribunal está vinculado ao juízo científico da perícia, tendo a possibilidade de optar por um dos valores apurados pelo perito.

M) No caso concreto a liberdade de avaliação e aplicação dos resultados da perícia apenas funciona no intervalo conferido pelo método contabilístico utilizado.

N) Ao não considerar os resultados de avaliação do valor acção constantes da perícia o tribunal recorrido exorbitou os poderes conferidos pelo regime legal da perícia, nomeadamente os previstos artigos 116 do CPPT e 388 e 389 do Código Civil.

O) Caso o tribunal tivesse considerado os resultados da perícia isso teria os seguintes efeitos sobre a matéria colectável e a colecta.

I. As acções da A... em circulação em 1997 e 1998: 100.000 – ...60 = 7465

II. O valor acção sem o efeito da equivalência patrimonial está representado no quadro infra:

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III. Já o valor acção com o efeito da equivalência patrimonial é o indicado no quadro abaixo:

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IV. As acções da B... em circulação em 1997 e 1998 eram 250.000. O valor acção sem o efeito da equivalência patrimonial é o do quadro abaixo:

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32. O valor acção da B... com o efeito da equivalência patrimonial é o do quadro infra:

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V. A partir dos valores apurados pela perícia quais são os efeitos fiscais sobre a matéria colectável e a colecta?

ANO DE 1997

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VI. Mais valias fiscais

Operações:

· Aquisição de um lote de 31.687 acções da B... e 12.675 acções A... ao preço de 1.000$00 (4,9879 euros)

· Aquisição de outro lote de 31.687 acções da B... e 12.675 acções A... ao preço de 1.000$00 (4,9879 euros)

Estas operações de aquisição foram pagas, respectivamente, com a entrega de imóveis da Rua ... e de ..., cujo valor patrimonial tributário era de 84.240.000$00 (420.187,35 Euros) e 40.824.464$00 (203.631,57 Euros).

Efeitos Valores em euros

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VII. A AT considerou o valor de 14.334£90 [sic] por acção, ou seja € 71,5021.

VIII. O valor apurado pela perícia oscila entre um mínimo de € 0,572 e € 12,785, que fica muito abaixo do €71,5021 fixado pela inspecção tributária.

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IX. A AT considerou o valor de 2.142$30 por acção (10,6857 Euros), quando o valor da perícia oscila entre um valor negativo de € 0,409 e um máximo de € 3,931.

Variações patrimoniais positivas

X. Aquisição de 4.900 e 6.045 acções B... ao preço de 300$00 (1,4963 Euros), tendo sido considerado pela AT o valor de mercado unitário de 2.684$00 e 2.686$00, respectivamente.

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Perdão de suprimentos

XI. O perdão de suprimentos surgiu no âmbito dos negócios que deram origem às mais valias. Não tendo relação com o valor das acções, o montante de 7.150.000$00 (35.664,05 Euros), apurado pela AT mantém-se.

ANO DE 1998

Variações patrimoniais positivas

XII. Aquisição de 6.000 acções B... ao preço de 300$00 (1,4963 Euros), tendo sido considerado pelas Finanças o valor de mercado unitário de 2.683$00.

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XIII. A correcção feita pela AT em 1998 foi de 71.318,12 Euros.

XIV. Conforme exposto nos pontos anteriores, os valores apurados pelo Perito conduzem aos seguintes efeitos em termos de matéria colectável:

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P) Nos anos a que se reporta a inspecção tributária efectuada à A... vigorava o Plano Oficial de Contabilidade (POC), aprovado pelo Decreto Lei n.º 489/89, de 21 de Novembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto Lei n.º 238/91, de 2 de Julho (que estabelece as normas relativas à consolidação de contas) e Decreto Lei n.º 29/93, de 12 de Fevereiro (tratamento da locação financeira).

Q) De acordo com os critérios de valorimetria estabelecidos, os investimentos financeiros representados por partes de capital em empresas filiais (empresas em que há controlo) e associadas (empresas em que há apenas influência significativa, presumindo-se que tal acontece nas situações em que a participação seja igual ou superior a 20%, mas não superior a 50%), serão registados de acordo com um dos seguintes critérios (Ponto 5.4.3.1 do POC):

· Pelo seu custo de aquisição, sem quaisquer alterações;

· Pelo método da equivalência patrimonial, sendo as participações inicialmente contabilizadas pelo custo de aquisição, o qual deve ser acrescido ou reduzido do valor correspondente à proporção nos resultados líquidos da empresa filial ou associada e do valor correspondente à proporção noutras variações nos capitais próprios que possam existir. Por este método, o valor do investimento é igualmente reduzido por via dos lucros distribuídos à participação e aumentado por efeito da cobertura de prejuízos que tenha sido deliberada.

R) O Plano Oficial de Contabilidade permite, assim, a opção por qualquer um dos critérios, sendo que, em qualquer circunstância, as partes de capital em empresas filiais e associadas nunca devem ter valor contabilístico superior ao seu valor de mercado (ponto 5.4.3.5 do POC).

S) A A... manteve os investimentos financeiros mensurados ao custo, sendo que a C... foi liquidada em 2000, (investimento financeiro de 298.081 Euros), a D... foi “provisionada” na totalidade em 2000 (investimento financeiro de 139.66 3 Euros) e a B... foi “provisionada” na totalidade em 2006 (investimento financeiro de 1.034.089 Euros).

T.) Assim sendo na correcção da matéria colectável deverá ser feita de acordo com os valores indicados na perícia no quadro sem o efeito do método equivalente.

U) De acordo com esse critério a colecta relativa ao exercício de 1997 é de €12.125,78 que corresponde à diferença entre o imposto pago pela A... € 74.637,70 e o valor corrigido € 86.763,48.

DA INCONSTITUCIONALIDADE

V) Por último, a interpretação conjugada do artigo 116 do CPPT e do artigo 389 do Código Civil, no sentido de que o juiz tem a liberdade total para afastar a perícia tributária é inconstitucional por violação do princípio do processo equitativo, já que não garante uma decisão justa, – n.º 4 do artigo 20 da CRP – porque permite que o juiz decida questões técnicas relativamente às quais se confessou inicialmente inabilitado para as resolver.

Termos em que depois da apreciação preliminar sumária, deverá o tribunal de revista aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado que na opinião expendida pela recorrente deve ser o da consideração dos resultados da perícia».

1.2 A Fazenda Pública não apresentou contra-alegações.

1.3 A Desembargadora relatora no Tribunal Central Administrativo Sul, tendo verificado os requisitos formais de admissibilidade do recurso, ordenou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo.

1.4 Recebido o processo nesse Supremo Tribunal, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido da não admissibilidade da revista. Isto, em síntese, após enunciar os requisitos de admissibilidade da revista e o seu entendimento jurisprudencial, bem como os termos do presente recurso, com a seguinte fundamentação: «[…]

6. A alegação da recorrente assenta num erróneo pressuposto: a de que o recurso de revista excepcional pretende ser uma reapreciação de uma decisão proferida em segunda instância, ou seja, na essência, uma terceira instância.

Ora, a admitir-se o presente recurso de revista estaria a introduzir-se uma nova instância de recurso e não a apreciar uma questão que assume relevância jurídica fundamental, dado que a mesma não revela elevada complexidade, nem complexidade jurídica superior ao comum.

7. Sendo que não existiu divergência entre as instâncias, tal como não foi apontada qualquer decisão judicial que tenha decidido em conformidade com a posição defendida (os arestos indicados pela recorrente não foram proferidos no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal e versam sobre matérias distintas), pelo que não existe qualquer probabilidade da sua repetição.

8. Aliás, o sentido da jurisprudência mostra-se inequívoco na afirmação de que o juízo científico que encerra o parecer pericial, só pode ser susceptível de uma crítica material e igualmente científica. Porém o juízo pericial tem que constituir sempre uma afirmação categórica, isenta de dúvidas, sobre a questão proposta, não integrando tal categoria, os juízos de probabilidade ou meramente opinativos. Quando tal não sucede, quando o perito, em vez de emitir um juízo técnico-científico claro e afirmativo sobre a questão proposta, emite uma probabilidade, uma opinião ou manifesta um estado de dúvida, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto.

9. Por outro lado, conforme jurisprudência consolidada, as questões de constitucionalidade não constituem objecto próprio dos recursos de revista, já que podem ser autonomamente colocadas junto do Tribunal Constitucional».

1.5 Cumpre apreciar, preliminar e sumariamente, e decidir da admissibilidade do recurso, nos termos do disposto no n.º 6 do art. 285.º do CPPT.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 OS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

2 1.1 Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do art. 285.º do CPPT, assim como do n.º 1 do art. 150.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), a excepcionalidade do recurso de revista. Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos tribunais centrais administrativos não são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo; excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: i) quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental, ou ii) quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Como decorre do próprio texto legal e a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem repetidamente sublinhado, trata-se de um recurso excepcional, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n.ºs 92/VIII e 93/VIII, considerando-o como uma «válvula de segurança do sistema», que só deve ter lugar naqueles precisos termos.

2.1.2 Como a jurisprudência também tem vindo a salientar, não basta ao recorrente invocar a existência de erro de julgamento no acórdão recorrido, incumbindo-lhe também alegar e demonstrar a excepcionalidade susceptível de justificar a admissão do recurso, i.e., que se verificam os referidos requisitos de admissibilidade da revista (cfr. art. 144.º, n.º 2, do CPTA e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicáveis).

2.1.3 Na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória – nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema» (Cfr., por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 2 de Abril de 2014, proferido no processo n.º 1853/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/aa70d808c531e1d580257cb3003b66fc.).

2.1.4 Há que ter presente que, como decorre do n.º 4 do art. 285.º do CPPT, «[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».

2.1.5 Há ainda que ter presente que as questões de constitucionalidade não são um objecto próprio dos recursos de revista, pois podem ser separadamente colocadas junto do Tribunal Constitucional, em recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.

2.2 O CASO SUB JUDICE

2.2.1 O presente recurso tem a ver com a apreciação da prova pericial efectuada pelo Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa, que o acórdão recorrido ratificou, negando provimento ao recurso interposto da sentença com fundamento em erro de julgamento por alegada «não consideração da perícia».
A Recorrente questiona «os limites da livre apreciação da perícia tributária pelo tribunal». Pretende que este Supremo Tribunal se pronuncie sobre a questão de saber «se o tribunal tem um direito absoluto e totalmente discricionário de apreciação dos resultados da perícia, ou se está limitado pelo juízo de insuficiência técnica que previamente aceitou quando deferiu o pedido de realização da perícia», adiantando que, «[c]aso esteja vinculado pelo seu juízo prévio de insuficiência técnica, o tribunal está obrigado a aceitar o juízo científico da perícia» ou, caso o não aceite, «o acto de recusa dos resultados da perícia terá de ser fundamentado cientificamente».
Começa por esgrimir que a questão é suscitada «com vista a uma melhor aplicação do direito», mas invoca também a relevância jurídica e social da questão: aquela porque a decisão a proferir «define os limites da força probatória da perícia no direito tributário no âmbito do princípio do processo equitativo» e esta «porque a assunção de liberdade absoluta do julgador na avaliação da perícia tem impacto nos destinatários do direito, porque acentua a subjectividade da decisão e diminui a certeza e o rigor, até porque o juiz ao deferir a perícia confessa previamente a sua incapacidade técnica naquele assunto».

2.2.2 Se bem interpretamos as alegações de recurso, a questão não se refere à «não apreciação da perícia» pelas instâncias, mas à valoração que estas fizeram da perícia. Ou seja, não está em causa que as instâncias, pura e simplesmente, tenham desconsiderado o resultado da perícia, tenham ignorado o juízo técnico efectuado pelo perito; o que está em causa é o juízo de apreciação que as instâncias fizeram sobre a perícia, a apreciação que fizeram desse meio de prova, que a Recorrente caracterizou como o exercício de um, inexistente, «direito absoluto e totalmente discricionário de apreciação dos resultados da perícia».
Na verdade, da leitura da sentença e do acórdão recorrido resulta que quer o Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa quer os Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Sul se pronunciaram sobre a perícia, apreciando o juízo técnico efectuado pelo Técnico Oficial de Contas que exerceu funções como perito. Mais resulta que as instâncias não puseram em causa esse juízo técnico, mas não lhe concederam relevância para efeitos de quantificação da matéria tributável.
Para afastarem essa relevância aduziram diversos fundamentos, que não se reconduzem à substituição do juízo técnico por outro juízo técnico da sua autoria. O que fizeram foi considerar que a referida perícia não invalida «as conclusões e os métodos usados pela Autoridade Tributária e Aduaneira» e que os valores apurados pela perícia «não visam a substituição da fundamentação das correcções por esta efectuadas, nem conduzir a novas fórmulas de determinação da matéria colectável».
Ou seja, no caso não está em discussão o afastamento do juízo técnico do perito por um outro, da autoria do tribunal, ou sequer uma avaliação judicial do mérito desse juízo técnico. O que está em causa no caso sub judice é, apenas, saber se a prova produzida nos autos permite, ou não, que se considere que o método utilizado pela AT, no caso concreto, para a quantificação da matéria tributável é susceptível de censura.
Assim, embora sob a capa da discussão da aplicabilidade do valor probatório da perícia, o que a Recorrente pretende é, no essencial, ver reexaminado o próprio julgamento de facto efectuado no acórdão recorrido quanto ao método utilizado pela AT na quantificação da matéria tributável.
Tanto basta para pôr em causa as invocadas relevância jurídica e social fundamental, bem como a capacidade de expansão da controvérsia. É que o juízo a formular, porque é um juízo de facto, dependente das concretas circunstâncias do caso, assume uma singularidade que impede que a solução a dar ao caso se possa erigir em padrão para solucionar outros casos.
Por outro lado, e decisivamente, atento o disposto no n.º 4 do art. 285.º do CPPT, este Supremo Tribunal não pode sindicar a correcção do julgamento do Tribunal Central Administrativo Sul no que se refere aos factos dados como provados ou às ilações extraídas dessa mesma factualidade, designadamente no que se refere ao método utilizado pela AT na quantificação da matéria tributável. O juízo a esse respeito formulado no acórdão recorrido alicerça-se, não na aplicação de um critério normativo, mas na valoração da prova dos autos, não integrando a resolução de uma questão de direito e não constituindo, por isso, fundamento do recurso de revista excepcional.
Não se trata, portanto, de apreciar os pressupostos legais do regime da perícia; antes se trata de apreciar a prova efectuada e os juízos valorativos sobre ela produzidos nas instâncias, que não são sindicáveis por este Supremo Tribunal em sede de revista.
O recurso não pode, portanto, ser admitido.

2.3 CONCLUSÃO

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPPT não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.

II - Por expressa disposição legal, «[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova» (cf. art. 285.º, n.º 4, do CPPT).


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência da formação prevista no n.º 6 do art. 285.º do CPPT, em não admitir o presente recurso.


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Custas pela Recorrente, com dispensa do remanescente da taxa de justiça, uma vez que o recurso não ultrapassou a fase da apreciação preliminar, não é de complexidade superior à média e a conduta das partes não merece censura (cf. art. 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais).
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Lisboa, 10 de Abril de 2024. - Francisco Rothes (relator) - Isabel Marques da Silva - Aragão Seia.