Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01250/17
Data do Acordão:03/08/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:NULIDADE DE ACÓRDÃO
ACORDO
ADSE
INCUMPRIMENTO
RESOLUÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P23033
Nº do Documento:SA12018030801250
Data de Entrada:01/08/2018
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
1. RELATÓRIO

O Estado Português, representado pelo Ministério Público, inconformado, interpôs recurso de revista da decisão proferida em segunda instância, em 20 de Abril de 2017, no TCAS, na sequência da arguição de nulidades imputadas ao acórdão de 24-11-2016 [que confirmou a sentença proferida pelo TAF de Sintra, que julgara procedente a ACÇÃO ADMINISTRATIVA COMUM intentada por A………… e, o condenou a pagar-lhe a quantia de 67.393,98€ euros, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento].

Apresentou, para o efeito, as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:

«1. O presente recurso de revista vem interposto do douto acórdão do TCAS de 24-11-2016, na parte em que julgou parcialmente improcedente o recurso jurisdicional que o Estado interpôs da sentença proferida na ação administrativa comum e, em consequência, condenou o Réu Estado Português a pagar à Autora, A……………, a quantia de 47.418,01€ acrescida de juros, à taxa legal, desde a data do trânsito em julgado da sentença, até ao seu efectivo e integral pagamento.

2. O douto acórdão recorrido não pode manter-se pois encontra-se eivado de nulidades por excesso de pronúncia e por condenação em objecto diverso do pedido e (ou) dos vícios de erro de julgamento de facto e de direito, por errada interpretação e aplicação de direito, bem como errada interpretação dos contratos celebrados entre a Autora e a ADSE, no que respeita à sua natureza jurídica e ao seu cumprimento.

3. O conhecimento destas nulidades ou a apreciação do invocado erro manifesto de julgamento de facto e de direito são fundamentais para uma melhor aplicação do direito.

4. A matéria de facto constante da alínea Z) da factualidade assente no acórdão recorrido, em que este se apoiou para condenar o Estado no montante de 47.418,01€, não diz respeito ao pedido ou à causa de pedir formulados na acção, pelo que a referida condenação excede a pronúncia que era devida nesta acção, o que só por manifesto erro se admite.

5. Saber em que momento um contrato ou uma proposta de adesão se torna eficaz, ou aferir da necessidade de notificação expressa para o efeito, são questões de relevância fundamental que se podem suscitar em outros processos e sobre as quais ainda não existe jurisprudência bastante.

6. Dado que o Estado não pode ser condenado em montantes cujo não pagamento não lhe é imputável, atento até, o carácter de função social que também assumem as finanças públicas, deverá o presente recurso de revista ser admitido para apreciação das nulidades e/ou do erro de julgamento que se invocam.

7. O douto acórdão recorrido sofre de nulidade por excesso de pronúncia e por condenação em objecto diverso do pedido (alíneas d) e e) do artº 615º do CPC).

8. Nenhuma das partes no processo suscitou a questão de que a autora não tinha conhecimento dos dias e horas concretos em que podia prestar os serviços em cada um dos locais mencionados no acordo ou contrato, ou da falta de notificação da aceitação da proposta de adesão apresentada pela Autora.

9. Como é sabido, o julgador apenas pode servir-se dos factos alegados pelas partes e das questões pelas mesmas suscitadas, com excepção das que são de conhecimento oficioso (o que não é o caso).

10. Sofre, assim, o acórdão recorrido de excesso de pronúncia, devendo ser declarada a sua nulidade na parte em que condenou o Estado com fundamento em que a autora não foi notificada de que no acordo para prestação de serviços de estomatologia que entrou em vigor em 03-03-1994, estavam estipulados os dias e horas em que se efectuavam esses serviços.

11. Sofre, ainda, o douto acórdão recorrido, de excesso de pronúncia e de nulidade por condenação em objecto diverso do pedido, na parte em que condenou o Estado em montante que não foi pedido na acção, ou seja, no montante de 47,418,01€, referente “a facturas já liquidadas e fora do âmbito do objecto da presente acção” conforme expressamente se refere na alínea Z) da factualidade assente.

12. Para além do excesso de pronúncia, verifica-se também erro de julgamento de facto e de direito relativamente às mesmas questões e ainda quanto à alegada falta de notificação da aceitação da proposta da autora quanto aos dias e horas na mesma sugeridos, e respectiva necessidade dessa notificação.

13. O acordo celebrado entre a Autora e a ADSE, têm a natureza de contrato de adesão, nos termos dos quais a ADSE, ao estabelecer as cláusulas tipo dos contratos a celebrar com todos aqueles que se mostrem interessados, estabelece um modelo ou padrão que será utilizado na generalidade dos contratos por ela celebrados.

14. As entidades prestadoras de cuidados de saúde que pretendam celebrar acordos com a ADSE têm de propor a sua adesão, indicando na respetiva proposta quais os locais de atendimento e os dias e as horas em que pretendem prestar serviço em cada um dos locais indicados.

15.Tais propostas de adesão são submetidas à aceitação da ADSE e uma vez aceites, passam a fazer parte integrante dos contratos celebrados, como condições particulares dos mesmos, constituindo verdadeiras cláusulas de cumprimento plenamente eficazes, independentemente de qualquer notificação formal (cfr nº1 do artº 287º do Código dos Contratos Públicos).

16. Sendo a proposta da Autora aprovada por despacho de 01-02-1994, proferido sobre a informação interna nº 15NR/GPR/94, à data da celebração do acordo em referência, assinado por ambas as partes e respectiva homologação, em 03.03.1994, tinha a Autora necessariamente que ter conhecimento dessa aprovação como teve da respectiva homologação do contrato.

17. Da prova documental junta resultou provado que a Autora tinha conhecimento dos dias e horas em que podia prestar os serviços em cada um dos locais mencionados nos acordos, não sendo, assim, necessária qualquer outra notificação adicional.

18. De todo o modo, foi dado a conhecer à Autora todo o âmbito do acordo pelos ofícios nºs 026566 e 026567, datados de 02.03.94, nos quais é feita menção expressa, de que os acordos celebrados entre a Autora e a ADSE foram homologados "no âmbito antes referido" dando, dessa forma, conhecimento à A. que os acordos tinham sido homologados, nos termos propostos pela mesma, ou seja, no âmbito anteriormente referido.

19. Sendo os despachos de aceitação da proposta da Autora, actos de natureza favorável e, portanto, não lesivos dos seus interesses, não eram susceptíveis de impugnação, pelo que não tinham que obedecer aos formalismos de notificação expressa e de fundamentação, pressupondo-se o seu conhecimento pela parte interessada uma vez que interveio no procedimento contratual.

20. Ademais, resulta da prova documental acessível ao Tribunal, que a Autora em momento algum invocou falta de conhecimento da aceitação da sua proposta pela ADSE, ou falta de eficácia da parte do contrato relativa a dias e horas estabelecidas para a prestação dos serviços, pelo que o douto acórdão recorrido, ao apreciar questões não suscitadas pelas partes, violou o artº 608º nº 2 do CPC.

21. Não tinha, pois, a autora direito ao recebimento do montante de €34.263,60 correspondente ao somatório dos montantes facturados relativos a serviços prestados fora do contratado, às terças, quintas, sextas e domingos, no consultório do ………., e às sextas-feiras no consultório de ………., tal como vem discriminado na alínea X) da factualidade assente no acórdão.

22. E isto porque, nos termos da proposta da autora, e como consta da Informação dos Serviços nº 15NR/GPR/94, já citada, a autora assumiu o compromisso de prestar esses mesmos serviços às segundas e quartas-feiras no consultório do ………, às terças-feiras no consultório de ………. e às sextas-feiras no consultório de ……….. (alíneas x) e b) da factualidade assente).

23. Devendo, em consequência, considerar-se que também não é devido pelo Réu, o pagamento das 909 fichas referentes a prestação de serviços realizados em dias não contemplados nos acordos, no montante global de 34.263,60€, tal como resulta da alínea X) dos factos provados.

24. Aliás, a violação do contrato pela Autora, excedendo os dias e horas acordados, traduziu-se em uma despesa indevida muito maior para a ADSE, acarretando o pagamento mensal à Autora entre cerca de sete mil euros e 10 mil euros como consta claramente do Relatório da auditoria junto aos autos, com o consequente prejuízo para o Estado.

25. Violou, portanto, o douto acórdão recorrido, os artºs 414º, 608º nº 2 in fine e 609º nº 1 do CPC, o nº 1 do artº 287º do CCP, bem como o princípio da prossecução do interesse público ao ter considerado prevalente o interesse da autora em detrimento do interesse público existente no contrato de adesão em análise, na necessidade de compatibilização de horários bem como na definição concreta das consultas comparticipadas - quer tendo em vista um mais eficaz controlo das mesmas, quer tendo em vista a limitação das despesas - para a prestação, de cuidados de saúde comparticipados, a diversos agentes.

26. Termos em que o douto acórdão recorrido deverá ser declarado nulo por excesso de pronúncia e por condenação em objecto diverso do pedido e o Estado absolvido da totalidade do pedido ou, caso assim se não entenda, deverá o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que absolva o Estado da totalidade do pedido».

Em sede de alegações complementares, apresentou as seguintes conclusões:

«1. Por sentença de 30-10-2015 foi o Estado condenado a pagar à autora o montante de 67.393,98€ correspondente à soma de 32.199,27€, relativos às facturas não pagas por dúvidas quanto à dos serviços aí referidos (alíneas i) a v) da FA), mais 34.263,60€, relativos às facturas referidas na alínea x), referentes a serviços prestados pela autora em dias e horas não previstos no contrato de adesão celebrado entre a Autora e a ADSE.

2. Desta sentença recorreu o MP em representação do Estado impugnando-a na totalidade.

3. Por acórdão deste TCAS de 24-11-2016 foi considerado o recurso parcialmente procedente, mantendo-se a sentença recorrida apenas na parte em que condenou o Estado a pagar à autora as facturas relativas a dias e horas não previstas no contrato, no valor de 47.418,01€.

4. Este valor correspondia, no entanto, ao valor referido na alínea Z) e decorria de facturas também correspondentes a dias e horas não previstos no contrato, mas já pagas pela ADSE e cujo montante, portanto, a Autora teve que devolver, não dizendo respeito ao pedido formulado nesta acção.

5. Considerou-se no acórdão de 20-04-2017, agora em apreciação, que a invocação da alínea Z), em vez da alínea X), constituía erro material, pelo que se considerou ser o mesmo de rectificar ao abrigo dos artºs 613º nº 2 e 614º do CPC.

6. Mas em vez de se ter procedido, apenas e quando muito, à correcção do montante da condenação do Estado de 47.418,01€ para 34.263,60€ - sem prejuízo de se manter, mesmo neste caso, o recurso de revista já interposto - o douto acórdão agora sob apreciação, alterou profundamente o acórdão anterior, modificando os seus fundamentos (da inexistência de culpa passou-se para a existência de culpa do Estado), bem como a respectiva decisão, condenado o Estado na parte em que no acórdão anterior o não tinha condenado.

7. Para além de terem sido violados os artºs 613º nº 2 e 614º, ambos do CPC, por não se ter procedido à anunciada rectificação de um erro material, foi violado o artº 613º nº 1 por não se ter respeitado o poder jurisdicional já esgotado com a prolação do acórdão anterior.

8. Foi ainda violado o caso julgado material por à data da prolação do acórdão de 20 de Abril já ter transitado a decisão contida no acórdão de Novembro que concedeu parcial provimento ao recurso interposto pelo MP, por falta de impugnação, quer da autora, quer do MP (este por falta de legitimidade, uma vez que a decisão, nesta parte, lhe era favorável).

9. No caso vertente, houve manifesta e indevida interferência na substância do acórdão proferido em primeiro lugar, pelo que o acórdão de 20-04-2017 deverá ser revogado por se exceder na pronúncia de questões que ultrapassam, manifestamente, a correcção ou rectificação de mero erro material.

10. Deverá, ainda, o recurso de revista, interposto em 9-1-2017, mais as presentes alegações complementares, ser admitido e subir ao STA para eventual recebimento e apreciação das nulidades apontadas, e caso a procedência das mesmas não conduza à absolvição do Estado do pedido relativamente ao pagamento do montante referido na alínea X) da BI, para apreciação do mérito do recurso interposto, com vista à referida absolvição.


*

A autora/recorrida não apresentou contra alegações.

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O «recurso de revista» foi admitido por acórdão deste STA [formação a que alude o nº 5 do artigo 150º do CPTA], proferido a 30.11.2017, nos termos seguintes:

3.2. No presente processo a autora pediu a condenação do Estado a pagar-lhe determinadas quantias na sequência de contratos que celebrou com a ADSE. A primeira instância condenou o Estado a pagar à autora a quantia de €67.393,98 euros. O MP recorreu para o TCA Sul, considerando que não era devido o pagamento de 909 fichas referentes a dias não contemplados no acordo, num total de 34.263,60 euros. E quanto ao restante o MP entendeu que a autora não tinha provado ter sido ela a prestar os serviços facturados. Terminava pedindo a absolvição do Estado por ter sido a Autora quem incumpriu os acordos celebrados com a ADSE e não o réu, o Estado Português.

3.3. O TCA Sul no acórdão de 24-11-2016 perante os factos provados entendeu o seguinte:

“Releva sobretudo o facto provado sob z) que explicita as 3 ilegalidades contratuais (reportadas ao contrato celebrado ao abrigo do Decreto-lei n.º 118/83) invocadas pelo réu contra a Autora:

-serviços em dias não previstos no acordo/contrato;

-errado processamento das destartarizações, em violação do exigido no contrato;

-confissão de que certos serviços foram prestados por outros médicos.

A A. teria de provar que tais alegações do réu estão incorrectas.

E assim é, como decorre do artigo 799º do Código Civil (incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua) e, depois, na acção, do artigo 342º, 1 do mesmo Código.

Portanto, exceptuando os valores referentes à questão dos dias e horas (que como vimos era cláusula contratual não conhecida da autora e, portanto, fora do contrato) num total de 47.418,01 euros, o demais é imputável à ilicitude contratual e à culpa da autora.

Pelo que este montante sobrante não pode ser pago pelo réu à autora, já que nessa parte a autora incumpriu o acordado.

Pelo que a autora/recorrida não tem razão quanto aos montantes relacionados com o errado processamento das destartarizações, em violação do exigido no contrato, e com a confissão de que certos serviços foram prestados por outros médicos”.

O MP recorreu deste acórdão imputando-lhe várias nulidades.

Por acórdão de 20-4-2017 o TCA Sul reconheceu ter incorrido em lapso de escrita e em erro aritmético referente à soma das facturas referidas nos artigos 4 a 10 da PI. De seguida rectificou o lapso manifesto e extraiu as consequências devidas, modificando o texto do acórdão recorrido, nos termos seguintes:

“(…)

Releva sobretudo o facto provado sob x), referente aos valores referentes à questão dos dias e horas (que como vimos supra em 1, a propósito do quesito n.º 1, era cláusula contratual não conhecida da autora e, portanto, fora do contrato), num total de 34.263,60 euros.

O restante das facturas abordadas nos Factos Provados I a X (queremos mesmo dizer “Xis”, X) não vem discutido neste recurso, a não ser por referência (i) aos inverificados erros de julgamento de facto pelo TAC e (ii) ao ónus da prova.

Assim, tendo presentes as respostas dadas às duas questões de facto anteriores e o decorrente do art. 224º, 1 do CC quanto a uma matéria (os dias e horas concretos da prestação de serviço) proposta pela pessoa aderente ao contrato (e não matéria proposta pela ADSE à pessoa aderente), temos “apenas” que: 1º - A ADSE suspendeu até ao presente o pagamento das facturas referidas nos Factos i) a x), já vencidas; entrou em mora, portanto (cf. Art. 804º do C. Civil); 2º – há assim ilicitude objectiva consistente no não pagamento das facturas pela ADSE no prazo acordado entre as partes (art. 798º do C. Civil) o que representa um dano para a autora; tratam-se de pressupostos da obrigação de indemnizar (nascida da mora) provados pela credora aqui autora; a autora provou, pois o facto ilícito (a mora) da autoria da ADSE, o dano por si sofrido até ao presente (cf. Art. 806º/1 do CC) e o nexo causal respectivo; 3º - não existe nos factos provados matéria referente a excepção de não cumprimento do contrato (cf. Artigo 428º do Código Civil), pelo que não se demonstrou a ilicitude nesta mora da ADSE; 4º -nestes termos presume-se a culpa da ADSE (cf. artigos 798º e 799º/1 do Código Civil – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações … II, 5ª Ed. N.º 296 a 299; Galvão Telles, D. das Obrigações, 6ª Ed. N.º 119.

Foi o que, de outro modo, se concluiu na 1ª instância.

Finalmente, cabe lembrar a inutilidade dos factos constantes das al. z), aa), cc) dd), ee) e ff).

III. Decisão

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no art. 202º da Constituição, acordam os Juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, julgando-o improcedente.

(…)”.

Perante o novo acórdão o MP apresentou alegações complementares, onde arguiu novas nulidades.

Veio a ser proferido novo acórdão pelo TCA Sul, em 21-9-2017, considerando que se não verificavam tais nulidades.

Como decorre do exposto o TCA Sul entendeu que a mora configura – só por si – a ilicitude e, como estava perante a responsabilidade contratual onde se presume a culpa, entendeu verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar.

A nosso ver justifica-se a admissão da revista com vista a uma melhor interpretação e aplicação do direito.

Com efeito, o entendimento de que basta a mora do devedor para se dar por assente o incumprimento da prestação não está suficientemente fundamentado no acórdão recorrido.

No presente caso o Estado entende que as quantias pretendidas pela autora não eram devidas, por não ter havido cumprimento do acordo com a ADSE. Sustenta o Estado que foi a autora quem não cumpriu o acordo.

Ora, sem essa questão ser apreciada, é muito discutível considerar verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil (contratual).

Desde logo, porque a presunção de culpa a que alude o art. 799º, 1, do CC pressupõe, como decorre do texto legal que “tenha havido incumprimento ou cumprimento defeituoso”. Como só existe incumprimento de uma prestação se a mesma for devida, a alegação do Estado de que não tinha o dever de prestar (por entender que a autora não cumpriu o acordado com a ADSE) não pode ser afastada com a mera constatação da mora. Aliás não é sequer lógico dar como assente a mora, sem antes dar como assente a existência e exigibilidade da prestação».


*

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. MATÉRIA DE FACTO

A matéria de facto dada como provada é a seguinte:




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2.2. O DIREITO

A autora/ora recorrida intentou a presente acção administrativa comum, visando a condenação do Réu [Ministério das Finanças] no pagamento de 67.393,98€, acrescidos de juros de mora.

Alegou, em síntese que, tendo celebrado com a Direcção-Geral da Protecção Social aos Funcionários e Agentes do Estado [ADSE], dois (2) contratos para a prestação de serviços de saúde, um relativo a próteses estomatológicas e outro relativo a actos de estomatologia em geral, prestou, no âmbito desses contratos, desde 3 de Março de 1994 até 12 de Maio de 2003, serviços aos funcionários e agentes seus beneficiários e, tendo emitido facturas correspondentes a serviços prestados no montante global de 67.393,98€ [facturas 15/2002, 16/2002, 17/2002, 18/2002, 19/2002, 20/2002, 21/2202, 22/2002, 23/2002, 24/2002, 1/2003, 2/2003, 3/2003 e 4/2003] até à presente data a ADSE não pagou, incorrendo assim em incumprimento contratual.

Reclama ainda os correspondentes juros de mora.

Em representação do Réu, o Ministério Público, em sede de contestação veio dizer, que:

a) Não é devido pagamento pela ADSE no que toca ao valor de 34.263,60€ porque diz respeito a serviços prestados fora do âmbito dos contratos celebrados, quer porque cobrou serviços prestados fora das datas e horários convencionados, quer porque cobrou serviços prestados por outros médicos estomatologistas, isto apesar de saber que o acordo tinha natureza pessoal.

b) Não é devido o pagamento pela ADSE do valor de 32.199,27€ porque a autora não fez prova da prestação de tais serviços a beneficiários da ADSE e o Réu só aceitará fazer esse pagamento se a autora conseguir fazer prova de que efectivamente correspondem a serviços prestados;

c) Os juros não são devidos porque não estão alegados nem provados os factos que demonstrem o incumprimento culposo do contrato por parte da ADSE, demonstrando-se pelo contrário, que o não pagamento das facturas apresentadas pela autora se deveu a culpa exclusiva desta.

Em suma, e de forma mais pormenorizada, alega que relativamente à facturação, cujo pagamento se encontrava pendente e constitui objecto desta acção, grande número de cuidados de saúde facturados pela autora foram realizados em dias não previstos nos acordos, designadamente, que 909 das fichas enviadas correspondem a serviços prestados ou no consultório da Av.. ……….., ………., às terças, quintas, sextas e domingos ou no consultório da rua ……….., ………, às sextas-feiras, serviços no total de 34.263,60€.

Realizada audiência de julgamento, com vista à produção de prova, o TAF de Sintra veio a proferir decisão, julgando a acção intentada pela autora, totalmente procedente, condenando o Réu a pagar à autora à quantia por ela peticionada.


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Desta decisão foi interposto recurso pelo MP, no qual suscita erro de julgamento, de facto [pedindo que seja dado como integralmente provado o quesito 1º e, provado o quesito 3º da BI] e de direito.

O TCAS veio a proferir acórdão em 24.11.2016, julgando improcedente o recurso quanto ao imputado erro de julgamento de facto, no que respeita à pretensa alteração dos quesitos 1º e 3º da BI, mas concedendo provimento parcial quanto ao erro de julgamento, consubstanciando tal decisão na factualidade constante da alínea Z da matéria assente, considerando que «exceptuando os valores referentes à questão dos dias e horas (que como vimos, era cláusula contratual não conhecida da autora e, portanto fora do contrato), num total de 47.418,01€, o demais é imputável à ilicitude contratual e à culpa da autora.

Pelo que este montante sobrante não pode ser pago pelo réu à autora, já que nessa parte a autora incumpriu o contrato.

Pelo que a autora/recorrida não tem razão quanto aos montantes relacionados com o errado processamento das destartarizações, em violação do exigido no contrato e com a confissão de que certos serviços foram prestados por outros médicos.

E com estes fundamentos condenou o réu a pagar à autora a quantia de 47.418,01€, absolvendo-o do mais peticionado.

Deste acórdão de 24.11.2016, foi interposto, pelo réu, recurso de revista, para este Supremo Tribunal, esclarecendo no mesmo que o recurso apenas tinha por objecto a impugnação do acórdão que não lhe concedeu provimento, e, portanto lhe foi desfavorável, ou seja, a parte referente ao não pagamento de comparticipação em consultas realizadas em dias e horas não previstos no contrato, aceitando-o no demais que lhe foi favorável.

Imputa ao acórdão de 24.11.2016 (i) nulidade por excesso de pronúncia, por nele se fazer alusão a uma alínea (Z) cuja matéria não diz respeito nem à causa de pedir nem ao pedido formulado na acção, pedindo por isso a sua nulidade na parte em que condenou o Estado com fundamento em que a autora não foi notificada de que nos acordos para prestações de serviços de estomatologia e de próteses dentárias que entrou em vigor em 03.03.94 estavam estipulados os dias e horas em que se efectuavam esses serviços e, por (ii) condenação em objecto diverso do pedido.

Caso as nulidades não procedam, imputa erro de julgamento.

O TCAS conhecendo das nulidades invocadas pronunciou-se no sentido de que não havia excesso de pronúncia quanto à questão de que a autora não tinha sido notificada da aceitação pelo réu, dos concretos dias e horas das consultas abrangidas pelo acordo, por considerar tal questão enquadrável no enquadramento jurídico da factualidade provada, mas quanto à nulidade derivada da factualidade contida na alínea Z [que deu origem à condenação anteriormente decretada] considerou que tinha havido um lapso manifesto e que tal erro poderia ali ser rectificado, dado que se tratava de dever ter referido a alínea X e não a alínea Z da factualidade provada.

Rectificando o que identificou de “erro manifesto”, rectificou o acórdão recorrido, dele passando a constar o seguinte:

«Aqui chegados, temos de resolver a seguinte questão: com os factos provados, o que deve o réu à autora?

Releva sobretudo o facto provado sob X, referente aos valores referentes à questão dos dias e horas (que como vimos supra em 1, a propósito do quesito 1, era cláusula contratual não conhecida da autora e, portanto, fora do contrato) num total de 34.263,60€.

O restante das facturas abordadas nos factos provados I) a X) (queremos mesmo dizer “XIS”, X), não vem discutido neste recurso, a não ser por referência (i) aos inverificados erros de julgamento de facto pelo Tribunal Administrativo de Círculo e (II) ao ónus da prova.

Assim, tendo presentes as respostas dadas às duas questões de facto anteriores e o decorrente do artº 224º, nº 1 do Cód. Civil quanto a uma matéria (os dias e horas concretos da prestação dos serviços) proposta pela pessoa aderente ao contrato (e não matéria proposta pela ADSE à pessoa aderente), temos, “apenas” que:

1º. a ADSE suspendeu até ao presente o pagamento das facturas referidas nos factos I) a X) e HH), já vencidas; entrou em mora, portanto (cfr. artº 840º do Código Civil).

2. Há assim ilicitude objectiva consistente no não pagamento das facturas pela ADSE no prazo acordado entre as partes (cfr. artº 798º do Código Civil), o que representa um dano para a autora; tratam-se de pressupostos da obrigação de indemnizar (nascida da mora) provados pela credora aqui autora: a autora provou, pois, o facto ilícito (a mora) da autoria da ADSE, o dano por si sofrido até ao presente (cfr. artº 806º, nº 1 do Código Civil) e nexo causal respectivo.

3. Não existe nos factos provados, matéria referente à excepção de não cumprimento do contrato (cfr. artº 428º do Código Civil), pelo que não se demonstrou ilicitude nesta mora da ADSE.

4. Nestes termos presume-se a culpa da ADSE (cfr. artºs 798º e 799º, nº 1 do Código Civil – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações…II, 5ª ed., nº 296 a 299, Galvão Telles, D. das Obrigações, 6ª ed., nº 119).

Foi o que, de outro modo, se concluiu na 1ª instância.

Finalmente, cabe lembrar a inutilidade dos factos constantes das als. Z), AA), CC), DD), EE) e FF).

III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artº 202º da Constituição, acordam os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, julgando-o improcedente.

(…)»


*

Feito este enquadramento que se entendeu pertinente, vejamos agora e em primeiro lugar, do mérito do recurso interposto pelo Ministério Público [alegações complementares por referência ao interposto em 09.01.2017] do acórdão que conheceu das nulidades, proferido pelo TCAS em 20.04.2017.

Tendo o acórdão rectificativo proferido em 20.04.2017 assumido que tinha lavrado em erro [que denominou de manifesto] no tocante às ilações que tirou dos factos constantes da alínea Z), quando na verdade, pretendia referir-se à alínea X),

Porém, ao assumir este erro, o acórdão rectificativo/recorrido nunca poderia ter decidido como decidiu, sob pena de violação do disposto no nº 1 do artº 613º do CPC e violação do caso julgado, previsto no artº 619º do mesmo diploma legal.

Se se tratasse de uma singela rectificação, como sustentado no acórdão rectificativo, este poderia ter quanto muito rectificado o valor em que condenou o Estado Português, pois baseou-se erradamente no valor constante do primeiro parágrafo da alínea Z (47.418,01€), quando o que eventualmente pretendia era condenar Estado Português no pagamento das facturas referidas nas alíneas X, no montante de 34.263,60€.

Mas não foi esta a correcção que foi efectuada, uma vez que sob o lastro de uma presumível rectificação, o acórdão recorrido alterou profundamente o anterior acórdão, quer de facto, quer de direito, substituindo uma condenação parcial do Estado que vinha na sequência da revogação parcial da sentença de primeira instância, por uma condenação na totalidade do pedido formulado pela autora.

Ora, a questão do não pagamento, pela ADSE, das facturas referidas nas alíneas i) a v), por a autora não ter feito prova de que as mesmas correspondiam a serviços por si efectivamente prestados (e não a serviços prestados por outros médicos) encontra-se definitivamente arredada deste recurso, uma vez que o acórdão de 24.11.2016 absolveu o Estado Português nesta parte e o recurso interposto pelo Ministério Público, foi bem expresso que esclarecer que não recorria desta parte, que como é obvio lhe era favorável, pelo que incorreu o acórdão rectificativo em violação do caso julgado material e, nulidade por conhecer de matéria que já não podia tomar conhecimento, o que acarreta a nulidade do acórdão neste segmento.

Igualmente, ao assim não decidir e ao conhecer nesta sede desta matéria, alterando a respectiva decisão, o acórdão rectificativo incorreu na violação do disposto nos nºs 1 e 2 do artº 613º do CPC, nº 1 do artº 619º e nº 1 do artº 666º do mesmo diploma legal – cfr. neste sentido o Acórdão do STJ de 25.05.1988, onde se sumariou:

«Para a eliminação de certos defeitos ou vícios da sentença a lei prevê alguns remédios, entre os quais o esclarecimento de duvidas nela existentes, que são dirigidos ao próprio tribunal que proferiu a decisão e, por isso, mais expeditos que aqueles cuja apreciação e devolvida ao tribunal superior - os recursos - estes directamente orientados no sentido de remover o erro de julgamento.

II - A declaração contida no nº 1 do artigo 666º do Código de Processo Civil de que (proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto a matéria da causa) tem de ser entendida em termos hábeis como querendo dizer que lavrada e incorporada nos autos a sentença, o juiz já não pode alterar a decisão da causa, nem modificar os fundamentos dela, mantendo, porem, ainda o poder jurisdicional para a resolução de algumas questões marginais, acessórias ou secundarias, entre as quais as mencionadas no nº 2 do artigo 666º.

III - Se o acórdão aclarado expressamente confirmou a decisão da 1ª instancia, que absolveu as rés do pedido de indemnização formulado, negando provimento ao recurso da autora, não pode a Relação, em novo acórdão, a pretexto de esclarecimento desse acórdão, absolver as rés da instancia, concedendo parcial provimento ao recurso dado que, por esta forma, interfere na substancia do acórdão proferido em primeiro lugar, isto e, altera a decisão da causa».


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Conclui-se, pois, pela nulidade do acórdão rectificativo.

Conhecida e declarada a nulidade do acórdão rectificativo, atentemos agora no recurso interposto pelo MP do Acórdão proferido em 24.11.2016, sendo que o mesmo apenas tem como objecto o segmento do acórdão que manteve a condenação do Estado Português no pagamento das importâncias referentes ao não pagamento de comparticipação em consultas realizadas em dias e horas não previstas no contrato.

Vejamos, em pormenor:

O recorrente imputa ao acórdão recorrido de 24.11.2016 a nulidade por excesso de pronúncia e por condenação em objecto diverso do pedido (alíneas d) e e) do artº 615º do CPC e, subsidiariamente erro de julgamento.

Concretamente, invoca o recorrente que o acórdão conheceu de questões não suscitadas pelas partes:

(i) Nenhuma das partes no processo suscitou a questão de que a autora não tinha sido notificada dos dias e horas concretos em que podia prestar serviços em cada um dos locais mencionados no acordo ou contrato e, por ela própria propostos, nem essa questão é de conhecimento oficioso.

Não obstante esta questão não ter sido suscitada em sede recursiva, o acórdão recorrido conheceu da mesma e fruto desse conhecimento, condenou o Estado Português com fundamento em que a autora não foi notificada, de que nos acordos para prestação de serviços de estomatologia e de próteses dentárias que entrou em vigor em 03.03.1994, estavam estipulados os dias e horas em que se efectuavam esses serviços.

E tem razão o recorrente, pois, efectivamente o julgador apenas se pode servir de factos que tenham sido alegados pelas partes e das questões pelas mesmas suscitadas, o que não sucede in casu.

E nem vale o argumento utilizado no acórdão rectificativo que conheceu desta nulidade, quando invoca para a sua inexistência, o facto se tratar de uma questão a resolver na sequência do artº 1º da base instrutória e de um enquadramento jurídico dessa matéria, uma vez que lida a matéria que foi dada como provada no quesito 1º, se constata de imediato, que a mesma tem a ver com prestação de serviços, mas já não com qualquer questão relacionada com a notificação da autora dos acordos celebrados com a ADSE.

Padece, pois, o acórdão recorrido da nulidade que neste segmento lhe é imputado – excesso de pronúncia - pelo recorrente.


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(ii) Mas o recorrente imputa ainda ao acórdão recorrido outra nulidade - condenação em objecto diverso do pedido – argumentando que o mesmo condenou o Estado Português em montante que não foi pedido na acção, ou seja, 47,418,01€ referente a “facturas já liquidadas e fora do âmbito do objecto da presente acção, conforme expressamente se refere na alínea Z da factualidade provada.

Ora, nesta alínea Z, mostra-se transcrita uma parte do Relatório, efectuado após auditoria aos consultórios da autora, a qual constatou que “na amostra seleccionada” foram pagos indevidamente à autora, pela ADSE, 51.066,38€ [47.418,01€+1.671,24€+1.977,13€] relativos aos seguintes actos médicos:

«Na amostra seleccionada a prestadora convencionada A…………. facturou à ADSE, indevidamente, actos médicos realizados em dias não contemplados no acordo, no montante de 47.418,01€;

Verificou-se a facturação de destartarizações por sessão em número superior à unidade, no montante global da amostra de 1.671,24;

A prestadora convencionada A………… (…) confirmou ter assinado os documentos modelo 19-ADSE em substituição de outros médicos, que foram os efectivos autores dos actos médicos, com fundamento de que a ADSE não permitia a celebração de acordo com sociedades.

(…)

Neste caso apurou-se o valor pago, de pelo menos, 1.977,13€ de actos clínicos não realizados pelo prestador convencionado em causa (…) - doc. nº 6 junto com a contestação».

Porém, esta factualidade supra transcrita e que constitui a alínea Z, tem de ser conjugada com a matéria dada como assente nas alíneas cc), a gg).

E, desta forma, feita esta conjugação, constata-se que [como aliás decorre da própria petição inicial] o montante pedido de 67.393,98€ traduz a soma dos montantes correspondentes às facturas enunciadas nos artºs 4º a 10º da petição inicial (alíneas i) a v) da factualidade assente) e de onde não consta o montante enunciado no artº 15º da petição inicial (alínea dd) da factualidade assente).

Igualmente se mostra provado que relativamente aos actos médicos em referência na alínea Z, a ADSE pagou as facturas apresentadas pela autora, tendo solicitado a devolução do indevidamente pago, o que esta não fez, pelo que lhe foi instaurado processo de execução fiscal, já findo.

Atento o exposto, é incontornável que o acórdão recorrido proferido em 24.11.2016 ao dar relevância à factualidade constante da alínea Z e, por essa via ter concluído pelo incumprimento do contrato por parte da autora, imputando-lhe ilicitude [e mora] incorreu na nulidade, por condenação em objecto diverso do pedido, como sustenta o ora recorrente.

Face ao exposto, declara-se a nulidade do acórdão rectificativo proferido em 21.09.2017, bem como a nulidade do acórdão proferido em 24.11.2016 [no segmento objecto de recurso jurisdicional].


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E aqui chegados, declarados nulos os acórdãos proferidos no TCAS [com excepção do segmento que não foi objecto de revista] atentemos no recurso interposto pelo recorrente da decisão proferida pelo TCAS em 24.11.2016, sendo que, quanto ao erro de julgamento sobre a matéria de facto, esta questão se mostra definitivamente decidida, pois, não foi interposto recurso desta matéria, nem a mesma seria passível de objecto de revista.

Igualmente, se mostra decidida, com trânsito em julgado, a decisão do TCAS de 24.11.2016 que absolveu o recorrente Estado Português do pagamento de 19.975,97€, dado que esta questão também não faz parte do objecto do recurso [esclareça-se que o pedido formulado pela autora era de 67.393,98€ e o acórdão do TCAS apenas condenou o recorrente na quantia de 47.418,01€.

E atentas as decisões proferidas até agora, de declaração de nulidade dos acórdãos em causa, importa ter em atenção o disposto nos nºs 1 e 2 do artº 149º e, nº 3 do artº 150º do CPTA, impondo-se nesta sede de revista, o conhecimento do objecto do recurso, o que faremos de imediato.

Está definitivamente julgado e sem possibilidade de ser alterado, que o recorrente não teria de pagar à autora as quantias por esta solicitadas à ADSE no valor de 19.975,97€, por se considerar que estes valores são os referentes às horas e dias não previstas no contrato ficando por apurar se terá de pagar a quantia de 47.418,01€, o que analisaremos de seguida.

Como supra referimos, a autora intentou a presente acção, solicitando o pagamento da quantia de 67.393,98€ e respectivos juros de mora, relativo a facturas não pagas e decorrentes de serviços de estomatologia e de próteses dentárias, prestadas a utentes dos serviços da ADSE, entre 03.03.94 a 12.05.2003, na sequência de contratos celebrados de prestação de serviços de saúde em 03.03.94 entre a autora e a ADSE.

Em sede de contestação, defende o réu que:

a) Não é devido o pagamento pela ADSE do valor de 34.263,60€ porque diz respeito a serviços prestados fora do âmbito dos contratos celebrados;

b) Não é devido o pagamento pela ADSE do valor de 32.199,27€ porque a autora não fez prova da prestação de tais serviços a beneficiários da ADSE e o Réu só aceitará fazer esse pagamento se a autora conseguir fazer essa prova de que efectivamente correspondem a serviços prestados;

c) Os juros não são devidos porque não estão alegados nem provados os factos que demonstrem o incumprimento dos contratos por parte da ADSE, demonstrando-se, pelo contrário, que o não pagamento das facturas apresentadas pela autora se deveu a culpa exclusivamente sua.

Alega ainda o recorrente/Estado Português que, os contratos celebrados entre a autora e a ADSE constituem típicos contratos de adesão, em que o pedido de adesão é formulado pelo prestador de serviços, competindo a este formular concretamente o pedido de adesão; e tendo a autora concretizado no seu requerimento de adesão, para além dos locais, os dias e as horas em que pretendia dar as consultas comparticipadas, só no caso de a ADSE não concordar com a proposta é que esta entidade teria que notificar a autora da decisão devidamente fundamentada da sua discordância, sugerindo ou impondo eventual alternativa às condições propostas.

Sintomático de que assim era, é o facto de a autora nunca ter invocado nos autos, nem na auditoria de que foi alvo, que não cumpriu os dias e horas por si propostos para as consultas, por os mesmos não constarem dos contratos, por não ter deles conhecimento ou por não ter sido notificada da concordância da ADSE com a proposta por si apresentada. Ou seja, a autora, nunca pôs em causa a sua obrigação contratual de só dar consultas comparticipadas pela ADSE nos dias e horas por si indicadas na proposta de adesão ao acordo celebrado em 03.03.94, nomeadamente, ao admitir a facturação de actos prestados em dias não contemplados no acordo.

Alega igualmente o recorrente que, não constitui imperativo legal, a notificação, por carta registada com aviso de recepção, dos contratos celebrados [de natureza pessoal], pelo que competia à autora, se fosse caso disso invocar o seu não conhecimento dos termos acordados quanto aos dias e horas da prestação de serviço, o que não fez.

E, ainda que, a autora, teve perfeito conhecimento pela sua intervenção no processo, dos acordos celebrados, que a ADSE tinha concordado com a sua proposta, concluindo assim que a autora não tinha direito ao recebimento do montante de 34.263,60€, correspondente ao somatório dos montantes facturados relativos a serviços prestados fora do contrato, às terças, quintas, sextas e domingos no consultório do ………., e às sextas no consultório do …….., tal como vem discriminado na alínea “x” da factualidade assente.

Vejamos, sendo que para tanto, há que atender à factualidade que se mostra provada nos autos.

Logo, na als. b), da factualidade provada, resulta o conteúdo da informações interna nº 15 NR/GPR/94, donde resulta a identificação dos consultórios e os horários que poderiam ser praticados pela autora, a solicitação desta, com vista à celebração dos respectivos contratos, e com declaração de não haver inconveniente na aceitação do pedido assim realizado.

Sobre esta informação, foram exarados despachos de concordância – cfr. al. c) da matéria assente.

E de seguida, entre a autora e a ADSE, foram celebrados os contratos que se reproduziram nas alíneas d) e f) da factualidade assente, que foram devidamente homologados e, portanto, plenamente válidos quanto às cláusulas ali previstas, desde 03.03.1994.

Destes resulta que, a ADSE liquidaria as facturas apresentadas pela autora no prazo de 90 dias, reservando-se a ADSE no direito, de proceder a inspecções e auditorias, com vista a zelar pelo cumprimento dos contratos, sendo que os mesmos também podem ser denunciados ou rescindidos nos termos que deles constam.

E também resulta da factualidade provada que, a autora enviou à ADSE as facturas que constam das alíneas i) a v), não tendo sido no prazo legal, restituída dos valores ali constantes.

Só que, independemente de não se ter provado [atenta a prova testemunhal produzida] o horário em que a autora podia praticar os actos médicos constantes dos contratos, tal facto, por si só, não exclui a sua responsabilidade, uma vez que os horários a praticar, foram inclusive os propostos pela própria autora, não sendo crível que tivesse olvidado e desconhecesse algo que requereu.

Mas, independentemente desse facto e mais relevante do que isso, é a circunstância de, em 2003, ter sido efectuada uma auditoria à actividade da autora, relativamente à prestação de cuidados de saúde no âmbito dos contratos celebrados com a autora [e não com outros médicos, considerados terceiros nestes contratos] e, na sequência dessa auditoria, por despacho de 12 de Maio de 2003, o Director Geral da ADSE ter comunicado à autora a rescisão dos contratos e a suspensão do pagamento de todas as facturas pendentes, entre as quais as referidas nas als i) a v) da factualidade provada, até ao apuramento dos montantes totais facturados – cfr. als. aa) a cc).

Ora, tal decisão de suspensão dos pagamentos em curso, nos termos do disposto no nº 5 do artº 45º do DL nº 118/83 de 25/02, por força da auditoria realizada pela ADSE à actividade da autora, e posterior rescisão dos contratos, exime a ADSE do prazo de pagamento das facturas em 90 dias, e desobriga-a igualmente desse pagamento, até se apurar se a autora violou qualquer norma dos contratos em questão, prova que a autora não fez nos presentes autos – [denúncia que é válida para todas as facturas que constituem o objecto dos presentes autos, designadamente a prevista na al. hh) da factualidade assente].

E não havendo obrigação de pagamento, não se pode falar nem em culpa presumida, nem em facto ilícito, enquanto pressuposto da responsabilidade contratual, nem, consequentemente, em mora no atraso ou no não pagamento [artº 804º, nº 2 do Código Civil], pois inexistiu qualquer incumprimento por parte da ADSE.

Assim, resta-nos a conclusão que a autora, nos presentes autos, não logrou fazer prova de que o montante facturado e remetido à ADSE para efeitos de comparticipação tivesse de ser pago ao abrigo dos contratos, de natureza pessoal e individual, que com aquela celebrou, procedendo desta forma o recurso interposto pelo recorrente.

3. DECISÃO:

Atento o exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal em conceder provimento ao recurso interposto pelo recorrente, declarar nulos os acórdãos proferidos pelo TCAS em 24.11.2016 [excepto no segmento que não foi objecto de recurso jurisdicional] e 21.09.2017 e, julgar a acção improcedente, absolvendo o réu do pedido formulado.

Custas a cargo da recorrida.

Lisboa, 08 de Março de 2018. – Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) – António Bento São Pedro – José Augusto Araújo Veloso.